lundi 27 septembre 2021

A práxis solidária e a teologia da vida

A práxis solidária e a teologia da vida 
-- um manifesto a partir de Enrique Dussel 

Jorge Pinheiro


Devemos nos distanciar do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procurar definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia: a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas, tanto a favor da legitimação da dominação, que pode ser chamada de religião super/estrutural, como a favor da crítica da dominação, ou seja, da religião infra/estrutural. Entre os dois extremos situa-se um amplo campo religioso, ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que devemos traçar as questões centrais que envolvem realidade brasileira e dão forma à práxis do militante cristão. 

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada e inovadora. Como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas tem o seu centro e fundamento na pessoa real.


Discutir a religião como infra/estrutura e super/estrutura é superar a visão de que as lutas de emancipação no Brasil e na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienadas no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas. 

A religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao absoluto, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalidade do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião super/estrutural traduz esse processo de divinização do sistema europeu e depois norte-americano: significa des/historificar a totalidade social, dialetizar negativamente um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma compreensão não/histórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina. 

As massas, enquanto excluídas e passivas, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar a religião super/estrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente. 

A miséria religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa excluída, carente de sentido pleno de vida. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica do sofrimento enquanto expressão de santidade. A crítica da religião não descarta as necessidades reais daqueles que carecem de bens e possibilidades. A crítica da religião denuncia o mito da prosperidade mágica, para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como pessoa consciente. 

A tarefa do político cristão solidário consiste em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do cristianismo solidário, que se encontra ao serviço da vida, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica da política. 

A expressão religião infra-estrutural indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o excluído dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à super/estrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infra/estrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como sua responsabilidade o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova práxis. O fato de que a práxis religiosa infra-estrutural possa se tornar super-estrutural não nega o fato de que a crítica profética continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienadas e super-estruturais. 

O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar o absoluto, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o cristianismo solidário não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O cristianismo solidário surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana. 

A militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infra/estrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, oculta, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infra-estrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós. 

Assim, para o político cristão a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como essencialização da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência humana. 

O êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e práxis. Por isso, uma teologia da vida deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à práxis crítica do sujeito histórico, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia doenças, fome, terror e morte. As vítimas são os seres humanos, cuja dignidade e vidas são destruídas. 

A globalidade excludente e a onda de fascismização que ameaça nações e povos leva ao assassinato em massa e ao suicídio coletivo. A práxis solidária enfrenta, hoje, de um lado o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadradas dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que de forma factual ético-crítica se possa negar as causas da negação do excluído. Essa é uma luta des/construtiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz uma ação des/construtiva, promove transformações construtivas: leva à um novo momento com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente.








É tempo de reconstruir o Brasil

Solidariedade, é tempo de reconstruir o Brasil 
Jorge Pinheiro 


A solidariedade é um tema que aquece corações e desafia mentes. Edgar Morin, desde os tempos da Guerra Civil Espanhola, se debruçou sobre tal desafio e sua relação intrínseca com a economia e a política. Hoje vamos pensar, em vôo de pássaro, a reconstrução do Brasil levando em conta o papel da solidariedade. 

Façamos um breve balanço da pandemia, que eu chamo de peste. Em poucos meses transformou-se numa das principais causas de morte no mundo: matou mais de 3 milhões de pessoas em um ano e meio. 

Desde o seu aparecimento, a peste matou 3 milhões de pessoas para 140 milhões de casos registrados, de acordo com levantamento da Universidade Johns Hopkins, de 18 de abril de 2021. Os Estados Unidos são o país mais enlutado com mais de 1/2 milhão de mortos (para 31 milhões de casos). Seguem-se o Brasil com cerca de 400 mil mortos (para 13 milhões de casos) e o México, com 200 mil mortos (para 2 milhões de casos). A Índia está em quarto lugar, com 180 mil mortos (para 14 milhões de casos). 

