mardi 11 septembre 2012

Pinchas (Números 25.10-30.1)

Publicamos abaixo uma reflexão do rabino Ruben Sternschein, conforme fontes citadas ao final do artigo, sobre a realização da revelação através da riqueza da própria vida humana. E creio que tal reflexão serve para todos nós que nos reportamos às escrituras judaicas. Boa leitura para todos e todas. Jorge Pinheiro.

"e o Senhor disse:
— O que as filhas de Zelofeade estão pedindo é justo. Você deve dar a elas uma propriedade entre os parentes do seu pai. A herança do pai deve passar para elas. Diga ao povo de Israel que, quando um homem morrer sem deixar um filho homem, a filha deverá herdar a propriedade dele". (Números 27:6-8 NTLH)

Sobre as mudanças no judaísmo

O judaísmo aceita mudanças? As mudanças ameaçam o judaísmo com sua própria destruição? Ou ao contrário, são boas e permitem sua perpetuação através dos tempos?

Nos nossos tempos escutamos constantemente estas perguntas dentro e fora da comunidade e às vezes dentro e fora de cada um de nós como indivíduos judeus, comprometidos com a continuidade e com a autenticidade do judaísmo.

Alguns acham que as mudanças nos destruiriam, pois fariam com que cada um fizesse o que bem quisesse e que o judaísmo acabaria sendo mais individual do que nacional. Outros acham o contrário, que justamente quanto mais individualmente possa se interpretar e incorporar o judaísmo mais possibilidades de comprometimento real terá. Alguns são contrários às mudanças no judaísmo porque acham que sua divindade contradiz as mudanças. Se Deus deu o judaísmo, não seria possível que mudasse de ideais e de valores, pois neste caso ou os primeiros não eram suficientemente bons e, portanto, não eram divinos; ou os segundos.

A parashá nos conta sobre uma mudança na lei na época da própria Torá. Uma mudança da lei da Torá feita pelo próprio Deus na própria Torá!

Umas mulheres jovens cujo pai havia morrido no deserto pediram para que Moshé revisasse a lei que as impedia de herdar a terra de seu pai. Segundo a lei antiga, mulheres solteiras não tinham direito a herança e os bens do pai que não tinha filhos homens passavam para o bem público. Moshé não sabe o que fazer com semelhante demanda e acode a Deus. Deus diz para Moshé: “As filhas de Tselofchad tê razão. A lei é incorreta. E vamos mudá-la a partir de agora e para sempre, para todos os casos que sejam como este”.

O próprio Deus recua de uma lei da Torá e manda Moshé mudá-la por causa da demanda de umas simples mulheres!

Será que Deus não conhecia o bem e precisava das mulheres para revelá-lo? Será que Deus errou na primeira lei e aprendeu com os humanos? E teria Ele aprendido justamente com as mais marginais, mulheres simples, e não com o próprio profeta, Moshé?! Por que a Torá nos conta desse modo? Por que será que a lei não foi entregue no começo como ficou no final? E por que justamente através dessas mulheres?

Não temos respostas para essas perguntas no texto da Torá. Mas mesmo assim precisamos nos perguntar. Não estamos diante de um erro de relação, ou linguístico, ou de cópia. Estamos diante de uma mudança da lei de Deus, iniciada por mulheres simples e jovens, sem que o líder e profeta saiba o que fazer a respeito e aceita pelo próprio Deus.

Talvez a Torá queira nos motivar a sermos coeditores da Revelação Divina, junto com Deus através do tempo. Talvez caiba a nós revelar outros casos como esses escondidos na Torá. Talvez a Torá ainda não esteja completamente realizada e mais importante do que mantê-la seja revelá-la, como fizeram as filhas de Tselofchad. Para isso precisaremos de muito estudo, muita profundidade, muita seriedade e muito compromisso.

Que estejamos preparados.

Shabat Shalom
Rabino Ruben Sternschein

Fontes
CIP – Congregação Israelita Paulista, afiliada ao Movimento Masorti
Kehilat Beit Israel -- Comunidade Judaica Masorti de Lisboa



A substância católica e o fator melquisedeque

Resumo

O artigo analisa o conceito substância católica e suas implicações para a construção de uma missiologia que respeite a universalidade da espiritualidade e as manifestações culturais. Parte da compreensão tillichiana de substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Nessa releitura de Tillich, o princípio protestante é visto como subconjunto da substância católica, o que leva a dizer que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Essa leitura de Tillich permite ver a história e a cultura como a substância que, para além de toda a situação, fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus. Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. A partir dessa compreensão o artigo afirma a importância do conceito, aqui reformatado como fator Melquisedeque, para a missiologia, que deve reconhecer as manifestações do essencial nas culturas, e denunciar as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Palavras-chave: Substância católica, fator Melquisedeque, princípio protestante, cultura, espiritualidade, missiologia, universalismo, particularidade.

