אברהם & האמנה
המסורת המקראית מציגה הורים של אנושות ואת האבות כפי המונותיאיסטיות. אדם, שת, נח, אברהם וצאצאיו ידעו את אלוהים הנצחי ושמירה מצוותיו. פוליתאיזם מגיע ניוון וניתוק שאלוהים ברא את היקום.
כל ניתוח של עליית הדת של ישראל צריך להתחיל מהאיש אברהם בהקשר ההיסטורי והחברתי שלה. העולם של אברהם הוא עולם אובייקטיבי, לא המיתולוגי, והברית עם אלוהים הנצחי, כפי שנמצאו בספר בראשית 15, היא המפתח להבנת כל התורה, חמשת חומשי התורה.
איחוד של הברית הזאת לקרות משה, תיאר בספר שמות 24 וחזר בספר דברים 5, ב מצר ההרים במדבר, בין מצרים מדין-שעיר. זהו כוח הרעיון של כל דת ישראל, הסכם הכרוך הישועה.
הסכם חגיגי
הברית יש את תחושת החובה, אלא גם ביטחון. זהו הסכם בין שני אנשים, חגג חגיגית, עם שפיכות הדמים. החלק החזק מספק אבטחה, או גאול, ואת ההחלשה נאלצת התחייבויות מסוימות. לפיכך, הברית הטילה יחסים מיוחדים בין האל הנצחי והעם. והמצוות וחוקים, נתונים מאוחר יותר במדבר משה, נושאת קונוטציה משפטית חיצונית לאפשרות של הסכם גדול פולחן והצייתנות. המרכז של הברית היא המצווה הראשונה של עשרת הדיברות (עשר מילים עברית) האוסר על עבודת אלוהים אחרים של המיליציה שמים אלילים.
אתיקת ברית
אולם הברית היא גם ברית מוסרית. אבל היסוד של ברית זו, אשר מחלחלת התורה או החומש כולו אינו פורמליזציה גרידא, שכן אנשים אחרים גם פיתחו רעיונות החוק והמוסר. הרצח, גניבה, ניאוף ושבועות שקר גונו לא רק על ידי חוק המוסר האוניברסלי, אלא גם להענישו בחומרה קודי אור-נמו, Lipit-אשתר חמורבי, שם נציג ביותר.
עכשיו, עם זאת, את המוסר לראשונה מוצג על ידי אלוהים הנצחי עצמו כמו התוצאה של יחסים בינו לבין העם, עם סטנדרטים להקמת סוג חדש של הממלכה. זוהי ברית עם העם כולו. איחוד לוקח מאות בשנים לאחר מכן, על הר סיני הוא תוצאה של הברית עם אברהם ואת הולכת מעבר הבבלי וחוכמה המצרי.
מוסר שהוצג בראשית, למשל, כי הוא רווחי בודד כאן בלבוש חדש, הופך קיבוצי ולאומי. למעשה, ברית יהוה היא עם אברהם בספר בראשית 15 יש מימושה ההסטורי בתנאים אחרים בזמן אחר, בסיני.
לפיכך, הברית שנכרתה עם אברהם לא רק מכינה את תסריט התורה, אך הוא חלק בלתי נפרד ממנו. זה בראשית לא רק סאגה ממוצא, אבל כיסוד של כל חמשת חומשי התורה.
מאחד רעיון
התיאולוגיה של בראשית מבוססת על הרעיון של הברית, כתיאור של תהליך חיים, אשר מקורו ברגע היסטורי נתון, יחסים בין האל הנצחי ואיש מוגדרים הסטוריים. על ידי הבנת את הרעיון של ברית כמרכז המאחד של ספר בראשית, ובהרחבה, החומש, קריאת הטקסט המקראי מוחלפת דינמי אמיתי, שהולך כמו ברית הופך עצם ובשר, הראשונה בחייהם של האבות ומאוחר יותר להיווצרות ולמדינת ישראל.
ספר בראשית מציג את שהוקמה זה עתה כאנושות המונותיאיסטיות. עד פרק 11 אין אנו רואים עקבות של עבודה זרה. רק לאחר בבל מגיע לעבודה זרה, אשר יהיה עכשווי הופעתה של אומות עתיקות.