Uma radiografia social 

As pestes são um fenômeno tanto de saúde quanto social. Elas mostram as vulnerabilidades estruturais da sociedade e desafiam o status quo. A pandemia de influenza de 1918 trouxe com suas tragédias grandes mudanças políticas e sociais no mundo: passou-se a ter uma nova visão, positiva, do movimento trabalhista e dos sindicatos, e criaram-se sistemas universais de saúde no correr das décadas seguintes. É verdade que essas mudanças se realizaram de forma diferente de um país para outro. 

Da mesma forma, a pandemia do Covid 19 evidenciou as desigualdades existentes em nossa sociedade, que afeta principalmente as pessoas marginalizadas, tornadas invisíveis ou desumanizadas, como idosos e deficientes físicos. Assim como, também, os milhares de encarcerados em prisões. 

Mas evidenciou também a situação daqueles que vivem em áreas onde a superlotação e a falta de acesso aos recursos são difíceis, como nas comunidades indígenas. Seus efeitos são modulados por local de residência, origem étnica, gênero, classe social. Corremos mais risco de sermos infectados com Covid 19 nos bairros onde as comunidades negras residem do que em outras regiões. As mulheres tiveram que absorver a parcela mais importante das chamadas tarefas domésticas, e as crianças de famílias pobres passaram a ter mais dificuldade em recuperar o atraso escolar acumulado. Sem falar nos impactos em escala global, onde a corrida por equipamentos e por vacinas amplia a lacuna do apartheid global. 

Os múltiplos exemplos de solidariedade que surgiram durante a pandemia revelaram as deficiências desta solidariedade na situação dita “normal”, deficiências causadas pelo próprio desenvolvimento da nossa civilização, que reduz enormemente a solidariedade sob o efeito do individualismo cada vez mais egoísta, juntamente com o efeito de uma compartimentação social cada vez mais fracionada. Na verdade, a solidariedade estava adormecida em cada um e despertou com o infortúnio vivido em comum. Para suprir a carência de poderes públicos, assistimos ao surgimento de um grande número de atos e iniciativas de solidariedade: produção alternativa à falta de máscaras por empresas reconvertidas, roupas artesanais ou domésticas, agrupamentos de produtores locais, entregas ao domicílio gratuitas, ajuda mútua entre vizinhos, alimentação distribuída a moradores de rua, acompanhamento de crianças e contatos mantidos nas piores condições entre professores e alunos”. (Edgar Morin, Necesitamos funerales para despedirnos, y otras lecciones de la pandemia, El País online, 05.11.2020).


Outras medidas importantes foram adotadas por diferentes governos no contexto da peste: benefício de emergência, proibição de despejo de moradias, liberação de presos, planos de regularização de pessoas sem status, abertura de quartos de hotel para acomodação de pessoas na falta de moradia, colaboração internacional em pesquisa científica, planos de ação sobre mudanças climáticas, que estão intrinsecamente ligados às pandemias. Essas intervenções são reformas de pequena escala que estabelecem as bases para novas políticas necessárias. 

Assim, essa pandemia, como a de 1918, nos força a ver nossas fraquezas em meio à dor e às lágrimas. E nos coloca frente a frente com as falhas dos sistemas que construímos. Também nos mostra como corrigi-los. A decisão de fazer isso depende de nós. 

Solidariedade e novas possibilidades 

A pandemia apresenta possibilidades para perceber a fragilidade do mundo. Questiona as interações entre meio ambiente e saúde e o papel da biodiversidade em sua propagação. Refletindo uma visão solidária da saúde pública, pode ser o prenúncio de uma democracia da saúde se a política de saúde se tornar um assunto coletivo e não for mais reservado estritamente a políticos e profissionais de saúde. Esta crise nos exorta a ir além do caráter rotineiro da existência para nos aproximar de uma segunda via. É, este é o desafio, devemos buscar uma maneira diferente de viver. E a solidariedade se mostra como caminho, já que durante a pandemia nos tornamos conscientes de nossa dependência e vulnerabilidade. Assim, pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado da vida. 

