vendredi 31 janvier 2020

Thomas Münzer a partir de Engels e Tillich

Thomas Münzer a partir de Engels e Tillich

Segundo Friedrich Engels (La guerre des paysans en Allemagne. Introduction, traduction entièrement revue et notes d’Émile Bottigellli. Paris: Éditions Sociales, 1974, pp. 146-147), Thomas Münzer sentiu o abismo entre suas teorias e a realidade que tinha diante de si. Atirou-se com zelo na organização do movimento. Escreveu mensagens, cartas, e enviou emissários em todas as direções. Seus escritos e sermões respiravam um radicalismo surpreendente. O humor e ingenuidade de seus panfletos anteriores desapareceram. O pensador tranqüilo desapareceu. 

Münzer era agora o profeta da revolução. Expressava seu ódio contra as classes dominantes, e empregava um linguajar violento que ressuscitava o delírio religioso e nacional dos profetas do Antigo Testamento. Usava, sem dúvida, um estilo adequado ao nível da cultura dos camponeses. 

Nos condados e ducados, os camponeses revoltaram-se, formaram milícias, queimaram castelos e mosteiros. Münzer, já então, era reconhecido como o líder do movimento em Mühlhausen e manteve aí o seu foco. Mas era visto como o profeta da revolução em todos os lugares onde os camponeses se rebelavam.

Os príncipes ficaram impotentes diante dos levantes camponeses. Somente nos últimos dias de abril, os príncipes de Hesse foram capazes de reunir um exército, sob o comando de Landgrave Philip, um homem sanguinário. Com suas tropas entrou em Fulda, depois, a três de maio, derrotou a resistência em Frauenberg e subjugou toda a região. Dirigiu-se para Eisenach e Langensalza, ocupou-as, e lançou suas tropas em direção às terras do duque da Saxônia, contra o foco principal da revolução, Mühlhausen. 

Münzer reuniu as suas forças, cerca de oito mil combatentes com poucas armas. Os combatentes de Thuringian não tinham preparação militar. Estavam mal equipados, eram indisciplinados, tinham poucos soldados experientes e nenhum líder militarmente capacitado. 

Münzer também não tinha o menor conhecimento militar. E, os príncipes, políticos espertos, utilizaram a mesma tática que tantas vezes os ajudaram a conquistar a vitória: a mentira. No dia 16 de maio, começaram as negociações com os camponeses e fizeram um armistício. Quanto menos se esperava, atacaram, antes do armistício expirar. 

Münzer estava com sua família no monte de Schlachtberg, entrincheirados. O desânimo com o ataque tomou conta dos camponeses. Os príncipes, então, prometeram uma anistia geral, se entregassem Münzer vivo. 

Münzer reuniu um grupo para discutir as propostas dos príncipes. Mas foi traído, rodeado, dominado e imediatamente retirado da liderança. Um cavaleiro e um padre declararam a capitulação. Essa tática de infiltração e terror gerou confusão na milícia anabatista. Alguns resolveram resistir sem o líder, outros se deixaram influenciar pela propaganda dos mercenários dos príncipes. O exército de Landgrave Philip, avançando em colunas estreitas, atacou. As balas atingiram os camponeses desarmados e inexperientes. Após um breve combate, a resistência se desarticulou e se dispersou. Fugiram numa confusão terrível, e foram mortos pelas colunas e cavalaria. Foi um massacre sem precedentes. Dos oito mil camponeses, cinco mil foram massacrados. Depois foi a vez de Frankenhausen. A cidade foi tomada. Ferido na cabeça, Münzer foi encontrado em uma casa e feito prisioneiro. Em 25 de maio, Mulhausen se rendeu. Pfeifer conseguiu fugir, mas foi detido na região de Eisenach. 

Münzer foi submetido à tortura, na presença de príncipes e decapitado. Caminhou até o local da execução com a mesma coragem que demonstrou toda a sua vida. Não tinha mais de vinte e oito anos. Pfeifer também foi decapitado, assim como muitos outros. Em Fulda, um homem de Deus, Filipe de Hesse, iniciou sua justiça sangrenta. Ele e os príncipes saxões executaram 24 pessoas em Eisenach, 41 em Langensalza, 300 após a batalha de Frankenhausen, em Mulhausen mais de 100, em Goermar 26, em Tungeda 50, em Sangerhausen 12, em Leipzig 8, sem falar das pilhagens e mutilações, e da queima de vilas e cidades. 

Para Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. O espírito religioso, explica Tillich, está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. E essa santificação da vida cultural no socialismo é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Para Tillich, há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxista da história.

O princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos.

E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal.

As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem e serão derrotadas. 

Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico. 

Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e o marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos.

Tillich afirma que tanto o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça.

Dessa maneira, para Tillich, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. 

Mas para Tillich, a analogia estrutural entre o espírito profético e o marxismo não se limita à interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do humano. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do ser humano, que se apresenta como doutrina cristã do humano.

O ser humano, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial, explica Tillich. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o humano não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder.