מבראשית 12 אנו עובדי אלילים והפוליתאיסטים אומות ואנשים שהעריצו יהוה. בין אלה אברהם Melquisedeq. הבנת עובדה זו חשובה לנו לקחת בחזרה אברהם באחריות וליצירת הדת המונותיאיסטית הראשונה. הוא לא יצר את הדת אחת אמיתית של אלוהים, אלא גם הצליח לחיות מסורת, כדי העברת הידע והתרבות, וזאת הייתה אחת סיבות אבותיו.
אזור משגשג
בואו נסתכל קצת יותר על החיים של האיש הזה, כמתואר בספר בראשית 12: 1 עד 25:18. הוא חי בארץ שנוצר בין נהרות הפרת והחידקל, על גדות יובל של נהר פרת, שנקרא Baliq.
בעיר אור, שם הוא גר לפני הולך לחרן, נמצא על ידי ארכיאולוגים באזור המודרני תל אל-Muqayyar, ארבעה עשר קילומטרים Nasiryeh בדרום עיראק. על פי מחקרים על ידי סר ליאונרד וולי, המוזיאון הבריטי, ששחזרה את ההיסטוריה של אור מן האלף הרביעי לפנה"ס שנת 300, הירח-אלוהים Nannar, אשר סגד באור כשדים, גם היה האלוהות הראשית בחרן.
עשרות שנים לפני אברהם, האור הייתה העיר החשובה ביותר בעולם. מרכז ייצור תעשייתי, אגר-פסטורלית ויצואן, נקבע באזור ענק
פוריות. משם יסעו קרוואנים ספינות לכיוון
mardi 28 février 2017
jeudi 16 février 2017
Nossa herança socialista
A
Saga Anabatista
A
história anabatista é uma saga ao estilo do cristianismo antigo, anterior à
estabilização imperial pós-Constantino, de sangue, perseguições e martírios. E
os eventos notáveis e feitos heróicos do movimento anabatista até hoje repercutem
no imaginário protestante, levando alguns historiadores e teólogos a
exorcizarem o movimento e seus líderes.
Segundo
o sociólogo alemão Max Weber, o ascetismo laico do movimento anabatista, que
ele chama de “movimento batista”, espraiou-se pela Europa Ocidental e Estados Unidos,
nos séculos 16 e 17, dando origem, quer diretamente, quer por adoção, a novas
formas de pensamento religioso, como aqueles dos batistas, menonitas e quakers.
Um processo semelhante se deu no Brasil, por isso, os evangélicos brasileiros
não podem voltar as costas à história dos anabatistas. Afinal, as influências
eclesiológicas e teológicas do anabatismo, presentes em nossa tradição batista,
foram repassadas para as comunidades, igrejas e pensadores evangélicos brasileiros
que em algum momento de sua história comungaram com o pensamento batista.
Por
isso, fazemos uma abordagem das origens do anabatismo, principalmente daquele
de forte conteúdo social, a partir da leitura histórica e do uso da sociologia
da religião como ferramentas, com a intenção de demonstrar que em sua prática o
anabatismo construiu uma eclesiologia que formatou uma teologia e não o
contrário.
Mas
como o nosso texto trabalha a relação entre a eclesiologia e a revolução
camponesa e plebéia liderada pelos anabatistas, convém entender o que significa
eclesiologia. Nós a consideramos o estudo teológico da realidade de comunidades
de fé em seus aspectos estruturais: sua forma de se relacionar com o mundo, seu
papel social e sua forma de governo. Por isso, vamos analisar o comunitarismo,
que mais tarde foi caracterizado por Karl Marx e Friedrich Engels como
socialismo utópico, enquanto construção político/religiosa marcante e central
do movimento anabatista.
Os
anabatistas eram cristãos reformados que se levantaram contra a hegemonia da
Igreja católica e dos príncipes alemães. A partir da frase do Evangelho de
Marcos (16.16), “quem crer e for batizado será salvo, mas quem
não crer será condenado”, deduziram que quem não crê de nada adiantou o batismo que
recebeu quando pequeno. Então, negaram valor ao batismo de crianças, afirmando
que aquele sacramento católico e reformado, só deveria ser recebido quando a
pessoa tivesse plena consciência do que estava a fazer. Por isso, aqueles que
tinham sido batizados antes de terem consciência do bem e do mal deveriam ser
batizados de novo.
