dimanche 24 juillet 2016

Saremo felice!

Sejamos felizes!
Jorge Pinheiro

Por que eu tenho que escrever tudo?
Tudo?
Não tudo! 
Tudo é muita coisa! 
Talvez apenas sobre Florença no dia depois da festa de São Pedro em Roma
Faz calor, quase quarenta
Claire Tenet, soprano, grazie, sonhos de imagens sobre os sons da velha Igreja
Via Por Santa Maria, ponte Vecchio
Fagotes abrindo o caminho para violinos, sinfonia Prokofiev n º 7
O ombro é tocado por um anjo que me diz desperta do sono sem acordar as folhas ao redor
Os tubos em um crescendo
O corpo pesa o peso e acho que abrucezzo
Isso é tudo? 
Tudo é muita coisa! 
Dante, onde está Dante? 
Está aqui, voou com seus amigos para dentro de nossas almas em um amanhecer mineiro
Sangram os sonhos greco-latinos, sonhos possuídos pelo violoncelo sem limites
Os sons sāo sinos da noite
E viva Florença
Augusta e bela!

Saremo felice!

Perché devo scrivere tutto?
Tutto?
Non tutto! 
Tutto è molto! 
Forse solo di Firenze il giorno dopo la festa di San Pietro a Roma
È caldo, quasi quaranta
Claire Tenet, soprano, grazie, sogni di immagini, i suoni dell'antica chiesa
Via Por Santa Maria, ponte Vecchio
Fagotti spianando la strada per violini Sinfonia n. 7 di Prokof'ev
La spalla è toccata da un angelo che mi dice che si risveglia dal sonno senza risveglio delle foglie intorno
I tubi in un crescenti
Il corpo pesa il peso e penso che abruzzese
Questo è tutto? 
Tutto è molto! 
Dante, dov'è Dante? 
Sono qui, ha volato con i suoi amici nella nostra anima in un minatore di Alba
Sanguinare il greco-latino di sogni, di proprietà di violoncello sogni senza limite
I suoni sono campane della sera
E vivere Firenze
Augusta e bella!

Cultura e religião

Jorge Pinheiro

A relação entre cultura e religião manifesta-se na forma de um paradoxo, no sentido de um modo de pensar que está à margem das opiniões aceitas e mesmo em oposição a elas. O paradoxo inicial da religião reside no fato de ser ela uma obra da cultura na forma de um saber racional que tem a intenção de explicar a realidade e, por extensão, a própria cultura da qual procede. Essa universalidade da intenção religiosa deve ser designada como sendo o predicado da interrogação religiosa que se dirige à essência ou ao ser das coisas. Ela determina o caráter paradoxal da relação entre cultura e religião na medida em que é origem, instância fundadora da cultura. Há aqui um entrecruzamento de causalidades históricas, mas é importante assinalar como outras produções culturais, a arte, a literatura e a política apresentam essa originalidade de terem nascido ostentando os traços do que serão as suas essências como intenção de conhecimento. Nesse sentido, o estudo da religião pode ser considerado não só um caminho para se penetrar no espírito da cultura mas introdução ao estudo dos temas do pensamento religioso em geral. 

É necessário ter presente a relação dialética que existe entre o dinamismo da cultura e a produção religiosa que povos diferentes construíram na história. A sobrevivência das construções das civilizações mostra que a religião é um dos elos que asseguram a continuidade da tradição que chamamos cultura ocidental. 

Assim, a religião está inscrita no destino da cultura ocidental, faz parte do seu espírito. Por isso é necessário perguntar qual a razão que conduz esse destino. Ora, a própria religião oferece nos dá motivos para essa interrogação. Ela nomeia a razão debaixo do qual a cultura ocidental caminha, sendo a única que fez de tal razão o seu emblema, embora sejamos obrigados a levar em conta os tristes caminhos que essa razão ofereceu ao suceder histórico da civilização. Mas é fato que a descoberta do instrumento racional pelas duas religiões formadoras do pensamento ocidental, o judaísmo e o cristianismo, e a legitimação social de seus usos, foram a causa do aparecimento de um conhecimento religioso e de vida, que se apresentaram marcados pelo paradoxo da interrogação universal sobre o ser e pela utopia. 

A estrutura geral da relação entre cultura e religião cristã foi caracterizada inicialmente pela necessidade do exercício inerente ao desenvolvimento de uma cultura que aceitou legitimar socialmente o livre uso da razão. A religião passou a ser, então, a forma exemplar da vida segundo a razão. Ora, a intenção de universalidade que move o pensamento religioso ocidental, levando-o a voltar-se reflexivamente sobre si mesmo e sobre a cultura que lhe deu origem, opera aqui uma inversão na significação dos termos da relação entre a cultura e a religião como sua criação própria. Inicialmente a cultura é o termo fundante nessa relação, se considerarmos a religião cristã segundo sua gênese histórica e as condições do seu florescer. Considerada, porém, na sua natureza de interrogação racional sobre o ser e, portanto, intencionalmente universal, a religião assume, na sua relação com a cultura, a posição de termo fundante, já que a cultura se torna objeto a ser explicado pela religião no tribunal da razão. 

Essa explicação nos leva a estabelecer, de modo sistemático, a ordem das razões segundo a qual a cultura pode ser pensada na sua natureza, na sua unidade e nos seus fins. Como termo fundante da sua relação com a cultura, a religião descobre o seu propósito essencial na conjuntura histórica em que se exerce. Pensar a cultura significa para a religião cristã, de um lado, examinar a solidez do edifício da cultura, os conceitos ontológicos que tornam possível a atividade espiritual do ser humano: o ser e a essência, e definir segundo o seu estatuto ontológico, as condições de exercício dessa construção, a razão e a justiça. Nesse sentido, a cultura, em sua acepção mais ampla, a de ser o mundo do conhecimento, do agir e do fazer do humano, leva toda religião é ser uma religião da cultura. 

Podemos afirmar que a estrutura geral da relação entre cultura e religião apresenta uma forma dialética, pois nela a cultura e a religião invertem, no movimento do conceito, o papel de termo fundante da relação. Essa estrutura dialética caracteriza justamente a tensão histórica entre cultura e religião que afirmamos ser paradoxo tanto no ato de pensar religiosamente, quanto na intenção de ser religioso. Ela obriga a religião, ao constituir-se como termo fundante da sua relação com a cultura, a passar além das esferas de interesse dentro das quais ocorrem as diversas iniciativas culturais. Por isso, o lugar antropológico da tensão dialética entre cultura e religião, nesse impulso de remoer as origens, encontrará satisfação na religião, enquanto história que conhece diferentes tentativas de superação dessa tensão, que estão no começo e no anunciado ato final do destino histórico da religião. Existe assim uma regência não só simbólica, mas política da cultura pela religião. É o de tornar-se mundo pelo advento do estágio final da história, da qual ela é a coroa. Donde, a inevitabilidade da pergunta pelo futuro, inscrita como destino e como condição de sobrevivência no próprio ser da humanidade ocidental. 

Portanto, a situação da religião na cultura contemporânea nos convida a conviver com essa tensão que assume feições diversas ao ser a religião confrontada com os universos culturais que constituem a realidade complexa da cultura: particulares, mas universal. Talvez, por isso, o futuro da religião e o da civilização ocidental permanecem conjuntamente problematizados: a religião vive essa tensão e é a partir dela que se articulam as questões fundamentais do humano no alvorecer do novo milênio.
 