Abstract

This article analyzes the concept Catholic substance and its implications for the construction of a missiology that respects the universality of spirituality and cultural manifestations. It starts from the Tillichian comprehension of catholic substance, as the relation between the manifestation of essence in existence and the affirmation of the meaning of the Christ event. In this rereading of Tillich, the Protestant principle is seen as a subset of catholic substance that leads us to say that catholic substance presents itself in non-historical and historical dimensions as an underlying identity. This reading of Tillich permits us to see history and culture as a substance that, beyond every situation, provides the symbols of an ultimate situation, the universal unity of the Kingdom of God. Within this universal unity of the Kingdom of God is found the Protestant principle as a founding event of Christianity which has a relation of centrality with catholic substance. Based on this comprehension, this article affirms the importance of the concept, here reformatted as the Melquisedeque factor, for missiology, that should recognize the manifestation of the essential in cultures, and denounce idolatrous expressions that threaten the human community.

Key-words: Catholic substance, Melquisedeque factor, Protestant principle, culture, spirituality, missiology, universalism, particularity.


Uma vez por ano, os artesãos de uma tribo da Indonésia constroem um barco de madeira em miniatura e o levam à beira do rio. O líder religioso da tribo amarra uma galinha num lado do barquinho e coloca uma lanterna acesa no outro lado. Depois, cada membro da tribo passa perto do barquinho e coloca um objeto invisível entre a galinha e a lanterna. Quando se pergunta às pessoas o que deixaram no barquinho, elas respondem: meu pecado. O líder, então, deixa o barquinho ser levado pela correnteza do rio, enquanto as pessoas gritam: Estamos salvos! [1]

Introdução
Em “A Massa e a Religião” [2] , escrito em 1922, Tillich disse que os teólogos do passado exprimiram numa linguagem metafísica dois elementos no conceito Deus: (1) como o ser mais real de todos, ou seja, Deus como substância absoluta, (2) e Deus como personalidade ético-espiritual, ou seja, como a forma mais perfeita.

Na consciência católica é o primeiro elemento que domina, e na consciência protestante é o segundo elemento. Para o católico, a graça é uma comunicação da substância divina, para o protestante, a graça é a comunhão ética com a personalidade divina. A explicação dessa diferença parte do fato de que o catolicismo produziu uma religião de massa e uma mística suprapessoal que não se opõe à religião de massa, ao contrário, é decorrência dela. Já o protestantismo, que foi beneficiado pela emergência de personalidades e comunidades – elementos que não se excluem --, perdeu as massas.

Para Tillich, a história das religiões mostrava que o elemento fundamental da religião é a aspiração não-racional presente nas formas, que vibra interiormente sob o efeito da irradiação do que não pode ser capturado através da lógica e da lei ética. Mais tarde, no correr da vida, vai desenvolver este conceito, chegando à conclusão de que esta substância universal de Deus é uma dimensão intrínseca à fé humana e ao cristianismo, que pode ser, então, compreendida em três elementos:

A intuição da presença do sagrado;
comunidades do amor, que reúnem pessoas antes separadas umas das outras;
a autoridade essencial à vida, que se manifesta através da tradição e dos símbolos.
Embora a igreja protestante, e por extensão evangélica, tenha nascido de um protesto crítico contra a absolutização desses elementos da substância católica na instituição Igreja Católica Romana, tal substância universal pode ser entendida como princípio do cristianismo, que deve também se fazer presente no protestantismo.

A substância católica e suas implicações para a missiologia

O princípio protestante é subconjunto e centralidade da substância católica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado do evento crístico. Fazendo uma releitura contemporânea de Tillich, ao afirmamos que o princípio protestante é subconjunto da substância católica, estamos dizendo que a substância católica apresenta-se sob as dimensões não-históricas e históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando nos referimos à história e à cultura é a substância que, para além de toda a situação, nos fornece os símbolos de uma situação última, a unidade universal do reino de Deus [3] . Dentro dessa unidade universal do reino de Deus encontra-se o princípio protestante enquanto evento fundante do cristianismo, que tem uma relação de centralidade com a substância católica. É o princípio protestante que retira da figura humana de Jesus tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo da cruz que desaparecem as particularidades e o finito do evento Jesus, dando lugar ao significado presente do Cristo.

