mardi 31 mai 2022

Jorge Pinheiro bibliografia 2022.





Bibliografia

Jorge Pinheiro, O espectro do vermelho, Cristianismo e política, O PT através do espelho, São Paulo, Fonte Editorial, 2022.

Jorge Pinheiro, Paul Tillich, Justiça, paz e alegria, São Paulo, Fonte Editorial, 2022.

Jorge Pinheiro, Kadish, vida, morte e reino, São Paulo, Fonte Editorial, 2018.

Jorge Pinheiro, Teologia socialista, os caminhos humanos do pensamento de Tillich e Dussel, São Paulo, Fonte Editorial, 2017.

Jorge Pinheiro, O Caminho do humano, uma leitura a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel, São Paulo, Fonte Editorial, 2017.

Jorge Pinheiro, Imago Dei, a teologia do ser humano, São Paulo, Fonte Editorial, 2016.

Jorge Pinheiro e Naira Pinheiro, Ciências da Religião, reflexões para hoje, São Paulo, Fonte Editorial, 2014.

Jorge Pinheiro, "Teologia Bíblica e Sistemática, o ultimato da práxis protestante", São Paulo, Fonte Editorial, 2012.

Jorge Pinheiro, vv.aa., ¨O que eles estão falando da Igreja¨, São Paulo, Fonte Editorial, 2011.

Jorge Pinheiro e Marcelo Santos, "Manual de História da Igreja e do Pensamento Cristão", São Paulo, Fonte Editorial, 2011.

Jorge Pinheiro, "Teologia Humana, pra lá de humana", São Paulo, Fonte Editorial, 2010.

Jorge Pinheiro, "Teologia da Vida", São Paulo, Fonte Editorial, 2009.

Jorge Pinheiro, "Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus", São Paulo, Fonte Editorial, 2008.

Jorge Pinheiro, "Um pedaço de mim -- novela de memórias", São Paulo, Ed. E-leva Cultural, 2008.

Jorge Pinheiro, “História e Religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico”, São Paulo, Editora Vida, 2007.

Jorge Pinheiro, “Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira”, São Paulo, Fonte Editorial, 2006.

Fonte: Lattes, CNPq, Brasil




lundi 30 mai 2022

Paris, a outra

Um pouco da Paris protestante

Há lugares simbólicos do protestantismo no coração de Paris. Entre as ruas e avenidas de Paris, quase uma centena leva o nome de um protestante importante ou de uma personalidade de origem protestante. Cada bairro inclui pelo menos um. 

Através dessas ruas descobrimos não somente arquitetura e geografia, mas a presença dessa fé tão presente na história da França. Alguns lugares. como a Paris de Calvino, a Maisons des Missions e a Faculté de Théologie Protestante há mais de um século fazendo missões e formando pastores. E a Bibliothèque de la Société de l’Histoire du Protestantisme Français, com seus acervos e exposições que enriquecem nossa compreensão do que significou e significa hoje ser protestante. 

No bairro de Saint-Germain-des-Prés, centro cultural do protestantismo, vemos a igreja Saint-Germain-L'Auxerrois, localizada ao lado do Palácio do Louvre. Na noite de 23 para 24 de agosto de 1572, seu sino tocou soando o alarme para o massacre dos huguenotes, que tinham vindo a Paris assistir ao casamento de Henri de Navarra e Marguerite de Valois no Louvre.

Mas bairros como Saint-Germain des Prés desempenharam um papel importante no nascimento do protestantismo. Jacques Lefèvre d’Étaples, teólogo e humanista, viveu ali, traduziu o Novo Testamento para o francês e por isso foi perseguido. Teve que fugir da cidade, mas não abandonou a fé e se tornou um dos grandes comentaristas de Paulo, o apóstolo dos gentios.

Mas como vimos, Paris viveu o mais terrível dia da história do protestantismo. Na noite de São Bartolomeu foram massacrados protestantes. A carnificina teve inicio no 24 de agosto de 1572, prolongado por vários dias na capital. Cerca de trinta mil protestantes foram mortos, e depois o massacre foi estendido a mais de vinte cidades das províncias durante as semanas e meses seguintes.

