jeudi 18 février 2016

Imago Dei, posfácio do livro

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Num barco de madeira a navegar oceanos
Jorge Pinheiro e Yoffe Shemtov


Sei, queridos leitores e leitoras, que vocês não estão muito acostumados com posfácios. E eles na verdade não são muito necessários, mas neste posfácio quero apresentar meu heterônimo Yoffe Shemtov. Ele cuida de leituras e pensares do meu judaísmo... Vou deixar que ele fale e você vai entender o porquê.

Leitor de Pinheiro, a partir da tradição sefardita, eu, Yoffe Shemtov, vejo um homem que constrói barcos de madeira para navegar oceanos. Lembra pescadores da Polinésia. E solitariamente, sentado na proa, com uma lanterna acessa no outro lado, parte sem rumo, ou melhor, num rumo que só ele crê conhecer. E dias depois, quando já em terra, as gentes ousam perguntar-lhe o que busca, Pinheiro responde: meu destino. É por isso que quando volta ao barco, todos nós, seus leitores, gritamos: Continue navegando!

Pinheiro, a navegar com pensadores como Paul Tillich, Slavoj Zizek e Giacomo Marramao, em momentos de conversa liberta de razões, à maneira mineira, diz que para garimpeiros da ontologia e navegantes do destino, duas coisas devemos saber acerca do Eterno criador: Ele é o ser real, a substância absoluta; é a forma mais-que-perfeita. 

É desta leitura que Pinheiro parte. E isso se deve ao seu judaísmo-tardio, aquele judaísmo que dialoga com a sofia grega, que traduz a universalidade judaica, que vê o Eterno como substância absoluta. Mas também parte do ser protestante-novo, que rechaça o contra-semitismo tão forte a partir de Agostinho de Hipona de católicos medievos e protestantes quase modernos... E ele olha o Eterno como a forma mais-que-perfeita. Para Pinheiro, o berit é comunicação da substância divina; mas ser protestante-novo é caminhar na graça com a pessoalidade divina. Nessa leitura, Pinheiro vive a aliança do movimento das massas hebréias e uma mística suprapessoal, que faz parte da história e tradições dos povos hebreus. Mas como protestante-novo considera que foi beneficiado com a emergência de pessoalidades e comunidades em seus caminhares com a messianidade.
 
Assim, para Pinheiro, a história traduz um elemento fundamental: a aspiração que vai além da racionalidade presente nas formas, que vibra nos corações judeus sob o efeito da radiação do que não pode ser capturado através da ética e nem mesmo da lógica. Esta substância universal do Eterno criador é uma dimensão intrínseca à fé judaica, mas chega ao protestantismo-novo de Pinheiro, e pode ser traduzida no movimento dinâmico e permanente da espiritualidade: querer caminhar na presença do Santo; desejar viver em comunidades de amor, que reúnem pessoas antes separadas; e compreender que a autoridade do Eterno criador, essencial à vida, se manifesta através da história, da tradição e dos símbolos. 

Pinheiro é protestante-novo, e sua militância criou raízes a partir do protesto crítico contra a absolutização da substância nas instituições, que gera, segundo crê, alienação, idolatria, morte. Daí a presença de Marramao e Zizek em suas leituras. 

Para Pinheiro, seu princípio do protesto está correlacionado com a centralidade da substância judaica, enquanto relação entre a manifestação da essência na existência e a afirmação do significado messiânico. Afirma que a substância judaica apresenta-se sob dimensões históricas e trans-históricas como identidade subjacente. Ou seja, quando se refere à história e à tradição é a substância que fornece os símbolos da unidade universal do reino do Adonai Elohim. Dentro desta unidade universal encontra-se o princípio do protesto enquanto fundação do evento messiânico, que tem uma relação de centralidade com a substância judaica. É este princípio do protesto que retira da figura humana do Mashiah tudo que nela poderia ser materializado como idolatria, por sua facticidade histórica. É por meio do símbolo que desaparecem as particularidades e o finito, dando lugar ao significado presente do Mashiah. 

