dimanche 29 novembre 2020

A carta aos efésios

A carta aos efésios


AUTOR. Paulo, o apóstolo. Veja 1:1.
DATA. Provavelmente escrita em Roma, ano 60-64 d.C.

Éfeso hoje

A região do Mar Egeu é uma das regiões mais belas da Turquia. Longas praias de areia, oliveiras verdes, rochas e pinheirais juntamente com águas cristalinas. O clima é ameno e a brisa marítima refresca os dias mais quentes do verão. Uma das regiões mais bonitas é Marmaris, que foi um local destacado na rota comercial que ligava a Anatolia ao Egito. Os arredores de Marmaris estão cheios de locais históricos.

Marmaris situa-se numa baía rodeada de montanhas, no ponto de encontro entre o Mar Egeu e o Mediterrâneo. A dois dias de viagem está a antiga Éfeso e Pamukkale, onde possivelmente morou Maria, a mãe de Jesus. De Éfeso restam ruínas, a casa de Maria e a basílica de São João As sete igrejas citadas no Apocalipse estavam localizadas em cidades hoje da Turquia.

A carta

A Carta aos efésios "é um hino de adoração proveniente do coração do apóstolo Paulo. Não é um argumento teológico monótono e sim o transbordar de sentimentos ardentes do coração agradecido do apóstolo. No grego esta passagem (1.3-14) constitui uma grande sentença. O espírito de Deus inspirou o apóstolo Paulo a proferir esta profusa adoração ao Deus que o havia salvado”.

A epístola é “um dos mais notáveis escritos do Novo Testamento, tanto pela consistência teológica, quanto pela praticidade”. Sua ênfase concentra-se no:

1. projeto divino da salvação,
2. na natureza da igreja,
3. e no senhorio de Cristo sobre todas as coisas.

A epístola descreve a igreja como sendo o corpo de Cristo. Ele é a cabeça que dá vida e comanda o corpo. Os aspectos da universalidade e unidade da igreja, bem como sua submissão a Cristo -- revelada através de um novo estilo de vida -- , são preponderantes:

1. bênção da eleição Efésios 1,3-4.
2. bênção da adoção Efésios 1,5-6
3. conhecimento de Deus Efésios 1,7-14
4. graça Efésios 1,15-23
5. nova sociedade Efésios 2,1-10
6. universalidade da graça Efésios 2,11-22
7. unidade da igreja Efésios 3,1-13.
8. edificação da igreja Efésios 3,14-21.
9. nova vida Efésios 4,1-6; 4,7-16
10. plenitude do espírito Efésios 4,17-5,14
11. relacionamentos cristãos Efésios 5,15-21 Efésios 5,22-6,9
12. luta espiritual - Efésios 6,10-20.

A carta aos efésios “é portadora de uma boa notícia: o universo inteiro forma um só corpo em Cristo, cabeça de tudo. Essa novidade é celebrada na 'grande bênção' que abre o texto (1,3-14) e que espalha suas raízes, ramos, flores e frutos por todo o texto. Neste texto o aluno vai encontrar uma introdução básica para começar a entender Efésios e um comentário breve a cada trecho, mostrando continuamente a ligação que existe entre o grande hino e as partes menores do texto:"

O ministério de Paulo

Sua primeira visita, At 18:18-21; em sua segunda visita, o Espírito Santo foi dado aos crentes, At 19:2-7; continua seu trabalho com êxito extraordinário, At 19:9-20; seu conflito com os artífices, At 19:23-41; sua palavra aos anciãos efésios, At 20:17-35. Os judeus convertidos nas igrejas primitivas se inclinavam a ser exclusivos e a separar-se de seus irmãos gentios. Esta situação na igreja de Éfeso pode ter motivado o apóstolo a escrever esta carta, cuja idéia fundamental é a unidade cristã.

TEXTO CHAVE, 4:13.
CADEIA CHAVE, mostrar a corrente do pensamento, 1:10; 2:6, 14-22; 4:3-16.
TEMA PRINCIPAL. A unidade da igreja, especialmente entre os crentes judeus e gentios.