Le Massacre de la Saint-Barthélemy de François Dubois
Musée cantonal des Beaux-Arts de Lausanne.

No quadro, a topografia parisiense da época, manipulada, adapta-se ao desejo de mostrar em conjunto os principais locais desta tragédia. À esquerda, pode-se ver a igreja do convento dos Grands-Augustins (agora desaparecido) onde soou o sino que desencadeou os assassinatos, o Sena e a Pont des Meuniers. Ao centro, ao fundo, o Louvre e, em frente ao prédio, Catarina de Médici, a viúva negra, principal instigadora dos massacres. 

Ao centro, ao fundo, a mansão em que o almirante de Coligny, líder do partido protestante, foi morto, decapitado e castrado. Reunidos em torno de seu cadáver, os líderes do partido católico, os duques de Guise e Aumale e o Chevalier d'Angoulême. Ao fundo à direita, a Porte Saint-Honoré e, na colina de La Villette, a forca de Montfaucon, onde o corpo do almirante foi pendurado de cabeça para baixo. Reunindo mais de 150 figuras, a obra é um verdadeiro catálogo da crueldade. Grávida estripada (à direita da pintura ao fundo), crianças arrastando um bebê na ponta de uma corda (ao fundo ao centro, à direita da ponte Meuniers), mulher espetada em um espeto de assar (apenas atrás das crianças arrastando a criança), cadáveres nus e empilhados (principalmente aos pés de Catarina de Médici), casas saqueadas (atrás dos líderes católicos). 

O rei Carlos IX dispara um arcabuz contra seus próprios súditos de uma janela no Louvre (provavelmente da torre esquerda do prédio). Esta pintura é bastante excepcional pela qualidade de sua execução, mas também porque as representações contemporâneas dos massacres de São Bartolomeu são muito raras. Tem a assinatura do pintor François Dubois, protestante de Amiens que se refugiou em Genebra após os massacres.

Este evento das Guerras de Religião foi fruto de uma combinação de fatores,  religiosos, políticos e sociais. Foi a sequência dos conflitos entre católicos e protestantes da nobreza francesa. Aconteceu dois anos após a paz de Saint-Germain, quando o almirante de Coligny, líder do partido protestante, retornou ao conselho real. Agravada pela severa reação parisiense, católica e hostil à política de apaziguamento, reflete também as tensões internacionais entre os reinos da França e da Espanha, agravadas pela insurreição anti-espanhola na Holanda.

Segundo a tradição histórica, o rei Carlos IX e de sua mãe, Catarina de Médici, foram os principais responsáveis ​​pelo massacre.


No dia 13 de abril de 2016, em cerimônia pública foi inaugurada a primeira placa em homenagem às vítimas do massacre de São Bartolomeu, próxima à Pont Neuf, praça du Vert Galant, pela prefeita de Paris, Anne Hidalgo.

Embora não tenha uma ligação direta com a história do protestantismo, vale a pena visitar as Catacumbas de Paris, que datam de 1700, quando o ossário foi formado a partir de uma antiga pedreira subterrânea. Ao longo dos anos, mais e mais assadas foram trazidas de cemitérios superlotados para dar lugar ao crescimento da cidade, até 1860. Hoje, ali estão expostos ceca de seis milhões de esqueletos, sendo o maior ossário conhecido.

Mas Paris na superfície é uma festa. Assim, vamos passear pelo Sena, e subir à torre Eiffel num final de tarde.