O paradoxo do aparecimento do Cristo na existência sem a deformação da existência é uma interpretação radical do símbolo da cruz que, segundo Dourley [4] , salva o significado da crucifixão da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e por isso limitado, finito, enclausurado num tempo e espaço passados. O princípio protestante, lido sob tal perspectiva, apresenta, a cruz como presente e fim, como revelação e escathon que remetem ao kairós.

Mas, o protestantismo reformado caiu numa armadilha ao abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido de Deus nas profundezas do humano. Devido a esse deísmo bíblico, em sua aridez do “deo dixit”, da palavra que se resume na ética do texto, as profundezas da interioridade humana foram esquecidas e perderam seu vigor teológico. Por isso, Tillich propõs a manutenção da relevância do kerigma cristão, tão a gosto de Barth, em aliança com o reconhecimento da presença do sagrado expresso na cultura e nas dobraduras da secularidade.

É a partir daí que Tillich se lança ao conceito de comunidade espiritual, como definição de um processo de salvação, de essencialização, já que para ele o significado da vida, existencial e pessoal consiste na recuperação do ser essencial em Deus. Ou como diz, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro” [5] . E nesse processo de essencialização, Cristo é o elemento final que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí entende que há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder crístico, enquanto membros de uma igreja latente.

E mais, considera que esta igreja latente está teologicamente ligada à igreja manifesta e por isso é levada a Cristo, cuja fé, amor e cruz estabelecem o fenômeno da conversão, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual [6] . Dessa maneira, é a fé e o amor de Cristo que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que a igreja latente se complementa na igreja manifesta justifica a missiologia cristã. Ou como Tillich afirmou: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional” [7] . Convém lembrar, porém, que Tillich combateu toda expressão de arrogância na relação entre igreja manifesta e igreja latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade nas religiões e na cultura. Por isso, sugere que a missiologia combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido barthiano e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural. [8]

Assim, o conceito de substância católica é valioso para a compreensão da missiologia, principalmente no protestantismo de missões, em especial para os batistas brasileiros. A missão cristã, partindo desta leitura admite que a realidade manifesta no kairos de Cristo está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa missionária consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento Cristo, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação missionária da experiência cristã ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreensão cristã pode ampliar contatos com culturas e povos.

A missiologia batista e o fator Melquisedeque

O movimento batista em suas origens, e aqui nos remetemos aos movimentos religiosos separatistas da Inglaterra no século XVII, apresentou-se com duas grandes vertentes, uma cognominada “batistas gerais” e outra “batistas particulares”. Os primeiros desenvolveram posições que os aproximaram do pensamento teológico arminiano e os segundos do pensamento calvinista. Assim, não é de estranhar que os primeiros sempre tenham tido uma compreensão de aspectos da substância católica na forma de universalismo, inclusivismo e luta pela plena liberdade de expressão religiosa de todo e qualquer comunidade.

Essa era a visão de John Smyth, primeiro pastor (1610-1612) batista na Inglaterra, que coerente com sua compreensão teológica levantou a bandeira da “liberdade de consciência absoluta” [9] , dando início à trajetória batista de ação política engajada na luta pela liberdade religiosa. Outro pensador batista geral, Guilherme Dell, conhecido por suas fortes convicções teológicas a respeito da livre expressão do ser, em 1646, destacou-se pela luta a favor da liberdade religiosa na Inglaterra. Escreveu o livro intitulado Uniformidade Examinada [10] , que postulava a tese de que a unidade deve existir sem uniformidade, uma vez que a última era má e intolerável, excluindo toda a liberdade concedida por Deus. Essa era uma nova argumentação favorável a liberdade religiosa.

Mas, talvez o livro mais revolucionário da teologia batista, que apresenta uma visão da substância católica entendida em um de seus aspectos, o do universalismo, seja o de Hosea Ballou (1771-1852), Tratado sobre a Expiação, escrito em 1805. Ballou considerou que o sacrifício de Cristo ao invés de ser uma posição jurídica ou vicária tem base moral. Assim, Cristo sofreu pela humanidade, mas não em seu lugar. Com base neste argumento, afirmou a salvação universal de todos os seres humanos, porque a morte leva a alma não regenerada ao arrependimento.

Logicamente, por ser uma confissão protestante de forte cunho missionário, as reflexões teológicas sobre o universalismo influenciaram em muito a ação missiológica batista. E o pai das missões modernas, o batista inglês William Carey (1761 – 1834), apesar de ter iniciado seu trabalho a partir dos batistas particulares, no correr de sua obra missionária na Índia, construiu uma visão de missões até então inédita: dela participariam todas as igrejas e comunidades, todas as classes sociais, e sua ação, considerada civilizatória na época, passou a ser calcada num entendimento não paternalista de ação social. Depois de sua morte, esta visão missiológica, que tinha por base uma compreensão instintiva da substância católica, cedeu lugar a novas propostas.