Percebe-se esta intenção na ocorrência de certas palavras e frases, como:

(1) As palavras com e juntamente; 1:10; 2:6; 2:22.
(2) A palavra um - um só novo homem; 2:14-15; um só corpo, 2:16; um Espírito, 2:18; uma esperança,4:4; um Senhor, uma fé, um batismo, um Deus e Pai de todos, 4:5-6.

OUTRAS PALAVRAS E FRASES REPETIDAS.

(1) Em Cristo, 1:1,3,6,12,15,20; 2:10,13;3:11;4:21.
(2) Nos lugares celestiais, 1:3,20; 2:6; 3:10.
(3) Riquezas de graça, 1:7;2:7. Riquezas de glória, 1:18; 3:16. Riquezas de Cristo, 3:8.

SINOPSE

PARTE I. A igreja e o plano de salvação. Ao discutir o plano de salvação nas diferentes epístolas. Paulo varia a ênfase. Em Romanos, ele o faz sobre a fé sem as obras; em Gálatas, sobre a fé sem as observâncias cerimoniais; em Efésios, sobre a unidade dos crentes.

Cap. Um.

(1) A saudação, vv. 1-2.
(2) A origem divina da Igreja, vv. 3-6.
(3) O plano de salvação.

(a) Por meio da obra redentora de Cristo, vv. 7-8.
(b) Seu alcance é universal, vv. 9-10.
(c) Garante uma rica herança espiritual, vv. 11-14.
(d) Oração para que os crentes possam ser iluminados quanto às riquezas de suas provisões, vv. 15-23.

Cap. Dois.

(e) O plano prevê uma ressurreição espiritual longe do pecado, e a exaltação do crente aos lugares celestiais vv. 1-6.
(f) Esta exaltação depende inteiramente da graça, e não das obras, vv. 7-10.
(g) Inclui os gentios, que estavam apartados de Deus, mas que foram aproximados por causa do sangue de Cristo, vv. 11-13.
(h) Remove todas as barreiras entre judeus e gentios, e os une em um corpo para habitação do Espírito Santo, vv. 14-22.

Cap. Três.

(i) Os mistérios do propósito divino são revelados a Paulo, e sua designação como apóstolo aos gentios, vv. 1-12.
(j) A segunda oração de Paulo pela plenitude espiritual da igreja e sua iluminação acerca do amor incomparável de Cristo, vv. 14-21.

PARTE II. Aplicação prática. Propósito do plano divino no que se refere à igreja.

Cap. Quatro.

(1) A unidade dos crentes.

(a) No Espírito, 1-3.
(b) As sete unidades mencionadas, vv. 4-6.
(c) A diversidade de dons e a unidade do corpo de Cristo, vv. 7-16.

(2) A vida cristã conseqüente, o andar dos crentes:

(a) Não como os pecadores, vv. 17-21.
(b) Em uma nova vida, abandonado os pecados passados, vv. 22-32.

Cap. Cinco.

(c) Andar em amor e pureza, vv. 1-7.
(d) Andar na luz, vv. 8-14.
(e) Andar com cuidado, cheios do Espírito, vv. 15-21.

(3) A vida no lar.

(a) Deveres dos esposos e das esposas, vv. 22-23.

Cap. Seis.

(b) Deveres dos filhos, dos pais, dos servos, e dos senhores, vv. 1-9.

(4) A luta espiritual.

(a) A fonte de fortaleza, v. 10.
(b) A armadura e os inimigos, vv. 11-18.

(5) Palavras finais e bênção, vv. 19-24.

SELEÇÕES ESCOLHIDAS

Orações de Paulo pela igreja, 1:16-23; 3:14-21.
A unidade cristã, 4:3-16.
A armadura espiritual, 6:10-17.






A carta de Judas

מכתבו של יהודה אחיו של ישו


Esta carta foi escrita por Judas, servo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, chamado de “irmão do Senhor”. Judas é citado entre os irmãos de Jesus em Marcos 6.3 e Mateus 13.55. A carta, possivelmente, foi escrita durante o reinado de Domiciano, entre os anos 80 e 90 depois de Cristo.

