jeudi 10 avril 2014

Romanos 8, uma pequena introdução

A LEI DO ESPÍRITO DA VIDA
Jorge Pinheiro, PhD

"Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus. A Lei do Espírito da vida em Cristo Jesus te libertou da lei do pecado e da morte. De fato - coisa impossível à Lei, porque enfraquecida pela carne - Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que o preceito da Lei se cumprisse em nós que não vivemos segundo a carne, mas segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo a carne desejam as coisas da carne, e os que vivem segundo o espírito, as coisas que são do espírito". (Romanos 8:1-5).

Ουδεν αρα νυν κατακριμα τοις εν Χριστω Ιησου. ο γαρ νομος του πνευματος της ζωης εν Χριστω Ιησου ηλευθερωσεν σε απο του νομου της αμαρτιας  και του θανατου. το γαρ  αδυνατον του νομου εν ω ησθενει δια της σαρκος, ο θεος τον εαυτου υιον πεμψας εν ομοιωματι σαρκος αμαρτιας και  περι αμαρτιας κατεκρινεν την αμαρτιαν εν τη σαρκι, ινα το δικαιωμα του νομον πληρωθη εν ημιν τοις μη κατα σαρκα περιπατουσιν αλλα κατα πνευμα. οι γαρ κατα σαρκα οντες τα της σαρκος φρονουσιν, οι δε κατα πνευμα τα του πνευματος. (ΠΡΟΣ ΠΟΜΑΙΟΥΣ 8:1−5).

A LIBERDADE CRISTÃ
(O princípio do contexto)

Tecnicamente, temos aqui dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo 8 inteiro, cuja temática é a da vida cristã sob a lei do Espírito; e um bloco menor, que vai do versículo 1 ao 11, e que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do Espírito.

O texto em análise está dentro desses dois blocos, que nos dão a linha de pensamento do autor: uma sequência de análises sobre a vida emancipada (vs.1-11); a vida exaltada (12-17); a vida esperançosa (18-30); e a vida exultante (31-39). Dessa maneira, "neste capítulo, o apóstolo traça o curso da vida cristã, na qual a graça triunfa sobre a lei, e os crentes experimentam livramento do pecado". 

A epístola de Paulo, como um todo, enfoca três blocos temáticos: do capítulo 1 ao 8, fala da justificação pela fé; do capítulo 9 ao 11, discute a exclusão temporal dos judeus e a inclusão dos gentios ao povo de Deus; e do capítulo 12 ao 16, exortações práticas.

Ao analisar a justificação, mostra que a salvação do homem repousa fundamentalmente sobre a fé, proveniente da graça de Cristo e não na lei de Moisés. Essa misericórdia de Deus não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de Deus. Assim, a graça provem de Cristo, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos homens. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende do próprio homem, nem do que ele possa fazer, mas daquilo que Cristo já fez por ele.

Há uma outra epístola de Paulo, que também trata dessa relacão lei versus graça, que é a carta escrita aos Gálatas, onde o capítulo correlato a Romanos 8 é Gálatas 5. Ali, o apóstolo escreve sobre a justificação pela fé, falando da liberdade cristã.

Sem dúvida, a análise de Paulo parte de elementos vetero-testamentários, que descreve no capítulo 4 de Romanos, ao explicar que a promessa feita a Abraão teve por base a fé, já que ainda era incircunciso e não tinha a lei, enquanto formalização apresentada a Moisés.

A passagem analisada encaixa-se perfeitamente não somente na linha geral de pensamento do autor, mas dentro do ensinamento bíblico como um todo.

NÃO HÁ NENHUMA CONDENAÇÃO
(O princípio gramático-literário)

O texto que estamos analisando está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela igreja primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da era cristã.

A epístola aos Romanos é uma carta de difícil compreensão. Isto porque Paulo tinha o costume de escrever intercalando um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias expostas. Outra dificuldade é o próprio tema, já que o apóstolo estava tratando de um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade cristã: os gentios podem ou não tornarem-se cristãos sem serem prosélitos dos judeus?

Em Romanos 8:1-5, encontramos cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor está expondo. São eles:

(1) ηλευθερωσεν (ελευθεροω, ωσω, ηλευθωρωσα): o oposto ao estado de escravidão, receber alforria, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. "Te libertou", variantes: "me libertou", "nos libertou". É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente.

(2) κατεκρινεν (κατακρινω, −κρινω, −εκρινα, κεκριμαι, −εκριθην): penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. 