Mas a partir do final do século XX, a experiência de Carey e as leituras de outros pensadores batistas gerais voltaram à baila, trazendo para a missiologia batista uma compreensão da importancia da substância católica. Assim, Don Richardson, professor de Missiologia, vê a história relatada na abertura desse trabalho como exemplo de uma ponte entre o que ele chama de revelação geral e o kerigma, a revelação crística. Ou seja, Deus se mostra na espiritualidade de pessoas e comunidades, que leva ao reconhecimento do evento crístico. Ele chama esta presença do essencial na existência humana de “fator Melquisedeque”, recorrendo ao nome do sacerdote a quem Abraão prestou homenagem.

Em seu livro O Fator Melquisedeque, best-seller entre os protestantes de missões do Brasil, Richardson enumera casos de comunidades aos quais Deus falou mesmo antes da presença cristã, citando com bom humor alguns casos relatados nas Escrituras, como o de Nínive, capital da Assíria, que ouviu as imprecações mal-humoradas de um judeu, aceitou a exortação e foi salva. E pergunta quem reconheceu que o Messias havia nascido em Belém, além dos pastores? Claro, nós sabemos, os astrólogos do Oriente, considerados pagãos pelos judeus. Ou ainda o caso do funcionário etíope que foi a Jerusalém e só encontrou o preconceito. Mas ouviu da revelação crística através de Filipe.

Richardson fala ainda de comunidades que possuem relatos semelhantes aos da criação e do dilúvio descritos na Bíblia e mesmo de comunidades que contam que, em seu caminhar nômade, perderam o livro que falava sobre o Deus que criou o mundo.

John Sanders, pensador arminiano, seguindo o caminho aberto por Hosea Ballou, considera que o amor de Deus pelos seres humanos nunca ficou suspenso esperando que missionários levem o Evangelho àqueles que não conhecem o evento crístico, embora deseje que todos ouçam acerca das coisas que seu Filho tem feito. Assim, afirma, “o Espírito age ativamente quando, onde e como ele quer, trazendo pessoas para um relacionamento com Deus, antes mesmo que o Evangelho as alcance”. [11]

E o escritor C. S. Lewis, tão querido e estudado pelos batistas, considerava que os que se entregam em fé Àquele que está por detrás de toda verdade e bondade serão salvos, mesmo que nada saibam sobre o evento crístico. Diz Lewis: “Há, pessoas em outras religiões que estão sendo guiadas pela influência secreta de Deus para se concentrarem naqueles pontos de sua religião que estão de acordo com o cristianismo e que assim pertencem a Cristo sem o saber.” [12]

Em outro lugar ele escreve: “Eu acho que toda oração que é feita sinceramente, mesmo a um falso deus (...) é aceita pelo Deus verdadeiro e que Cristo salva muitos que não acham que o conhecem.” [13]

E nas Crônicas de Nárnia, Lewis conta a história de um homem chamado Emeth, verdade em hebraico, que fora criado num país onde o principal deus chamava-se Tash. Emeth lutou contra o país de Nárnia, cujo Deus era Aslan, uma figura crística. Através de uma série de circunstâncias, nosso herói Emeth tem uma visão do deus Tash e percebe que Tash é o maligno. Impelido pela visão, ele vagueia pelos bosques. Lá Aslan o encontra, e acontece o seguinte diálogo:

-- Ai de mim, Senhor! Não sou filho teu, mas, sim, um servo de Tash. -- Criança, todo o serviço que tens prestado a Tash, eu o considero como serviço prestado a mim... por sermos o oposto um do outro é que tomo para mim os serviços que tens prestado a ele. Pois eu e ele somos tão diferentes, que nenhum serviço que seja vil pode ser prestado a mim e nada que não seja vil pode ser feito para ele. Portanto se qualquer pessoa jurar em nome de Tash, e guardar o juramento por amor a sua palavra, na verdade jurou em meu nome, mesmo sem saber, e eu é que o recompensarei. E, se um ser humano cometer alguma crueldade em meu nome, então, embora tenha pronunciado o nome de Aslan, é a Tash que está servindo e é Tash quem aceita suas obras...”

E constrangido, Emeth acrescenta:

-- Mesmo assim tenho aspirado por Tash todos os dias da minha vida.