O objetivo principal da carta foi alertar os cristãos e chamá-los a combater os falsos ensinos dos mestres gnósticos (Judas 3-16;17-19,22-23), que se infiltravam nas comunidades cristãs. Eram arrogantes e afirmavam serem mais espirituais do que os outros irmãos e irmãs, porém, na realidade, eram mundanos. Segundo Judas, se desviaram da graça de Deus e negavam a Jesus Cristo como Senhor.

Judas explica que o pecado dessas pessoas era a permissividade e os atos imorais. Diziam que por terem sido salvas pela graça de Deus podiam continuar pecando.

Outro aspecto desses falsos mestres era a questão da perseverança na fé (Judas 20 e 21). Confrontando a infiltração de tais doutrinas heréticas na comunidade, Judas ressaltava a importância da fé e da oração, como base para a perfeita edificação, mantendo-se, assim, firmes no amor e na misericórdia de Deus. Quanto a natureza de Deus e Jesus, Judas, coloca em pé de igualdade as duas pessoas da trindade, dando maior ênfase ao título “Deus”, sendo que a glória lhe é atribuída por intermédio de Jesus Cristo. Judas também nos fala que os crentes possuem o Espírito (Jd 19), ao contrário dos pecadores, que não o possuem. Ele faz uma divisão radical entre os santos e os pecadores, que depois são chamados de ímpios (Jd 4.15) e já se encontram condenados segundo suas transgressões, como aconteceu a Sodoma e Gomorra.

Judas considera a salvação como posse dos santos, também descritos como chamados, que têm como qualidade maior, a sua fé. Para ele, o objetivo principal dos crentes é apresentar-se aprovado e sem mancha diante de Deus. Segundo Judas, a igreja está vivendo os últimos dias, e a profecia está sendo cumprida (Jd 18).

Assim, a carta de Judas, é dirigida aos amados por Deus Pai e guardados em Jesus Cristo, por meio da fé e da perseverança.





dimanche 22 novembre 2020

Ser grato

A gratidão em nossa vida

Pr. Jorge Pinheiro


Regozijai-vos sempre. Orai sem cessar. Em tudo dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco”. 1 Tessalonicenses 5:16-18.


Introdução


Em nosso comportamento adulto, a gratidão não é comum, ao contrário das crianças pequenas que se maravilham com tudo. Como podemos nos deixar encher de gratidão?


Segundo o teólogo Pascal Ide, “a gratidão é poderosa porque, de todas as ações, é a que mais transforma o fundo do nosso coração. Se a psicologia prova que a gratidão está na raiz do nosso bem-estar, a teologia e a filosofia a explicam mostrando que ela nos toca e nos transforma no mais íntimo do nosso ser” (Puissance de la gratitude : Vers la vraie joie, Paris, L'Emmanuel, 2017}.


Mas precisamos viver a gratidão. Devemos nos deixar transformar por ela. Precisamos construir este caminho que nos leva a viver a cada dia a gratidão e assim caminhar passo a passo com Jesus.


Gratidão é reconhecimento


Não estejais inquietos por coisa alguma; antes, as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante de Deus, pela oração e súplicas, com ação de graças. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos sentimentos em Cristo Jesus”. Filipenses 4:6-7.


Gratidão é reconhecimento, é sentir, é agradecimento, atos e posturas que nascem por saber que o Deus criador age a favor daqueles que Ele ama. Em português a palavra gratidão vem do latim gratus, agradecido, teologicamente dizemos que deriva de gratia, que significa graça. Assim, diante de Deus reconheço, sinto, agradeço por suas bênçãos.


Este é o primeiro passo, reconhecer o quanto somos abençoados. Sentimos uma emoção profunda e, como consequência expressamos verbalmente nossa gratidão. Deixamos de reclamar da vida, expressamos nossa gratidão através de nossas ações.


No grego, gratidão é ευχαριστια (eucharistia) e significa ações de graça; é ευχαριστεω (eucharisteo) ser grato, agradecer; e é ευχαριστος (eucharistos), agradecido. A palavra grega ευχαριστια deriva da raiz χαρ / char, que expressa o sentimento de alegria. É um derivado de charis, graça. 