A crise também estimulou uma série de iniciativas, que buscaram diferentes remédios para os males que a pandemia causou ou agravou. Textos de intelectuais, cientistas, médicos, depoimentos, sugestões, apelos de artistas solidários e também reflexões e propostas de cidadãos para diagnosticar, prever e expor as bases de uma nova política que visa reformar e até transformar a sociedade.” (Edgar Morin, idem). 

É, de novo afirmo: pandemia versus solidariedade nos confrontam com a questão do significado -- o confinamento é fonte de angústia. O desaparecimento de reuniões, refeições compartilhadas, ritos de amizade fecham as cidades em uma economia doméstica incerta. Porque toda vida foi e está exposta. 

Na medida em que a saúde de cada um depende da saúde de todos, só um serviço público de saúde, equipado com material e pessoal necessários ao seu bom funcionamento, pode permitir-nos evitar outras pestes. Para Morin, “esta crise deve abrir as nossas mentes, há muito confinadas ao imediato”. Porque por trás disso estava a corrida pela rentabilidade, a digitalização da sociedade, a economia just-in-time, a transferência dos serviços públicos para os mercados. Estas fragilidades da sociedade que construímos exigem uma reflexão estratégica sobre nosso futuro comum. 

A crise em uma sociedade desencadeia dois processos contraditórios. O primeiro estimula a imaginação e a criatividade na busca de novas soluções. A segunda pode ser traduzida em uma tentativa de retornar a uma estabilidade anterior ou de se inscrever para uma salvação providencial. A angústia provocada pela crise motivou a busca e denúncia de um culpado. Esse culpado pode ter cometido erros que causaram a crise, mas também pode ser um culpado imaginário, um bode expiatório que deve ser eliminado” (Morin, idem). 

Estou convencido de que existem possibilidades positivas além desta pandemia, se ela nos permitir tomar consciência de nossas fraquezas e voltarmos a nos concentrar no essencial. No entanto, essa compreensão não pode atender apenas à parte mais precária da população, aquela que paga o preço mais alto pela pandemia. As medidas de contenção amplificam as desigualdades. O fechamento da economia aumenta a precariedade e a transforma em pobreza. É essencial, a curto prazo, organizar a ajuda às famílias e empresas em dificuldade para lidar com o vírus. Mas é fundamental, a médio prazo, mobilizar as lições da crise para lançar as bases de economia e políticas solidárias. Devemos propor o retorno ao estado de bem-estar social. 

A indústria deve ser reconvertida para poder produzir equipamentos médicos e medicamentos, mas também equipamento de triagem, reposição de estoques e produção de máscaras. E, logicamente, devemos manter as medidas de barreiras sanitárias. Mas, para além da emergência sanitária, a injeção de liquidez na economia real, já iniciada em alguns países, tanto a nível nacional como comunitário, deve estar presente na economia solidária, evitando que este capital acabe em mercados especulativos. E atenção, deve ser terminantemente proibida a especulação sobre os títulos da dívida pública. 

Uma política solidária de emprego ativa é absolutamente necessária para fazer face ao desemprego que se fez presente. Provavelmente, estará ligada ao setor de serviços, de suporte, de atendimento e de utilidade social, mas também à produção e comercialização de alimentos. 

Finalmente, a política social solidária deverá ser renovada através da reavaliação dos mínimos sociais, um aumento geral dos salários e das pensões mais baixas. Nesta mudança de paradigma, as autoridades e seus parceiros sociais têm um lugar especial a ocupar. Primeiro porque a crise mostrou que é a nível local que ocorre a mudança. E segundo porque não é possivel enfrentar tal crise seguindo uma política de especialistas, que se sentem muito seguros de suas habilidades para ouvir aqueles que estão vivendo na carne a pandemia que se abateu sobre o planeta. 

A pandemia está abrindo perspectivas e possibilidades solidárias. E se você entender isso, assim como os governos que você eleger, um Brasil solidário será possível. Pense como e em que medida você será necessário nesta nova etapa que se abre.