mercredi 5 juin 2024

Memórias de um coração louco

  

Jorge Pinheiro

 


Política e teologia

Memórias de um coração louco

 



“Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”.

Lutero, reformador do século dezesseis.

 

 

Prefácio

Capítulo 1 – Indo...

Capítulo 2 – Um sonho pesado

Capítulo 3 – Memórias em fuga

Capítulo 4 – Bombero loco, loco, loco...

Capítulo 5 – A verdade

Capítulo 6 -- O mundo de Nebo

Capítulo 7 – O bailarino

Capítulo 8 – A taverna

Capítulo 9 -- Anabella

Capítulo 10 – A revelação

Capítulo 11 – Comando León Trotsky

Capítulo 12 – Justiça e graça

Capítulo 13 -- O ódio de Astarote

Capítulo 14 – A vida

Capítulo 15 – Ahumada com Huérfanos

Capítulo 16 – Ao Eterno, as armas...

O autor

 


 

 

Prefácio 

 

A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.

 

É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico.

 

Mas nem por isso a memória deixa de ser história. Principalmente quando ela discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece ambas se complementam e se enriquecem. A memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental.

 

Estou vivendo os setenta, saudáveis, mas o fluir de sete décadas nos levam a pensar no trânsito em direção à eternidade. Donde, começou a contagem regressiva. As idéias do livro partem de dois fatores, o papel da utopia socialista na minha vida e os demônios que infernizaram a minha juventude. 

 

Na verdade, como novela de memórias o livro tem dois personagens: eu mesmo e a utopia socialista. Quando falo utopia não estou menosprezando o sonho do socialismo, mas colocando-o num patamar de realização permanente, histórica e transistórica. Ou seja, vejo o caminhar permanente da utopia, sinto o seu cheiro agradável, mas não necessariamente vou vivê-la como desejaria.

 

E os demônios, seguindo Nietzsche, são os pecados da juventude que se tornam virtude na velhice. São os pesadelos que andam sempre ao lado dos sonhos. Nesse sentido, como qualquer texto biográfico, o meu livro tem função de exorcismo. Exorcizar fantasmas e demônios e ficar com a utopia geradora de novos sonhos.

 

A memória pensa e sente os anos de 1969 a 1973. Ou seja, minha militância no Movimento Nacionalista Revolucionário/MNR, o primeiro exílio, a militância no Chile de Allende, a prisão depois do golpe de Pinochet e a condenação por fuzilamento.

 

Se levarmos em conta que fui para o paredón para ser fuzilado e hoje posso contar a história, é fácil entender os demônios da minha história pessoal. Mas o livro não é apenas de memórias, penso a política, que sempre fez parte da minha vida, desde a adolescência, e mergulho na teologia, que me fornece identidade e instrumental para compreender e viver a vida. 

 

Daniel Cohn-Bendit, fazem uns dez anos, pediu às novas gerações que esqueçam o Maio francês. Eu e minha mulher, Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos, temos trabalhado bastante sobre esta questão. E, ao contrário de Cohn-Bendit, não negamos a contemporaneidade de 1968. Ao contrário, agradecemos ao Eterno por aquele kairós, enquanto esforço de ruptura com uma sociedade arcaica e sem sintonia com o novo que se avizinhava, e de construção de um socialismo democrático e revolucionário. Chamar o movimento de 68 de rebeldia juvenil é não entender a riqueza criativa do kairós histórico. É negar as lutas que partiram de estudantes e trabalhadores da França em direção aos EUA, Itália e Alemanha, e jogar no lixo as lutas entre o capital e o trabalho, as guerras do Vietnã, Laos, Camboja e as insurreições populares no Chile, Portugal e Nicarágua, entre outras. 

 

Não tenho nostalgia, porque não situo minha ação no passado, mas no presente, enquanto ativista político-social que sou. O Maio francês abriu um novo momento na história do planeta e não se limitou à Europa. Espraiou-se pelo mundo. E minha vida política, quer no Brasil, no Chile, na Argentina e mesmo na Europa, esteve correlacionada ao Maio francês. Aprendi desde pequeno que não se cospe no prato em que se come. Creio que cresci em relação à minha ingenuidade militante e juvenil, mas isso não significa negar os momentos nobres e poderosos da minha militância dos anos 60 até hoje.

 

Meu encontro com o protestantismo reformado, que é um ato de fé no sacrifício vicário do Cristo, de forma nenhuma implicou um abandono de minha consciência política. Nós, protestantes, consideramos inalienável a liberdade de consciência e acreditamos que cada pessoa é livre perante o Eterno em todas as questões de consciência. 

 

Nesse sentido, caminho enquanto construtor de justiça, paz e alegria: acredito que devo me posicionar a partir de uma ética da responsabilidade social. Isso implica entender o paradoxo da multicultura relacional brasileira: vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande e da senzala, e a moral libertária da contracultura – a moral do “não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor”.

 

Por isso, qualquer atuação no campo social implica compreender esta realidade. Mas, consciente de que as sociedades devem se organizar através de relações democráticas, considero que os cristãos têm como desafio embasar seu compromisso no imperativo da revolução: liberdade, igualdade e fraternidade.

 

Tal processo se expandirá conforme cresça a consciência de que temos a tarefa de transformar o Brasil num país onde todos possam acessar condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente.

 

O livro são momentos da minha história e a história da minha utopia, onde tudo o mais é cenário. É biografia, mas também ficção, pois sonhos e demônios são personificados, interferindo na vida do autor e de seu sonho maior. 

 

Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida.

 

Nessas memórias, que voa tempos diferentes, apresento ao leitor minha dor maior, meus exílios e a caminhada em direção ao paredón. Esses acontecimentos fazem parte da história recente do Brasil e da América Latina. Muita gente viveu dores semelhantes e por isso fazem parte dessa história. Alguns estiveram ao meu lado e exerceram uma profunda influência em minha vida. Outros foram passantes.

 

Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens de nossa história latino-americana aparecem aqui com seus nomes verdadeiros. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como imagens e por isso aparecem com pseudônimos.

 

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são história acabada. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o índio cresce. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

 

O Cristo proclamou a chegada do Reino do Eterno, que é um reino de justiça, paz e alegria. É bem verdade que, muitas vezes, o cristianismo tem deixado a proclamação do Reino do Eterno de lado e procurado viver sob a tutela do reino deste mundo. Mas, só para mostrar o envolvimento cristão protestante na transformação do mundo, vou me remeter à história da militância cristã na Inglaterra dos séculos dezoito e dezenove.

 

William Wilberforce e William Pitt são nomes conhecidos na Inglaterra, mas não entre nós. Amigos desde a universidade, esses dois homens, no século dezoito, chegaram ao Parlamento no início dos seus vinte anos. Pitt elegeu-se primeiro-ministro e ganhou o apelido de "o jovem", para diferenciá-lo do pai, que também ocupara o cargo. E resolveu implantar um projeto político audacioso: acabar com o tráfico de escravos, liderado pela Inglaterra. Projeto difícil, pois a maioria dos parlamentares estava direta ou indiretamente ligada ao tráfico.

 

Pitt convocou Wilberforce para ajudá-lo na tarefa. E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce. 

 

A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton, pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das manifestações sociais mais importantes da Inglaterra. Em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico. 

 

O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra, através de três intelectuais: Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Luiz Gama. Nabuco, que era diplomata, se inspirou no cristianismo militante de Wilberforce para organizar o movimento que levou a monarquia brasileira a aprovar a Lei do Ventre Livre. Somada à pressão britânica, a militância de Nabuco contribuiu para determinar a abolição da escravatura, em 1888.