A apóstolo Paulo, em suas cartas, menciona a graça e o louvor pelos dons da graça, pelo aumento da graça (2 Co 4.15), pela participação “na herança dos santos na luz” (Cl 1:12), pelo recebimento da palavra pregada (1 Ts 2.13), pelo dom de línguas (1 Co 14.18). E pelas coletas recebidas, que levariam crentes a apresentar ações de graças (2 Co 9.11-12).


A palavra gratidão em hebraico é todah. Ela significa ação de graças. É um termo que se repete cerca de 30 vezes no Antigo Testamento. Todah é utilizada para expressar a atitude de reconhecimento.


Segundo Strong, todah pode expressar reverência e reconhecimento. Pode ser traduzida como dar graças, ação de graças, dar louvor a Deus, ou até hino de louvor e confissão. Também pode se referir a algo a ser dado como oferta de gratidão ou sacrifício de ação de graças.


Gratidão é sentir uma alegria imensa


Mas graças a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo”. 1 Coríntios 15:57


O caminho da gratidão consiste em reconhecer, sentir, agradecer. Se quisermos crescer no caminho da gratidão devemos reconhecer a cada dia, sentir a cada dia, agradecer a cada dia.


Reconheça a graça: se maravilhe com a beleza de uma paisagem, de um acontecimento que deu certo, de uma graça que Deus lhe deu. Visualize os detalhes da graça: o que foi? onde foi? em quais circunstâncias? quem estava presente? Reconhecer é um ato da inteligência, usamos a cabeça para isso.


Mas sinta também a emoção que essa bênção despertou em você. Pode ser maravilha, gratidão, alegria. Neste segundo momento do caminho o seu coração foi tocado.


Agradecer por essa graça nos leva a agir, nos leva a agradecer pessoas, culmina com o louvor ao Senhor. O ato de agradecer está ligado à vontade. E se nós agradecêssemos ao Deus criador por todas as alegrias que Ele nos dá, muito dificilmente haveria tempo para reclamar.


Sim, gratidão é agradecer com ações


Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém!” Romanos 11.36


Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é de razão, porque a vossa fé cresce muitíssimo, e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros”. 2 Tessalonicenses 1.3.


E a paz de Deus, para a qual também fostes chamados em um corpo, domine em vossos corações; e sede agradecidos”. Colossenses 3.15.


Amém

Montpellier, 12 de novembro de 2020

Jorge Pinheiro, pastor e missionário da Cruz Huguenote na França





samedi 21 novembre 2020

Brasil, povos negros e história

A Terra é sempre a tua negra algema

 

Tu és o louco da imortal loucura,/ o louco da loucura mais suprema./ A Terra é sempre a tua negra algema,/ prende-te nela a extrema Desventura./ Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz que tu'alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura. (“O assinalado”, Cruz e Souza, primeira e segunda estrofes).

 

Ao percorrer os caminhos das brasilidades ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos negros africanos seqüestrados para o Brasil e seus descendentes, os afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso.

 

A denominação Batista foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separavam-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do Sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. A guerra de Secessão, na década de 1860, demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo estadunidense. 

 

"Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 

 

Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil, era olhada de maneira estreita. Parte deles, pastores protestantes, a exemplo do reverendo B. Dunn, via o país como uma nova Canaã onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners, Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, fez no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. 

 

A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.

 

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tinha escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. 

 

E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil.

 

Passados quase cento e vinte anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda se faz presente no pensamento protestante. Assim, Oliveira constata que “os negros nas denominações evangélicas são colocados no devido lugar da animação da comunidade de fé, onde seus dons e talentos são usados para a motivação dos cultos e das celebrações, mas poucos negros ocupam os cargos de liderança e as comissões de ponta das matrizes. Essa constatação pode provocar uma discussão interessante e, ao mesmo tempo, levantar a seguinte questão: a divisão já não está presente no universo evangélico nacional? Os negros têm, de fato, os mesmo direitos que os brancos na Igreja brasileira? 

 

4.3. Leituras das culturalidades

 

Para se compreender a cultura afrobrasileira é importante entender a religiosidade africana dos orixás. Apesar, de sua diversidade regional, a matriz africana da religião dos orixás traduz, em seu conjunto, a cultura da família clânica, originária de um mesmo antepassado, que engloba vivos e mortos. 