Observação: 
Para entender a história do protestantismo na França nos remetemos a um texto de Sébastien Fath, historiador e sociólogo, batista, e professor da Universidade de Paris. https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-03100463/document 

Fontes
https://museeprotestant.org/parcours/paris-protestant
https://museeprotestant.org/notice/paris-de-calvin
https://fr.wikipedia.org/wiki/Service_protestant_de_Mission
https://museeprotestant.org/notice/maison-des-missions
https://museeprotestant.org/notice/faculte-de-theologie-protestante-de-paris
https://www.shpf.fr/bibliotheque
https://fr.wikipedia.org/wiki/Massacre_de_la_Saint-Barthélemy#/media/Fichier:La_masacre_de_San_Bartolomé,_por_François_Dubois.jpg
https://fep.asso.fr/2016/04/devoilement-de-la-plaque-en-hommage-aux-victimes-du-massacre-de-la-saint-barthelemy/
 https://www.youtube.com/watch?v=3QCQwSssuf8 
https://www.getyourguide.fr/la-seine-l2601/paris-croisiere-de-1-h-sur-la-seine-t193940/?partner=true 
https://www.toureiffel.paris/fr






mercredi 25 mai 2022

Afrobrasilidade e movimento protestante

Afrobrasilidade e Princípio Protestante: 

Exclusão, Criatividade e Transcendência


Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos 



Tu és o louco da imortal loucura,

O louco da loucura mais suprema.

A Terra é sempre a tua negra algema,

Prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,

Mas essa mesma Desventura extrema

Faz que tu'alma suplicando gema

E rebente em estrelas de ternura.

“O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes).


  1. Introdução


Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da vida e fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos afrobrasileiros. E a história batista no Brasil confirma isso.


“A Denominação Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a Denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 


Após a derrota do sul dos Estados Unidos, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre o protestantismo e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners,  Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. 


A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.


Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. 


E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha: “Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil”. 


Passados quase 120 anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda domina o pensamento protestante. Assim, Elisabete Aparecida Pinto e Ivan Antonio de Almeida denunciam que na organização do IV Ciclo de Reflexão e Debates do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Etnicidade e Saúde da FALA PRETA!, em 1998, que teve como tema Religiões e a Inclusão/Exclusão de Pobres, Negros, Mulheres no Mundo Globalizado, “esta dificuldade foi percebida pela ausência (...) das Igrejas Pentecostais, Neopentecostais e Batistas. Essas instituições aceitaram o convite, confirmaram presença, porém no dia e hora marcados não se sentiram preparadas para a natureza do debate”. 


 Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação.


2. Uma Hipótese de Esperança: O Princípio Protestante


A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.


Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica do povo negro e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos. 


A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.


O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo kairótico comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”.


Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.


E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestanstismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal  cristianismo do princípio protestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade. 


O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética do amor-companheiro, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor; alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária.


Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido.


Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação protestantismo/afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e cultura afrobrasileira, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.


Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto  porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.


3. A Escravidão Gerou Miséria e Exclusão


Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.


Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.


Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões globalizantes. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica.  Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.


Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional.


Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.


Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro.


A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros.


Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira.


No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 


Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.


4. Tempo e Construção da Vida


Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço.


A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso:


“Não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado / suado / a todo vapor / me deixa ser teu escracho / capacho / teu cacho / diacho / riacho de amor / Vê se me usa / abusa / lambuza / que a tua cafusa não pode esperar / quando a lição é de escracho / olha aí / sai de baixo / que eu sou professor / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá / vê se me esgota / me bota na mesa / que a tua holandesa não pode esperar / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”. 

Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978.).


Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. 


Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.


Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive.


5. A Cultura Relacional Afrobrasileira


O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza.


É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade.


Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais.


Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade.


E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.

 

6. A Criatividade Afrobrasileira


Um pensamento protestante que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca.


Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem.


Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada.


Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro.


A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia.


O pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória.


7. A Busca do Transcendente


A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma.


Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente.


Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades.


A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar.


Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência.


A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.


Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto.


Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111).


Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/humilhação/cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela.


A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225).


Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue.


Tu és o Poeta, o grande Assinalado

Que povoas o mundo despovoado,

De belezas eternas, pouco a pouco...

Na Natureza prodigiosa e rica

Toda a audácia dos nervos justifica

Os teus espasmos imortais de louco!

“O assinalado”, Cruz e Souza (terceira e última estrofes).



