mercredi 18 septembre 2013

A gestação étnica brasileira segundo Darcy Ribeiro


A GESTÃO ÉTNICA

por LÉA FERREIRA DE SOUZA OLIVEIRA 


RIBEIRO, Darcy, O povo brasileiro, a formação e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

ANÁLISE

Darcy desenvolve sua visão sobre as condições em que os brasileiros foram se formando, o que denominou cunhadismo. O cunhadismo, segundo ele, era a prática indígena que tornou possível incorporar estranhos às comunidades. Consistia em se oferecer uma moça índia como esposa aos recém-chegados. A partir de então, o estranho estabelecia uma relação de parentesco com os índios dessa família. Esse processo acabou influenciando decisivamente no processo de formação do brasileiro.

Para o colonizador essa prática tornou-se a condição de possibilidade para o processo de pilhagem nas terras conquistadas e também a própria condição da conquista das terras. Pois contavam com um enorme contingente de índios que segundo determinava o sistema de parentesco dos índios, deveriam pôr-se a serviço do parente.

Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos desses casamentos, a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz de recrutamento de mão-de-obra para os trabalhados pesados de cortar paus-de-tinta, transportar e carregar para os navios, de caçar e amestrar papagaios e soíns.

A função do cunhadismo na sua nova inserção civilizatória foi fazer surgir a numerosa camada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil. É crível até que a colonização pudesse ser feita através do desenvolvimento dessa prática. Tinha o defeito, porém, de ser acessível a qualquer europeu desembarcado junto às aldeias indígenas. Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número crescente de navios e incorporando a indiada ao sistema mercantil de produção. Para Portugal é que representou uma ameaça, já que estava perdendo sua conquista para armadores franceses, holandeses, ingleses e alemães, cujos navios já sabiam onde buscar sua carga.

Por fim, à medida em que a demanda de mão-de-obra foi aumentando, tiveram de passar da utilização do sistema de cunhadismo às guerras de captura dos índios.

Outras instituições que tiveram grande influência na gestação étnica do Brasil foram as donatarias e as reduções, onde os índios viviam submetidos às ordens dos missionários.

Na concepção de Darcy o Brasil tem sido, ao longo dos séculos, um terrível moinho de gastar gentes. O fato é que se gastaram milhões de índios, milhões de africanos e milhões de europeus.

Foi desindianizando o índio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos. Somos, em consequência, um povo síntese, mestiço na carne e na alma, orgulhoso de si mesmo, porque entre nós a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Um povo sem peias que nos atenham a qualquer servidão, desafiado a florescer, finalmente, como uma civilização nova, autônoma e melhor.

Nossa matriz negra foi responsável por remarcar o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes. Pelo fato de aprenderem o português com que os capatazes lhes gritavam e que com o tempo passavam a se comunicar entre si, acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil.

Nossa matriz africana é a mais abrasileirada delas. Já na primeira geração, o negro, nascido aqui, é um brasileiro. O era antes mesmo do brasileiro existir, reconhecido e assumido como tal. O era, porque só aqui ele saberia viver, falando como sua língua do amo. Língua que não só difundiu e fixou nas áreas onde mais se concentrou, mas amoldou, fazendo do idioma o Brasil um português falado por bocas negras, o que se constata ouvindo o sotaque de Lisboa e o de Luanda.

A condição de vida do negro é descrita por Darcy como uma situação espantosa. Relata a violência permanente pela qual foram obrigados a viver. Pergunta-se: como conseguiram permanecer humanos? Como sobreviver sobre tanta pressão, trabalhando dezoito horas por dia todos os dias do ano? A triste conclusão é de que seu destino era morrer de estafa que era sua morte natural.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da marginalidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

Darcy assinala com grande lamento que "nossos patrícios negros" sofreram e ainda sofrem o drama de sua penosa ascensão de escravo a assalariado e a cidadão, sobre a dureza do preconceito racial.

(Trabalho apresentado no programa de integralização de Créditos do curso Bacharel em Teologia -- Estudo da Realidade Brasileira, ministrado pelo Prof. Dr. Jorge Pinheiro).