 

Junto com as campanhas abolicionistas, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês. 

 

Assim, os protestantes deram início ao movimento social inglês. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes criaram o socialismo cristão na Inglaterra. Com plena consciência do que estava fazendo, Maurice afirmou “a necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existe nas revoluções estrangeiras, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento”.

 

O movimento inglês repercutiu com força nos Estados Unidos. E, apesar da visão escravista de muitos protestantes estadunidenses, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento protestante contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher. 

 

Um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: “A cabana do pai Tomás”, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe considerava que a escravidão não era apenas um pecado do Sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. 

 

No livro, atacava a consciência nacional escravista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. É interessante que o argumento de Wilberforce, exposto em suas campanhas, sobre a inviolabilidade do conceito de que todos os homens são iguais, foi usado pelo presidente estadunidense Abraham Lincoln no ato de 1863, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos. Lincoln, cujo mandato se desenrolou em meio à Guerra de Secessão, compartilhava a visão de Wilberforce de que era uma imoralidade possuir um outro ser humano e citava o inglês em seus discursos.

 

Com a guerra, veio a vitória do norte e a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país, os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que produziu uma obra até hoje famosa, “Em Seus Passos Que Faria Jesus?”, e o pastor batista Walter Rauschenbusch.

 

Rauschenbusch (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

 

Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz”, afirmou em “Christianity and the social crisis.

 

No mesmo livro, dizia que “nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem”.

 

Acho que estou em boa companhia, principalmente quando me lembro do companheiro Martin Luther King Jr., pastor batista, e um dos maiores militantes da causa social em todos os tempos.

 

Hoje, no Ocidente, intelectuais e teólogos protestantes estão organizados ao redor de projetos político-sociais. Mas, logicamente, a preocupação primeira das igrejas protestantes é com a vida espiritual das pessoas e sua renovação em Cristo. Atualmente, não poucos evangélicos atuam inspirados na fé cristã em movimentos populares, sindicatos, partidos políticos e ministérios de ação social de suas igrejas. E, em relação ao nosso país, atuar politicamente deve fazer parte da vida dos protestantes brasileiros.

 

Em termos de organização, podemos dizer que embora novos, ação e pensar justiça, paz e alegria têm fermentado o solo militante protestante. Esta paridade – pensar e fazer justiça, paz e alegria, tem envolvido igrejas que optam pelo compromisso social. E eu faço parte dela, ao lado de outros teóricos, que entendem que a proclamação do Evangelho tem consequências sociais quando se olha o ser humano como totalidade. Assim, a teologia busca a justiça social porque entende a fé como intervenção política, material e espiritual, e acredita que a transformação das pessoas e as mudanças estruturais estão correlacionadas. 

 

E porque acreditamos que o ser humano é a imagem de Deus, fazemos uma teologia da vida, para aqueles que carecem de bens e possibilidades, mas que, como os demais, são imagem de Deus. Os despossuídos de bens e possibilidades têm conhecimento, habilidades e recursos. Tratá-los com respeito significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades, ao invés de impor soluções. Trabalhar com os despossuídos e expropriados envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua. 

 

E, quem pode e deve atuar assim são as igrejas protestantes. O futuro se define, pois, em termos de capacitar as igrejas para que transformem as comunidades das quais fazem parte. As igrejas, como comunidades de cuidado e inclusividade, estão no coração do que significa fazer missão para a vida. As pessoas são, em particular, atraídas à comunidade cristã antes de serem atraídas pela mensagem cristã. Esse jeito de produzir inclusão social nasce de baixo, nasce nas igrejas, traduz uma teologia do Reino do Eterno, comunitária, a experiência de caminhar com as comunidades. Olhando assim, a igreja não é meramente uma instituição, mas comunidade na qual se concretizam os valores do Reino do Eterno. 

 

A participação dos despossuídos e expropriados na vida da igreja leva a encontrar novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira. Dessa maneira, a teologia da vida que hoje envolve igrejas protestantes, é uma teologia social. Tal atividade se amplia para incluir avanços até a transformação de valores, a valorização das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Em sua presença entre os despossuídos e expropriados, a igreja está numa posição singular para restaurar a dignidade das pessoas, apresentando valores que produzem recursos e criam redes de solidariedade. 

 

Mas os problemas continuam presentes, por isso toda ação de transformação é permanente. Temos problemas políticos e sociais, como pobreza, violência, corrupção. Má qualidade dos serviços públicos nas áreas de educação e saúde, agressões contra o meio ambiente. Por isso, num momento em que a visibilidade e o reconhecimento da presença protestante reclamam expressões políticas de responsabilidade e serviço, nós, ou seja, protestantes de igrejas diferentes e de diferentes partes do Brasil, estamos atuando para a construção de um movimento de raiz que pensa expandir justiça, paz e alegria no chão deste país.

 

Tal agir e pensar nos leva a programas e propostas para atuar nos lugares onde estamos plantados. E aqui, então, o agente é a igreja local: agente de transformação social. 

 

Este movimento de raiz, porque parte do chão onde vivem expropriados e despossuídos de bens e direitos, apresenta num primeiro momento uma atuação conscientizadora, que visa entre outras coisas chegar aos formadores de opinião do mundo protestante. Ao mesmo tempo, temos uma preocupação definitivamente política, pois queremos uma alter sociedade, que supere o capitalismo e suas orientações ideológicas, o neoliberalismo e as chamadas terceiras vias. Trata-se de meta histórica e estratégica, que necessita de um programa de transição, e que envolverá contribuições de dentro e de fora do campo protestante. Mas, acima de tudo, não é um projeto que envolva a criação de um poder religioso. 

 

Por isso, rejeitamos os modelos de fusão entre instituições religiosas e poder político. Não porque consideramos a política indigna ou contrária à mensagem do Reino do Eterno, mas porque acreditamos que as instituições políticas de uma sociedade democrática devam ser construções históricas, pactuadas entre pessoas de qualquer fé ou de nenhuma fé. E que o papel dos cristãos é testemunhar de sua fé também nas questões sociais e políticas. 

 

Assim, a luta contra a globalização excludente e suas formas de legitimação ideológicas, seculares e religiosas, conservadoras ou progressistas, é um projeto que exige estratégia histórica, que vai além das confissões religiosas, remetendo à aspiração de uma humanidade livre e democrática. Mas é um projeto legítimo para quem vê a fé cristã como chamado ao compromisso com a libertação de todas as formas de escravidão, opressão e discriminação, que negam nos seres humanos a imagem de Deus e nos impedem de um encontro com nosso Criador.

 

Quanto aos pesadelos, estão todos presentes nestas memórias de um coração louco. É o inconsciente revelando sua visão do mundo vivido pelo escritor. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura da escatologia não realizada.

 

Ou como cantou Chico: “Oh, pedaço de mim, oh, metade adorada de mim, leva os olhos meus, que a saudade é o pior castigo, e eu não quero levar comigo, a mortalha do amor”. E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz. 

 

Jorge Pinheiro  


 

 

Digo à Zlabya, aquela-que-anuncia, que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!

 

 

O chão firme da liberdade

 

1.

Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.

 

Querida Zlabya, aquela-que-anuncia, estou escrevendo para você. Escrevo do terceiro milênio, um futuro não muito distante, quase presente, para contar as coisas que vão acontecer e, ao mesmo tempo, poder conversar com você pessoalmente. Você está no início da sua liberdade como pessoa grande, que pode escolher caminhos e destinos. Escrevo sobre as memórias futuras, quando os descendentes darão voltas por este fundão besta, incluindo aí o que escutei e vivi. Mas você não pode esquecer que a memória será sempre afetiva e seletiva. Na verdade, ela apresentará os fatos que a gente viveu, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos os limites da existência. Mas não para aí. A memória fará sempre uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.