 

O orixá é o ancestral divinizado, que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantiram controle sobre determinadas forças da natureza. O poder desse ancestral, após sua morte, pode encarnar, por um curto período, em um de seus descendentes através de possessão provocada. É interessante notar que a morte desses antepassados não acontecia de forma natural, mas em meio a acontecimentos que envolviam paixão ou ira.

 

Nesse momento de crise emocional provocado por cólera e outros sentimentos violentos, sofriam metamorfoses, seus corpos eram consumidos pela paixão, restando deles apenas o poder. Mas, para que esse poder pudesse ser apropriado por seus descendentes, era necessário que membros da família enterrassem um vaso no chão, com cerca de três quartos de sua altura. Nesse vaso recolheriam o poder do orixá, que passaria a receber oferendas e o sangue de holocaustos. Esse culto unia homens e mulheres ao orixá, e suas emanações eram representadas por uma pedra, um seixo de rio ou por símbolos como ferramentas ou arco e flechas. Assim, o poder do orixá só se tornava perceptível através da incorporação, o que possibilitava ao orixá voltar à terra para receber provas de respeito dos que o evocavam. 

 

Nos cultos ao ancestral, ao incorporar-se o orixá recebia sua personalidade de volta com qualidades e defeitos, gostos, tendências, caráter agradável ou agressivo. Durante as cerimônias, os orixás dançavam com seus descendentes, ouviam suas queixas, resolviam desavenças e consolavam seus infortúnios. Dessa maneira, o mundo dos orixás não estava distante do fiel, nem era superior. 

 

Em religiosidades na África, os orixás estavam ligados às comunidades e às nações e os cultos eram regionais e mesmo nacionais. Os cultos eram assegurados pelos sacerdotes, e os demais membros da família ou comunidade não tinham outros deveres senão o de contribuir com a manutenção e custeio do culto, podendo participar nos cantos, danças e festas que acompanhavam as celebrações. Deviam, porém, respeitar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto do seu orixá. 

 

Com o tráfico de escravos, os orixás foram trazidos para o Brasil com seus descendentes e permaneceram ligados às famílias que vieram para cá ou aqui se formaram. E os sacerdotes dos orixás passaram a manter o culto para essas famílias e comunidades.

 

Hoje, embora os não afrodescendentes não possam reivindicar laços de sangue com os orixás, podem existir afinidades que favorecem o culto. Afrodescendentes e não afrodescendentes, para os sacerdotes dos cultos aos orixás, têm arquétipos comuns, como a virilidade, feminilidade, sensualidade, independência ou desejo de expiação, que correspondem àquele de um orixá. E, assim, essa religiosidade ancestral passou a ocupar seu espaço nos terreiros e comunidades de descendência negra, marcando presença definitiva na multiculturalidade brasileira.

 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora da formação histórica e do papel da africanidade no Brasil. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.

 

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão do passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes de comunidades de fé, os protestantes, raramente reconheceram essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico da elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.

 

Devemos entender que nossas culturas são relacionais, o que significa que as relações entre as classes aparecem de forma difusa, sobre a base de relações sociais aparentemente pouco intervencionistas diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, nessas culturas, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. Em nossas culturas relacionais, os códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globalizadoras. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripaliumtripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes, já livres da escravidão, podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.

 

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, serão estes homens e mulheres mestiços que aqui romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades protestantes e calvinistas da outra América, que opunham bem e mal, deus e diabo. 

 

A expressão mulato, racista e colonialista, levou à expressão pardo, que foi adotada oficialmente no censo do ano de 1872 com o intuito de contabilizar de forma separada os negros cativos, não importando se africanos ou descendentes, dos negros nascidos livres ou alforriados, não importando se negros ou descendentes. E assim o termo entrou para a linguagem oficial, associada à identidade mestiça, mas não necessariamente associada à afrodescendência. 

 

Tal classificação, que por sua origem racista e colonial, gerou descontentamento entre os brasileiros descendentes de negros africanos, foi abandonada em nosso trabalho, assim como a expressão mulato/a. Optamos pelas expressões afrobrasileiro/a e afrodescendente por serem estes conceitos não depreciativos, sugeridos pelos estudiosos negros e por apresentarem estes concidadãos como brasileiros-de-origem-africana.