O
fato de levantarem a importância de escolha pessoal na opção pela caminhada
cristã levou grupos e comunidades anabatistas a crescerem rapidamente. Mas, o
crescimento dos anabatistas na Alemanha e na Europa central se tornou um
problema para as autoridades eclesiásticas, afinal propunham às pessoas não
batizar os filhos. Logicamente, os católicos e os reformados se colocaram em
oposição direta a essa idéia. E como o poder eclesiástico estava ligado às
forças do feudalismo ou às forças da burguesia emergente, ambos os lados
optaram pelo extermínio dos anabatistas.
Thomas Münzer
Para
Engels, a descentralização, a autonomia local e regional, a diversidade
comercial e industrial das províncias alemães e a insuficiência das comunicações
foram os fatores que explicam o agrupamento das classes sociais da Alemanha no
início do século 16 em três campos: o feudal nucleado ao redor do catolicismo;
o burguês reformista, ao qual se aliaram os luteranos; e o plebeu/camponês
liderado pelos anabatistas.
É
bom lembrar que na Alemanha medieval a Igreja católica tinha o monopólio da
educação, o que fazia com que todo o ensino tivesse um caráter religioso. Nas
mãos do clero católico estavam a política, a jurisprudência e o conhecimento,
que era visto como extensão da teologia. E os dogmas do catolicismo, assim como
a compreensão católica das Escrituras tinham força de lei em todos os
tribunais. Dessa maneira, críticas ou ataques ao feudalismo traduziam-se em
confronto com o catolicismo.
A
oposição ao feudalismo, começou bem antes do século 16, com os valdenses,
albigenses, com as insurreições nos cantões suíços e foi tomando conta da
Alemanha com as reivindicações religiosas, sociais e políticas que tomaram
corpo como pensamento divergente. Os plebeus e camponeses alemães queriam o
estabelecimento da igualdade cristã, que devia se traduzir em igualdade civil e
social. Ou seja, a nobreza devia colocar-se ao nível dos camponeses, e os
patrícios e burgueses no mesmo nível dos plebeus. Ou seja, reivindicavam, pela
primeira vez na história, direitos cidadãos universais. Além disso, exigiam o
fim das leis feudais, tais como obrigatoriedade dos serviços pessoais,
tributos, privilégios e nivelamento das escandalosas diferenças no que se
referia à propriedade.
Dessa
maneira, essas reivindicações democráticas levaram às reivindicações pelo
estabelecimento de comunidades onde a propriedade e os bens fossem
comunitários, o que era visto como a realização da promessa do Reino de Deus.
Até
1525-1526, o movimento protestante era mais ou menos informal na Alemanha. Mas
com as guerras camponesas, os conventos foram secularizados, o direito canônico
abandonado e, com a recusa dos bispos de se associarem ao movimento pelas
reformas, as autoridades civis foram empurradas a se tornar favoráveis às novas
orientações e a se envolver na reorganização da igreja.
Estas
ações se inspiraram nas antigas visitas pastorais efetuadas antes pelos bispos.
Os príncipes passaram, então, a visitar as paróquias, com delegações compostas
de juristas e teólogos. A partir de 1530, criaram instituições permanentes com
superintendentes, levando as igrejas a ficarem dependentes do príncipe que, de
fato, substituiu o bispo. Nasceu assim a igreja territorial reformada.
Em
1555, a Dieta de Augsbourg proclamou o princípio do “cujus
regio, ejus religion”
segundo o qual o príncipe ou uma outra autoridade podia
determinar a
religião das pessoas. A legislação e o órgão jurisdicional, em especial
matrimonial, passaram para o poder do príncipe, que o entregava a uma
instância jurídica: e o príncipe ou o magistrado das cidades passaram a ser
a autoridade última em matéria de liturgia, doutrina ou nomeação de sacerdotes.
Os bens eclesiásticos secularizados foram incorporados às possessões
dos príncipes, ou geridos por administradores autônomos, em especial as
escolas. Dessa maneira, passou a existir um controle sobre o comportamento religioso,
e o estado jurídico e financeiro das paróquias, bem como sobre a doutrina
e a vida moral dos pastores.