 

Mas se estou no futuro, posso falar do presente e do passado. É por isso que os velhos somos bons contadores de história e olhados pelos descendentes, e aí incluo você, como cavaleiros andantes de um futuro mítico. Minhas experiências de amor e vida gerarão flores belíssimas, memórias que se multiplicarão com você.

 

As memórias são nossa história e minhas leituras, porque discorro sobre acontecimentos e nos levam a pensar o que não está aqui e agora, sobre o que é eterno. E quando isso acontece história e leituras se complementam e enriquecem as nossas vidas. O certo é que a memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo de amplidão que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato.

 

Mas, como já disse parcialmente, acima, nossas memórias não se entreluzem apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida. Transcende. Por isso, essas leituras serão traduções de suas experiências com a eternidade, infinita e sem limites, criadora de todas as coisas, origem e fim do amor e da vida.

 

Na antiga tradição dos longevos, o nome é som e designação que fala da natureza e da história daquele que está a ser nominado. Quando os longevos falavam de chilul hashem, estavam a dizer que a eternidade não poderia ter seu nome profanado porque seria violentar o sem-fim. E por isso somos chamados ao kidush hashem, a separar para honra o nome do sem-fim.

 

Os quatro sons dos longevos falam dessa infinitude sem-fim, iod he vav he, que nos apresentam a identidade e a história da eternidade sem-fim. Até o ano de 586 antes da era comum, ou seja, até a destruição do primeiro templo, os longevos cantavam os quatro sons. Mas depois optaram, por razões muito justas, em dizer com reverência meu senhor, meu senhor elohim. E mais tarde ainda, antes da era comum, adonai tornou-se, por causa do shemá aramaico, hashem.

 

Quando estava diante daquele mato bravo que iluminado não pegava fogo, moshé ouviu o vento cantar eheieh acher ehieh. E entendeu que a eternidade dizia que ela era eterna sem-fim. Mas, o vento não parou e cantou diferente iaueh acher iihueh, e assim moshé compreendeu que ela é quem dá vida ao que existe.

 

Mas a eternidade sem-fim não é homem, nem mulher. Por isso, ela pode ser também elohim, que parece macho e parece muitos. Mas esse macho plural canta e diz que a eternidade é sem-fim e mãe de toda a vida, por isso é elohim Ieuá. Mas eu gosto de saber que essa eternidade linda e sem-fim, que é também macho e plural, é a guardiã das portas do vencedor, shomer daltot israel. 

 

Nessas memórias futuras apresento leituras para a sua vida presente, os dias fora e a caminhada em direçãà última fronteira, o momento infinito de sermos os anjos que somos. Quanta felicidade. Esses acontecimentos farão parte da história de gentes e povos. Muitos viverão textos parecidos e farão parte dessas memórias. Alguns estarão ao seu lado e exercerão uma profunda influência em sua vida. Outros apenas passarão. São personagens dos dias fora, e aparecerão com nomes e, às vezes, sobrenomes.

 

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que você ainda não atravessou a última fronteira. Nesse sentido, nessas memórias os nomes mudarão conforme os lugares e tempos. Jamais o nome traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

 

Quanto aos pesadelos, estarão presentes. É o inconsciente a revelar sua visão do mundo. É difícil dizer qual será maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos serão terríveis e por isso se complementarão. E ficará mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual virá primeiro, já que o pesadelo poderá ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura de um presente ainda não realizado.

 

Ou como cantará um poeta: metade esquecida por mim, quero varar os limites impostos. E, assim, as histórias chegarão através da memória, que afetivamente virará leitura, a fim permitir a travessia da última fronteira com alegria.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 1

 

 

Rebeca tirou o pé do acelerador. O carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. Por alguns momentos, nenhum de nós entendeu o que estava acontecendo. Filemón estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. No banco de trás, eu e Yasmin nos recuperamos rápido do susto e saltamos do carro. Juntos, os três agarramos Filemón pelos braços e o puxamos para fora. Estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.

 

-- Está morto, disse Rebeca.

 

-- Não, não está, respondeu Yasmin. 

 

E cada uma olhou para a outra, numa disputa de olhares que todo mundo conhecia muito bem. Elas se odiavam e nunca perdiam a oportunidade de demonstrar isso. Absurdo, essas duas vão começar a brigar aqui, quem sabe vão se engalfinhar, se morder, xingar a mãe, sei lá, enquanto o Filemón se esvai em sangue.

 

-- Ele está com a cabeça machucada. Se for alguma coisa muito grave, a gente só vai saber depois. Não dá para chamar o médico, agora.

 

As duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. Pegamos uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limpamos a cabeça de Filemón e fizemos uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do carro, um Dolphine que era pau pra toda obra.

 

Encostamos o rapaz no barranco e, então, voltamos ao mundo real. Eram duas e trinta da madrugada. Ali estávamos quatro militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário com um carro cheio de armas, tombado junto a um barranco da rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa. Na verdade, eu tinha avisado a Rebeca, cuidado que esses trilhos escorregam. Cuidado com essa curva perto do hospital alemão, cuidado. Mas, quem disse que Rebeca escutava. Ela sempre se considerou uma Mata Hari. Só não usava piteira. Mas será mesmo que Mata Hari usava piteira ou isso era mais uma criação de Hollywood?

 

-- Estamos perto de casa. Uns cinqüenta metros. O problema é se passa alguém.

 

Recomposta da ira inoportuna, Yasmin ajeitou a blusa e a mini-saia, que tinha subido até o alto da coxa. Ela sempre combinava a cor da mini-saia com a cor da calcinha. E para ser verdadeiro, as mini de Yasmin eram micros. Tinha uma dúzia delas. Sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida.

 

-- Vamos à luta, antes que alguém nos veja.

 

E mais uma vez os três voltamos a trabalhar juntos. Destombamos o carro, abracei Filemón o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. As duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na minha frente. Não corriam. As metralhadoras, mesmo desmontadas, formavam volumes pesados. Era só o que faltava, sermos presos agora, depois de uma viagem tão longa.

 

Eu sabia que este era um trabalho de formiga. Cansativo, suado e longo. A medida era a história. Sorte nossa que a história marchava a nosso favor. Rua Almirante Alexandrino, 1190 apto. 202S. Um apartamento de dois quartos e sala ampla, com rede, o grande charme da casa, uma estante de tijolos, com os cinqüenta livros mais lidos por nós revolucionários. Desde o pequeno Régis Debray até O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Sem dúvida, uma biblioteca pequena, uns cem livros ao todo, mas que carinho tenho por eles. 

 

Deitei Filemón na rede. Ele gemeu. A testa e a cara dele estavam roxas. É, não é desta vez que ele vai empacotar. Que bom. Se ele morresse agora ia ser um deus nos sacuda.  

 

Yasmin passou de calcinha em direção à cozinha. Calcinha e camiseta cavada. Ela sempre gostou de andar assim, por isso detesta visita. Os pacotes estavam arrumadinhos ao lado do oratório barroco que eu trouxe de Congonhas do Campo. Metralhadoras e barroco mineiro. Eis aí um bom símbolo para a revolução brasileira. O futuro encontra suas bases no sonho do Aleijadinho. Que loucura, um escultor de mãos podres. Se ao menos fosse poeta, poderia ditar os seus sonhos, ao invés de cinzelá-los em pedra, sabão não há dúvida, mas pedra é pedra.   