Para Tillich, o cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia.

Mas a analogia entre cristianismo e marxismo vão mais longe ainda. Vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social.

O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica.

Dessa maneira, para Tillich, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade.

Da mesma maneira, sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “humano espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser.

Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados.

Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana.



Thomas Münzer teologo della rivoluzione

Intervista al Prof. Stefano Zecchi (Università Statale di Milano).
Servizio di Nicola Alessandrini e Cinzia Carantoni.

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Thomas Münzer teologo della rivoluzione

25 mars 2012








jeudi 30 janvier 2020

A aberração do Cristo

A aberração do Cristo
Jorge Pinheiro, PhD



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Bem, vou lembrar e recorrer a um filme que marcou minha vida jovem. Em 1967, Jean-Luc Goddard a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de Paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo, fez “Duas ou três coisas que eu sei dela”, que apresenta uma Paris dos anos 1960, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do Vietnã. Numa reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de Slavoj Zizek e John Milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.

Tal abordagem, como o amor de Goddard por aquela Paris, também parto do coração. E nasceu no jovem sefardita, marxista, militante, que mais tarde, já na terceira década de vida, reconheci no rabino de Nazaré o mashiah esperado. E é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo do Cristo pensado por Zizek.

Slavoj Zizek e John Milbank discutiram a aberração/monstruosidade do Cristo, pensando paradoxo e dialética. Nesta discussão, Zizek apresenta a possibilidade de um materialismo da fé cristã e a deidade do Cristo, ou seja a encarnação do Criador. Mas Milbank, a partir de uma leitura ortodoxa, podemos dizer tomista, faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia.

Nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir da aberração do Cristo/ do Mashiah: a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir, mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber; a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética, mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética; e como terceira coisa que penso nesta introdução, é que na modernidade o Yeshua era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o Yeshua precisa ser entendido como aná-logos.

Ora, estas três percepções permitem leituras críticas da aberração do Mashiah, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa espiritualidade e alta-modernidade.

Como sefardita, ou seja, do povo da estrela, que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a aberração da encarnação e o mesmo acontece com todos aqueles não-cristãos que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou judeus e essa aberração da encarnação, deus/homem, homem/deus, não desafia apenas Zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.

Quando pensamos a espiritualidade a partir da América Latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se autossuficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre Slavoj Zizek e John Milbank. 

A ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de Hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de Milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. Tal situação teve justificação teológica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei, por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade. Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora. 

No final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram uma expansão que chamaram analética. A expressão foi cunhada por B. Lakebrink e traduzia uma releitura da analogia tomista. Mas foi Scannone o primeiro a utilizar o conceito, opondo totalidade e alteridade, ao dizer que tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, era analético. 

Assim, Dussel e Scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica, o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo, além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, deixando de ser tal para destacar-se como fundado. Mais tarde, Dussel dirá que seu método parte de Lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. A princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em Dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.

Em 1976, teólogos reunidos em Dar-er-Salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia e, por extensão a espiritualidade, tem que levar em conta a interrelação entre as teologias e a análise política, psicológica e social, quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do Espírito no mundo e na história é contínua. É importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano e nas estruturas socioeconômicas. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana e, por isso, exigem fazer do evangelho um bem novo para o pobre. São exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma espiritualidade que chamamos da libertação.

Em América Latina dependência e libertação, Dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade, o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs um processo civilizatório de via única. 

Uma afirmação de Zizek – devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a realidade objetiva. A realidade se dissolve em fragmentos subjetivos, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva e nos remete à questão do paradoxo.

O esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do mashiah, a partir da ontologia do paradoxo, nos leva à frase exposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século terceiro, credo quia absurdum!, creio porque é absurdo. 

Este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano e a fechar os olhos e a dizer como o fez um rabino chamado Shaul, que ficou conhecido como Paulo, o pequeno: os judeus pedem um sinal e os gregos a sabedoria, mas nós pregamos a Yeshua crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos.

Absurdo, escândalo, paradoxo, tudo como fundamento da fé. Essa mesma emunah que justifica Abraham em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o filho da promessa. Logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo, não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, já que somos incapazes de compreender.

Ora, desde Paul Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta introdução sobre espiritualidade e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis espiritual.

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis, pois, desenvolve o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética. 

Espiritualidade na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente. E, assim, a fé nasce como ato da inteligência, é um modo de ver quem é, ou o que é, que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê. Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. Assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.

Para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. Mas falar diante de quem? Na modernidade, este falar diante nos levou a leitura formal do ir: deveríamos ir para falar diante. Ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida cristã, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. Vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é receber e viver a realidade da fé no chão da vida. 

A espiritualidade libertadora reconhece a vida a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.

Ora, a ação espiritual é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.

A analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. A lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro, anulando-o em sua alteridade. Porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de Heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar a espiritualidade.

Analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro, como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença. O princípio não é o de identidade, mas de distinção. O momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala, por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do excluído e expropriado.