Thomas
Münzer e outros dissidentes do protestantismo reformado procuraram mobilizar
seus pares e exigir das autoridades políticas liberdade de expressão e de ação
religiosas e criaram comunas autônomas, proibindo os seus adeptos de exerceram
funções políticas no Estado. Entre suas ações, Münzer suprimiu completamente o
uso do latim, em 1522, antes de Lutero. Em Altstadt, nos cultos que dirigia
vinha gente de todas as partes ouvi-lo. Seus ataques voltaram-se em especial
contra o clero católico, chamando os príncipes e o povo à intervenção armada
contra a Igreja católica.
“Não disse Cristo, vim trazer-vos não a paz, porém
a espada? E que deveis fazer com ela? Nada, senão afastar a gente má que se opõe
ao Evangelho. Cristo ordenou com grande severidade (Lucas 19.27): quanto,
porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu os governasse, trazei-os
aqui e matai-os diante de mim... Não vos valhais do vão pretexto de que o braço
de Deus deve fazê-lo sem ajuda da vossa espada que bem poderia enferrujar-se na
bainha. Os que se oponham à revelação divina que sejam aniquilados sem piedade,
como Ezequiel, Ciro, Josias, Daniel e Elias destruíram os pontífices de Baal;
de outro modo a Igreja cristã não pode retornar à sua origem. Na época da vindima
temos que arrancar a erva daninha das vinhas do Senhor. Deus disse (Deuteronômio
7.5): nem terás piedade dos idólatras;... deitarás abaixo seus altares... e
queimarás a fogo as suas imagens de escultura... Porque tu és um povo santo e
Jeová teu Deus...”
Münzer,
segundo Tillich, foi o mais criativo dos evangélicos radicais e acreditava que
o Espírito podia sempre falar por meio das pessoas. No entanto, para se receber
o Espírito era preciso participar da cruz.
“Lutero, dizia ele, prega um Cristo doce, um
Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama
a carregar sua cruz.”.
Assim,
os anabatistas atacavam a teologia de Lutero a respeito das Escrituras, porque
consideravam que Deus não falara apenas no passado, tornando-se mudo no
presente. Mas que sempre falou e fala nos corações ou nas profundezas de
qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O
Espírito habita nas profundezas do coração. A cruz, explica Tillich,
representava a situação limite, era externa e interna.
“Surpreendentemente, Münzer
expressa esta idéia em termos existencialistas modernos. Quando percebemos a
finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos
pobres de espírito. O homem é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura
e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento Deus se manifesta e ele é
transformado. Quando isso acontece, o homem pode receber revelações especiais.
Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas
sobre assuntos de vida diária”.
Nessa
conjuntura de choque, em Zurique, na Suíça, no meio dos seguidores do
reformador Zwinglio, surgiu um grupo de cristãos que rejeitou o poder
eclesiástico, fosse ele católico ou reformado, exigindo a autonomia das comunidades
cristãs. Assim, os anabatistas fundaram sua primeira comunidade no dia 21 de
janeiro de 1525. E eles próprios passaram a escolher seus pastores e a
construir comunidades separadas do estado.
Mas,
no sul da Alemanha, sem dúvida, foi Thomas Münzer quem se levantou como
defensor de uma proposta de revolução social camponesa. Em 1521, liderou um
grupo de anabatistas que se somaram aos camponeses sublevados ao redor da
reivindicação de terra e liberdade. Münzer criou, assim, pela primeira vez na
história um movimento de libertação camponês anabatista. Münzer não foi apenas
um pensador, mas um militante que praticava a fé. Acreditava ser um profeta,
chamado para implantar o Reino de Deus.
Considerava
ser seu dever denunciar e executar as sentenças contra os governantes que
exploravam o povo. Suas pregações estavam impregnadas de conteúdo social e
político: o fim da velha Igreja deveria marcar o inicio de uma nova ordem
social.
Engels,
que junto com Marx foi um dos pais do socialismo científico, considerou as
guerras camponesas lideradas pelos anabatistas como combates sociais. Afirmou
que “se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se
o direito de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus interesses,
os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao lado de todo
grande movimento burguês que se desatava, eclodiam movimentos independentes
daquela classe que era o precedente mais ou menos desenvolvido
do proletariado moderno. Tal foi na época da Reforma e das
guerras camponesas na Alemanha, a tendência dos anabatistas e de Thomas
Münzer”.