A primeira tarefa da reflexão religiosa é uma tarefa crítica no sentido original da justificação, enquanto integridade que conduz à dúvida tanto sobre sobre Deus, como sobre a própria religião. No caso da cultura essa tarefa se apresenta difícil, pois se desenvolve no terreno da tensão dialética da qual é a religião que deve refletir criticamente sobre a própria cultura. Na modernidade, o paradoxo dessa situação se manifestou quando a pretensão da religião de julgar o ser da cultura foi contestada pela modernidade. Essa pretensão era condenada em razão da relatividade dos paradigmas religiosos que se dissolviam na pluralidade das culturas históricas. Tratava-se, porém, de uma pluralidade quantitativa no espaço e no tempo históricos, mas qualitativamente relativas, já que a cultura mostra sua solidariedade com a vida, que se diferencia em profusão de formas, e assim mostra esse dinamismo de diferenças na vida da religião. Dessa maneira, a reflexão sobre a cultura coloca a religião em face de um questionamento: o problema da unidade e diversidade do ser, que está presente no fundamento das versões modernas do viver cultural e político. 

O fundamento da unidade da cultura está na ontologia, enquanto ontologia do ser humano. Para esse fundamento reflui a interrogação sobre a unidade ontológica da cultura e a questão se formula nesses termos: qual o princípio antropológico do que a cultura produz? É certo que o humano cria seu próprio universo de significação, que é justamente a cultura, e é nela que vamos encontrar o ato e a forma da nossa expressividade. Dessa maneira, o primeiro momento da reflexão da religião sobre a cultura consiste em assegurar, seja no ato da produção cultural a unidade que só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situa. Essa intuição inaugura o pensar nos primeiros passos da religião cristã ocidental. Donde, a unidade ontológica da cultura, aquilo que é inteligivel no seu ser reside na relação dialética entre a estrutura transcendental da pessoa e aquilo que é ideal e transcendente no que a cultura produz, que se manifesta na forma transtemporal e transespacial que lhe dá perenidade simbólica. A própria religião apresenta-se, então, como o paradigma perfeito da utilidade ontológica da cultura, pois nela são tematizadas a transcendência do ação, como interrogação sobre o que é, e a idealidade da forma como forma objetiva do ser. Assim, a natureza da unidade da cultura é a unidade analógica porque a produção cultural é expressão da abertura do ser humano à universalidade do ser e é no horizonte dessa universalidade que a produção se situa e adquire a sua idealidade simbólica. Por isso, a unidade da cultura é assegurada pelas categorias de estrutura e relação estabelecida pela antropologia e articuladas pelo movimento dialético da expressão da pessoa.

A unidade é, então, uma unidade na diferença e por isso analógica, que permite ao ser humano realizar-se na pluralidade das culturas históricas e na profusão de formas por elas produzidas. É, pois, o caráter analógico da unidade da cultura que dá origem ao problema dos universos culturais. A questão dos universos culturais conduz ao problema das categorias antropológicas que exprimem as relações do ser humano com a realidade, no âmbito da sua abertura transcendental ao ser. A diferenciação dessas categorias obedece à diferenciação do ser na realidade e incide na diferenciação dos modos de relação do humano com o ser, de maneira que a categoria de objetividade delimita o campo da relação de produção enquanto campo da relação teórica e campo de relação da práxis. O entrelaçamento dessas relações no existir histórico do ser humano define a cultura, sob a perspectiva da religião. Assim, o ser humano como ser em relação é, ontologicamente, um ser de cultura, assim como a realidade é, para ele, uma realidade de cultura. A unidade analógica da cultura deve ser pensada segundo a analogia de atribuição, ordenada em direção à inteligibilidade. A determinação dessa direção orienta a discussão sobre a relação entre teoria e práxis. Até a modernidade, a teoria reivindicou primazia. Na modernidade, porém, um movimento de civilização deslocou a direção de inteligibilidade da cultura para as formas de vida orientadas à produção e a práxis. Economia, política e trabalho passaram a ser os pólos unificadores da cultura moderna. Atualmente, há um retorno à teoria, entendida como ciência, o que leva a cultura a ser regida pelo cientificismo. O que traduz no paradoxo de que a teoria perde espaço para a práxis, pois a ciência moderna é instrumento de transformação da natureza e da sociedade. 

A primeira forma da reflexão da religião sobre a cultura tem em vista o estatuto ontológico que rege a atividade cultural do ser humano e o seu objeto. Esse estatuto ontológico exprime-se como unidade da cultura encontrando sua efetivação histórica nos diversos ciclos culturais, como é o caso da civilização ocidental. Mas, ao colocar em evidência no ser da cultura a dimensão da realização do ser humano, a religião descobre o caráter normativo que lhe é inerente. A ontologia prolonga-se necessariamente numa ética da cultura. A normatividade da cultura é tão evidente quanto sua própria existência, pois o ser humano funda o mundo da cultura tendo em vista o seu próprio bem. O ético não deve ser entendido como um predicado que externo à cultura. Os dois conceitos são complementares, porque a produção encontra seu lugar no espaço daquilo que é que é moral, ethos e morada do ser humano. Ethos é a forma de vida da cultura. É por sua própria natureza, conhecimento normativo da cultura. Fazendo-se reflexão ética, a reflexão religiosa sobre a cultura tem a função constitutiva de operar no ser humano e em sua produção. Assim, a religião tem por objeto a ontologia e a ética do ser da cultura. É por isso que a tematização ontológica e ética da cultura ocorre no âmbito da civilização que se elevou ao nível da sua autojustificação em termos de razão, de civilização que inventou a religião cristã. No momento em que a cultura coloca no centro do seu espaço simbólico os sistemas criados pela razão, entre os quais está a religião cristã, ela define o estatuto dessa produção simbólica, as regras e as normas do seu uso em vista da realização daquilo que é humano, e este é o seu fim. Desde o momento em que o campo simbólico da cultura dilata-se no espaço universal da razão, os limites do ethos tradicional tornam-se estreitos e cabe à religião a instauração de um outro ethos, a ética. Por isso, a religião é produtora dessa instauração. O roteiro da ética na civilização ocidental acompanha o roteiro seguido pelo pensamento cristão. Ele reflete as dificuldades da cultura nas horas dessa crise de civilização que vivemos como crise universal de cultura, mas também como crise ética. Mas a crise da modernidade tem um paradigmática que traduz este momento especial de final de milênio. Esta crise é a doença da modernidade, que nasceu do mesmo solo que possibilitou sua expansão, os solos americanos. É uma doença dos últimos tempos. As utopias que encontramos nas declarações dos direitos modernos, de que os seres humanos nascem livres e iguais, traduzem as visões milenaristas da história ocidental e cristã. Se as conquistas das terras americanas abriram espaço para a modernidade, foi o nascimento da razão instrumental, orientada à conquista e ao poder, que levou à vitória a razão moderna. Na verdade, esta foi uma razão interessada na instrumentalização da força e no cálculo da da capacidade de resistência do adversário, que jamais pensou em mover-se em sintonia em sintonia com a terra e os povos conquistados. E a partir da conquista dos continentes americanos, o cristianismo europeu converteu o mundo, colonizando-o, levando a Europa, a partir de então, a dispor de recursos que alimentaram um sistema econômico organizado mercantilisticamente.