-- Amado, não fora o teu anseio por mim, não terias aspirado tão intensamente, nem por tanto tempo. Pois todos encontram o que realmente procuram. [14]

Para Lewis, Deus salva pessoas e comunidades de acordo com o princípio da fé descrito por Paulo em Romanos (2.7), “Deus dará a vida eterna às pessoas que perseveram em fazer o bem e buscam a glória, a honra e a vida imortal”.

Assim, podemos ver que o protestantismo de missões e os batistas, não enquanto instituição, mas em sua ação missiológica têm vivido uma prática que em muito se aproxima da leitura tillichiana da substância católica. Assim, podemos dizer que essa leitura apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico no qual o desejo de Deus de essencializar todos os seres humanos pode ser realizado. O ponto de vista defendido é que Deus ama todos os seres humanos e deseja que sejam salvos. Todos são essencializados em razão do evento crístico, quer sejam conscientes ou não desse evento que projeta o kairós. Dessa maneira, o universalismo dos batistas gerais apresenta a igreja latente como comunidade que caminha, pela obra expiatória que desconhecem, em direção à essencialização. Ou em linguagem batista, Deus aceita todos os que exercem fé nele, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.

É importante dizer que Tillich, sem dúvida, enriqueceu o conceito de substância católica ao vê-lo em processo de correlação com o princípio protestante, e que mesmo nas mais diferentes confissões protestantes, como é o caso dos batistas, encontramos defensores da substância católica como fundamental para a vida teológica. É o caso de A. H. Strong, um dos teólogos mais respeitados no meio batista, que entende o processo de essencialização como exposto por Tillich, embora não utilize a mesma terminologia.

Tais considerações, nos permitem dizer que, provavelmente, o conceito substância católica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores cristãos na atualidade.

Considerações finais

Na teologia de Tillich, conforme expõe Dourley, é provável que sua contribuição à antropologia seja mais importante do que sua cristologia [15] . Essa antropologia baseava-se na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do tempo presente. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação desse mau encontro exposto por La Boétie. Esta dialética traduz e explicita a presença da espiritualidade do espírito humano.

Quando Tillich afirma que a humanidade é universalmente espiritual, partindo da tensão entre universal e particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação cristã, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o teólogo cristão aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a fé cristã é diminuído. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os cristãos percebem no evento Cristo, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.

Assim, a radicalidade do princípio protestante pode ser aplicada às materializações da substância católica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

Referência bibliográfica

[1] Don Richardson, O Fator Melquisedeque, São Paulo, Edições Vida Nova, 1986, p. 93.
[2] Paul Tillich, « La Masse et la Religion », in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Genebra e Quebec ; Cerf, Labor et Fides, Presses de l´Université Laval, 1992, pp. 92-93.
[3] Paul Tillich, Teologia Sistemática, São Leopoldo, Sinodal, 2005, pp. 757, 761-762.
[4] John Dourley, São Bernardo do Campo, Correlatio, no. 1. Site: www.metodista.br/correlatio.
[5] Paul Tillich, idem, op. cit. , p. 605.
[6] Paul Tillich, idem, op. cit., p. 665.
[7] Paul Tillich, idem, op. cit, p. 665-666.
[8] Paul Tillich, The Irrelevance and Relevance of the Christian Message, ed. D. Foster, Cleveland: The Pilgrim Press, 1996, pp. 5-9.
[9] Zaqueu Moreira de Oliveira, Liberdade e Exclusivismo: Ensaios sobre os Batistas Ingleses, Rio de Janeiro: Horizonal; Recife: STBNB Edições, 1997. p. 83.
[10] Zaqueu Moreira de Oliveira, idem, pp. 104-106.
[11] John Sanders, “Inclusivismo”. Site: http://arminianismo.vilabol.uol.com.br
[12] C. S. Lewis, Mere Christianity, New York: Macmillan, 1960, pp. 65 e 176. Trad. português: Mero Cristianismo, São Paulo, Quadrante, 1997.
[13] Evan Gibson, C. S. Lewis: Spinner of Tales, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1980, p. 216.
[14] C. S. Lewis, The Last Battle, New York: Collier Books, 1970, pp. 164-165; e God in the Dock, Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1970, p. 111. Trads. portuguesas: A Última Batalha e As Crônicas de Nárnia, São Paulo, Martins Fontes.
[15] John Dourley, “The Problem of Essentialism: Tillich’s Anthropology versus his Christology" in Theological Legacy: Spirit and Community, International Paul Tillich Conference, New Harmony, Indiana, 17-20 de junho de 1993 (Berlin: Walter deGruyter, 1995), p. 125-141.

Fonte

Jorge Pinheiro/ Correlatio/ Portal Metodista