Desde o século dezesseis, a América Latina é um continente ontologicamente oprimido por uma vontade de poder exercida na totalidade mundial pela Europa. Vontade de poder é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade: a América Latina tem então como ideal ser europeia.

Na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. Esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. Sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático. 

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade, é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso:é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, inovadora. Só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema como consequência. A analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de pessoas, gêneros, crenças, de uma geração, de um tempo e da espécie humana. 

A questão pedagógica não é tratada por Heidegger porque pensa que o ser-no-mundo procede unicamente da pessoa, mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. É no processo pedagógico que se organiza o meu mundo, quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo. 

A analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. Quando não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação pessoa/pessoa -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. O momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. Isso implica derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema. 

Ao citar Bento XVI, de forma crítica, Zizek diz que o papa condenou o secularismo sem Adonai, ocidental, no qual o dom divino da razão foi deturpado em doutrina absolutista. A conclusão do papa parece clara, pois razão e fé deveriam se juntar de uma nova maneira e descobrir seu fundamento comum no logos divino. E seria para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que deveriam nortear o diálogo entre as culturas. 

Mas será mesmo? Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo e como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo. 

Dialético é um a-través-de, analético é logos que vai além. No logos, num primeiro momento surge a palavra interpelante, mais além do mundo. Este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. A leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. Este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando o dia em que possa viver com o outro e pensar sua palavra.

Os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por Lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por Heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. Mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. Para este, que está mais além, a dialética não basta, é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. Partimos da crítica de Lévinas, mas em Lévinas o outro é um outro abstrato. Lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. Seu método se esgota no começo. Por isso, há que ir mais além de Lévinas e, por suposto, além de Hegel e Heidegger. Mais além que estes por serem ontólogos e mais além que Lévinas por este permanecer numa metafísica da passividade e numa alteridade equivocada. 

Zizek diz que não há provas – e não pode haver – de que Deus exista. Mas em vez de ser motivado por provas, o fiel, seja ele judeu, cristão ou muçulmano é motivado pelo desejo de que Adonai exista. Essa, no entanto, é a melhor prova de que Deus não existe, pois uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe, o teísmo é a melhor prova da não existência de Deus. Isso é o que Lacan afirma: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros. 

Mas será assim tão simples? Depois da questão judaica, Marx faz a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para Marx elas são a expressão da miséria. Mas também faz a crítica da religião quando analisa o fetichismo da mercadoria, porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. Mas por que é assim? Em que consiste essa leitura do mundo real? Porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos, mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. Essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. O fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião: a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente. 

Uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. Há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. Entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? Quando a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que, enquanto razão crítica, esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.

É a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes, que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. Mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? Ora, a espiritualidade é a consciência ilustrada da práxis judaico-cristã. Agir no espírito pode vir de uma comunidade estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. Por isso, a espiritualidade judaico-cristã está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.

Ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Na verdade, não tem as mãos livres quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados. O êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. Por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.

O sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. A alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. São os cavalos do apocalipse. É o fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro. 

Cabe, por isso, à espiritualidade libertadora levantar uma ética enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. A esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e a paranoia fundamentalista.

Aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, para a construção do Reino, que se realizará com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. E a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo crístico, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática. E isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.

É por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

E volto ao Goddard de Duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem. Só que em seguida vemos Juliette andando por Paris e dizendo: mas o mundo sou eu. 

Linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. É nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. Não há paradoxo porque o Yeshua é análogo e o método é analético. Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.

Mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva, nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica e Deus é nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e o Mashiah já não é aberração ou paradoxo, mas análogo. E é nesse sentido que Deus é, e o Mashiah é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente. 

Mais uma vez quero convidar você a fazer esta viagem, onde os textos se imbricam em reflexões a partir da filosofia, teologia, política e vida. 

Bibliografia

DECLARAÇÃO de teólogos do Terceiro Mundo, Dar-er-Salam, Tanzânia, 1976, Tese 32.
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Existência & desafio
Fonte Editorial


















mercredi 29 janvier 2020

Por uma teologia da vocação

ESCOLHA E DESTINO
Por uma teologia da vocação
Jorge Pinheiro

“Pois sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano. Porque aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos. Assim Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Romanos 8. 28-30.

Introdução

É difícil entender a profundidade do capítulo oito da epístola de Paulo aos Romanos se não entendemos a religiosidade helênica e seu conceito de destino. 

A antiga religião dos deuses olímpicos, explica Naécia Simões, após a dissolução da pólis, deixou um vazio que as correntes filosóficas do mundo greco-romano procuraram preencher com maior espiritualidade, nos termos de uma necessidade religiosa não racional. Quando apareceu o cristianismo, tornou-se conveniente e necessário à mentalidade pagã “examinar esta fé que reúne adeptos tão fieis, avança por todas as terras e, curiosamente, com recursos intelectuais emprestados à própria tradição clássica, parece aplicar com eficiência as formas necessárias para fazer-se entender por todos, gentios e cristãos”.