 

Rebeca é gente fina. De Recife, mas criada no Rio. Antes de ser aeromoça, estagiou no Caderno B do Jornal do Brasil. Anda empinadinha, olha de cima, fala professoralmente e quer casar com um escritor famoso. Não ia dormir aqui em casa, mas essa hora não vai encontrar táxi, nem bonde. Ônibus muito menos.

 

-- Onde eu durmo? No dos hóspedes? 

 

-- Não quer comer alguma coisa antes? Tem salada de batata com maionese na geladeira, cerveja e uma torta de maça da Colombo. Vem também, Yasmin, levanta dessa cama e vamos fazer um lanche porque o dia foi duro.

 

-- Torta eu quero. Salada não. É muito pesado a essa hora, disse Rebeca, encaminhando-se para a cozinha.

 

E Yasmin, toda alegre, veio cantarolando Noel. "Quando o apito, da fábrica de tecidos..." Ela tem o maior orgulho de sua origem proletária. A bisavó era escrava e de tão pobre, quando recebeu alforria, vendeu um dos filhos como grumete para um navio de bandeira chinesa. Sempre que conta essa estória cai na gargalhada e diz que deve ter uma porção de tios na China. O pai era sapateiro. Morreu tuberculoso.

 

E a mãe... Ah! a mãe! Ninguém em todo o Rio de Janeiro faz uma feijoada como ela. Quando Yasmin canta Noel, tenho a nítida impressão que ele nasceu na Penha. É como se ela estivesse falando de um conhecido, de um desses vizinhos que freqüenta o mesmo bar e divide com a gente um sambinha que acabou de sair do forno. Eu gosto de Yasmin. Tem um gênio danado. É desconfiada, briguenta e sarcástica. É, esta é a palavra exata para defini-la: sarcástica. Despreza solenemente ricos e intelectuais.

 

Não sei porque está comigo. Somos antípodas. Claro que não sou rico, fiquei apenas com os defeitos de quem foi criado como se fosse. Intelectual? Sou, mas isso só produz grandes brigas com Yasmin. Acho Glauber, o protestante, um gênio. Já troquei umas idéias com ele no Paissandu e gosto mesmo dos filmes dele. Yasmin diz que um governo de trabalhadores não vai gastar um tostão com um cara que faz filmes que ninguém entende. E vai por aí.

 

Guimarães Rosa, diz Yasmin, a vermelha, é um católico reacionário, e Nélson Rodrigues, machista. Mas gosta do Tenório. E quando ela gosta, ela ri. Na verdade, gargalha. Dá a maior tesão, quando vejo Yasmin rindo. Os olhos dela se fecham, mostra os dentes super brancos. E o corpo todo ri junto. Quem estiver perto fica eletricamente contagiado. É uma alegria carioca, de subúrbio, que rima com samba, cerveja gelada, empadinha da Praça Quinze e gol do Flamengo.

 

-- Antenor, larga o Filemón aí nessa rede e vem comer. Afinal foi você quem deu a idéia.

 

Antenor é o meu nome político. Quem me deu foi Tiago, o poeta. É um visionário, mas desses que o país precisa. Sabe combinar política e sonho. É amigo do Fidel, mas também do Negrão de Lima. Às vezes fico pensando de quem ele não é amigo? Conhece todo mundo. Até a queda de Jango freqüentava todas as altas rodas, e dormia em lençóis de linho, com a fina flor da aristocracia, como ele mesmo diz. Agora, clandestino, mas elegante, ele vem aqui para casa, deita na rede da sala, folheia a minha trilogia do camarada Mao Tsétung, em francês, e conta suas estórias. Tem um sotaque forte de homem do Amazonas. É um herói.

 

-- Rebeca, você sabia que salada de maionese é a especialidade de Yasmin? 

 

-- Diz logo que aprendi faz um ano. Imagina, com minha mãe em casa quem se atrevia a entrar na cozinha. Faz um ano que Antenor está comendo salada de maionese. Sorte que ele gosta.

 

-- Vocês não acham que seria bom colocar uma compressa quente na testa do Filemón? E dar um chá de camomila com uma aspirina para ele? O companheiro vai despertar com uma dor de cabeça do cão. 

 

-- Boa idéia, Antenor. Mas enquanto eu fervo a água para o chá, me conta como é que você e Yasmin se conheceram. Se é que pode?

 

-- Que é isso, Rebeca? Mais do que você conhece a gente! Não há como quebrar a segurança. Você sabe o Sol, o jornal do Reinaldo Jardim e da Joana, lá no Jornal dos Sports? Bem, tudo começou ali. Yasmin estava no primeiro ano de jornalismo da Federal e eu na PUC. Soube na Manchete que iam lançar um jornal novo, e quando vi que só tinha cobra, resolvi fazer os testes. Coisa fina, melhor jornal não existia. Se tivesse só o Carpeaux já valeria a pena. Ele corrigia meus textos, com gagueira e tudo, dava dicas e comentava as coisas que escrevíamos. Um monstro. Tinha o Cony, que ensinou a moçada a cobrir polícia e vai por aí. E muita gente bonita. Aliás, como diz o Ajuricaba, que anda meio caído por você, era só dar uma volta pela arte, para se ficar apaixonado. E como arte lembra cartum, não dá para esquecer o Henfil. Pena que durou pouco.

 

-- Ajuricaba caído por mim? Se está, nunca falou.

 

-- Mas é lógico, ele é super tímido. Aliás, o Antenor morre de ciúmes dele, quando ele vem aqui em casa. É um tímido charmoso.

 

-- Tímido, charmoso, sonhador, poeta. Só falta ir para a Sorbonne pela Air France.

 

-- Deixa de indiretas. A Rebeca já disse que ele nunca a cantou, fica você aí falando em Air France e outras bobagens.

 

-- Espera ai, não quero comprar briga. Só acho que ele sonha com a Rebeca porque ela é aeromoça. Aliás, faz parte dos sonhos eróticos masculinos. Normalista, freira, aeromoça...

 

-- Deixa de machismo, Antenor, e conta logo como foi que você conheceu Yasmin.

 

-- É melhor deixar para outra hora. A água está fervendo e depois do chá do Filemón a gente tem que dormir, cortou sabiamente a companheira Yasmin.

 

Filemón tomou o chá, com muito vagar e gemidos, fez cara feia na hora da aspirina e recostou a cabeça no travesseiro que Rebeca ajeitou com cuidado na rede.

 

Rapaz corajoso esse. Brizolista, gaúcho. O meu amigo guerrilheiro mais chegado. Fez Caparaó. Ele, Bayard, Amadeu e mais onze companheiros ficaram na serra durante 150 dias. Montaram acampamentos, esconderam uma tonelada de armamentos e víveres, mas foram cercados em março de 67 por seis mil homens da PM de Minas Gerais, do Exército e da FAB. Do grupo, sete eram militares punidos pela ditadura por serem leais ao governo de Jango, entre eles Filemón. Rebeldes, jovens. Cercados na altura de Manhuaçu. A guerrilha não estava implantada. A população das cidadezinhas da região nem sabia o que estava acontecendo. No dia 4 de abril de 1967, o Estado de S. Paulo noticiou: “Oito guerrilheiros que estavam acampados na serra de Caparaó (...) foram presos pelo 11o Batalhão de Infantaria da Polícia Militar de Minas Gerais. O grupo era formado de sete militares cassados e um civil”.