Mas houve um segundo momento, aquele em que a a Europa se abriu ao mundo novo e que foi assinalado pela tomada do poder sobre a natureza, quando as novas ciências da natureza desencantaram o mundo, tiram-lhe o mistério e a alma para torná-lo escravo, e transformaram os europeus em proprietários da natureza. Esta tomada de poder da civilização européia no mundo pode ser entendida como a de uma fé messiânica convicta de que por mil anos os santos reinarão sobre os povos do mundo, e que esta era cristã seria também a última da humanidade, aquela idade de ouro que precederia o fim do mundo. Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido. Este é a doença messiânico com que se batiza a modernidade, pois o ser humano se tornou capaz de dominar a terra e restabelecer sua semelhança com Deus, esmaecida por sua própria culpa. E como a glória reflete a luz: esta foi a idade das luzes, do Iluminismo, momento do êxodo definitivo dos seres humanos da sua minoridade culpável para o exercício livre da razão. 

A aqui estamos diante de uma esperança milenarista realizada na história. Esse milenarismo compreendeu o reino de Deus de modo teleológico, não apocalíptico, por não ser leitura catastrófica do mundo mas ethos possível aos seres humanos. Dessa maneira, a escatologia apocalíptica se transformou em teleologia, cheia de otimismo, que definiu o ser humano como bom e viu o irracional preso por mil anos. Essa fé moderna, de que o bem poderia difundir-se livremente e a história realizar-se enquanto reino de Deus, produziu o cristianismo milenarista da modernidade, contra o qual o fundamentalismo apocalíptico da alta modernidade levantava-se em protesto.

A fé no progresso e o ideal de humanidade do Iluminismo alemão constituiu esse milenarismo teológico. Para o idealismo alemão e depois para os hegelianos de esquerda, entre os quais Marx, a revolução francesa era um sinal da história que atestava a disponibilidade moral da humanidade em caminhar em direção ao melhor, um sinal de que a história se direcionava para um fim escatológico. As filosofias da história oriundas do idealismo alemão, com suas idéias de evolução, progresso e fim, derivaram dessa teologia histórico-salvífica do milenarismo e não foram outra coisa que a tradução do plano salvífico, do reino de Cristo do protestantismo. A partir dessa leitura, o reino de Deus foi visto como não como fruto de uma revolução apocalíptica preparada por Deus, mas de um caminhar no âmbito do ethos e da razão. Esta é a diferença entre o milenarismo de origem hegeliana, no qual podemos incluir o marxismo, e o milenarismo teológico, porém ambos trabalham com um ideal de superação programada da história, com o progresso e do fim último. Foi o idealismo alemão e as diferentes correntes oriundas dele que possibilitaram essas transferências de um milenarismo teológico para sistemas de caráter histórico. 

Mas uma enfermidade acompanhou essa releitura da religião em Feuerbach e Marx, e assim como a fé que demonstraram na razão, abriram caminho para esse caráter messiânico e milenarista na vontade de realização de uma história ainda não realizada. Aqui reside a tendência ao autoritarismo desses pensamentos, que tinham por base a esperança de que se realizaria uma libertação possível e necessária da humanidade, que se libertaria das dependências da natureza para se tornar sujeito da própria história. O sonho milenarista da era moderna foi o de dominar as nações, adquirir o poder sobre a natureza e projetar uma civilização que transformasse os seres humanos em sujeitos da história. No entanto, se uma ética da cultura está em unidade orgânica com uma ontologia da cultura, já que o fundamento sobre o qual ambas repousam é a antropologia, e seu núcleo conceptual comum é a categoria de pessoa, princípio e fim do discurso cristão sobre o ser humano, também a crise ética se encontra em unidade orgânica com uma crise da ontologia da cultura. E porque a ética está em crise deixa de propor-se como uma ética da pessoa modelada culturalmente, pois deixa de ser uma unidade analógica, onde várias são as perspectivas que se oferecem para a organização sistemática de uma reflexão ética, que percorre categorias que exprimem funções personalizantes da cultura: tradição e ethos; fundamento e lei; unidade e fim; liberdade e justiça, para se tornar exatamente o choque permanente desses contrários. Do ponto de vista ontológico, não deixamos de ter uma ética, mas estamos diante de uma corrpção, pois ela deixa de aprofundar a reflexão sobre o dever-ser inerente à pessoa e sua produção. Tal corrpução a leva a abandonar seu dever-ser, que deveria ocorrer na própria dialética da produção da justiça, que se desenvolveria sob a norma do idealmente igual e livre. 

Ora, a ética começa por investigar o caráter normativo com que o ser se apresenta ao humano na atividade de livre criação, ou seja, na justiça. Essa normatividade do ser não é mais do que a exigência do igual e livre, que confere à atividade humana sua estrutura teleológica e constituindo o humano como um ser ético. Por isso, a transcrição histórica da essência ética do ser humano realiza-se na extensão do espaço simbólico da justiça. Há, pois, uma relação transcendental entre a justiça e o dever-ser do bem a que ela tende. Essa relação é dialética e se apresenta como estrutura ideal normativa tanto do ato de justiça quanto daquilo que ela produz. É o que leva à perfeição como fim, que orienta a construção da justiça; a outra questão é a realização na qual a estrutura ideal é confrontada com o desafio de realizar-se na contingência, e por isso limitada pela própria existência. Nesse sentido, a religião se ocupa com a estrutura ou a normatividade ontológica da justiça, porque seu objetivo é conceber a razão ética que deve orientar o caminho da realização histórica. 

Para a justiça, o risco é a recusa da normatividade da estrutura, já que a forma é o dever-ser imanente à ação, tendo como fundamento a estrutura ontológica da pessoa, e é o dever-ser imanente à produção, que tem como fundamento a estrutura ontológica da realidade. O conflito entre a estrutura e a realização traduz-se no abandono da justiça, que fica sem a regra da proporção, sem o vínculo ao necessário e à finalidade. Estamos então diante de uma negação do ser, que pode ser caracterizado como corrupção da justiça ou a perda do humano.  Por isso devemos explicar a norma ontológica imanente à atividade da justiça no sentido de que deve exprimir, na particularidade da ação humana, a unidade e a riqueza ontológica do ser. É o que possibilita a constelação sob cujo signo nasce, cresce e se desenvolve a justiça. Assim, a justiça deverá (pré)ocupar-se com a presença normativa desse processo no qual a história humana tem a sua realidade, desafios e possibilidades de destino.