Considerou
que, apesar de terem uma face cristã reformada, as reivindicações anabatistas
iam além da expressão religiosa que apresentavam. Para Engels, a política de
Münzer nasceu de seu pensamento revolucionário, que caminhava adiante da
situação social e política de sua época. Seu programa propunha o estabelecimento
do Reino de Deus, com o milênio de justiça, paz e felicidade, com a supressão
de todas as instituições que se encontravam em contradição com o mandamento do
amor.
Para
Münzer, o céu estava aqui no chão. E, por isso, o cristão deveria construí-lo
na vida. A esse cristão anabatista cabia a missão de estabelecer o Reino de
Deus sobre a terra. Seus sermões eram clamores políticos e estavam dirigidos a
instaurar uma nova ordem social. A partir de Münzer, os anabatistas fizeram dos
sermões proféticos, elaborados a partir da realidade social em que estavam
inseridos, manifestos revolucionários, cujas propostas atemorizavam as
autoridades, governantes eclesiásticos e príncipes de toda a Europa.
A
crise econômica, fruto da exploração agrícola predatória e extensiva; a crise
demográfica, por causa das epidemias e fome; a crise social gerada com o
surgimento da burguesia e dos assalariados; a crise clerical, devido às contradições
e o enfraquecimento da Igreja católica e a crise espiritual ocasionada pelo
surgimento de novas leituras do cristianismo fizeram da baixa Idade Média um
período de alta instabilidade e angústia coletiva.
Milhares
de camponeses sem terra e plebeus desempregados vagavam pelos campos e cidades.
Essa situação levou às propostas de construção de comunidades formadas por
camponeses e plebeus, onde pudessem viver e trabalhar juntos, num sistema de
vida em comum com os bens partilhados, disponíveis segundo as necessidades das
pessoas e famílias. E, de fato, os anabatistas organizaram comunidades com este
formato, organizações baseadas na propriedade social autônoma em relação ao
Estado e aos poderes eclesiásticos e laicos da época, em primeiro lugar
católico e depois reformado.
Dessa
maneira, os anabatistas tiveram a compreensão de que o cristianismo era uma
ferramenta para a mudança da condição social em que se encontravam os
camponeses e deserdados da terra. Partiram de suas próprias experiências de
vida e trabalho e quebraram o paradigma de que a fé devia estar alienada da
vida social e política.
Mais
tarde, em combate, e exército de Münzer foi derrotado e ele foi preso,
torturado e executado. Mas a guerra camponesa na Alemanha se estendeu até 1525,
quando os anabatistas revolucionários foram afogados em sangue. O conflito, que
teve lugar nas áreas do sul, centro e oeste da Alemanha, também afetou regiões
vizinhas na Suíça e Áustria, e envolveu no seu auge, no verão de 1525, cerca de
300 mil camponeses. Estimativas da época situaram o número de mortes em torno
de 100 mil camponeses e plebeus.
O
sonho anabatista, porém, não morreu aí, subsistiu no coração de milhares de
cristãos. Vejamos alguns exemplos. Sete anos depois da morte de Münzer, em
1532, uma insurreição tomou conta da cidade de Münstzer. Ela foi iniciada por
um ex-padre da Catedral de Münstzer, que se tornou luterano, Bernard Rothmann,
e acabou sendo expulso da cidade. Dois anos depois, em 1534, o pastor anabatista
Jan Matthys, junto com outros líderes, entre os quais Jan van Leiden e Gert Tom
Kloster, declarou a cidade de Münstzer livre do domínio dos príncipes e do
poder eclesiástico.
Matthys
iniciou uma revolução social: os proprietários de terras foram expropriados e
suas terras e bens distribuídos entre os camponeses. Dando seqüência à
revolução, ele e um grupo de anabatistas atacaram a guarnição liderada pelo
príncipe Franz von Waldeck, que era bispo de Münstzer e também chefe do
exército. No confronto Matthys foi morto. Foi, então, sucedido por Jan van
Leiden. Após um ano de resistência, Waldeck liderou um exército bem equipado e
assaltou a cidade. Jan van Leiden e seus oficiais foram presos, torturados e
executados. Os combatentes anabatistas foram lançados às prisões e,
posteriormente, deportados para outras regiões da Alemanha e Suíça.