Para homens e mulheres da época de Paulo a questão do destino era tema crucial, porque acreditavam que deuses e demônios se divertiam com o sofrimento humano. E esse viver manipulado por deuses e demônios, os gregos e romanos chamavam de destino. Teologicamente, dentro da cosmovisão helênica, destino pode ser definido como potência  misteriosa e personificada que rege o devir universal, incluindo o curso da história humana, sem qualquer possibilidade de intervenção da vontade ou da previsão do ser humano. O destino era entendido como uma lei cega, fixada de antemão, que não se conhece e sob a qual todos estão sujeitos e dela não conseguem escapar. Traduzia uma negação, a impossibilidade da liberdade humana. Um bom exemplo é Édipo, o herói da tragédia grega.

A partir do destino demoníaco, o mundo helênico criou uma teologia de culpa e castigo, onde um profundo pessimismo atravessava o pensamento religioso da época, tanto no mitraísmo, quanto nos cultos de mistério. 

O mitraísmo tinha como centro o culto ao deus Mitra, visto como intermediário entre os seres humanos e o Deus supremo. Havia nesta colocação algo similar ao credo cristão, com o qual concorreu, principalmente no terceiro século, ao tempo do Império Romano. Forte concorrente da fé nascente, por suas afinidades, o mitraísmo deixou fortes marcas de sua influência sobre as duas primeiras faces do cristianismo: o romano e o ortodoxo.

As religiões de mistério, místicas e de cultos extáticos, criavam nos seus devotos uma atitude muito propícia para a pregação cristã, porque alertavam para o fato de que por si só nenhuma criatura pode chegar a Deus. Mas esta verdade, sem a componente da graça, desembocava num labirinto: o que fazer? Mas, se por um lado, fatores propícios possibilitaram o diálogo, por outro também deixaram marcas nas correntes místicas do cristianismo medieval e moderno. Muitos teólogos entenderam esse processo. Tillich, por exemplo, em suas reflexões, nunca deixou de lado os aspectos universalizantes do fenômeno místico. “Essa preocupação com o místico aparece também nos textos editados de suas aulas sobre a história do pensamento cristão e dos movimentos teológicos dos últimos dois séculos. Por isso ele ressaltou as religiões de mistério na elaboração da teologia cristã primitiva”.

Ameaçado pelo destino demoníaco, o mundo helênico ansiava por um destino salvador, necessitava graça. E essa é a discussão que Paulo entabula com a religiosidade helênica no capítulo oito de Romanos.

A liberdade do cristão

Em sua carta aos Romanos, Paulo analisa três questões centrais: do capítulo primeiro ao oito fala da justificação pela fé; do capítulo nove ao onze discute a separação temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus, e do capítulo doze ao dezesseis apresenta exortações práticas.

Ao analisar a justificação, Paulo mostra que a libertação humana repousa sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não de aspectos externos, seja a lei de Moisés ou os principados e potestades, o mundo do zodíaco e deuses e demônios da religiosidade helênica. Essa misericórdia de Deus não provém de aspectos externos, estejam eles no céu ou na terra, na vida ou na morte, porque o homem, em sua natureza, não tem como responder às exigências de Deus.

A graça provém de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa a alienação humana. A liberdade da vida cristã, que é espontaneidade e criatividade diante da lei, e vitória diante de principados e potestades, do mundo do zodíaco e de deuses e demônios, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo fez por ele.

Temos no trecho em análise (Rm 8.28-30) dois blocos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, 28-30, que trata do chamado e vocação do cristão. 

O bloco maior nos dá a linha de pensamento de Paulo: uma seqüência de análises sobre a vida: emancipada (versos 1-11), exaltada (12-17), esperançosa (18-30) e exultante (31-39). Dessa maneira, no capítulo oito, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre o destino demoníaco e os crentes experimentam a liberdade cristã.

É interessante notar que o texto de Romanos oito, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir: "Atualmente, por isso, nada em absoluto” pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, está relacionada ao capítulo sete, onde Paulo mostra que lei e pecado não são sinônimos, e que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana, entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7.24), interessa a Paulo enquanto instrumento da vida. Submetido à tirania da carne (7.5), à alienação e à morte (6.12+; 7.23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7.25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá seqüência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

É a partir desta hermenêutica, delineada nos passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8.28-30 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

A dimensão trinitária

Escolha, chamado, vocação, missão e destino são conceitos cujos conteúdos têm núcleos de compreensão que se cruzam e se completam. Para entender tais conceitos, e em especial o de vocação, que Paulo apresenta em Romanos, vamos partir da relação existente entre a igreja e o relacionamento expresso na Trindade. 

A igreja é unidade, diversidade e comunhão da comunidade cristã que traduz a unidade, diversidade e comunhão do Pai, Filho e Espírito Santo. Nesta linha de raciocínio, o Pai é o horizonte último, o Filho é a exemplaridade definitiva de como corresponder ao Pai, e a vida no Espírito é o ser cristão concreto. 