Ora, a partir da revolução francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que todos os seres humanos são criados livres e iguais. E foi assim que a Europa, que se afirmou como potência mundial, assumiu os traços de uma realidade humana com dimensão universal. O direito universal à liberdade e à igualdade motivou os movimentos de libertação dos excluídos: escravos, mulheres, povos. O direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções modernas. E se a democracia é a forma política na qual se exprime a liberdade, então sua figura econômica deveria ser a igualdade. Mas, a democracia enquanto expressão da justiça social também entrou em crise, e não poderia ser diferente, porque cultura e ethos se encontravam em crise. Mas a expressão visível dessa crise da democracia é o fato de ter tornado-se escrava das leis de mercado. Está submetida à economia, que faz a lei. Esse é o paradoxo. A democracia está em crise e encontra-se desencantada. O fim do comunismo enquanto cosmovisão, que teve presença sobre parte da humanidade, foi positivo, porque foi o fim de uma barbárie, mas foi o fim também de uma esperança. E a enfermidade e crise da cultura, do ethos e da democracia nos leva a viver num mundo perigoso, onde o modelo que permanece se torna cada vez mais dogmático. Mas se há crise, há também recuperação, embora recuperar não signifique restaurar valores que caducaram com o mundo que se foi, nem reconstituir um ethos que já não responde às necessidades humanas. Fazer assim seria heteronomia que leva ao autoritarismo. Recuperar o princípio de liberdade e igualdade entre os seres humanos significa reinventar o socialismo, enquanto idéia solidária da incondicionalidade da justiça. Os valores humanos, aqueles que mais prezamos, sempre foram reiventados, porque o mundo muda, e de nada adianta sonhar que estamos no século da Reforma ou vivendo os tempos de glória do Iluminismo. Por isso recuperar é recriar. É preciso então reinventar os valores fundadores da democracia: a fé no destino humano, a solidariedade, a razão. A democracia só permanece se muda, pois não é um estado natural da sociedade, é sempre um projeto. Por isso, necessita sempre ser reinventada, pois as ameaças à democracia mudam: já foi o nazismo, o comunismo, e hoje são a ditadura das leis do mercado, os fundamentalismos e as mídias controlada pelos grandes grupos. A democracia deve mudar para se recriar enquanto esperança democrática. A liberdade democrática é fundamental, e é preciso defendê-la, mas não basta que o cidadão vote, eleja governantes, mas permaneça distante das ações do poder, por isso democracia implica em participação, não se restringe a escolher candidatos e elegê-los. Mas se a democracia deve ser recriada significa que não pode ter modelos. Dizer que a democracia é um valor ao qual os povos têm direito não significa que em todos os lugares ele deva ser igual. E é interessante que esta leitura da democracia e da reinvenção do socialismo apresenta hoje caras diferentes que se expressam no Forum Social Mundial e em organismos como a Anistia Internacional ou o Green Peace. São novas formas de militância, que constatam a existência de valores universais, mas afirmam o respeito às culturas. Se os seres humanos foram criados livres e iguais, as sociedades têm que articular os direitos à liberdade enquanto direitos sociais à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade, não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade, não podemos esperar que funcione enquanto sistema fundado sobre os princípios da justiça social. O caráter universal das declarações que têm por base "todos os seres humanos são criados livres e iguais" só podem se realizar numa comunidade mundial de estados que considerem os direitos humanos fundamentais aos cidadãos. Trata-se de uma utopia, mas aquilo que começou como utopia do humanismo messiânico pode se tornar necessidade quando a unidade da humanidade é colocada pelo conjunto dessa própria humanidade. 

Na modernidade, a religião viu surgir um novo desafio ao sentido da sua presença no mundo da cultura e da política. Esse desafio se formulou no terreno das relações entre a religião e a política moderna. Ora, é na sociedade, enquanto espaço onde se cruzam os universos da cultura, que se formam as globalidades da política contemporânea. Alguns desses universos, como o universo da produção de conhecimentos e da formação profissional têm remetem na sociedade da alta modernidade, estruturalmente, a uma sociedade de comunicação e produção de massa, ou seja, à política de massa. Essa é a cara visível e mais verdadeira da política contemporânea e com a qual deve conviver o pensamento socialista. 

Donde, o lugar e a razão de ser da religião, nesse contexto, é que a religião não poderá alinhar-se entre os produtos políticos de uso e consumo imediatos da sociedade de massa. Sua situação será uma situação de paradoxo, que se manifesta na tensão dialética entre as estruturas formais da instituição, que a acolhe e lhe assegura fundamento e legitimação sociais, e a intenção reflexivamente crítica e igualmente fundante com que a religião se volta sobre a própria política, para pensar a natureza dessa política, as normas éticas que a regem e os fins a ela atribuídos pela sociedade que a institui. 

Assim, se o mundo moderno foi produzido pelo Iluminismo e o Iluminismo nasceu do espírito cristão da esperança messiânica. No passado a questão religiosa partia da discussão sobre a origem do mundo. E o problema era resolvido a partir dos mitos de origem ou dos símbolos relacionados com a vida. Mas, com a modernidade, o futuro é motivo de exaltação ou de ameaça, pois redime ou apaga, dá consolação e sentido ao sofrimento e ao agir na história. Portanto, o futuro se tornou o paradigma da transcendência. E o pensamento teológico passou a ser reflexão movida pela esperança, onde a teologia cristã passou a ter como tarefa remover a presunção messiânica e a subordinação apocalíptica. 

A situação da religião na política não está numa situação de repouso, mas é ao cumprir o paradoxo de seu destino que pode ser fiel a si própria. E a política, e aqui nos referimos mais especificamente ao socialismo, deve ter interesse em assegurar à religião as condições para o exercício de sua fidelidade, o que possibilitaria a ele, socialismo, recriar a partir de sua identidade histórica, as razões mais decisivas de sua missão nas globalidades da política contemporânea. 

Fazer uma leitura teológica da história e das possibilidades do PT implica, num primeiro momento, em fazer uma discussão mais abrangente sobre a relação entre política e religião. Geralmente, quando se fala em religiosidade imagina-se uma dimensão de vida que se caracteriza pelo afastar-se do mundo e como conseqüência negar a política como dimensão da vida humana e social, e a possibilidade de construção de uma teologia, que por ter a ética como uma de suas bases, é de fato espiritual e socialmente transformadora. Mas, se consideramos que política e religião não são conceitos excludentes, nos vemos obrigados a procurar entender ambos conceitos antes de ver como se relacionam.
 
A palavra política nos leva a quatro conceitos distintos: a doutrina do direito e da moral, a teoria do Estado, a arte de governar e o estudo dos comportamentos intersubjetivos. Na abordagem que estamos fazendo, ao analisar as imbricações entre religiosidade e política, nos interessa abordar a política enquanto doutrina do direito e da moral, pois a partir daí temos elementos para entender, também, a política sob as demais perspectivas. Podemos dizer que a política, enquanto conhecimento que trata dos aspectos práticos da ética, e que se apóia na antropologia filosófica ou teológica, por necessitar definir uma concepção de ser humano, remete a questões como a natureza e alcance da liberdade, os diversos tipos de liberdade e a natureza e formas de justiça.

Assim, a política deve responder de forma prática à pergunta pelo bem dos membros de determinada comunidade, traduzindo esta ação nas questões do poder e das estruturas de governo. Mas e a religião tem algo a dizer à política?

De forma abrangente podemos dizer que religião é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à vida. O ser humano, unidade multiforme, tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida também há experiência com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente. Essa visão de espírito nos leva a uma compreensão abrangente da religião, que por isso não pode ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos princípios e das práticas de que se compõe a piedade. Se a religião pode ser vista entre os cristãos como uma interpretação particular do ideal evangélico, podemos dizer que há uma religiosidade comum à espécie humana, que se expressa existencialmente.

Nas ações sociais magicamente orientadas, onde a distinção entre sagrado e profano é menos nítida, embora exista, é mais difícil delimitar e definir o conceito de religiosidade. Mas nas sociedades mais complexas, naquelas religiões onde o espaço e o tempo do sagrado e profano são mais bem definidos, envolvendo escolha, disciplina e prática levam a experiências avançadas de religiosidade. Tais experiências com o sagrado encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa relação de aparente intimidade, de relacionamento, permanece o abismo entre adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à religiosidade.

A religiosidade cristã se construiu ao redor da cruz. A paixão de Cristo era entendida como exaltação, como dom da vida de Deus aos seres humanos. E porque a morte já não era olhada como derrota, mas como dom livremente aceito, o martírio foi o primeiro momento da religiosidade cristã. Dessa maneira, podemos dizer que a religiosidade tem uma dimensão apofática, enquanto negação daquilo que é humano, enquanto martírio, cruz e morte. E uma dimensão catafática, positiva e simbólica, que possibilita o encontro com Deus através das fanias, enquanto manifestação de Deus na realidade. 