A
partir desse momento as comunidades anabatistas passaram a viver umas isoladas
das outras, de forma clandestina. Seus líderes eram leigos que pregavam em
roupas civis. Adotaram uma disciplina e uma ética rígidas a fim de sobreviverem
na clandestinidade. Essas pequenas comunidades se refugiaram no interior da
Europa e se estruturaram de forma autônoma. Cada comunidade de fé sobrevivia do
compromisso de serviço e financeiro de seus afiliados.
Fonte:
Jorge Pinheiro, extrato do artigo “A Saga Anabatista, eclesiologia e
revolução”, in Theologando/ Eclesiologia, revista teológica, ano II, número 2,
São Paulo, Fonte Editorial, 2008.
lundi 13 février 2017
A paciência Parte 01
A Paciência. Sermão do Pr. Jorge Pinheiro proferido na
Igreja Batista em Perdizes em 28.02.2010.
Metáforas de nossa existência
Para os
relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído
à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao
ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se
apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.
hadam kadmon
é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da
compreensão de que aquele hadam era matrix,
e nele estavam presentes os moveres originais da
criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam
kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes
moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu
ao humano, ser coroa da criação, ter vontade
específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.
A leitura dos
textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão
científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação
do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de
como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e
comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.
Os códigos
culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os
relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é analisarmos os relatos das origens nos textos
antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes
nas culturas antigas das épocas referidas.
Existe uma
leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das
suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos
fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens
que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional,
raça-etnia, religião e sexo, entre outros características.
Uma dessas
grandes metáforas é a de hawa. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros
de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais
tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram,
eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo
greco-romana, com seus cultos à mãe-terra, à deusa-mãe.
O primeiro cristianismo,
que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência
absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos
se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros
elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual.
Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a
veneração ao próprio conceito de reia,
que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o
humano fora formado a partir do barro vermelho.
A identidade
da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade
da terra, que é o corpo da deusa. Assim, ao formar o humano, nas leituras
sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no
corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra
está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de
cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se
o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.
No capítulo
um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do Eterno. Algumas
interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a
eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções
ocidentais lemos que "o Eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do
Eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto
hebraico a passagem está no plural: o Eterno criou da-terra à sua imagem, no
sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados.
Não temos aí os pronomes próprios Adão e Eva, mas macho e fêmea.
Só no texto seguinte,
no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa,
que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou
força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a
metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos
últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteistas.
E hawa passou a ser um pedaço de hadam.
“Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este
adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da
costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.
E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta
será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o
seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2:
21-24).
Os estudos da
psique, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a
humanidade, em certa medida, guarda em seu
psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das
origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas
de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano
paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa
representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto
humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da
conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal,
tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de
nossas possibilidades, o que seria um mal.
A Halakha - O caminho da espiritualidade e da liberdade
Aula Magna, prof. Dr. Jorge Pinheiro -- fev. 2017.
dimanche 12 février 2017
O derradeiro paradoxo
Existência e eternidade
Jorge
Pinheiro*
Falar da ideia de imagem de Deus, imago Dei, da teologia do humano, e de seus desafios de ação e transformação da vida em direção ao reino de Deus nos remete à reflexão da própria eternidade. Ou seja, é como se voltássemos à pergunta: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. É um assunto complexo, mas fundamental para quem deseja agir e construir o mundo.
A busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? O cérebro é a causa da identidade?
Vou entrar com toda a cautela no tema. É gostoso conversar com o leitor. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.
Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro
dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na
eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e
virtualidade? Como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? Somos
substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. A
existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é
uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. Mesmo quando a gente
envelhece a permanece. Somos um ao longo do tempo e é esta unidade na
existência que me confere identidade.
Talvez você leitor, questione: certo, você professor e
pesquisador no campo da teologia, defende o princípio da existência que se
projeta na eternidade. Você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. Um
pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. Não concordo
com isso! Eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. Se uma
pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano
psicológico. O funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão
relacionados. Embora não possamos genericamente correlacionar os estados
psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por
isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência
enquanto extensão não existe.
Nada como conversar com gente inteligente. Por isso,
deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e
participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é
independente nas suas funções. Deste modo, a existência correlaciona todos os
pensares e desejos. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é
independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre
grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as
ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a
existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da
matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos
impulsos da sensibilidade. A existência une, resume e transcende todos os
arbítrios livres. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência
impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade,
a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar.