 

Assim, com a construção da multicultura afrobrasileira e com os afrodescendentes dá-se momentos de sínteses que traduzem culturas relacionais. Ótimo exemplo é Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.

 

Manzatto analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral das identidades do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases das culturas relacionais brasilíndias e afrobrasileiras, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. As culturas relacionais escondem a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por matrizes culturais: brancos, índios e negros, o que filtrado pelas culturas relacionais leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram indígenas e escravizaram negros. Mas dessa maceração de povos, etnias, cores e culturas surgiram as brasilidades presentes em cada canto deste país, com riquezas particulares, diversidades que formam a multiculturalidade brasileira.  

 

Lévi-Strauss em O cru e o cozido nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Lévi-Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelos indígenas sul-americanos. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a multicultura relacional brasileira. No Brasil há códigos relacionais que traduzem equivalência entre comida e sexualidade, que têm como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para cru e cozido, que relaciona alimento, comida e sexo. Para a multicultura brasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, uma das sínteses das brasilidades. Herdeiros que somos das culturas das várias comunidades indígenas e de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura brasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. Por isso, para Amado, mulher é dona Flor, moquequeira, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.

 

Na multicultura relacional brasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. E a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso: 

 

Não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado/ suado/ a todo vapor/ me deixa ser teu escracho/ capacho/ teu cacho/ diacho/ riacho de amor/ Vê se me usa/ abusa/ lambuza/ que a tua cafusa não pode esperar/ quando a lição é de escracho/ olha aí/ sai de baixo/ que eu sou professor/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá/ vê se me esgota/ me bota na mesa/ que a tua holandesa não pode esperar/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá”. 

Esses códigos das brasilidades caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça social foi a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas latinas, as culturas indígenas e as culturas negras não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura popular brasileira. Essa multicultura mestiça é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da multicultura relacional brasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive.

 

O concreto e imediato da vida do brasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do brasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o brasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. E as religiosidades brasilíndias e afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, são mais do que

 

“um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país”, 

 

e são traduções antropológicas da multiculturalidade brasileira, inclusive de seus códigos relacionais. Dessa maneira,

 

“a adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes”.

 

Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do brasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o brasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o brasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o brasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura brasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o brasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.

 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no brasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O brasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Brasilíndio ou afrobrasileiro, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e mundializada. Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o brasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do brasileiro. A dificuldade em globalizar o brasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem, então, como expressões maiores da possibilidade da utopia.

 

4.4. As brasilidades e o princípio protestante

 

A ideologia do ocultamento presente na sociedade brasileira, a que nos referimos anteriormente, deve ser entendida como aquele conjunto de idéias, modos de vida e relacionamentos construídos pela cultura relacional brasileira, que disfarça e dissimula o choque das etnias formadoras da multiculturalidade brasileira, quer através da permissividade sexual, quer através da permanência do autoritarismo patriarcal herdado do colonialismo português. Índios, brancos e negros foram culturalmente levados a ignorar a origem dos interesses inerentes às relações econômicas do modo capitalista colonial, escravagista, terminando por construir maneiras de viver que ocultaram a violência da escravidão e, em conseqüência, as dominações de gênero, de classe e étnica.

 

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas nas comunidades de fé e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante marque presença no futuro.

 

A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.

 

Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder da essencialização do ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das comunidades de fé, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas comunidades de fé, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica dos povos indígenas e negros e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra as situações-limites a que estiveram e estão expostos. 

 

A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para as brasilidades. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar os povos indígenas e negros e seus descendentes através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que eles já experimentaram a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.

 

O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este é o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a justiça e construir a solidariedade. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo de kairós comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no caso da brasilidade em sua relação com afrobrasileiros e brasilíndios. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele que a traz de volta à origem, ao fundamento de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

 

Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com brasilíndios e afrobrasileiros, deve se orientar em direção a essas multiculturalidades, na medida em que essas manifestações de suas origens criativas remetem ao que é perene nelas. Exprime o que lhes é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo da existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência da brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.