O paradoxo do aparecimento do Mashiah na existência, sem a deformação da existência, é uma interpretação radical do símbolo, liberta do significado da idolatria de se permanecer na adoração de um objeto histórico e, por isso, limitado, finito, enclausurado num espaço e tempo passados. Para Pinheiro, o princípio do protesto, lido sob tal perspectiva, apresenta o Mashiah como presente que remete ao kairós.

É, por isso, que o protestantismo-novo de Pinheiro evita cair na armadilha de abandonar a unidade universal da substância, que mantém e possibilita o resgate do sentido do Eterno nas profundezas do humano. E, assim, ao romper com o deísmo dos textos antigos das tradições judaicas, da palavra que se resume à ética do texto, as profundezas da interioridade humana são resgatadas. E ao resgatar Tillich, mas compreendendo a dialeticidade do Mashiah proposta por Zizek, mostra a relevância do kerigma messiânico, em aliança com o reconhecimento do Santo, que se faz presente na cultura e nas dobraduras da secularidade. 

É a partir daí que Pinheiro defende a idéia tillichiana de comunidade espiritual como processo de essencialização, já que o significado da vida, existencial e pessoal, consiste na recuperação do ser essencial presente no Eterno criador. Ou como disse Tillich, “a comunidade espiritual é latente antes do encontro com a revelação central, e é manifesta depois desse encontro”. E nesse processo de essencialização, o Mashiah é elemento que possibilita o kairós, pelo qual a história humana sempre esperou. A partir daí há um processo de essencialização das pessoas e das comunidades, que vivem processos de essencialização sob o poder messiânico.

E mais, Pinheiro, nas pegadas de Tillich, mas numa compreensão de seu judaismo-tardio e seu protestantismo-novo, considera que as comunidades protestantes estão ontologicamente imbricadas às comunidades judaicas e, por isso, fazem novas leituras do Mashiah, cujo amor e fé estabelecem a essencialização, enquanto mudança de sentido de uma participação latente para uma participação manifesta na comunidade espiritual. Dessa maneira, é o amor e a fé messiânicas que levam à autocrítica radical capaz de estabelecer distinção entre o essencial e as formas através das quais o essencial se manifesta. A afirmação de que o judaísmo-tardio se complementa na comunidade protestante-nova justifica a leitura messiânica da fé. 

Ou como afirmou Tillich e Pinheiro cita: “a comunidade espiritual está relacionada tanto com a cultura e a moralidade quanto com a religião, e a presença espititual torna necessária uma mudança radical na atitude para com o que é incondicional”. 

Convém lembrar, porém, que Pinheiro, a partir de Marramao, combate toda expressão de arrogância, de absolutização do poder, na relação entre comunidade manifesta e judaísmo latente, ao reconhecer a presença da espiritualidade na cultura e nas religiões. Por isso, sugere que a proclamação do Mashiah combine ofensiva e mediação. Ofensiva no sentido kerigmático e mediação no sentido de correlacionar o kerigma com a questão cultural.

Assim, o conceito de substância judaica é valioso para a compreensão do kerigma, principalmente no protestantismo-novo. O kerigma messiânico, a partir desta leitura, segundo Pinheiro, admite que a realidade manifesta no kairos do Mashiah está em ação na cultura. Dessa maneira, a tarefa kerigmática consistiria em procurar identificar as maneiras por meio das quais o essencial, manifesto no evento messiânico, se faz presente na cultura. Tal procura possibilita a apropriação kerigmática da experiência com o Mashiah, ao considerá-la enquanto manifestações do essencial, além de sinalizar caminhos nos quais a auto-compreensão messiânica pode ampliar contatos com culturas e povos.

Logicamente, por fazer uma confissão do novo protesto da presença do Mashiah em sua vida, as reflexões de Pinheiro sobre o universalismo judaico influenciam em muito sua ação kerigmática. Assim, no correr de suas navegações, construiu uma visão kerigmática da qual participam comunidades, e sua ação se vê calcada num entendimento libertário de práxis social. 

