Para os
relatos das origens nos textos antigos da tradição judaica, o humano, construído
à imagem e semelhança do eterno é síntese e projeção das forças da criação. E ao
ter livre-arbítrio, um atributo da eternidade, tal imagem e semelhança se
apresenta enquanto arquétipo conceitual e faz dele humano primordial.
hadam kadmon
é uma expressão que traduz a idéia de humano primordial. Faz parte da
compreensão de que aquele hadam era matrix,
e nele estavam presentes os moveres originais da
criação. Assim, hadam kadmon é diferente do hadam ha-rishon, o primeiro. Em hadam
kadmon estava a consciência, a-vida, presente a partir daí na espécie. Estes
moveres originais de hadam kadmon são os atributos ostensivos que a eternidade deu
ao humano, ser coroa da criação, ter vontade
específica e atuar no plano da criação a fim de construir seu destino.
A leitura dos
textos antigos da tradição judaica não tem como função ou meta a compreensão
científica do mundo físico, mas a construção da consciência. Dessa maneira, a revelação
do Eterno ao ser humano, através dos textos antigos da tradição judaica, não é de
como funciona o mundo e sua realidade, mas como devemos, enquanto pessoas e
comunidades, colocar-nos sob missão do Eterno.
Os códigos
culturais e de linguagem hoje são diferentes daqueles das épocas onde os
relatos das origens surgiram. Assim, a melhor aproximação é analisarmos os relatos das origens nos textos
antigos da tradição judaica em comparação com os relatos e tradições presentes
nas culturas antigas das épocas referidas.
Existe uma
leitura humana de seus relatos arquetípicos, onde se considera as metáforas das
suas tradições religiosas como fatos. E como os relatos arquetípicos
fundamentam a cultura e a linguagem, passamos a ter então culturas e linguagens
que demonizam e segregam pessoas, grupos de pessoas, segundo a origem nacional,
raça-etnia, religião e sexo, entre outros características.
Uma dessas
grandes metáforas é a de hawa. E a metáfora hawa traduz os encontros e desencontros
de hebreus e povos palestinos nos séculos que antecederam à era comum. E mais
tarde, os primeiros cristãos deram sequência a este movimento quando viveram,
eles também, encontros e desencontros com as religiões de mistério do mundo
greco-romana, com seus cultos à mãe-terra, à deusa-mãe.
O primeiro cristianismo,
que surgiu como facção do judaísmo, por questões de inserção e sobrevivência
absorveu elementos da cultura e linguagem do mundo helênico. Estes cultos greco-romanos
se inseriam em contextos religiosos e sociais muito antigos e, entre outros
elementos, exprimiam a veneração da cor vermelha associada ao sangue menstrual.
Na mitologia grega, a mãe dos deuses, Reia, Cibele para os romanos, traduzia a
veneração ao próprio conceito de reia,
que significa terra ou fluxo. Assim, dentro desta compreensão arquetípica, o
humano fora formado a partir do barro vermelho.
A identidade
da religião com a mãe-terra, a fertilidade, a origem da vida, aparece enquanto santidade
da terra, que é o corpo da deusa. Assim, ao formar o humano, nas leituras
sincréticas cristãs a eternidade parte do vermelho da terra e sopra a vida no
corpo formado. A eternidade não é corpo, não está presente na forma, mas a mãe-terra
está dentro e, também, na totalidade do mundo existente. O corpo de cada um, de
cada uma, então, seria feito do corpo dela. Nessas leituras arquetípicas dá-se
o reconhecimento da identidade universal de todos humanos.
No capítulo
um do livro das origens, macho e fêmea são criados à imagem do Eterno. Algumas
interpretações rabínicas consideram esta primeira criação um andrógino, porque a
eternidade criou o humano à sua imagem, macho e fêmea. Na maioria das traduções
ocidentais lemos que "o Eterno criou o homem à sua imagem, à imagem do
Eterno o criou; ele criou homem e mulher (Gênesis 1:27). De fato, no texto
hebraico a passagem está no plural: o Eterno criou da-terra à sua imagem, no
sentido genérico de humano. Em seguida, o texto diz macho e fêmea foram criados.
Não temos aí os pronomes próprios Adão e Eva, mas macho e fêmea.
Só no texto seguinte,
no segundo capítulo do livro das origens, outro relato da criação, é que hawa,
que tem vida, aparece. E a metáfora se fez relato factual, histórico, que ganhou
força no judaísmo e, posteriormente, entre cristãos e muçulmanos. Assim, a
metáfora arquetípica, lida a partir de hermenêuticas patriarcais, no correr dos
últimos dois mil anos transformou-se em fato fundante das culturas monoteistas.
E hawa passou a ser um pedaço de hadam.
“Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este
adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; E da
costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.
E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta
será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada. Portanto deixará o homem o
seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma só carne”. (Gênesis 2:
21-24).
Os estudos da
psique, desenvolvidos a partir do século vinte, trabalham com a idéia de que a
humanidade, em certa medida, guarda em seu
psiquismo os arquétipos das origens enquanto espécie. E as metáforas das
origens e de seus desdobramentos calam fundo nas emoções e percepções humanas
de forma aparentemente instintiva. E todos entendemos o recado, o ser humano
paga um preço ao optar por construir sua liberdade. Nesse sentido, hadam e hawa
representam a condição humana, são arquétipos de nossa força e fraqueza enquanto
humanos, seduzidos sempre por fatores aparentemente externos, como o desejo da
conquista do mundo, do poder e do sexo, que nos seduzem de forma paradoxal,
tanto para a expansão de limites, o que seria um bem, como para a limitação de
nossas possibilidades, o que seria um mal.
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