(3) πληρωθη (πληροω, −ωσω, −σα, κα, μαι, θην): encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro.  

(4) περιπατουσιν (περιπατεω, −ησω, περιπατησα, −πεπαρτηκα): ando, vivo, dirijo minha vida. 

(5) φρονουσιν (φρονεω, −ησω): penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.

Desses verbos, dois são antônimos (receber alforria versus condenado judicialmente) e levam à oposição que o autor quer mostrar entre a lei do Espírito da vida e a lei do pecado e da morte. Assim, ao regime do pecado, Paulo opõe o novo regime do Espírito (cf. 3:27+), e diz que em nós transborda o espírito da lei. Esse preceito da lei (δικαιωμα του νομου, que pode ser traduzido como "o que é justo/o que é bom na lei"), cujo cumprimento só é possível pela união com Cristo através da fé, tem sua tradução no mandamento do amor (cf. 13:10, Gl 5:14 e Mt 22:40). Isto porque, não vivemos segundo a carne (μη κατα σαρκα περιπατουσιν), mas andamos no Espírito, ou seja, temos a mente controlada pelo Espírito (αλλα κατα πνευμα).

É interessante notar que a palavra lei (νομος, ου) aparece 70 vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de Deus e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é pecado, e (c) existe para orientar a vida daquele que crê.

Da mesma maneira, a palavra carne (σαρξ, σαρκος) é sempre utilizada em Romanos com um dos quatro sentidos: (a) natureza humana fraca (6:19), (b) natureza velha do cristão (7:18), (c) natureza humana de Cristo (8:3), (d) e natureza humana não regenerada (8:8).

O capítulo 8 de Romanos nos apresenta a operação do Espírito Santo, entendida nos versículos 4, 5, 6 e 10, como aquele que comunica a vida. No versículo 2, como aquele que dá liberdade. E no versículo 26, como aquele que intercede pelos crentes junto ao Pai.

É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa (Ουδεν αρα νυν), que poderíamos traduzir assim: "Atualmente, por isso, nada em absoluto..." pode condenar aqueles que estão em Cristo Jesus. 

Essa partícula ilativa (αρα), que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o Paulo mostra que lei e pecado não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a natureza da lei e a natureza humana. Entre o que é Espírito e o que é carnal. O corpo, com os membros que o compõem (7:24) interessa a Paulo enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da carne (7:5), ao pecado e à morte (6:12+; 7:23), Paulo clama: quem me livrará? E dá "graças a Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor" (7:25). É a partir desse clímax, que o apóstolo dá sequência ao texto, informando que "por isso", "hoje", "nada em absoluto" pode condenar os que estão em Jesus Cristo.

PAULO, SERVO DE JESUS
(O princípio histórico)

No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras . As epístolas de Paulo, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que o apóstolo Paulo criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica.

Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Paulo aos Romanos seu amanuense foi Tércio (Rm. 16:22).

Quando escreveu sua epístola aos Romanos, Paulo era um cristão maduro. Tinha mais de cinquenta anos e 25 anos de conversão. Estava ansioso para ministrar nessa igreja, que já era conhecida no mundo cristão (1:8), e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita (15:14-17). Foi escrita em Corinto, possivelmente no ano 58 d.C., quando Paulo estava levantando um coleta para os irmãos da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá é preso, e acabará sendo levado à Roma, mas como prisioneiro.

O CORAÇÃO DAS ESCRITURAS
(O princípio teológico)

Para muitos teólogos, que vão de Orígenes a Barth, a carta do apóstolo Paulo aos Romanos é o ponto alto das Escrituras. Ela sedimentou a fé de Agostinho e a Reforma de Lutero. Calvino, por exemplo, considerava que quem entendesse Romanos estaria com a porta aberta para a compreensão de toda a Bíblia. E Tyndale também diz algo parecido, ao afirmar que Romanos é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro Evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura" .

Em termos de doutrina, Paulo em Romanos mostra que a Lei de Moisés, em si boa e santa (7:12), fez o homem conhecer a vontade de Deus, mas não lhe transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhe consciência de seu pecado e da necessidade que tem de socorro (3:20, 7:7-13). Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Jesus. E a humanidade, morta no pecado, é recriada em Cristo (5:12-21), podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de Deus (8:1-4).

Romanos tem como tema central a revelação da justiça de Deus e a universalidade da obra de Cristo. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração de Romanos.