Ou seja, a partir do universalismo judaico, Pinheiro considera que o amor do Eterno criador pelos seres humanos não está suspenso, esperando que o kerigma messiânico seja entregue. Considera que aqueles que O buscam, nos limites da fé colocada em seus corações, serão essencializados, mesmo que nada saibam sobre a presença do Mashiah em suas vidas.
 
Para Pinheiro o protesto-novo, não enquanto instituição, mas em sua ação kerigmática têm uma prática que repousa em muito sobre a substância judaica. Esta leitura de Pinheiro, a partir de Marramao, Tillich e Zizek, apresenta as bases para uma esperança maior no modo específico através do qual o desejo do Eterno criador de essencializar os seres humanos é realizado. O ponto de vista defendido é que o Eterno ama os seres humanos e deseja que sejam essencializados. E são essencializados em razão do evento messiânico, quer sejam conscientes ou não desse evento, que projeta o kairós. Dessa maneira, o universalismo judaico apresenta a comunidade protestante-nova como comunidade que caminha em direção à essencialização. Ou em linguagem judaica, o Eterno aceita os que exercem fé, sem levar em consideração até que ponto vai o conhecimento dessas pessoas.
 
É importante entender, então, que o conceito de substância judaica está em processo de correlação permanente com o princípio protestante, e é por isso mesmo que nas diferentes comunidades protestantes encontramos defensores da substância judaica como fundamental para a vida dessas comunidades. Tais considerações, nos permitem dizer que, como defende Pinheiro, o conceito substância judaica represente a abordagem mais próxima de um consenso entre os pensadores do protesto-novo na atualidade.

Nestas navegações de Pinheiro, onde correlaciona pensadores aparentemente diversos como Giacomo Marramao, Paul Tillich e Slavoj Zizek, antropologia e ontologia se correlacionam. Esta antropologia baseia-se na compreensão de que a humanidade é imago Dei e se encontra em choque com a alienação do espaço e tempo presentes. Mas a memória humana persiste como impulso na direção da recuperação desse mau encontro, exposto por La Boétie. Esta dialética explicita e traduz a presença da espiritualidade do espírito humano.
 
Quando Pinheiro diz, a partir de seus garimpeiros preferidos, que a humanidade é universalmente espiritual, partindo da dialética universal/particular, localiza o particular no contexto do universal. Em vez de considerar a realização plena do universal na revelação messiânica, relativiza a particularidade no contexto dessa humanidade universalmente espiritual. Tal ênfase exige que o navegador aprecie as manifestações do essencial nas culturas. Mas nem por isso o compromisso com a messianidade é diminuída. Ao contrário, a fé é aprofundada por meio do reconhecimento das variações daquilo que os protestantes-novos percebem no evento messiânico, tanto nas religiosidades como nas dobraduras da secularidade.
 
Assim, a radicalidade do princípio do protesto pode ser aplicada às materializações da substância judaica na direção da essencialização do humano, denunciando as expressões idolátricas que ameaçam a comunidade humana.

É o que eu tinha a dizer. E por isso entrego a palavra, de novo, a Pinheiro.

Obrigado, Yoffe Shemtov. Só quero dizer aos leitores e leitoras que aqui em “Imago Dei, a teologia do ser humano”, vocês, nem sempre em mar de almirante, navegam na dialeticidade do universalismo judaico e da particularidade protestante... onde os textos antigos da tradição judaica são lidos na contra-corrente do que se espera, quer para judeus, quer para protestantes. Mas para vocês que procuram leituras para novos espaços e tempos, a novidade pode ser criadora e criativa. Donde, o convite é: vamos navegar oceanos em barcos de madeira! Jorge Pinheiro.

Religião, uma construção maior do viver humano (I)

"Deus! Ó Deus! Onde estás que não me respondes? 
Em que mundo, em qu'estrela, tu t'escondes, 
embuçado nos céus?" Castro Alves.