Nesse sentido, explica Sobrino, a tarefa mais urgente da Cristologia, por causa da declaração doutrinária de que Cristo é o Filho de Deus, “não consiste tanto em re-interpretar in recto o dogma cristológico, o que continua sendo uma tarefa importante, e sim se re-situar o caminho do crente para que sua vida seja pro-seguimento de Jesus e assim ela seja também o processo de sua filiação concreta”.

Por isso, muda também a relacionaridade da igreja com o mundo: a igreja não é mais o lado adulto, completo, da secularidade, mas sinal e instrumento, memorial para a libertação integral de homens e mulheres. A partir desta compreensão devemos entender o sentido eclesial da vocação de pastores, ministros e missionários, e o sentido secular da vocação de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto pessoas chamadas à comunhão com a Santa Trindade de Deus. Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho e à obra do Espírito Santo.

Esta dimensão trinitária da escolha e chamado mostra a ligação que existe entre a vocação, a vida e a espiritualidade. Escolha e chamado direcionam a um relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade concreta. A escolha é psiu de Deus. O chamado inicia um diálogo que pode levar a um encontro com Ele. Mas vocação é uma sedução, uma conquista do coração por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um casamento.

Por ser um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação implica em santidade, plenitude da vida cristã e perfeição do amor. Vocação é, então, comportar-se como o Pai se comporta. A santidade é uma prerrogativa de Deus. Deus é santo porque é totalmente diferente dos seres humanos e do mundo, porque ama e acolhe as pessoas. 

Somos chamados a participar da santidade divina. A santidade consiste em ser perfeito no amor e o amor é o distintivo dos cristãos. Ser santo significa fazer a diferença, responder aos desafios de cada época num serviço sem medidas. Mas esta mesma santidade é vivida de formas diferentes em razão da diversidade dos dons, dos serviços e dos ministérios.

Quando partirmos de Romanos 8.28, -- “sabemos que todas as coisas trabalham juntas para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles a quem ele chamou de acordo com o seu plano” – vemos que em Deus todas as coisas, circunstâncias, projetos e sonhos, trabalham juntas para cumprir um propósito, dentro de um plano de Deus.

Por isso, vocação não é isolamento, mera busca de satisfações ou realização pessoal. Não é apenas construção de projetos pessoais, mas dar a vida pela defesa da vida. Vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. É responder ao chamado inserindo-se na vida da comunidade. É tomar parte ativa na construção do Reino. 

Na vocação somos comunidade, participamos na vida e na missão da igreja. Estes são elementos que não podem ser esquecidos, nesta contemporaneidade marcada pelo individualismo.

Vocação enquanto chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade. Faz parte da vocação o compromisso de reproduzir na igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe na Trindade de Deus. A participação na comunhão trinitária exige comunhão fraterna entre nós. Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando não se traduz no relacionamento com os irmãos. 

Não é autêntica a vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação. Esta vida de comunhão é o que dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos vivendo realmente numa intensa comunicação com a Trindade.

Humanos e cristãos

O capítulo 8.29 de Romanos nos diz que “aqueles que já tinham sido escolhidos por Deus ele também separou a fim de se tornarem parecidos com o seu Filho. Ele fez isso para que o Filho fosse o primeiro entre muitos irmãos”. Ou seja, fomos escolhidos e chamados pela graça para sermos parecidos com seu Filho, realizarmos um serviço, uma missão.

Devemos ser imagem do Pai, imagem do Filho, imagem do Espírito, e é isto que faz com que a vocação seja comunhão com a Trindade, que se traduz na experiência do cristão na igreja e no mundo. Segundo teólogos como Bonhoeffer e Schillebeeckx, a pergunta humana da experiência deve sempre ser posta em correlação com a resposta da fé. Essa correlação só é obtida se a pergunta humana pode ser configurada como pergunta que tenha sentido, a respeito da realidade e da experiência, à qual se segue uma resposta humana que tenta articular um sentido, mas que recebe somente da resposta cristã uma superabundância de sentido, um sentido último e definitivo. Quando falamos de vocação, tal correlação pode ser traduzida em três dimensões, que marcam a vida do vocacionado. Nenhuma destas dimensões subsiste em separado, mas estão correlacionadas.

Para Oliveira, a primeira dessas dimensões, a humana, é o chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano enquanto imagem de Deus. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Ela só se concretiza nas relações interpessoais, sejam elas as da família, da amizade, das comunidades pequenas ou grandes de que participa o ser humano. Não é possível falar de vocação, deixando de lado as exigências da natureza humana. 

A segunda dimensão, a cristã, é o chamado a viver a santidade através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Cristo na comunhão e cooperação com os demais. Esta dimensão da vocação se traduz numa tríplice missão: profética, sacerdotal e real. Isto leva à dignidade de todas as vocações e de todos os membros do corpo de Cristo. Existe uma variedade de vocações, de dons, mas todos possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém. Isto mostra que, em Cristo, a partir do serviço e da obediência, todos temos a mesma missão.  