PELA GRAÇA, DOM DE DEUS
(Aplicando os princípios)

O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Cristo, dominada pela graça. Como vimos neste estudo, a epístola de Romanos é fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompe com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entende que o apóstolo Paulo traça na epístola aos Romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre o pecado.

Paulo queria deixar claro que as propostas judaizantes não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Cristo, unido a Cristo pelo Espírito, aquele que crê está absolvido de seus pecados e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo.

O que os cristãos do século XVI entendiam, contextualizando os ensinamentos de Paulo, é de não havia mais necessidades de obras e penitências para se alcançar a salvação. O que a Igreja Católica Romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora da doutrina cristã pregada por Paulo nas epístolas aos Romanos e Gálatas, assim como no restante das Escrituras.

Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a igreja de Cristo: a pecaminosidade do homem (1:18-3:30); sua desesperada luta interior (7:14-25), a gratuidade da salvação (3:21-24), a eficácia da morte e ressureição de Cristo (4:23-25, 5:6-11, 6:3-11), a justificação pela fé (5:1-2) e nossa adoção como filhos (8:14-17).

É a partir desta hermenêutica, delineada nos vários passos apresentados neste trabalho, que o trecho de Romanos 8:1-5 deve ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o apóstolo Paulo chama de "a lei do Espírito da vida em Jesus Cristo" e de sua importância no caminhar do cristão.

NOTAS

1. Davidson, F., "O Novo Comentário da Bíblia", Edições Vida Nova, São Paulo, 1994, pág. 1167.
2. "Cumprir, isto é, fazer que a vontade de Deus (revelada na Lei) seja obedecida como deve ser, e as promessas de Deus (dadas pelos profetas) recebam seu cumprimento". Taylor, W.C., Dicionário do Novo Testamento Grego, JUERP, São Paulo, 1991, pág. 177, verbete πληροω, in citação de Thayer.
3. "A usual folha de papiro media cerca de 34 cm x 28 cm (...), podendo acomodar entre 150 e 250 palavras (...), e a maioria das cartas antigas não ocupava mais que uma página de papiro". Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, pág. 287. Ed. Vida Nova - São Paulo.
4. Packer, James I. in O Conhecimento de Deus, pág. 235. Editora Mundo Cristão, São Paulo.

BIBLIOGRAFIA

Davidson, A. M.,O Novo Comentário da Bíblia, Edições Vida Nova, São Paulo, 1994.
Davis, John D., Dicionário da Bíblia, Casa Publicadora Batista, Rio de Janeiro, 1978.
Dobson, John H., Aprenda o Grego do Novo Testamento, CPAD, Rio de Janeiro, 1994.
Gundry, Robert H., Panorama do Novo Testamento, Edições Vida Nova, São Paulo, 1991.
Halley, H. H., Manual Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo, 1993.
Pollock, John, O Apóstolo, Vida, São Paulo, 1994.
Rega, Lourenço Stelio, Noções do Grego Bíblico, Edições Vida Nova, São Paulo, 1993.
Taylor, W.C., Dicionário do Novo Testamento Grego, JUERP, Rio de Janeiro, 1991.
The Greek New Testament, United Bible Societies, USA, 1994.
Vanoye, Francis, Usos da Linguagem - Problemas e Técnicas na Produção Oral e Escrita, Martins Fontes Editora, São Paulo, 1979.
Virkler, Henry A., Hermenêutica - Princípios e Processos de Interpretação Bíblica, Vida, São Paulo, 1994.

A epístola de Romanos, segundo Lutero

PREFÁCIO À EPÍSTOLA DE SÃO PAULO AOS ROMANOS (1522). Por Martinho Lutero

Essa epístola é a parte verdadeiramente principal do Novo Testamento e o mais puro de todos os Evangelhos. É digna e merecedora de que o cristão não só a saiba de cor, palavra por palavra, mas que se ocupe com ela diariamente como se fosse o pão diário da alma, pois ela jamais poderá ser lida ou contemplada em demasia e devidamente bem. E quanto mais é praticada, mais se torna agradável e saborosa. Por isso, quero dar também a minha contribuição por meio de meu prefácio, proporcionado-lhes, com a permissão de Deus, um acesso para que ela seja compreendida o melhor possível por todos. Porque, até agora, ela tem sido lamentavelmente obscurecida com comentários maldosos e todo tipo de falatório, ela que em si mesma é uma luz clara quase o suficiente para clarear toda a Escritura.