Pode ser que o querido leitor diga que gosta de uma parte
do argumento, aquela em que fala da liberdade humana. Só que para falar de
livre arbítrio não é necessário falar de existência? A existência é extensa,
una e indivisível, então como pensá-la em relação com os cérebros? Ou seja, o
que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã?
Aparentemente, aqui, os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo...
Bem, se partimos
de Aristóteles, vale a pena levantar uma hipótese. Na verdade, uma parábola
criada por John Locke. Vejamos: um príncipe interrogou-se sobre como seria
viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe.[1] Um dia eles tiveram a
oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro
passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas
características mentais migraram para o sapateiro. Depois da troca, a pessoa que agora é
sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de
sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como
príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?
Mas a estória se
complica, porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da
condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi
descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu,
prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo
inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe
criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim,
era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que
agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, a nossa
identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece
idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características
individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e,
por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe,
uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto
correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.
Mas há um ponto fraco neste argumento. Vamos complicar um
pouco mais a parábola. Vamos acrescentar uma pergunta à estória: e se
pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes? Esses dois
corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde
estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes
da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a
viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a
identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se
vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, creio que
talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele
sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no
caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo
a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
Mais ainda podemos aprofundar a discussão. Vamos pensar
numa estória contada pelo rabino de Nazaré, que falava do humano pobre e do
humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa.
Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam
existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão
de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação.
Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação
do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das
palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do
juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do Eterno. Nestes termos,
as palavras também visavam os sábios.
O reinar do Eterno já chegou e começou no ontem, está no
hoje e se projeta no amanhã. Esta vida no reinar da eternidade é a vida das
eternidades, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é
deixar que o Eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da
eternidade. A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua
atuação. O ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias
guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus
e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é
eterno. Para tratar a estória do homem pobre e do homem rico, é necessário ver
que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas.
Assim, é necessário compreender o contexto das palavras a
quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. Algumas
questões devem ser colocadas de antemão. O contexto maior começa fazendo uma
diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar
eterno. Há críticas ao espírito da religiosidade. A crítica enfatiza o tipo de
vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. A
crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no
grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se
encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados
estão preocupadas com outros assuntos.
Se você leitor,
pensar com vagar, há um acordo nos argumentos aparentemente opostos. Um
argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um
outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a
desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas
somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento
normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito do
humano e o mundo material.
Aristóteles e os sábios judeus não admitiam nas pessoas
dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e
psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às
funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de
toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas,
também, da vida propriamente espiritual. A correlação íntima que existe entre
as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e
vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam.
Esta mesma correlação se verifica entre as operações, as funções orgânicas e
psicológicas.
Uma comoção violenta da existência pode parar a
circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. Mas pode também, ao
contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. Ou seja, os
distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco.
Demonstrada a união da existência, como se faz esta união?
Ora, e esse é um argumento fundante da realidade
material, a pessoa não existe fora da existência. Da existência, o corpo recebe
a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo
o que faz dele humano. Assim, o corpo apenas se separa da existência pela
morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações
específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à
existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os
humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos
corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. Deste
modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a
existência constrói um todo substancial e verdadeiro. É esta união no ser que
faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja
ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e
material que não repercuta na existência.
Donde, é certo que com a morte o corpo se dissolve.
Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a
eternidade?
Aqui há um clamor da existência. Tais reflexões sobre a
imago Dei e seu destino ecoam através de todos nós humanos, e nos levam a
pensar que no Eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade
permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer,
sem as quais não há felicidade humana. No Eterno, a existência mantém a
consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem
que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: e
em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do Eterno. O corpo se desagrega
e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma
substancial que é a existência dada pelo ruach do Eterno soprado sobre o
humano em construção. A existência do ser como é não pode decompor-se, nem se
desagregar, permanece no coração do Eterno. Este é o argumento ontológico da
premissa de que a existência se projeta na eternidade. Isto porque,
ontologicamente, se a partir da dimensão da essência, na eternidade, o Eterno
profere yehi or, haja luz, e cria a dimensão da
existência, o espaço-tempo, então, a existência passa a existir.