A terceira dimensão, a particular, é toda vocação, que mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada. Cada cristão responde a escolha e chamado do Pai de acordo com os dons recebidos do Espírito Santo. A vocação particular é a forma concreta que permite a cada cristão dar sua contribuição para a construção do reino de Deus. Esta dimensão particular da vocação remete à singularidade de cada pessoa. Mas há diversidade também de aptidões, de qualidades pessoais, como as circunstâncias diferentes nas quais brotam e se desenvolvem os chamados de Deus. Mas mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão deve direcioná-la para a comunidade. Se o Espírito Santo distribui os dons a cada um conforme ele quer, Ele o faz para o bem e uso de todos. 

Missão e destino

De volta a Romanos (8.30) vemos que “Deus chamou os que havia separado. Não somente os chamou, mas também os aceitou; e não somente os aceitou, mas também repartiu a sua glória com eles”. Ora, a escolha e chamado do Pai, a aceitação através do sacrifício vicário de Jesus é completada na glória da ação do Espírito Santo sobre nossas vidas.

Por isso, o dinamismo da vocação está ligado à escolha e ao chamado, à missão e ao plano de Deus para cada um de nós. Nesta dinâmica, os dons são diferentes capacitações entregues para a realização de serviços diferentes, a partir de diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos dizer então que os dons são capacitações do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade. 

Os dons são potencialidades para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação particular. Existe, pois, pluralidade de dons. Para cada forma de vocação pode existir uma diversidade de dons. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os dons não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns. 

Dons e vocação não são fins em si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer pensar missão. Dentro de uma teologia evangélica da vocação é preciso destacar a missionariedade da Igreja. Toda a igreja está sujeita à missão. Esta missionariedade deve ser vivida em todos os níveis. Missão não é somente evangelizar, anunciar a salvação, mas viver a boa nova da libertação operada por Cristo dentro da situação atual do mundo, ajudando à humanidade a fazer a história, a contribuir para uma nova criação, construindo no aqui e no agora uma sociedade nova e diferente.

A missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, é sempre uma missão de compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade. A missão leva o cristão a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles que sofrem. Por ser serviço à humanidade, vocação e missão possuem uma dimensão pessoal e uma dimensão comunitária. Pessoal, enquanto cada crente tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da igreja. Comunitária porque esta missionariedade foi confiada à igreja, enquanto comunidade convocada e reunida pela Trindade.

Esta realidade nos obriga a entender que a iniciativa divina do chamado é dirigida à pessoa humana livre. É indispensável por isso entender a questão do destino na sua relação com a dinâmica do chamado do Senhor. 

Dentro da visão paulina, destino, no sentido de que os limites estão dados de antemão, é a correlação entre lei e espontaneidade. Destino traduz uma relação dialética com liberdade: destino e liberdade são polaridades; destino implica que a liberdade está sujeita à lei; destino implica que liberdade e lei são interdependentes e complementares. Para Paul Tillich, liberdade e destino formam uma polaridade ontológica, onde a descrição da estrutura ontológica básica e seus elementos atingem tanto sua realização, quanto seu ponto decisivo: “O homem é homem porque tem liberdade. Mas ele tem liberdade só em interdependência polar com o destino”.

Analisando o conceito cristão palestino de destino, exposto por Paulo, podemos dizer que há uma interdependência entre lei e espontaneidade, de tal forma que destino e liberdade se encontram intrinsecamente entrelaçados. Só quem tem liberdade tem um destino, explica Tillich. “As coisas não têm destino porque não têm liberdade. Deus não tem destino, porque ele é liberdade. A palavra destino aponta para algo que está para acontecer a alguém; ela tem conotação escatológica. Isso a qualifica a estar em polaridade com liberdade. Ela aponta não para o oposto da liberdade, mas para suas condições e limites”. 

A certeza de que o destino cristão está prenhe de graça tem um significado realizador e não destruidor e, por isso não é demoníaco, ao contrário, é a peça-chave do pensamento de Paulo, quando coloca Cristo acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão plena do destino não está ao alcance do homem, pois há nele uma componente escatológica que escapa ao conhecimento humano.

A verdade incondicional de Deus não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas mesmo assim, podemos e devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo em que a verdade pode ser revelada aos seres finitos e históricos.

Quando mantemos uma relação com o Cristo eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nossa vocação. Podemos reconhecer que desde o princípio nossa vocação esteve submetida ao destino e que muitas vezes desejou livrar-se dele, mas nunca conseguiu.

Na análise cristã do destino, Cristo e o tempo de Deus estão relacionados. Cristo leva ao tempo de Deus. Cristo envolve e domina os valores universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Na vida do cristão a separação entre Cristo e a existência chegou ao fim. Cristo alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco ao Cristo, mas porque é a expressão de seu próprio caráter, de sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto existência quanto conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento que transcende o destino: a revelação.      

Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui potencialidades, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maiores as potencialidades do ser, que crescem à medida que é envolvido e controlado pelo Cristo, mais profundamente está implicado seu conhecimento do destino.

Partindo da liberdade que nos foi dada, enquanto imago Dei, nosso destino, que deve ser entendido como manifestação do desígnio do Pai, da missão do Cristo e da obra do Espírito Santo, é o projeto de Deus para nossa vida. Destino é servir à Trindade, num tempo novo, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais nos aproximamos da compreensão de nosso destino, no sentido de estar colocado, de ser proposto, tanto mais seremos livres. Então, nosso trabalho, nossa vocação será plena de força e verdade.

O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, mas um chamado que é feito através de mediações concretas. Deste modo a pessoa pode dizer sim, fazendo acontecer a história da libertação, ou dizer não, distanciando-se da missão e do destino que nasceram do projeto de amor do Pai, do Filho e do Espírito.

Igreja e vocações

No que tange às vocações particulares, convém observar que a vocação do cristão é a vocação comum da qual dependem as vocações ministeriais e seculares. Tal vocação de vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma: somos chamados a contextualizar o significado do ser cristão na vida da comunidade onde vivemos e dentro da qual nos relacionamos. A questão da especificidade de vocação, na igreja e na sociedade, passa por ser seguidor radical de Jesus, profeta e sinal visível da radicalidade do Evangelho. 

A vocação de pastores, ministros e missionários, e de trabalhadores, profissionais e empresários deve determinar o específico destes ministérios. Por exemplo, ainda é forte o monopólio por parte de pastores, ministros e missionários. A teologia deve contribuir para a superação da visão privatista presente na formação ministerial. Da mesma maneira, a vocação secular de trabalhadores, profissionais e empresários deve ser entendida como aquela de serviço à unidade da comunidade. Embora a vocação particular do ministério pastoral seja a presidência da igreja.

As dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a uma compreensão insuficiente do que é igreja. Por isso, é indispensável uma reflexão sobre o que é igreja.

Devemos começar por uma pergunta: qual o modelo de igreja ao qual nos referimos quando falamos em vocação? Aqui voltamos ao início do texto, onde entendemos igreja como corpo reunido na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Tal visão de igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado de vocação e de missão, sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino.

Somente uma igreja que é imagem da Trindade pode tomar-se espaço para o surgimento e desenvolvimento de vocações. Isto porque nela os crentes constituem um só corpo em Cristo, com dignidade e variedade de funções, com espaço para a comunhão e participação. Numa igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento dos crentes e abrem caminho para o surgimento das vocações. Aqui os jovens encontram um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico.

Tal igreja é mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade. Este modelo de igreja que comunga e participa se identifica com as vocações de que é constituída. Nela os crentes recebem o chamamento ao sacerdócio universal e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios e profissões, para a consagração eclesial e secular, e para a vida missionária. Ela é a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu pastor e entre si, são chamados pelo Pai a seguirem o Senhor Jesus, de acordo com os dons do Espírito. E porque há identificação, todos se sentem responsáveis pelas vocações.

A igreja onde as vocações podem brotar escuta o clamor da comunidade e vive em processo de renovação. Não reclama privilégios, mas vive na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando o kairós evangélico de uma sociedade nova, humana e fraterna. Tal igreja é capaz de dialogar com a sociedade pluralista, sem abandonar sua doutrina e propósitos. É uma igreja servidora, ministerial (minus stare), onde todos são chamados a servir. 

Uma igreja onde os crentes descobrem a realidade em que vivem, os chamados aos ministérios eclesiais (pastores, ministros, missionários) e o sentido das vocações seculares (trabalhadores, profissionais, empresários) de que a comunidade tem necessidade, faz-se igreja necessária. E os compromissos de hoje podem se tornar prelúdio de uma consagração definitiva. Na igreja que está voltada para sua comunidade, os jovens e adultos não são crentes passivos, mas agentes, participantes e responsáveis, protagonistas, de acordo com os dons e as possibilidades de cada um.

Por uma teologia batista da vocação

A partir do que vimos vale a pena analisar alguns elementos que podem balizar a construção de uma teologia batista da vocação.

Em primeiro lugar, deve ficar claro que as experiências humana e cristã são realidades correlatas ao chamado para as vocações particulares. Por isso, a vocação de pastores, ministros, missionários e de trabalhadores, profissionais e empresários, enquanto chamado de Deus que se realiza na igreja e na comunidade, deve fundar-se numa teologia evangélica e numa práxis em sintonia com nossos princípios e doutrinas.

Partindo desta avaliação é preciso entender que partimos do Deus triúno e da teologia do amor que tal comunhão implica: vocação é relacionamento, o que implica em dar valor à experiência humana e à espiritualidade cristã, mas também dar atenção à questão da inculturação e aos desafios da contemporaneidade. Vivemos um tempo de transição, caracterizado por atitudes ambivalentes. As transformações da sociedade revelam a inadaptação de muitas igrejas, presas à tradição, e a necessidade de novos projetos de existência humana.