A LEI 

Primeiramente, temos de conhecer a linguagem e saber o que São Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e coisas semelhantes, caso contrário a leitura de nada adiantará. Neste caso, tu não deves entender a palavrinha “Lei” de maneira humana, como se fosse uma doutrina referente às obras que precisam ser feitas ou não, como ocorre com as leis humanas, quando a lei é cumprida por meio de obras, apesar de o coração não estar presente. Deus julga considerando o fundo do coração; por isso, a Sua Lei exige também o fundo do coração e não se dá por satisfeita com obras, mas pune, ao contrário, aquelas obras que não vêm do fundo do coração, por serem hipocrisia e mentira. Por essa razão, todas as pessoas são chamadas de mentirosas em Sl 115 [116, 11], pois ninguém cumpre, nem consegue cumprir a Lei de Deus do fundo do coração e porque todos encontram dentro de si mesmos a indisposição para o bem e a disposição para o mal. Onde não houver uma livre disposição para o bem, o fundo do coração não estará com a Lei de Deus; ali com certeza também haverá pecado e a merecida ira de Deus, embora exteriormente pareçam existir muitas boas obras e uma vida honrada.

Por essa razão, São Paulo conclui no segundo capítulo que os judeus são todos pecadores, e diz que apenas os cumpridores da Lei são justificados perante Deus. Ele quer dizer com isso que ninguém cumpre a Lei com obras, mas, ao contrário, lhes diz o seguinte: tu ensinas que não se deve cometer adultério e és adúltero. Do mesmo modo, aquilo que julgas num outro, tu condenas em ti mesmo porque fazes exatamente aquilo que estás julgando. Como se ele quisesse dizer: exteriormente, tu vives perfeitamente nas obras da Lei e julgas aqueles que não vivem do mesmo modo, e sabes ensinar a todos; tu vê o cisco no olho dos outros, mas não vês a trave diante do teu. Já que mesmo cumprindo exteriormente a Lei por meio de obras, por temor à punição ou por amor à recompensa, tu fazes isso tudo sem uma livre disposição e sem amor à Lei, mas indisposto e coagido, preferindo agir de outro modo se não fosse a Lei. Resulta daí que, no fundo do coração, tu te opões à Lei. O que significa então ensinar aos outros a não roubar se, no coração, tu próprio és um ladrão e exteriormente gostarias de sê-lo se pudesses? Se bem que a obra exterior não dura muito nesses hipócritas. Portanto, tu ensinas aos outros, mas não a ti mesmo; também não sabes o que estás ensinando e jamais entendeste a Lei corretamente. Ora, além disso, a lei aumenta o pecado, segundo ele diz no capítulo 5 [20], já que o ser humano acaba se opondo ainda mais a ela, quanto mais for exigido a fazer o que não é capaz.

Por isso, ele afirma no capítulo 7 [14] que a Lei é espiritual. O que significa isso? Se a Lei fosse carnal, as obras lhe bastariam. Sendo, porém, espiritual, ninguém a satisfaz, a não ser que tudo o que tu faças venha do fundo do coração. Mas ninguém dá um coração assim, a não ser o Espírito de Deus; é Ele que iguala a pessoa à Lei incutindo-lhe no coração a disposição para a Lei e levando-o a agir doravante não por temor ou coação, mas de coração livre. Portanto, é espiritual a Lei que quer ser amada e cumprida com um tal coração espiritual e que exige semelhante espírito. Quando ele não estiver no coração, neste permanecem o pecado, a indisposição, a hostilidade à Lei que afinal é boa, justa e sagrada.

Portanto, acostuma-te às seguintes palavras: são coisas bem diferentes fazer a obra da Lei e cumprir a Lei. A obra da Lei é tudo o que a pessoa faz e pode fazer no âmbito da Lei, de livre e espontânea vontade e por suas próprias forças. Mas como, sob e ao lado de tais obras, permanece no coração a indisposição e a coação no tocante à Lei, todas essas obras são perdidas e inúteis. É isso que São Paulo quer dizer no capítulo 3 [20] ao afirmar que ninguém será justificado perante Deus pelas obras da Lei. Por isso, tu vês agora que os rivais acadêmicos e os sofistas não passam de sedutores ao ensinarem a preparação para a graça por meio de obras. Como alguém consegue se preparar para o bem por meio de obras, se não faz uma boa obra sem indisposição e má vontade no coração? Como irá agradar a Deus a obra oriunda de um coração indisposto e contrariado?