E se há o Eterno e sua lei moral na dimensão da
existência, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja
recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência
dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir
adequadamente o vício. É necessário, portanto, que haja projeção da existência
onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. Este é o
argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta
existência seja ilimitada na sua duração. O argumento psicológico, que prova a
perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o Eterno
não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o
atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para
atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra
realidade onde tal projeto se concretize. E como a felicidade pressupõe
expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
O humano aspira a um objeto eterno, a uma beleza, bondade
e verdade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades
superiores possuem capacidade ilimitada, que não podem se satisfazer fora deste
bem eterno, que não é outro senão o próprio Eterno. Mas, encontramos neste
mundo o que sacia esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do
coração criado para o Eterno? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno,
esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos
viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente
a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades. O repouso eterno
e alguns outros sinônimos que aparecem falam de um lugar para aqueles que
deixaram o mundo dos vivos. O repouso eterno sempre foi visto com uma
multiplicidade de facetas. Pode ser lugar de destruição, lugar de silêncio,
reino dos mortos. Mas todos as leituras remetem à ideia de lugar dos que
dormem. E também podemos falar de abismo, deserto e profundezas.
O contraste
entre o desespero que se agarra às existências das pessoas e a esperança do
reino do Eterno também está expressa no ser levantado para a vida – pois com os
meus olhos O verei! Quando falamos do repouso eterno, as fronteiras da vida são
definidas. As leituras da estória do homem pobre e do homem rico não visa
realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, o repouso
eterno não é tanto a dimensão do espaço e do tempo, mas estado de solidão,
separação da vida. Não podemos esquecer que lei implica no conceito normativo
de retribuição. O justo deveria receber recompensa material e o injusto carecia
de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados e dignos do
reino.
Mas as leituras
da estória do homem pobre e do homem rico desconstrói essa norma e nomeia o
mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.
Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. Ter nome compõe identidade,
nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação
ao rico. Lá naquela época, o rico tinha destaque e atuava com desprezo frente
ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. Donde, as críticas às práticas dos
religiosos: a negligência para com os sem posses de bens e direitos; o fazer
bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor
ao próximo.
A estória fala
da vida e levanta algumas questões que dirigem o pensar: ao renascer para a
vida há consciência do estado, memória, juízo imediato, o que implica em alguma
forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no
juízo, e a informação para receber o descanso está na lei do Eterno. Assim, na
dimensão da eternidade há preocupação com aqueles descartados pela sociedade.
Não há retorno para esta vida terrestre. A confiança no Eterno é o único mérito
de homem pobre, que se expressa no nome que tem, Eliezer. A vida neste mundo é de
pouca valia quando se passa à dimensão da eternidade.
Uma pergunta que
provém da análise dessa estória pode bem ajudar a redefinir as prioridades do
quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em
termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta que a
estória faz aos religiosos. Outras registram a preocupação de ter um corpo
inteiro quando formos levantados -- para tal devemos guardar qualquer parte do
corpo que for amputada para ser incluída com o resto do corpo no sepultamento.
Mas, parece que é melhor perder um olho se fizer a diferença no ingressar no
reinar da eternidade. Melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que
perder o reino por completo.
Mas, talvez
leitor, você não concorde, porque aqui e no mundo, em todo ele, as gentes estão
nas ruas, clamam por liberdade e justiça e aparentemente tais questões foram
lançadas às calendas. Entendo o seu argumento, mas digo que, se ao nível da
materialidade a ideia de imago Dei aponta para a construção do reino do
Eterno no aqui e agora, ela não se limita a esta dimensão, já que a questão da
justiça, por relacionar identidade e eternidade só pode se resolver numa
equação: há uma eternidade, dimensão de sabedoria e justiça, onde nenhuma
contradição é definitiva.
E, assim, a
concepção de imagem de Deus, imago Dei, relaciona existência e
eternidade e nos diz que a existência futura, projetada na eternidade, é
infinita e sem limites, e sua realização é justiça, paz e alegria, em
conformidade com os desígnios do Eterno.
* Jorge Pinheiro
é Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo
(2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências
da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências
da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em
Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de
tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista
Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas
relações entre política e religião; filosofia e teologia; judaísmo e
cristianismo.
[1} Jorge Pinheiro, Identidade e eternidade, publicado no blog Cultura, política e religião, WEB: jorgepinheirosanctus.blogspot.com/identidade
e eternidade, 17/01/2013.
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