 

Prisão de segurança não segura quem só tem um objetivo, fugir. Fica na prisão quem se acomoda, quem aceita cumprir pena. Quem dorme e acorda preparando a fuga, foge. E aqui está o meu amigo, comandante Filemón, em minha casa, aparelho do Movimento Nacionalista Revolucionário, tonto de dor de cabeça, por causa da derrapada de uma aeromoça empinadinha, que não ouve a voz da experiência. As duas já foram dormir. Vou me aninhar no regaço quente de Yasmin. Poetar não é meu forte. Vou mesmo agarrar aquela moça e tirar o maior ronco. Amanhã cedo tenho que entrar em contato com o médico da organização, antes de ir para a Manchete.     

 

Esse pedaço da cidade tem um charme especial. Gosto de mato. Esses sabiás, as mangueiras aí no fundo do prédio, lembram a Santa Teresa dos anos 50. Tinha macumba num terreno baldio perto do nosso edifício. Todo sábado de manhã ia lá recolher as moedinhas que colocavam para o santo, era a minha mina particular, nunca contei para ninguém, tinha guerra de barro molhado, depois da chuva, num pedaço de morro desabado, com direito a cabeça quebrada e muito choro, tinha enterro de gato vivo, estilingue, muita queimada e, sublime, pudim de chocolate de merenda na escola pública.

 

Tinha meu pai, grande, gordo e bravo, me ensinando judô, torcendo pelo América, revisando no JB, apoiando os socialistas, fazendo campanha contra a palavra judiar, negando-se a ser candidato a vereador. Tinha minha mãe, pequenininha, delicada, que comprava as roupas do menino no Príncipe, lia romances franceses, se possível católicos, e tinham os dois, pelados, fazendo guerra de água na banheira, nas tardes dos finais de semana.

 

Amynthas, cento e dez quilos de carinho. Li e reli, até decorar, uma carta que escreveu de Vitória, onde nasceu, para minha mãe em 1951. 

 

Querida Maria,

 

Que a Paz do Senhor esteja contigo e nossos filhos, é o que de coração te desejo. São 5,15 da manhã do dia de finados de 1951, portanto, ha 31 anos que havia deixado Vitória e ha 25 que não via minha velha mãe, o que hontem se deu. Não imaginas, cheguei de surpresa, minha irmã reconheceu-me, mas mamãe não me conheceu.

 

A velha é, hoje, um espectro daquilo que foi ha muito. Está quasi sem andar, mesmo dentro de casa para faze-lo precisa de um bastão...

 

Acredito mesmo que não poderá ir muito longe, entretanto, só Deus, o Boníssimo, poderá sabe-lo. Hoje vive relembrando seus dias felizes, muito nervosa, e disse minha irmã que depois que a outra faleceu, ela cahiu como que da noite para o dia...

 

Vou marcar com o companheiro Marcos, para ele dar um pulinho aqui na hora do almoço. Aí ele dá uma olhada no Filemón. O carro não tem problema, o Artur da oficina passa com o guincho daqui a pouco. Praia do Russel. Nunca consigo chegar antes das dez. Ainda bem que o Giudicelli sempre chega depois. Também ele não dorme. Estou com uma matéria ótima, os doze homens de ouro. São os capi da polícia carioca. Gente da Scuderie Le Cocq, que garante de pés juntos que não têm nada a ver com o esquadrão da morte. Garantem de pés juntos, só não dizem de quem são os pés. Trocadilho infame, mas vou usar no meu texto. Se o Ney tirar, tirou. Vou tentar umas fotos de morro, tudo muito violento. Afinal, o gostoso da reportagem policial é o arrepio. Aliás, sempre dou uma dica para quem vai escrever sua primeira matéria policial: lê X-9 antes.

 

Um dia ainda me enrosco numa dessas esculturas do Krajberg, aqui na entrada. A minha vingança é que a Manchetinha, a cadela do Adolfo Bloch, já deu umas mijadas no pé dessa árvore. Aliás, esta é a sina da escultura, sempre vira pinico. É uma arte exposta. Prefiro escrever, porque o único jeito é queimar. E se não queimar tudo, vira fragmentos. Aí é o momento maior da glória, tese de doutorado em literatura, fragmentos da obra do escritor rebelde...

 

-- Ei, Luís, o fotógrafo e o motorista estão te esperando na frente do prédio.

 

Puxa que dia. Levaram Filemón para outra casa, onde pode ser mais bem cuidado. E também as armas. Mas à tarde, José Paulo me deu uma notícia terrível. Yasmin estava muito ferida. Tinha ido fazer uma reportagem, e o carro do jornal capotou na Avenida Brasil. Saí feito um louco. Na avenida, cruzei com o carro, que ainda estava com as rodas para cima e os vidros quebrados. Puxa, como é que ele conseguiu isso? Será que vinha a 180 por hora? Entrei no hospital furioso, com um ódio da morte, das paredes brancas e do cheiro de éter. Detesto hospital. 

 

Agora, porém, está dormindo. Sedada. Aqui em casa, na nossa cama. Eles tinham medo que ela tivesse sofrido traumatismo craniano. Para minha felicidade, alarme falso.

 

Dois acidentes com carros em menos de 24 horas. A bruxa está solta. Coitada da Yasmin, tem uma resistência muito baixa à dor. Se doer, um pouco que seja, ela logo desmaia. Ah! essa casa fica tão triste quando ela não está cantando. Se estivesse boa, já estaria aqui na rede me provocando.

 

-- Chega pra lá, cara. Puxa, você fica com a rede toda para você. 

 

Então, me empurra, ameaça me derrubar, depois se enrosca e dorme. Sempre levanto para ela poder dormir direito. Leio, dou voltas pela casa, fico olhando as luzes da cidade. Depois, a pego no colo e levo para a cama. Cubro só com a colcha fininha. Mas hoje não tem nada disso. Ontem, a essa hora, apesar do acidente e dos ferimentos do Filemón, a casa estava agitada. Agora, me sinto solitário. Acho que gosto dela, mesmo.  

 

Conheci Yasmin no jornal O Sol. Na época não dei muita bola para ela. Estava apaixonado por uma pianista negra, que tocava com Maria Betânia. Eu ficava ouvindo, ouvindo, ouvindo ela tocar, embasbacado. Mas Yasmin fazia uma marcação cerrada. Eu morava no Solar da Fossa, hotel ocupado por artistas jovens, ali em Botafogo, quase na boca do túnel. Por lá andavam Caetano Velloso, Dedé Gadelha, o pessoal do MPB 4, e um amigo fora dos padrões, Wagner Tadeu Horta. Ele tinha chegado de Caratinga, com muita genialidade e uma inocência de anjo barroco.

 

Quando desceu na rodoviária Novo Rio, levou um susto de ver tanta gente e confusão. Chegou para um sujeito, perguntou se ele podia cuidar da mala dele, enquanto ia tentar apanhar um táxi. Conseguiu o táxi, mas a mala e o sujeito desapareceram. Seu destino era a casa de um amigo e guru, o Ziraldo, que nessa época morava em Copacabana. Quando o táxi estava no meio do caminho, no Aterro do Flamengo, Wagner apavorado com o taxímetro que não parava de saltar, tirou todo o dinheiro do bolso e disse para o motorista:

 

-- Moço, eu só tenho isso, será que vai dar?

 

-- Não se preocupe, meu filho, eu te levo até lá.

 

Wagner agradeceu emocionado, à boa vontade do taxista. E assim se foi, além da mala, com roupas, goiabada cascão e queijo minas, o dinheiro de todo um mês.