A dimensão negativa da religiosidade é, em última instância, uma aproximação das trevas, limiar da inacessibilidade divina. Diante dela reconhecemos nossa ignorância e tal reconhecimento nos possibilita conhecer para além da razão. Mas porque a religiosidade tem uma dimensão catafática, o negativo se realiza num ultrapassar sem se desligar de sua base. Assim, quanto mais a religiosidade é construída no sentido vertical da busca do sagrado, mas encontra raízes no sentido horizontal da história humana. O primeiro elemento na experiência do sagrado é a santidade do ser e o segundo a santidade do dever. A primeira forma de fé é de tipo ontológico e a segunda é fé ética. No sagrado, a dinâmica da fé é definida por estes dois tipos de fé e por sua interdependência e antagonismo. Assim, onde quer que a religiosidade humana seja experimentada, também se experimenta o seu poder de exigir aquilo que deveríamos ser. Por isso, se a religiosidade está ligada ao rigor da fé, enquanto dimensão apofática, como vemos na oração, na contrição e no sofrimento, ela sempre se realiza existencialmente, enquanto encontro com a transcendência. Esse encontro é a raiz da conversão e da vida contemplativa, mas remete sempre a um segundo encontro com a pessoa do irmão menor. A contemplação do divino no irmão que sofre é um chamado ao compromisso. Esse encontro que é serviço faz de ambos contemplativos na ação, dentro da  tradição cristã.

A partir desse momento em que a religiosidade torna-se caminho para a transcendência através do serviço ao próximo, a religiosidade tem algo a dizer à política. Pode parecer desconcertante relacionar religiosidade e política, mas ao falar de religiosidade estamos falando de ascese pessoal, de contemplação e do exercício do amor, e por política entendemos a transformação da sociedade na direção do reino de liberdade e justiça, onde aqueles que estão excluídos encontrarão vida e salvação histórica. Nesse sentido, a religiosidade dá sentido à vida cotidiana e torna-se além de mística e profética, política.

Quando trazemos esta discussão para a realidade brasileira, vemos que a partir dos anos 60 com o engajamentos de católicos e protestantes na luta contra o regime militar tomou corpo a discussão sobre a responsabilidade política da comunidade cristã. Foi e continua sendo importante para o cristianismo brasileiro que tal discussão se faça, mas expressivos setores da comunidade cristã ainda não ultrapassaram a religiosidade privatizada em direção ao compromisso social efetivo. 

O caminho desse diálogo da religiosidade com a política tem uma essência: o uso do poder, já que este determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a soberania de Deus, numa leitura reducionista da religiosidade, quando a vemos apenas em sua dimensão negativa, têm profundas implicações no modo como se pensa a política. Ao optar por uma religiosidade privatizada, ofuscam-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, corruptas através de atitudes aparentemente piedosas. 

A afirmação de que não há política sem o uso de poder , embora possa parecer óbvia, não tem sido aceita pela religiosidade negativa, que apresenta propostas que buscam uma ordem política onde o amor sem poder deve superar o poder sem amor. Ao analisar tais propostas, ao contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o negativismo é impossível combinar políticas e vida cristã. Chamam à criação de comunidades que rejeitem qualquer forma de poder, representada na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade estão aceitando o uso do poder, pois não defendem uma retirada do mundo. Neste sentido, diferem dos separatismos do século XVII, que propunham a radical separação entre Igreja e Estado em nome da liberdade de consciência. Estes separatismos acreditavam que o fracasso das políticas de poder eram impedimento para a manifestação do poder de Deus no testemunho da comunidade cristã. Era um fundamentalismo de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que se traduzia em uma atitude política consciente.

Hoje, a religiosidade cristã no Brasil não é separatista e não foge do mundo. Acredita ter uma missão moral de transformação e não nega a possibilidade de real envolvimento político. Ora, se a comunidade cristã tem uma moral política, deve exercer poder e utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca, pois rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição poderia até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e abandonem o mundo. O problema é quando se faz uma opção pela renovação da consciência moral da comunidade, mas se rejeita a política como meio de viabilizar a opção social escolhida. Quando a comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus tem-se a negação da política como possibilidade cristã, o que fortalece os grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que propõe o negativismo, tal postura não estabelece o reino de Deus. 

Se não é possível falar de política, sem falar de poder, fica uma outra questão: amor e poder são compatíveis? A pergunta procede porque a religiosidade remete à prática do serviço ao próximo. Mas, em nome da religiosidade e do amor ao próximo comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder.  Tal postura é um equívoco, pois o poder de ser não é uma identidade morta, mas um processo dinâmico sobre o qual o ser se separa dele mesmo e retorna a ele mesmo. O poder, por outro lado, é tão grande quanto a separação vencida foi grande. O processo pelo qual é reunido aquilo que estava separado se chama amor. Mas se há o amor reunificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser. O amor é a base e não a negação do poder. Mas o amor é um ato da vontade. Não se pode forçar uma pessoa a amar. Porém, atos de ordem política contêm elementos involuntários. Isto porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora de nossa vontade, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer, por isso diz-se que a ação do Estado extrapola o amor porque este não pode ser forçado. Outro fato importante é que o amor é algo que deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre é pessoal. O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação do cidadão com o Estado é uma relação entre pessoa e instituição, em lugar da relação eu e você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor.  Além disso, o amor tem um caráter sacrificial, ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. E por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. Por isso, só o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a própria eternidade, a dignidade e a validade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.  

Mas política implica em servidão involuntária. Sua natureza baseia-se no uso de coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente. Os políticos e aqueles que atuam ao nível do Estado se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. A maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob determinada ordem política que pelo menos responde às exigências de sua obrigação moral. E quando isso não acontece somos chamados à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atua-se no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negando os limites de seu poder de Estado ou passando por cima das obrigações que tem com os cidadãos.

Por isso, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre os cidadãos é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário. Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã deve se situar frente à política? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa de manobra, mas cidadão do reino, e ser um político atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder? 

Há um conceito, presente na teologia cristã, que leva a alternativas de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder. É o conceito de justiça. A definição mais aceita de justiça é o de dar a toda pessoa aquilo que por direito lhe pertence. Mas aqui se levanta outra questão: o que por direito lhe pertence? Esta pergunta leva o estudioso a analisar o conceito tradicional de justiça. 

As reivindicações de justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade. Justiça requer julgamentos distintos de reivindicações contraditórias. Justiça como generalidade não basta. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair na armadilha do moralismo, quando não se tem nada a oferecer quando se fala de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes. Uma definição clásica diz que se faz justiça quando se dá a cada cidadão aquilo que lhe é por direito. A partir dessa afirmação duas questões de levantam: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E fazem parte dos debates políticos entre socialistas e liberais. 

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, algumas teologias têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordenação da criação. Neste conceito teológico, o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. Outro conceito defendido por teologias calvinistas é o de ordenação da redenção, que parte da aceitação de que, devido à queda humana, não existe um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura teológica, só houve justiça antes da queda. Ora, rejeitar a idéia de uma compreensão humana e universal como algo fora da revelação leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada que dizer fora da fé. Essa visão tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não podem, em política, trabalhar com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Assim, quando nega o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se ou estabelecer uma política cristã sectária. Por isso, a leitura da justiça a partir de uma teologia da universalidade do humano rechaça a negatividade das ordenações da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política. Ora, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito. Estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem. Donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça.
  
Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. Devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos civis buscam trazer para as democracias constitucionais. É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que elas existem independentemente de volição humana. Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações no nome de justiça e podem ser rejeitadas reivindicações no nome de justiça. Ao entender que o amor deve ser volitivamente entregue, conclui-se que a justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. Amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça.  