Cumprir a Lei, contudo, significa realizar a sua obra com disposição e amor, e viver bem, livre e divinamente sem a coação da Lei, como se não houvesse Lei ou castigo. Mas quem dá ao coração essa disposição a um amor desinteressado é o Espírito Santo, conforme ele diz no capítulo 5 [5]. O Espírito, porém, não é dado a não ser em, com e por meio da fé em Jesus Cristo, como ele afirma no prefácio [1, 17]. Desse modo, a fé não aparece, a não ser por meio da palavra de Deus ou do Evangelho que Cristo prega enquanto filho de Deus e homem que morreu e ressuscitou por nós, segundo ele afirma nos capítulos 3 [21 -25], 4 [24-25] e 10 [9-17].

Disso decorre que apenas a fé justifica e cumpre a Lei, pois traz o Espírito oriundo do mérito de Cristo; o Espírito, porém, torna o coração disposto e livre, tal como exige a Lei; portanto, as boas obras advém da própria fé. É o que ele quer dizer no capítulo 3 [31], depois de ter rejeitado a obra da Lei dando a impressão de querer abolir a Lei por meio da fé. Não (diz ele), nós estabelecemos a Lei por meio da fé, isto é, nós a cumprimos por meio da fé.

O PECADO

Na Escritura, “pecado” significa não somente a obra exterior do corpo, mas todo movimento e agitação feitos para produzir a obra exterior, ou seja, do fundo do coração com todas as forças; desse modo, essa palavrinha é sinônimo de “fazer”, uma vez que assim a pessoa cai e penetra inteiramente no pecado. Já que também não acontece nenhuma obra exterior do pecado sem que a pessoa se entregue inteiramente, de corpo e alma. E a Escritura lança o olhar sobretudo para o coração e para a raiz e a fonte principal de todos os pecados, que é a falta de fé no fundo do coração. Portanto, do mesmo modo que apenas a fé justifica e suscita o espírito e a disposição para as boas obras exteriores, é apenas a falta de fé que peca, induz a carne e a dispõe a más obras exteriores, tal como aconteceu a Adão e Eva no paraíso, Gn 3.

Por isso, Cristo não apenas chama a falta de fé de pecado, mas declara em Jo 16 [8-9]: o Espírito castigará o mundo por cometer o pecado de não acreditar em mim. Por isso também, antes que aconteçam obras boas ou más, na qualidade de frutos bons ou maus, é preciso existir no coração fé ou falta de fé, na qualidade de raiz, seiva e força principal de todo pecado, o que também por isso é chamado na Escritura de cabeça da serpente e o velho dragão, os quais a descendência da mulher, Cristo, terá de esmagar, tal como foi prometido a Adão.

“Graça” e “dádiva” são diferentes porque graça significa na realidade a benevolência e o favor que Deus traz em si mesmo para nós, levando-O a verter em nós Cristo, o Espírito com suas dádivas, como fica evidente no capítulo 5 [15], em que ele afirma: a graça e a dádiva em Cristo etc. Se as dádivas e o Espírito em nós aumentarem diariamente e ainda assim não se tornarem perfeitos por ainda restarem em nós desejos maus e pecados que combatem o Espírito conforme afirma no capítulo 7 [14-23], em Gl 5 [17] e segundo a promessa feita em Gn 3 [15] sobre a disputa entre a descendência da mulher e a da serpente, ainda assim a graça será tanta que perante Deus seremos inteira e plenamente justificados; pois sua graça, diferentemente das dádivas, não se divide, nem se fragmenta, mas nos acolhe por inteiro na benevolência, por causa de Cristo, nosso intercessor e mediador, e porque as dádivas foram iniciadas em nós.

Portanto, tu entenderás o sétimo capítulo no qual São Paulo chama a si mesmo de pecador, para depois dizer no oitavo que nada há de condenável naqueles que estão em Cristo, em função das dádivas imperfeitas e do Espírito. Em virtude da carne ainda não estar morta, somos todos pecadores. Mas, por crermos em Cristo e termos começado no Espírito, Deus nos é tão propício e misericordioso, que não leva em conta, nem julga tal pecado; ao contrário, Ele procede conosco segundo a fé em Cristo, até que o pecado esteja morto.

A FÉ

“Fé” não é a ilusão e o sonho humanos que muitos tomam por fé; e quando veem que não ocorre nenhuma melhora na vida, nem boas obras, mesmo ouvindo e falando muito da fé, as pessoas caem no erro de dizer que a fé não basta e seria preciso fazer obras caso queiram tornar-se devotas e bem-aventuradas. Isso faz que, ao ouvirem o Evangelho, elas se lancem a produzir por seus próprios meios um pensamento no coração que diz: eu creio. E tomam isso como uma verdadeira fé, mas como isso não passa de um pensamento e de uma criação humana que jamais tocará o fundo do coração, elas então nada fazem e consequentemente nenhuma melhora acontece.