 

Essas histórias aconteciam às dúzias com ele. Estava totalmente despreparado para enfrentar a voracidade do Rio de Janeiro. Mas como desenhava! Era um gênio. Ele e seus jacarés que se devoravam. Lembro-me, certa vez, que chegou ao Solar da Fossa chorando. Tinha levado um cartum para o Correio da Manhã, onde colaborava, e o Paulo Francis disse que o trabalho não prestava, amassou e jogou fora. Wagner ficou doente.

 

Tinha uma namorada linda. Também de Caratinga. Não sabia bem das atividades políticas dela, mas sei que foi presa. Levaram o Wagner junto. Torturaram os dois. Humilharam os dois, um diante do outro. Quando Wagner foi solto, era outro. Havia uma tristeza em seu olhar... Era como se tivessem arrancado seu coração, sua alegria, aquela capacidade inocente de sonhar acordado. Foi internado no Dr. Eiras, uma clínica psiquiátrica em Botafogo. Conseguiu sair uma vez. Veio direto para a Manchete. Almoçamos juntos, ele fez piadas macabras sobre a vida de interno, falou de um bispo homossexual que tinha terríveis alucinações. Contou de gente que morria por excesso de medicação. Estava destroçado. Não entendia o porque de tanta violência e eu sabia que ele não conseguia esquecer o que tinham feito com a namorada na frente dele. Voltou para o hospital. Tempos depois morreu.

 

Eu e Yasmin ainda temos um cartão belíssimo que desenhou para nós. Uma história em quadrinhos sobre nós dois. Mandamos imprimir e distribuímos para os mais chegados. Tiago caiu na gargalhada quando viu, Ajuricaba ficou encantado. Mas nossas mães foram taxativas:

 

-- Que coisa mais escandalosa!

 

A solidão é má conselheira, não dá para ficar pensado no Wagner, agora. Era só o que me falta, entrar em depressão.

 

Adoro quando Yasmin põe aquele vestido de seda, que Rebeca trouxe de Paris para ela. Fica coladinho no corpo. Ela parece uma bonequinha. Lembra-me quando a gente saía para namorar, passeando pelo Flamengo, olhando vitrines e trocando idéias sobre como montar o apartamento.

 

É, vou dormir. Amanhã a mãe dela chega aqui cedo. Vai ficar com ela, porque já tenho uma entrevista marcada com o Mariel para as dez da manhã. A matéria sobre os dez homens de ouro vai ficar boa. Só não sei se eles vão gostar. 

 

Meio-dia. Recebi um telefone da Joana. Ela quer falar comigo agora, na hora do almoço. Coisa corrida assim, já sei que não é boa notícia. Marcamos um papo na Praça XV, vamos comer peixe no Albamar, olhar esse dia lindo, azul, azul, o marzão besta dominando a baía, e conversar sobre a organização, apelido político para MNR. Gosto do Rio dos dias claros. É quando me sinto plenamente filho dessa terra. Sol na cabeça e calor me irritam, mas a claridade do dia me deixa animado. Acordo cantando, tomo banho cantando e saio gingando pelas ruas. Sou todo carioca, só falta a camisa listrada, porque o resto tenho e faço.

 

Como a Joana marcou um ponto -- outra expressão cifrada, significa reunião, encontro, geralmente na rua --, vou de ônibus, para não dar bandeira. Táxi é um perigo. Quase todos os taxistas são informantes da polícia. E carro, que não tenho, é bandeira maior ainda. Adoro esse vento, esse cheiro de mar. Não sei porque, mas sempre me sinto mais livre, quando ando assim, sem lenço e sem documento, como soe dizer Caetano, o Velloso. Hoje estou todo pra cima, apesar da barra que segurei nesses dois últimos dias.

 

Joana jornalista. Joana pernambucana. Joana em flor. Ela tem o maior carinho por Yasmin. E vice-versa. Só que Joana tem uns dez anos a mais. De experiência, de sonhos, de sorrisos. Ela também é uma mulher sorridente. Translúcida. Se fosse um pouquinho mais extrovertida, seria uma típica carioca, apesar do leve sotaque recifense. Todos gostam dela, homens e mulheres. Mas, já definiu quem será seu marido. Só não sei se ele sabe disso. Mas quer saiba ou não, Joana é bastante sagaz para agarrá-lo no momento certo. É uma líder suave, democrata, socialista.

 

Sentamos. Ela foi direta e precisa.

 

-- O poeta e eu fomos informados de que corremos o risco de sofrer baixas nos próximos meses. Muita gente tem sido presa em São Paulo. Através dessas prisões, os serviços de segurança podem chegar até nós muito rapidamente. Principalmente daqueles que não estão clandestinos, como eu, você, Yasmin e outros. Tomamos uma decisão, depois de consultar nossas lideranças fora do país. Você e Yasmin devem sair do Brasil nas próximas semanas. Estamos sugerindo que vão para o Chile, assim não perdem o contato com o Brasil.

 

-- E se entrássemos para a clandestinidade?

 

-- Estamos muito debilitados. Não temos estrutura para absorver novos companheiros clandestinos. Isso exige casa, documentação, dinheiro. É um risco muito grande, eu diria uma irresponsabilidade. É o momento de recuarmos, acumular forças.

 

-- O poeta vai deixar o Brasil esta semana. Talvez vocês ainda tenham uma reunião para se despedir.

 

A proposta da direção do MNR me deixou atordoado. Senti que não era dono da minha vida, que decisões que não sabia muito bem de onde vinham estavam definindo o meu futuro. Senti uma enorme frustração. Ia deixar meu trabalho, meus amigos, minha cidade, porque algumas pessoas estavam com medo de morrer. Olhei para Joana com tristeza e perguntei:

 

-- E você? Vai ou fica?

 

-- Fico. Não tenho condições de ir. Fico e tento segurar a barra, mas gostaria que você e Yasmin saíssem o mais rápido possível. Não descarto que eu possa ser presa a qualquer momento.

 

Naqueles dias aprendi que as desgraças não acontecem de uma em uma. Desabam como temporal. Yasmin foi informada da situação e começamos, rapidamente, a preparar nossa saída do país. Tínhamos que negociar nos empregos, explicar a amigos e parentes que íamos para o Chile. Por mais que tentássemos fazer a situação parecer natural, jornalistas deixando suas atividades rotineiras chamam a atenção.

 

Na noite anterior a nosso embarque, fomos informados de que haveria uma operação pente fino em Santa Teresa. Pegamos nossos livros, aqueles que poderiam ser considerados subversivos e colocamos na mala do carro de um amigo, estacionado na rua. Depois, sem que ninguém nos visse, pulamos um muro, ao lado do prédio, com documentos e malas, e fomos dormir na casa desse amigo. Nessa mesma noite, nossa casa foi invadida. Na manhã seguinte, partimos de ônibus para a Argentina. Destino: Santiago do Chile.

 


O louco da imortal loucura

 

Tu és o louco da imortal loucura, o louco da loucura mais suprema. A Terra é sempre a tua negra algema, prende-te nela a extrema Desventura. Mas essa mesma algema de amargura, mas essa mesma Desventura extrema faz que tu'alma suplicando gema e rebente em estrelas de ternura.

“O assinalado”, Cruz e Souza (primeira e segunda estrofes).

 

A opressão do negro foi e é fenômeno global. E querer hoje compreender a dinâmica das mobilizações e lutas dos povos negros, nos diferentes países, sem entender as razões econômicas e globais de tal opressão, é não somente cometer um grave erro teórico, mas correr o risco de elaborar estratégias e táticas equivocadas para sua emancipação.