Notas


As notas do artigo se encontram no texto original publicado.




DEUS É BRASILEIRO: AS BRASILIDADES E O REINO DE DEUS
ISBN 978-85-86671-85-1
213 p.

Jorge Pinheiro, cientista da religião, analisa neste livro porque o protestantismo tem dificuldades para o diálogo com as culturas brasileiras. Mas sua hipótese central é o da possibilidade do diálogo protestante com a multiculturalidade brasileira e, mais ainda, de que o protestantismo pode jogar um papel positivo e transformar na história do Brasil. E para demonstrar tal possibilidade, faz o caminho na contramão da dogmática oficial, deixando de lado autores e textos que se tornaram canônicos na metafísica protestante, procurando através de textos e autores pouco estudados ou desconhecidos, construir um caminho inclusivo, de diálogo, com as brasilidades. E, assim, por meio da filosofia, da antropologia e da sociologia da religião, nos apresenta uma leitura inédita e criativa da religião protestante no Brasil.


Referências Bibliográficas


ADAMS, James Luther  O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992.

ANTONIL, André João. Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, 1711.

AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo. A Formação do Pensamento Batista Brasileiro, Piracicaba: Editora Unimep, São Paulo, Exodus, 1996.

BALLESTERO, Manuel. La revolución del espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madrid: Siglo XXI, 1970.

BERDYAEV, Nicholas, The Destiny of Man. London: Geoffrey Bles, 1984. 

CRABTREE, A. R.,  História dos Batistas do Brasil até 1906, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1962.

CAVALCANTI, Robinson. Os Terreiros de Jesus. O Evangelicalismo e a Raça Negra no Brasil, Ultimato, Ano XXI, No. 193. Minas Gerais, Editora Ultimato, 1988.

DIVINE, Robert it alli, América Passado e Presente, Rio de Janeiro, Nórdica.1992.

FRY, Peter e HOWE, Gary Nigel. “Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo”. In: Debate e Crítica, São Paulo, no 6, 1975. 

HEFNER, Phillip J. “A questão do destino humano”. In: Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1990.

LATOURETTE, Kenneth Scott,  História del Cristianismo, s/l, Casa Bautista de Publicaciones, 1977.

LUTHER, Martin, Les Grands écrits reformateurs. Paris: Aubier, 1955.

MANZATTO, Antonio, Teologia e literatura, reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo, Loyola, 1994.

MATHEWS, Rute F.,  Ana Bagby a Pioneira, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1972.

MEER, Antonia Leonora Van Der, África, um Continente Maldito?, Ultimato, Ano XXIX, No. 243. Minas Gerais: Editora Ultimato, 1996.

PINHEIRO, Jorge, Negritude, Projetos Políticos e Nova Ordem Mundial, Apostila. São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1999.

O'DONOVAN JR., Wilbur, O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana, Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999.

OLIVEN, Ruben George, A antropologia de grupos urbanos, Petrópolis: Vozes, 1987.

PINTO, Elisabete Aparecida e ALMEIDA, Ivan Antonio de,  “Introdução”, in Religiões, Tolerância e Igualdade no Espaço da Diversidade (exclusão e inclusão social, étnica e de gênero), São Paulo, FALA PRETA!, 2004.

PRICE, Donaldo,  “A implantação das Assembléias de Deus no Brasil e dos Batistas Brasileiros: um contraste entre dois modelos missionários”, São Paulo, Teológica, Ano 3, no. 4, 2o. semestre 2001.

SANT'ANA, Antônio Olímpio de, O Negro Latino-Americano, Tempo e Presença, Ano 11, No. 242. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e Informação, 1989.

STEIN, Bárbara,  “O Brasil Visto de Selma”, Alabama, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 03 USP.

STRAUSS, Claude-Lévi, O Cru e o Cozido, Mitológicas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1991.

TILLICH, Paul,  A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992.

____________,  Le problème de l’éthique sociale évangélique in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992.

____________, Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992.

WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H., Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986. Trad. Euclides Carneiro da Silva.