 

E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade brasilíndia e afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos brasilíndios e afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestantismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais brasilíndias e afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais brasilíndias e afrobrasileiras. Dessa maneira, tal cristianismo do princípio protestante está interpenetrado pela consciência, experiência estética, ética e pelos modelos sociais da multiculturalidade brasileira. 

 

O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitações do bem, porque impedem a universalização do amor: é alienação da vontade, porque degrada a possibilidade de escolha dos agentes morais; é dependência do mal, porque aprofunda raízes e escraviza a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrentem tais pecados com a autonomia crítica; a solidariedade e a transformação social, por acreditar que esses posicionamentos políticos geram justiça, participação solidária e paz.

 

Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, o fracionamento espiritual característico da contemporaneidade traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo multicultural de unidade de onde brote solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades brasilíndias e afrobrasileiras nas quais está inserido.

 

Seja qual for a opinião ética sobre a relação protestantismo e multiculturalidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e as culturas brasilíndias e afrobrasileiras, já que a rejeição das culturas em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com as culturas, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: podem brasilíndios e afrobrasileiros ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação de índios e negros nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e as multiculturas brasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população brasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.

 

Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência dos povos indígenas e negros que olham com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação desses povos não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindicações e lutas de brasilíndios e afrobrasileiros. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.

 

Um pensamento protestante que parta da realidade da multicultura relacional brasileira não pode desrespeitar a brasilíndios e afrobrasileiros. Não pode negar os mundos indígenas e negros, parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade brasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. Por isso, o pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o brasileiro à globalidade excludente, mas em entender os elementos da imagem de Deus que permeiam essa riqueza civilizatória.

 

A multibrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O multibrasileiro não se diferencia simplesmente por suas cores de pele. As peles das culturas brasileiras têm histórias, histórias de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o brasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em suas histórias de negação, e por isso se afirma índio e negro. A brasilidade é afirmação deste que é índio/ índia, negro/ negra: é negação da negação. Este brasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguémMaria nenhuma. Mas a história dos povos indígenas e negros não começa com o extermínio e a escravidão. Afirmar a brasilidade é afirmar uma proposta em que a brasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de povos. Se a multicultura relacional brasileira tem um caráter mágico, empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desses seres humanos está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente. Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da multicultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e as matrizes das religiosidades indígenas e negras.

 

A recuperação da história dos povos como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade multicultural brasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da multicultura relacional brasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar as culturas às quais pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante multicultural brasileiro, que compreenda as identidades dos povos em sua busca de felicidade e transcendência.

 

A antropologia mostra-nos um brasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação aí embutidos. Isto porque o ser humano tem um destino. O termo destino conota vocação, aponta para aquele conteúdo intrínseco que constitui uma dimensão da natureza humana. Destino tem matizes de dom, propósito e alvo. A concepção cristã do ser humano trabalha com a idéia de que todos os seres humanos são chamados à construção de um destino pleno de sentido. Não devemos temer a multiculturalidade brasileira, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.

 

Ser índio e ser negro traduz metanóia e por isso a brasilidade constitui-se num desafio não só para índios e negros. A brasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do índio e do negro. Desse ponto de vista, colocar para a comunidade de fé a brasilidade como princípio protestante implica em resgate das histórias de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. A expressão comunidade de fé traduz a consciência de que o cristianismo deve apresentar um evangelho integral ao Brasil. Esse evangelho não se limita ao afetivo/existencial da salvação individual e nem se fecha entre quatro paredes, mas está preocupado com pessoa e comunidade enquanto totalidade social, política e multicultural. Essa consciência pode se estender ao conjunto das comunidades, sejam elas protestantes históricas ou pentecostais. Tal realidade, porém, não deve esquecer que o lugar fundamental da gestação da brasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus das comunidades indígenas e negras, espaço de formação da identidade, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da multicultura brasileira. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade brasileira de conjunto.

 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente. Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/ humilhação é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte da multiculturalidade, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento reflete essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz brasileira. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade brasileira se revela.

 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do brasilíndio e do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do brasilíndio e do afrobrasileiro imediatos é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro brasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém”. Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis brasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos senhores da vida que nos foi entregue.


Capítulo do livro Deus é Brasileiro, de Jorge Pinheiro, São Paulo, Fonte Editorial, 2008.