 

Os marxistas sempre consideraram o negro, quer esteja trabalhando numa mina da África do Sul, numa fazenda do Sul dos Estados Unidos, num bar na madrugada parisiense, numa indústria do ABC paulista – só para usar alguns clichês que referenciam o nosso imaginário – ou como totalidade, como povos que sofreram diásporas durante fases específicas do desenvolvimento do capitalismo.  Nesse sentido, não importa muito de que nação específica procede o negro, a não ser para ele como pessoa, é claro, e sim o fato de que foi parte integrante da grande nação africana, dividida, massacrada e destruída pelo sistema capitalista. Sem determinar este elemento – a existência de povos negros em diáspora – será praticamente impossível entender o papel que o negro cumpre em relação ao capitalismo, tanto nos primeiros séculos que antecederam à Revolução Industrial, como atualmente em sua fase da globalidade imperial.

 

Abraham León, teórico marxista, assassinado em campo de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu um conceito sobre o povo judeu bastante interessante, e que pode nos ajudar muito na caracterização correta da questão negra. Para León, o judeu – devido ao papel específico que cumpriu durante o surgimento da capitalismo e também durante a sua fase de expansão, como um dos principais responsáveis pela acumulação e controle do capital financeiro – se transformou em “povo classe”, representante direto da burguesia. Ora, algo semelhante aconteceu com o negro. Devido ao papel cumprido pelo negro durante o surgimento do capitalismo, e inclusive agora, ele também se transformou num “povo classe”. Mas, ao contrário do judeu, intimamente ligado ao proletariado moderno. Foi em cima dele, principalmente, que o capitalismo fez nas colônias a sua acumulação primitiva. Nas metrópoles este papel coube também aos ao campesinato pauperizado, que serviu de matéria-prima para a formação do moderno proletariado industrial. Atualmente, mais que nunca, o negro continua sendo um povo-classe, porque faz parte do grande exército de reserva mundial. E o continente africano continua, centenas de anos após o termino do tráfico de escravos, a fornecer uma mão-de-obra barata para os países avançados, principalmente na Europa.

 

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessário entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação.

 

A partir dos clamores éticos da profecia bíblica, lida através da cosmovisão luterana da Reforma protestante, Paul Tillich apresentou uma compreensão da práxis cristã que ele chamou de princípio protestante. Assim, o princípio central do protestantismo seria a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em consequência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Consequentemente, a autonomia profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os profetas existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes a decisão será sempre pessoal.

 

Tal protestantismo entendido como expressão crítica e autônoma existe onde quer que se proclame o poder do novo ser e onde se denuncie situações-limite que ameacem o sentido da vida. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas, talvez por isso a maioria das pessoas experimente o sentido da situação-limite fora das igrejas, já que o princípio protestante pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio secular, sem qualquer filiação eclesiástica, assim como por pessoas e grupos que por meio de símbolos protestantes expressam a situação humana em face do incondicional. Se nessas situações proclama-se com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo e atual. Tomando-se por base tal compreensão, entendemos a luta histórica do povo negro e de seus descendentes no Brasil como um clamor permanente contra situações-limites a que estiveram e estão expostos. 

 

A chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da herança de exclusão deveria levar a Igreja protestante a elaborar uma mensagem para o mundo afrobrasileiro. Mensagem de esperança. Mas a igreja que não aprendeu a protestar é sempre tentada a emancipar o afrodescendente através da submissão à hierarquia e à tradição, esquecendo-se que ele já experimentou a autonomia e que esta é uma experiência transformadora.

 

A questão negra implica muitas coisas. Entre elas, nos leva a pensar porque o processo de lumpenização é enorme entre os negros em todo o mundo capitalista. E a constatação é: exatamente porque fazem parte do exército de reserva. E nos dá outra resposta teórica mais geral e, esta sim, fundamental: a questão racial é de fato uma questão nacional e não somente democrática e relativa aos problemas específicos do dia-a-dia. É por isto que a necessidade da revolução socialista está intimamente ligada à solução dos problemas mais gerais dos povos negros.

 

O capitalismo sempre vendeu uma mesma imagem da África, a de um continente tribal, atrasado, cujos habitantes viviam na Idade da Pedra. O que é uma grande mentira. Duas leituras focam historicamente o modo de produção da África nos séculos quinze e dezesseis: uma delas situa grande parte do continente numa variante do modo de produção asiático. E cita como exemplo, Gana e Somali. A outra, expressa por Nahuel Moreno, um velho amigo marxista, é que deu as nações africanas já eram capitalistas, mais precisamente mercantilistas. Embora esta discussão, por ser histórica, seja difícil de precisar, há elementos que mostram o grau de tecnologia e desenvolvimento alcançados por algumas nações africanas antes da chegada dos colonizadores. Podemos citar, por exemplo, agricultura sedentária, com uso de técnicas de plantio tropical, exército regular, pequenas indústrias, principalmente têxteis e a existência de fundições.      

 

Esses elementos explicam os quilombos, não como guetos negros, mas como repúblicas, onde se refugiavam os oprimidos da época. Eram cidades de refúgio. A análise e as caracterizações que tiramos da etapa histórica vivida pelos povos negros na África explica por exemplo o modo de produção dos quilombos, que sem lugar à dúvida, viveu do comércio com a própria colônia. Ou seja, tinha como modo de produção um capitalismo mercantil, apesar de elementos de desigualdade presentes aí, tais como legislação típica da produção asiática, semelhante ao código de Amurábi e mão-de-obra escrava. Mas estas desigualdades são explicadas pela própria situação contraditória dos quilombos, em guerra com a colônia, mas ao mesmo tempo vivendo do comércio com ela, inclusive vendendo escravos para estas mesmas colônias. Este comércio, apesar de seu caráter moral, que pode ser discutido, era capitalista e significava de fato um elemento a mais no processo de acumulação primitiva destas nações africanas. Essa contradição explica a necessidade de uma legislação férrea, que favorecia a centralização do poder, embora em seu aspecto mais geral, de satisfação das necessidades dos homens e mulheres que se refugiavam aí, os quilombos fossem, de fato, estruturas de poder essencialmente democráticas.  

 

Do ponto de vista econômico-social tal acumulação foi profundamente contraditória e, aliada à política colonialista dos europeus, de destruição consciente das forças produtivas africanas, serviu – em última instância – para debilitar o avanço do iniciante capitalismo negro.

 

A partir daí podemos entender melhor a situação posterior dos negros escravos durante os primeiros séculos do capitalismo mercantil no Brasil, por exemplo. Eles explicam o nacionalismo negro, as contradições do próprios negros entre si, muitas vezes determinadas pelas relações existentes na África entre as diferentes nações. Explicam também fatos interessantes e pouco estudados, como os aportes dos escravos negros ao desenvolvimento das forças produtivas ao capitalismo mercantilista no Brasil. Entre eles podemos citar a construção de fundições, e a introdução de técnicas de agricultura tropical, como a utilização de platôs para o plantio do café.

 

O conceito de situação-limite traduz aquela ameaça a tudo que dá sentido final à existência, e este o diferencial do protestantismo. Esta expressão, como vimos, nasceu em torno da justificação pela graça, através fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de se realizar a verdade e se fazer o bem. Assim, o reconhecimento da existência da situação-limite traduz-se em juízo e transformação, realça a diferença entre a religiosidade que faz a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem uma relação universal com o mundo ético a noção de autonomia da pessoa não basta para construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta da essência, fonte da ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como consequência toda ética real são concretas. Essa essência se situa naquele momento especial, pleno de liberdade e que revoluciona conceitos, ações e destinos. A universalidade desse tempo kairótico comporta riscos concretos, já que não se move num universal abstrato, separado da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social, no nosso caso da brasilidade em sua relação com a afrodescendência. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à origem, “ao fundamento e abismo de todo ser, e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”.