Se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelos indivíduos e sociedades para criar ações que sirvam as reivindicações de justiça. Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Dizemos que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer ao Estado que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor leva a um Estado sectário e autoritário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça são usadas para delimitar o que é meu e o que é teu. Negar a justiça em nome do amor é negar direitos humanos.  

O conceito de justiça aliado aos de amor e poder apresenta alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.  

Vamos exemplificar isso através de um fato recente em nossa história. Herbert de Souza, o Betinho, já falecido, ativista da Juventude Universitária Católica e combatente da Ação Popular, disse que “fome é exclusão. Da terra, da renda, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma forma de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra. A alma da fome é política”. Para ele, a fome era política.
 
O clamor de Betinho foi um clamor para que a justiça desse sentido humano à política. E ele acreditou nessa possibilidade, ao dizer que o “ato de solidariedade, por menor que seja, é importante. É uma mudança de paradigma, um olhar novo que mostra todas as relações, restabelecendo as bases de uma reconstrução radical de toda a sociedade. Se a exclusão produziu a miséria, a união destruirá a produção da miséria, produzirá a cidadania plena, geral e irrestrita. Democrática”. 
 
Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder. Perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese deste diálogo pertinente entre política e religiosidade é a justiça. Esta foi razão de ser que possibilitou o surgimento e expansão do Partido dos Trabalhadores. Mas para entender tal relação é necessário compreender esse mito fundante do PT e o que ele representa para o futuro do partido. O mito de origem fundante do Partido dos Trabalhadores é o socialismo, traduzido principalmente pela experiência da revolução cubana. Essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da Revolução Cubana, de seus líderes e de suas ações políticas, mesmo as mais discutíveis. A origem é o que faz emergir. Este aparecimento deu lugar a algo que não existia antes, que produziu uma consciência própria, diferente da origem. A realidade daquilo que o PT é está colocada, mas também é algo que lhe é próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. A origem não liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente a origem puxa: faz emergir, segura firme. É ela que estabelece o PT como algo. Mas, também para o PT, ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer, morrer. 

A concepção conservadora no PT repousa no passado. Por essa razão, o pensamento e a política conservadora negam a mudança, presente e futura. Um exemplo é seu velho ideal de partido, o partido de leitura leninista,que é entendido como síntese dos interesses da classe proletária e nesse sentido sujeito histórico das transformações sociais. E por ser sujeito histórico do bem futuro, sua ação está acima da ética, porque encarna ele próprio a ética da nova sociedade. A força dessa concepção repousa no fato de que não considera o eterno como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. Embora a concepção conservadora reconheça o kairós, o situa no passado. O kairós é um tempo carregado de tensão e transformação, possibilidades e impossibilidades, qualitativo, e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos. O kairós reina no tempo presente ,que é diferente dos tempos do passado. É nessa viva consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser construída uma ação política consciente da história. A concepção conservadora, presente no PT, desconsidera que se aconteceu no passado como evento, é ele, o kairós, quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Ao perder o sentido supratemporal do kairós, o pensamento político conservador congela as possibilidades de transformação da história. 

O mito fundador do PT expressa com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de eventos nos quais o partido percebe sua origem. Em todos os mitos ressoam a lei cíclica do nascimento e da morte. Assim o mito transmite ao PT a segurança da origem e o coloca debaixo de seu império. A consciência mítica original do PT é a raiz do pensamento político conservador petista.    

Mas o PT foi além do colocar-se como realidade dada. Fez a experiência de uma exigência que o separou do imediato da concepção socialista e o levou a colocar-se diante da pergunta: por que? Esta pergunta quebrou o ciclo nascimento/morte e elevou o PT acima da esfera meramente socialista. Por que é a exigência de algo que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, significa que tal exigência impôs ao PT o incondicionado. O por que está fora dos limites da fonte. Através do por que o PT deve alcançar algo incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência: quando o Partido dos Trabalhadores, por ser um partido dividido, que tem contradições, faz esta experiência, ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. 

Tal é a liberdade do partido, hoje. Não tem uma vontade livre de circunstâncias e situações, mas não está preso, enquanto partido, ao que está dado. Sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, podem ser rasgados os os laços da origem, o mito original pode ser quebrado. Essa ruptura do mito original pelo incondicionado da exigência é a raiz da possibilidade de surgimento do pensamento democrático no Partido dos Trabalhadores. 

Mas, essa concepção que é progressista tem seus limites, pois considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto irrupção. Assim, os tempos tornam-se sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi, pois a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista em si mesma não oferece opção ao que está dado. Transforma-se em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última.  Este progressismo mitigado é a atitude característica da social-democracia. É uma que ameaça, é a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o adversário do espírito profético.

A exigência que o PT faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos a sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser o confronta e exige ser afirmado por ele. Se a exigência da incondicionalidade é a própria essência de um partido dos trabalhadores, nascido das lutas sociais, essência do PT encontra seu fundamento na sua origem e, então, a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. 

A realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o PT é confrontado. O por que do partido é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem.    

O Partido dos Trabalhadores não recebe sua exigência incondicionada de outros partidos. É no encontro dele com a sociedade que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido pela sociedade com a dignidade de partido dos trabalhadores, dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que aponta à origem. Reconhecer na sociedade uma dignidade igual ao de partido dos trabalhadores é justiça. A exigência que arrasta o PT à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação tanto do partido como da sociedade. Quando a origem é rompida vem o poder de ser PT, o declínio dos poderes julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo. 

Diante do poder e da impotência de ser PT, opõe-se a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser partido dos trabalhadores. A justiça é o verdadeiro poder do ser PT. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência partidária e as raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça sobre o puro poder do ser PT. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença desvelada. sse é o caminho da utopia socialista. Sem o espírito utópico socialista não há protesto, nem transformação. Mas, a utopia socialista quer realizar a eternidade no tempo, e esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia socialista leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia socialista desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia socialista. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista pode desaparecer, mas não a sua ação. Ora, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há um choque entre a utopia socialista e o kairós. É a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que se deve voltar ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. Tal desafio não pode ser resolvido por um líder, por mais carismático que seja. O sujeito da transformação é, em última instância, a comunidade dos excluídos.
  
As raízes do pensamento político mantêm relações que vão além da simples justaposição. A exigência predomina na origem. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável. Outra coisa é quando esta exigência vai além do momento imediato. Por isso, não é possível entender o socialismo quando não se experimenta a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.  Aqui reside a polarização de opiniões que a discussão sobre o socialismo no PT gera. Pois toda ação política requer autoridade, não só no sentido do uso do poder, mas também em termos de consentimento manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível quando o partido representa uma idéia-força que tenha significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Exatamente por isso, autoridade e autonomia estão presentes no Partido dos Trabalhadores e não podem existir sem correção da democracia. 

Aqui reside o desafio ao Partido dos Trabalhadores: manter seu socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia: ser democracia, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz profética que se projeta no tempo, além das classes, lá onde a utopia socialista deve desaparecer para que irrompa o kairós.

A importância do cristianismo para a práxis petista está em que cria paradigmas que reafirmam os valores da democracia e da liberdade e possibilitam o encontro de caminhos que ligam reforma e revolução, alinhavando as conquistas sociais com a criação de uma nova ordem fundada na expansão do espaço público e da desmercantilização da vida social. 

