mercredi 5 mai 2021

A propósito de Tillich

A propósito de Tillich

Sem uma relação universal com o humano a noção de chamado profético não é a medida correta para se construir uma teologia. Ou seja, não se pode construir uma teologia apenas sobre o terreno da transcendência. É importante, porém, entender que não existe uma interpretação absoluta do humano, já que a comunidade humana não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica no ato de existir. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma teologia absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Toda compreensão do humano e como conseqüência toda teologia são concretas. Esse humano se situa no kairós, naquele momento determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ele não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para a pessoa, quanto para a teologia.

Exatamente por isso, toda teologia comporta dois aspectos: aquele traz o pensar teologicamente de volta à sua origem, ao fundamento do humano; e outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

Assim, a realização do humano deve se orientar em direção a ele próprio, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é transcendente. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a teologia transporta ao transcendente e à vida, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta.

Dessa maneira, posicionar-se por uma teologia que parte do humano é posicionar-se por uma teologia da vida. E tal compreensão leva ao desenvolvimento criativo e estratégico deste humano enquanto vida que brota na história, criadora do novo.

A chamada a um posicionamento capaz de julgar e transformar, de resistência à barbárie, deve levar à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem de esperança. Nesse contexto, as pessoas têm autonomia, mas estão inseguras na sua autonomia. Isto leva as religiões à tentativa de emancipá-las da autonomia através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia algo já foi experimentado, e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Esse conceito nasceu em torno da leitura da justificação pela fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da incondicionalidade de se realizar a verdade e fazer o bem. No reconhecimento da existência da situação-limite está a diferença entre as religiões que profetizam a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite.

Na verdade, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, porque a teologia leva a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. A teologia condena o egoísmo internacional da força, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos, prega a submissão das nações, ricas ou pobres, propõe a construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. A partir da teologia, vemos que a pessoa não existe para a produção, mas esta supre necessidades e, por isso, o objetivo não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

O princípio da crítica e das ações protestantes leva a uma teologia não limitada ao sujeito, mas que se realiza na comunidade e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da teologia do humano, que remete ao finito, mas também ao incondicional , que se operam o protesto e a transformação. 

Autonomia e protestantismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo, e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviu de base para a ação protestante.

A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o protestantismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência. 

Não devemos entender o protestantismo como confissão exclusiva, mas como brotar de fé que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé é hostil aos domínios que se colocam como senhores da vida e da morte. Nesse sentido, é uma experiência da profundidade última e a supressão do em cima absoluto e do embaixo relativo.

O espírito que move os movimentos da contracultura traduz uma vibração de graça e fé que circula nas massas, e não deve ser negado pelo protestantismo, ao contrário, é a partir daí que o protestantismo pode fecundar a autonomia dos movimentos das comunidades. 

Estes são os fundamentos de uma unidade entre o protestantismo e os movimentos das comunidades no Brasil, que deve ser mais que uma associação, que pode traduzir um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Mas há limitações na utopia da contracultura. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o transcendente abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no terceiro mundo, em grande parte, é o resultado da utopia desencantada.

É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter decisivo desse instante histórico enquanto destino. Mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua humanidade, aquele que faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a esperança utópica pode desaparecer, mas não a sua ação. 

A resistência à barbárie é tarefa protestante, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio protestante envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, crítica e necessidade de transformação levam, nesta contemporaneidade, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para o princípio protestante, a situação dos trabalhadores não é algo opcional, que podemos considerar ou não. 

Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na crítica protestante um choque entre esse kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o protestantismo. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.

A imediaticidade da massa faz com que desabroche nela movimentos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio imediato: a disponibilidade à compreensão do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa a ações destruidoras ou à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocionais e intelectuais são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. A massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara a construção de um novo momento presente. Quando a massa vive esse processo, religião e cultura se misturam, e ela se torna massa mística.

Assim, o movimento da massa torna-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. O movimento dinâmico da massa parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.

Temos aqui uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Por isso, a crítica protestante não se limita ao protestante ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite. 

Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem o retorno aos clássicos da contracultura, a invocação do direito contra a presença do arbítrio e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 

O protestar e o clamor não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. 

A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica. Mas, será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático?

Se a estratégia de formação de uma comunidade política de trabalhadores, de massas, visa chegar a um fim exitoso é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 

A formação de uma comunidade política de massas como estratégia apoia-se na fórmula de que a contracultura não está ligada à organização dos trabalhadores, mas que eles próprios, os trabalhadores, são movimento que dialeticamente se confronta no dia-a-dia da vida com a sociedade de classes. Assim, o sujeito de todo movimento de contracultura é a massa orgânica ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 

O intelectual, por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere à contracultura não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro. Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a teologia proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.

A teologia deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. 

Se entendermos o conceito de massa enquanto movimento que caminha através do princípio da crítica e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um partido próprio. É o dinamismo revolucionário, já que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela veículo do destino. E onde entra aí a questão da revolução? O discurso teológico é o elemento fundante da transformação prática, isso leva, no sentido estrito, a uma teologia de transformação não reformista, à transformação plena. Mas, a transformação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios definidos e de um princípio teológico geral que possibilitem cumprir às mediações existentes.

Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios teológicos gerais, a fim de que, com factibilidade, se possam negar as causas da negação dos excluídos. Esse é um momento negativo do protesto, onde os meios deveriam ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto era feito. Mas se por um lado o protesto traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva a uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confronta a utopia e a fecunda, transformando-a em utopia possível.

Cabe ao intelectual enquanto pessoa levantar a teologia como protesto negativo diante de uma sociedade que vive uma situação-limite. A esse intelectual cabe a co-responsabilidade solidária, que parte do critério vida versus morte. Sem dúvida, o intelectual é desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade diante dos excluídos e da paranóia fundamentalista.

Tal visão abre perspectivas para a compreensão da teologia e a análise de diferentes situações históricas – pode e deve lançar luzes sobre nossas críticas e ações diante do quadro político que temos pela frente.

Qui était Paul Tillich, par André Gounelle

https://www.youtube.com/watch?v=ehl_4Rk2ifc