E por fim, é preciso definir o específico de cada vocação, dando valor à participação de toda a igreja enquanto corpo de Cristo. Isto traduz a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada situação, lugar e grupo de pessoas. 

Considerações finais

O cristianismo é a vitória sobre a cosmovisão da religiosidade helênica de que estamos debaixo das forças de deuses e demônios, traduz a idéia de que o mundo é uma criação divina. 

É a negação radical do caráter demoníaco da existência em si. Dá à existência um valor essencialmente positivo e valoriza os acontecimentos da ordem temporal. Com o cristianismo, a ordem do tempo não leva apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

No cristianismo o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse kairós, a presença de Cristo entre nós, destino outorga graça, que traz libertação no tempo e na história. O mundo helênico e sua interpretação da vida foram superados e com eles o pessimismo da religiosidade helênica.

Agora depositamos nossa certeza nas palavras de Paulo em Romanos 11.29, quando diz que “Deus não muda de idéia a respeito de quem ele escolhe e abençoa”. E a partir do chamado e vocação entregues por Deus a nós, realizemos nossa missão, destino glorioso que traduz o desígnio do Pai, a missão do Filho e a obra do Espírito Santo nas nossas vidas, e através delas, na igreja e na sociedade.

Notas

Leonildo Silveira Campos, “Os Novos Movimentos Religiosos no Brasil Analisados a Partir da Perspectiva da Teologia de Paul Tillich”, revista eletrônica Correlatio, no. 3. J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91.
“O regime da lei no Antigo Testamento era bom, mas temporário (Gn. 3.24, 4.1+), e foi planejado para o mundo da carne e o pecado. Com a morte e a ressurreição de Jesus o regime da lei foi superado. O cristão está livre da lei, assim como Cristo que teve seu corpo carnal feito corpo espiritual (Rm 7.4-6, cf. 1Co 15.45). O cristão não está mais debaixo da lei, mas debaixo da graça (Rm 6.14). E a graça é grátis (Gl 5.1, 13). Na medida em que se é cristão, filho de Deus guiado pelo Espírito (Rm 8.14), a única lei que lhe convém é aquela que Paulo chama de a lei do Espírito (Rm 8.2), não só dada pelo Espírito, mas vivida no crente através do Espírito, que segundo Tomás de Aquino, não é simples norma externa, mas princípio de ação, atividade do Espírito no cristão”. Guy Lafon, Epitre aux Romains, Flammarion, Paris, 1987, p. 59. 
J. Sobrino, Cristologia desde América Latina, Esbozo a partir del seguimiento del Jesús histórico, México DF, CRT, 1976 (2a. ed. ver. 1977), p. 91.
I. Ellacuría, Conversión de la iglesia al Reino de Dios para anunciarlo y realizarlo em la historia, Santander, Sal Terrae, 1985, pp. 179-261.
José Lisboa Moreira de Oliveira, “Teologia e Eclesiologia da Vocação”, revista Espírito no. 65, (jan/mar 1996, pp. 22-31).
E. Schillebeeckx, L`intelligenza della fede: interpretazione e critica (1972), Roma, Paoline, 1975, p. 102.
José Lisboa Moreira de Oliveira, op. cit., pp. 22-31.
Idem op. cit., pp. 22-31.
Ibidem, op. cit., pp. 22-31.
Paul Tillich, Teologia Sistemática, Editora Sinodal, Edições Paulinas, São Leopoldo, São Paulo, 1984, p. 156.
Paul Tillich, idem, op. cit., p. 158.
  

Bibliografia recomendada

BRUCE, F.F. Romanos, introdução e comentário. Odayr Olivetti, trad., São Paulo, Vida Nova e Mundo Cristão, 1991.
CULLMANN, Oscar. A formação do Novo Testamento, 5a. ed., Bertoldo Weber, trad., São Leopoldo, Sinodal, 1990.
FRANZMANN, Martin H. Carta aos Romanos, Mário e Gládis Rehfeldt, trads., Porto Alegre, Concórdia, 1972. 
LAFON, Guy, Saint Paul, épitre aux romains, Les Editions du Cerf, 1953 e 1973, Paris, GF-Flammarion, 1987.
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos, Waldyr Carvalho Luz, trad., São Paulo, ASTE, 1969.
OLIVEIRA, José Lisboa Moreira de, Nossa Resposta ao amor, teologia das vocações específicas, São Paulo, Editora Loyola.
TENNEY, Merril C. O Novo Testamento sua origem e análise, 2. ed., São Paulo, Vida Nova, 1972.
TILLICH, Paul, La dimension religieuse de la culture, Paris, Genebra, Québec, Les Editions du Cerf, Editions Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1990.
____________, L´Etre nouveau, tradução de J. M. Saint, Planète, Paris, 1969, do texto original: The New Being, Charles Scribner's Sons, 1955. 

____________, Teologia Sistemática, São Leopoldo, São Paulo, Editora Sinodal, Edições Paulinas, 1984.