E isso é possível, porque a relação entre o cristianismo e a práxis do PT é profunda. Mas o fundamento de origem do cristianismo na formação da consciência brasileira e da práxis petista apresenta aproximações e estranhamentos, que não se traduzem em tendência à cisão, mas juízos reveladores da força de origem das utopias. O cristianismo, enquanto visão de mundo é utópico e normativo, age para expandir e renovar o sentido transformador da experiência cristã no seio da sociedade brasileira e da práxis petista, e é exatamente esse movimento que leva tanto às aproximações quanto aos estranhamentos. Em sua própria forma de ser o cristianismo trabalha com mediações de valores e daquilo que deve ser. Coloca-se assim na antípoda do realismo político, em particular de suas expressões pragmáticas, de afinidade com os valores liberais de mercado. 

O cristianismo brasileiro, a partir de sua experiência comunitária, distanciou-se do poder de Estado e firmou-se em sua autonomia de origem social e de identidade cultural. Assim, no período republicano, é escassa sua experiência de sua matriz governativa, tendo, principalmente a partir dos anos 1960, optado pela paixão dos humilhados e ofendidos à força imanente dos símbolos de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa presença e força faz do cristianismo, através de milhares de igrejas e entidades, o poder de maior experiência frente às expresões da barbárie e opressões. Nas favelas, no sertão nordestino, nos cárceres, entre as crianças sem lar, idosos sem abrigo, entre as prostitutas, entre os aviltados, se faz presente a mão fraterna da Igreja. 

Tomado nesta perspectiva, o cristianismo não é mera instituição ou poder institituído, nem mesmo programa ou modelo fixado de respostas aos grandes dilemas da política, mas movimento gerador de paradigmas, que possibilitam reflexões sobre os fundamentos da vida na comunidade política. Esses paradigmas propõem conceitos, ordenação de valores, estilos de pensar e fazer a política. 

Há nesses paradigmas questões fundamentais que o diferenciam dos paradigmas liberais e burgueses. A primeira é o modo como define a liberdade, não em sentido negativo, de espaço da ausência de intervenção do Estado. A liberdade para o cristianismo significa não depender de vontade arbitrária, o que aproxima o conceito liberdade da noção de autonomia, embora vá além, transceda. A segunda é que para a burguesia liberal, o Estado mínimo maximiza a liberdade. Mas o cristianismo relaciona liberdade e igualdade. Dentro da tradição burguesa liberal, o desejo de igualdade ameaça à liberdade, produzindo tensões entre as duas metas. E a maneira de enfrentar o problema, para a burguesia liberal, repousa sobre a noção de igualdade de oportunidades diante do mercado. Para o cristianismo é a desigualdade que provoca riscos à liberdade. A terceira questão é o modo como se relaciona o indivíduo e o Estado: a burguesia liberal coloca o acento na dinâmica da sociedade civil, pensada como em oposição ao Estado, em particular em sua dimensão mercantil. Já o cristianismo coloca o acento nas responsabilidades cidadãs, de participação na comunidade política, na formação de uma práxis imprescindível à proteção do corpo político das ameaças à própria liberdade, que não pode ser garantida apenas por boas leis. Esta práxis política comum requer uma comunidade de valores, a noção de bens públicos, uma fundação e uma narrativa da construção de um modo de viver em liberdade, que faz com que os cidadãos sintam-se, apesar das diferenças, parte de uma mesma comunidade política. 

Mas, o que esse cristianismo de leitura latino-americana, esse cristianismo mestiço, apresentou de novidade ao socialismo real. Em primeiro lugar o conceito de identidade, onde se deve partir da identidade particular de cada pessoa, de cada grupo humano e da família. Da identidade da comunidade, do estado, da nação, das nações latino-americanas e da identidade universal, humana. Foi assim que o cristianismo mostrou ao socialismo real que universalidade significa um complexo de identidades e que ninguém pode em nome dela impor sua própria identidade. Mas o cristianismo latino-americano mostrou ao socialismo real que todos têm direito a uma civilização superior. E aqui superior traduz aquilo que é espiritual. 

Nisso reside a essência do fenômeno cultural e religioso vivido no Partido dos Trabalhadores. Não consiste, porém, em situar o problema de crer ou não crer em Deus, já que o dilema da existência de algo mais além do que a ciência reconhece é e será sempre uma opção da pessoa. O que explica não haver dentro do Partido dos Trabalhadores formas expressas de dogmatismos de fundamentos culturais e religiosos. O militante do PT, esclarecido, não se move por esquemas religiosos. Na verdade, a grande aspiração da teologia da libertação presente no PT era uma aproximação às questões da fé sem contradizer a ciência. Isso explica porque ao invés de florescer no Partido dos Trabalhadores princípios dogmáticos, de enquadramento do socialismo, apareceram princípios éticos. Essa é uma das chaves do pensamento do PT original: o que em outros partidos se impõs como esquemas rígidos ou pressupostos definitivos, no PT apareceu como princípios éticos. Não podemos dizer que o PT tenha sido em sua origem um partido dogmático, embora tenha sido um partido firme no que se refere a determinadas idéias. Nesse sentido, esse amálgama com as idéias cristãs, o levou a combater a nostalgia neoliberal. O PT olhou com rigor crítico essa volta ao passado. E isso em grande parte se deve ao pensamento proposto pelos teólogos da libertação que explicaram esse incapacidade científica das disciplinas sociais, econômicas e políticas na modernidade burguesa pelo fato de que não analisarem toda a realidade. Incapacidade de enxergarem a dor da pessoa, a dor da comunidade, da nação, humana. A dor é uma realidade histórica, angustiante e óbvia, por isso não pode estar fora da análise da política. 

Essa compreensão se faz solidária com o sofrimento humano e molda a voz cristã com a impaciência do que urge. Assim, falar da influência do cristianismo, em especial da Igreja popular, na consciência pública contemporânea brasileira é trabalhar com as noções de fundamento e de formação. Não é uma situação onde um ser constituído exerce influência sobre a evolução de outro ser. São processos formativos em mútua compenetração. Assim, o cristianismo brasileiro, através de sua leitura libertadora, fez a afirmação da liberdade como emancipação do poder arbitrário, compatível com os ideais de liberdade e igualdade, com acento na participação como fundamento das virtudes da comunidade política. Tal compreensão tem óbvias afinidades com a práxis do PT e faz parte, inclusive, da própria pré-história do PT. A própria identidade socialista e democrática do PT pode ser imaginada a partir dessa práxis. O socialismo proposto pela filosofia da libertação, que integra o valor da soberania popular, seria, desse ponto de vista, um socialismo religioso. Como história vivida e em transformação, essa imaginação trouxe para os petistas, desafiados pelo esforço de transformar o Brasil, um campo possível de experiência e programa. Para a própria construção do PT foi central o papel da Igreja na formação de uma práxis dos direitos humanos na moderna democracia brasileira. Esta presença, fundamental nos anos da ditadura militar, ganhou alento nas duas últimas décadas através da estratégia da particularização dos direitos como demanda de pastorais específicas, como a das crianças, idosos, carcerária, das prostitutas, e das campanhas da fraternidade. Não é marginal a presença da Igreja no movimento pela ética na política. Pelo contrário, a primeira lei contra a corrupção eleitoral teve na Igreja progressista sua inspiração através da liderança de Chico Whitaker, vinculado à CNBB. A luta contra a corrpução política faz parte da mensagem da Igreja.