Mas a fé é uma obra divina em nós que nos modifica e nos faz renascer de Deus, Jo 1 [12], e mata o velho Adão tornando-nos pessoas diferentes de coração, temperamento, mentalidade e todas as forças, além de trazer consigo o Espírito Santo. Há algo vivo, ativo, atuante e poderoso na fé impossibilitando que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se deve fazer boas obras, mas as faz antes que perguntem e está sempre em ação. Quem, porém, não realiza tais obras é uma pessoa sem fé que anda tateando à procura da fé e de boas obras, e não sabe o que é fé, nem o que são boas obras, e ainda fica tagarelando e conversando fiado sobre elas.

“Fé” é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, com tanta certeza que morreria mil vezes por ela. E uma tal confiança e conhecimento da graça divina dá alegria, coragem e disposição perante Deus e todas as criaturas; é o que o Espírito Santo faz por meio da fé. Por isso, sem coação, todos se tornam voluntariosos e dispostos a fazer o bem, a servir a todos, a sofrer todo tipo de coisa por amor e em louvor a Deus, que manifestou semelhante graça; desse modo, é impossível separar a obra da fé; é tão impossível quanto separar a luz do fogo. Portanto, acautela-te contra teus próprios pensamentos equivocados e contra tagarelas inúteis que se fazem de inteligentes ao julgarem a fé e as boas obras, e são os maiores tolos. Peço a Deus que produza a fé em ti, caso contrário, tu talvez permaneças eternamente sem fé mesmo que cries e faças o que quiseres ou puderes.

A JUSTIÇA

“Justiça”, portanto, é essa fé e significa justiça de Deus, ou que vale perante Deus, já que é uma dádiva de Deus que leva o homem a dar a todos o que lhes é devido. Já que, por meio da fé, a pessoa se torna sem pecado e ganha disposição para cumprir os mandamentos de Deus; desse modo, ela honra a Deus e lhe paga o que Lhe é devido. Mas de bom grado, ela serve aos homens como puder, pagando assim a todos. Uma tal justiça, nem a natureza, nem o livre arbítrio, nem nossas forças podem produzir, pois, do mesmo modo que ninguém pode dar a fé a si mesmo, também não se pode eliminar a falta de fé. Como pretender afinal eliminar um único e minúsculo pecado? Por isso, está tudo errado, e não passa de hipocrisia e pecado o que acontece fora da fé ou em meio à falta de fé Rm 14 [23], por maior que seja o seu brilho.

CARNE E ESPÍRITO

Portanto, tu não deves entender aqui “carne” e “espírito” como se carne fosse apenas aquilo que se refere a impudicícia, e espírito o que se refere à interioridade do coração. Na realidade, Paulo chama de carne, tal como Cristo em Jo 3 [6], a tudo o que nasce da carne, a pessoa inteira, com seu corpo e sua alma, sua razão e todos seus sentidos. Por consequência, tudo nela se orienta segundo a carne, e a tu, portanto, compete chamar de carnal aquele que sem a graça muito inventa, ensina e tagarela sobre altos assuntos espirituais; isso tu podes aprender com as obras da carne, Gl 5 [20], visto que ele chama a heresia e o ódio de obras da carne. E, em Rm 8 [3], ele diz que a Lei se enfraquece por meio da carne: ele se refere não somente à impudicícia, mas também a todos os pecados, principalmente, porém, à falta de fé, que é o mais espiritual dos vícios.

Por outro lado, tu chamarás também de espiritual àquele que lida com as obras excessivamente exteriores, como Cristo ao lavar os pés dos discípulos, e Pedro ao conduzir o barco e pescar. Portanto, carne é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir aos interesses da carne e da vida temporal; espírito é a pessoa que interna e externamente vive e age de modo a servir ao espírito e à vida futura. Se não compreender desse modo tais palavras, tu jamais entenderás essa epístola de São Paulo, nem qualquer outro livro da Sagrada Escritura. Por isso, previne-te contra todos os mestres que usam essas palavras noutro sentido, seja quem for, ainda que sejam Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígenes e outros equivalentes ou mesmo superiores. Passemos agora à epístola.