Jorge Pinheiro, PhD

A vida se vive, vivendo. O ser humano, a principio, se constrói no aprendizado do viver. E ele faz isso a milênios. O que significa que todos humanos vivemos mais ou menos de forma parecida, mesmo se levarmos em conta as diferenças culturais e de épocas.

Ora, então por que a religião cumpre um papel tão importante? Por que nesse aprendizado do viver o ser humano busca o apoio da religião? 

Em primeiro lugar, e essa é a matriz fundante da religião, porque existe a morte. E a morte é a construtora primeira, o alicerce da busca do transcendente no coração humano. Logicamente, e todos intuímos isso, a morte nos coloca diante de perguntas que o dia-a-dia  da construção do viver não nos fornece informações. E tais perguntas são mais ou menos essas: e depois dela? nunca mais verei os meus queridos? puxa, foi tão difícil aqui, será que não existe um outro lado? onde eu possa ser mais feliz? E cada um de nós pode acrescentar uma pergunta, bem nossa, que aponta para o transcendente. Fazer isso, faz parte da construção do viver, mesmo quando não haja respostas ou mesmo quando respondemos a tais perguntas com um sonoro não. Não há depois dela, não verei os meus queridos, não existe outro lado, e assim sucessivamente.





Navio Negreiro de Castro Alves


Mas o certo é que o ser humano no correr da história preferiu, embora sempre tenha havido exceções, crer na possibilidade do sim para o desafio da morte e dos questionamentos que construímos a partir dela.

O importante aqui é compreender duas coisas, a vida se constrói na própria construção dela, e a religião tem como primeiro fundamento a morte, que é a matriz de todos os porquês das religiões.

Quando compreendemos isso, começamos a entender o papel primeiro, fundamental, da religião, nos dar uma espécie de alívio, de esperança, diante do imponderável. E a religião vai dizer sim, a vida continua depois. Cronologicamente, a ideia de deus e de deuses não nasce antes, mas nesse processo, já que deus e deuses não morrem, ao menos como nós, e podem transitar nos dois mundos. Ora, a morte é, em última instância, a criadora dos deuses. 

Para você entender este processo, sem ferir suas crenças, tem que se lembrar que o homo sapiens tem cerca de cem mil anos, e que as nossas religiões diante disso são novas. As mais antigas tem cerca de três mil anos. Ou seja, nessa novidade em relação aos anos de estrada do homo sapiens, construíram como metalinguagem leituras da morte, dos deuses e da vida. Ou seja, foram construindo o caminhar do transcendente. E logicamente modificaram a ordem de apresentação do caminhar transcendente -- deus/ deuses, vida, morte -- morte, vida, deus/deuses.

Esse processo levou à construção cultural das grandes religiões mundiais, dos seus continuados fracionamentos, fruto da necessidade de atualizar metalinguagem, e também está presente em todas as seitas que conhecemos. 


De acordo com The World Factbook, elaborado pela CIA com dados de 2012, os sistemas religiosos com maior número de adeptos em relação a população mundial são: cristianismo (28%); islamismo (22%); hinduísmo (15%); budismo (8,5%); pessoas sem religião (12%) e outros (14,5%). Estudos conduzidos pela Pew Research Center em 2009 mostram que, geralmente, nações mais pobres têm maior proporção de cidadãos que consideram a religião muito importante do que em nações ricas, com exceção aos Estados Unidos e Kuwait. A irreligiosidade e o ateísmo respondem por 14,27% e 3,97% da população mundial, seguidos pelas religiões étnicas indígenas.


"Diz o tolo em seu coração: 'Não há Deus! ' Corromperam-se e cometeram injustiças detestáveis. Não há ninguém que faça o bem". Salmo de Davi 

Este primeiro texto tem como finalidade levar a outros, que fluem naturalmente das questões colocadas aqui. Um forte abraço, Jorge Pinheiro.