O PT, partido ligado ao mundo do trabalho, à esquerda socialista e à Igreja popular, fez do seu nascimento tardio um enigma aberto à história, ao colocar no centro de sua identidade as relações entre socialismo e democracia. De fato, esta relação ainda não encontrou uma solução estável, a partir de alguma experiência histórica, na tradição socialista. O desafio lançado aos socialistas ainda não encontrou uma resposta: pela democracia ainda não se chegou ao socialismo, mas lançando-se contra a democracia, o socialismo traiu seus ideais de emancipação social. 

O caráter tardio do nascimento do PT explica sua identidade. No final dos anos 1970, já estava muito avançado o processo de desestalinização da práxis do socialismo internacional e, por diferentes caminhos e pensamentos, o tema da relação entre socialismo e democracia, voltava à cena. Houve, nesta práxis, tentativas de de resposta: a trotsquista, que defendeu os valores do pluralismo e os direitos humanos na democracia socialista; a do grupo francês "Socialismo ou Barbárie", que desdobrou-se na crítica ao totalitarismo e na defesa da democracia como instituição social permanente, a partir dos conflitos, e na postulação da autonomia como valor fundante; e a eurocomunista, que afirmava a democracia como um valor universal e, portanto, compatível com o socialismo. 

Mas há um outro caminho, percorrido por teólogos protestantes nos anos 1960. Essa militância não se identificou simplesmente com a esquerda histórica, mas teve forte influência
De teologia protestante das primeiras décadas do século XX. O socialismo para eles era mais que um movimento histórico, mais que um programa, antes uma ética e uma política que necessitam de uma atitude profunda por parte do ser humano, da mesma maneira que a ressurreição não é apenas uma figura da insurreição, mas de irrupção da eternidade. Por isso, não separaram militância e discipulado, pois o socialista religioso tem um duplo engajamento, está presente nas comunidades dos trabalhadores, nas fábricas e nas periferias das grandes cidades industriais, mas também nas comunidades de fé. É esse duplo engajamento, de trabalhador e de cristão, que faz dele não apenas massa, mas também membro do corpo. Esse socialista religioso, no entanto, deve fazer uma autocrítica do parêntese marxista, e reconhecer a crise do socialismo. Por isso, os socialistas religiosos têm três tarefas: elaborar um socialismo pós-marxista: passar do socialismo científico a um socialismo ético; entender que o socialismo deve retornar às suas raízes cristãs e em especial estabelecer uma relação nova com o princípio protestante, enquanto desafio anti-weberiano que não identifica a ética protestante e com o espírito do capitalismo mas, ao contrário, o espírito protestante e com a ética do socialismo. O que leva a uma terceira tarefa, lutar contra o pensamento fraco da pós-modernidade, hoje dominante, e relançar uma cultura histórica baseada nas fontes da tradição cristã e aberta ao socialismo.

Mas, não podemos esquecer que os políticos de esquerda são sensíveis às crises ideológicas
E, por isso, intelectuais protestantes ligados ao socialismo, muitas vezes, diante da crise, propõem um retorno às idéias socialistas anteriores a Marx, numa linha que remonta à revolução francesa, e que apresentam um ideal amplo de justiça, de legalidade, de solidariedade e de direitos humanos. Mas, em termos políticos, o melhor caminho creio ser o de trabalhar no sentido de redimensionar Marx, de releitura da história do pensamento filosófico e político redescobrindo o primado de Hegel e Marx. Isto porque a desilusão antes as utopias marxistas não conduzem a nada, ao contrário, levam a sobrevalorizar a história em detrimento do escatológico. Mas, será possível construir um novo socialismo unicamente a partir da recuperação da cultura histórica? E será a escatologia cristã suficiente para dar sentido à história? Depende do socialismo que propomos. Pode-se dizer que o socialismo se diluiu, que se transformou em fumaça ideológica de contornos imprecisos. Mas há a marca evidente de uma herança comum entre socialismo e cristianismo, é sua afirmação do caráter comunitário da esperança. Esse é o caminho do socialismo religioso.

No PT, a presença cristã católica ocupou um lugar central na crítica do stalinismo e no repensar a crise do socialismo. O solidarismo, enquanto leitura social que relaciona pessoa e comunidade, poder de pensar e desejo de viver, é uma resposta ao socialismo compulsório, que despersonaliza, assim como à sociedade de consumo, que transforma a pessoa em objeto consumidor. Esta imbricação, poder de pensar através da pessoa em comunidade e querer viver enquanto pessoa na comunidade, forma o núcleo do paradigma solidário. Nele, a prova existencial do que é vivido e a sua compreensão intuitiva precedem qualquer procura filosófica. É por isso que se constrói em direção ao ser humano. 

O solidairsmo teve papel na formação de uma geração de lideranças cristãs católicas no Brasil. Assim, um pensamento cristão, político, procurou responder à crise do capitalismo, mas fazendo a crítica do sentido anti-humanista das formas dominantes do socialismo real. Hoje, esse solidarismo coloca-se como resposta não somente ao stalinismo, mas à própria crise do socialismo. Os cristãos católicos brasileiros posicionaram-se em eqüidistância do capitalismo e do stalinismo. Admitiram a propriedade privada como direito, inscrita na afirmação de sua função social, trabalhando com o solidarismo e o princípio da socialização na sociedade moderna, das dimensões coletivas na vida social. Teóricos do PT estudando as formulações da economia solidária se aproximaram desse comunitarismo cristão. Assim, o socialismo defendido pelo PT, que se propõe a compatibilizar as metas de uma nova sociedade com o princípio da soberania dos trabalhadores e do povo, implica em trazer o marxismo para o solo do cristianismo, elevando o seu conceito de público a uma perspectiva anti-burguesa. Neste retorno e nesta função de duas visões anti-liberais, a cristã e a socialista, há um potencial de experiência histórica, de inovação conceitual e de imaginação de novos futuros possíveis. 

A práxis participativa desenvolvida pelo PT, antes de ser governo, e o potencial entrevisto nas formas de economia solidária devem ser  repensadas como formas avançadas de construção do poder e da economia, não estritamente estatal. Poderiam abrir espaços de experiência social para dar a essas inovações um caráter nacional. A agendas do Fórum Social Mundial ganhariam um sentido de busca de simetria de direitos e deveres entre os povos do mundo, diante de um contexto de concentração do poder econômico, militar e geopolítico. A práxis cristã do socialismo do PT seria, assim, uma forma de disputar valores na democrática brasileira com os poderes e interesses do liberalismo e do patrimonialismo. A utopia do PT se enraizaria, de modo amplo, na tradição histórica da formação cristã brasileira, de superação das heranças da condição colonial, escravocrata, e de aviltamento dos direitos do trabalhador. Neste encontro entre cristianismo e socialismo pode-se repensar as relações entre reforma e revolução, questão não resolvida na tradição socialista clássica. O conceito de transição formulado no contexto de avanços democráticos poderia atualizar seu sentido, unindo as conquistas do cotidiano com a noção de uma civilização organizada fora dos parâmetros dominantes do mundo do capital e da opressão.

As utopias brasileiras não cessaram de interrogar suas origens. Um partido do socialismo revisita a práxis das comunidades cristãs, católicas e protestantes, solidárias e socialistas religiosas que se fazem presentes, como forças básicas de sua formação. Conhecer suas origens, transformar-se a si mesmo para transformar o mundo: neste campo da práxis não há derrota definitiva para as forças da emancipação. O cristianismo, enquanto síntese de práxis, adquiriu no processo da civilização brasileira uma universalização. Nesta dialética entre igreja cristã e povo brasileiro, o ideal de justiça é  redentor: « erit opus iustitiae pax, et cultus iustitiae silentium, et securitas » Isaiae 32.17.