 

Assim, a realização da essência da brasilidade, em sua relação com a afrodescendência, deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é perene nela. Exprime o que lhe é próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, uma ética da brasilidade deve transportar ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência de nossa brasilidade nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência brasileira enquanto vida que irrompe na história, criadora de um novo ser.

 

E a partir daí podemos afirmar que a experiência do cristianismo protestante em sua essência pode ser uma experiência transcendente ao nível da materialidade afrobrasileira, uma experiência que deve acontecer em todas as situações. Nesse sentido, tal protestantismo não poderia ser identificado com um tipo determinado de organização social, mas ser portador de poder e oferecer aos afrobrasileiros uma mensagem de vida, tanto para a pessoa como particularidade, como para as comunidades como um todo. Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo, protestantismo, evangelicalismo que se fecha na pura interioridade. Mas também não se pode dizer que o cristianismo do princípio protestante é um movimento que parte mecanicamente da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais afrobrasileiras ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele toma forma a partir delas, mas também dá forma às expressões culturais afrobrasileiras. Dessa maneira, um tal cristianismo do princípio protestante está interpenetrado pela consciência experiência estética, ética e pelos modelos sociais da afrobrasilidade. 

 

Olhado do ponto de vista histórico, os quilombos não foram guetos negros, mas protótipos nas nações africanas deixadas para trás. E, pelas características desenvolvidas pelos quilombos no Brasil, podemos dizer que eram comunas, onde se refugiavam os oprimidos da época: os negros, índios, perseguidos políticos e os “criminosos” comuns brancos. Todos eles encontravam no quilombo igualdade de direitos e deveres. A partir da análise que fazemos da situação das nações africanas na época e da estruturação que os negros deram aos quilombos no Brasil podemos dizer que o modo de produção dessas pequenas repúblicas era capitalista. Mais precisamente mercantilista, vivendo com a própria Colônia. Logicamente, não estavam diante de um modo de produção definido e acabado. 

 

Sem dúvida, os quilombos fornecem grandes lições. No Brasil, eles foram a única forma de governo dos explorados que conseguiu sobreviver por longo tempo, sem isolar-se da civilização da época, respondendo de maneira perfeita à questão racial. Ou seja, não como questão racial em si, mas como questão nacional.

 

A partir do início do século dezenove, as pressões do imperialismo britânico sobre Portugal, que pretendia controlar toda a comercialização da cana-de-açúcar, assim como ter o controle de sua produção nas Antilhas, gerou um processo desigual na vida dos povos negros escravizados no Brasil.

 

É necessário ver que no Império brasileiro os negros como povos já estavam dominados. Apesar dos levantamentos esporádicos, os quilombos já tinham desaparecido como forma alternativa de poder. E a única opção de luta começa a surgir de forma indireta, já não através de movimentos de libertação nacional -- embora tenha se expressado em alguns movimentos místicos como Canudos --, mas na luta pela democracia.  A contradição é que os próprios negros não tinham líderes, nem organismos, através dos quais pudesse mobilizar o conjunto dos povos negros pela luta democrática racial. Assim, essa luta não se deu através da  mobilização e organização próprias dos povos negros. Foi levada por intelectuais afro-brasileiros, a maioria dos quais republicanos, como Joaquim Nabuco entre outros, mas que não levaram à organização política do negro. A emancipação veio por causa das pressões do imperialismo britânico, da propaganda de intelectuais, e devido à fraqueza da Coroa brasileira diante do Império britânico. Não foi acompanhada pela organização política dos povos negros, nem gerou líderes próprios, o que levou o conjunto dos negros à dispersão política e à falta de perspectiva social. Dessa maneira, os povos negros não conquistaram a democracia racial. O esmagamento em que vivia se aprofundou. 

 

Totalmente esmagado, os povos negros se viram diante de um fato consumado: tiveram a liberdade de sair das fazendas e das casas-grandes à procura de emprego, tiveram a liberdade de procurar trabalho, mas não o encontram. Tiveram a liberdade de ir morar nas periferias das cidades, em mocambos e favelas, e passaram a ser mão-de-obra desocupada. Assim, após a Lei Áurea, em nenhum momento conheceram ou viveram a democracia racial. E por uma razão terrível: sem organização política própria e independente do poder burguês, os povos negros não têm condições de conquistar a liberdade real de emprego, salários dignos, educação e moradia. Disperso politicamente, o processo de esmagamento dos povos negros aumentam violentamente. 

 

O princípio protestante, ao fundamentar-se numa ética da liberdade, igualdade e fraternidade, daquele que parte e reparte o pão, tem uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. Esta ética do amor propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo e das consequências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Tais pecados sociais são limitação do bem, porque impedem a universalização do amor; 

alienação da vontade, porque degradam a possibilidade de escolha dos agentes morais; e 

dependência do mal, porque aprofundam raízes e escravizam a comunidade. Diante disso o princípio protestante propõe que se enfrente tais pecado com 

autonomia crítica, solidariedade e transformação social, por acreditar que tais posicionamentos políticos geram justiça, paz e participação solidária.

 

Ora, se rupturas espirituais estão sempre associadas a rupturas econômicas, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica, como considerou Tillich, o fracionamento espiritual característico de nossa épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. Tal situação nos exorta a buscar a construção de um novo processo cultural de unidade de onde brote unidade e solidariedade social e econômica, mas também espiritual. Ora, se é viável sonhar e lutar por processos de desenvolvimento que combinem mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais, podemos afirmar que o protestantismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades afrobrasileiras nas quais está inserido.

 

Seja qual for a nossa opinião ética sobre a relação protestantismo/afrobrasilidade, um fato deve ser ressaltado: é necessário para o protestantismo manter um relacionamento com as pessoalidades, comunidades e cultura afrobrasileira, já que a rejeição da afrobrasilidade em nome de um protestantismo sem raízes contradiz a universalidade do cristianismo. E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com a afrobrasilidade, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeira: pode a afrobrasilidade ter um relacionamento construtivo com o protestantismo? Para muitos, a tradição histórica de ausência e negação da negritude nega a possibilidade dessa aproximação, mas devemos ver que tal concepção mais que nada traduz uma relação de causalidade ideológica. Por isso, as pessoalidades, comunidades e culturas afrobrasileiras estão desafiadas a construir atitudes diferentes em relação ao princípio protestante e em relação às estruturas ideológicas do protestantismo. A história do protestantismo no passado e no presente é passível de muitas críticas. Suas opções fizeram como que dificultasse seu relacionamento com parte da população afrobrasileira excluída de bens e possibilidades. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que a ideologia branca do protestantismo de missões seja um fenômeno constitutivo do protestantismo. Antes, é uma herança da cultura burguesa.

 

A situação do negro não melhorou com a Lei Áurea. Sem função social definida, marginalizado, atomizado culturalmente, o Brasil capitalista e branco, no século vinte leva à desintegração consciente e total do negro, como raça e nação. Abandonado às leis do mercado capitalista, como exército de reserva, sem praticamente nenhuma possibilidade de contestação frontal da situação social em que se encontra, cada negro de per se sonha em ser assimilado. Esta é a grande desgraça da falta de organização independente ante as pressões da sociedade capitalista brasileira. O negro perde o sentido da luta comunitária e política. E aceita ser assimilado, cooptado individualmente. E assim, aos poucos, ele vai sendo penetrado pelos mitos da ideologia burguesa e branca: deve tentar embranquecer, deve acatar sua condição de discriminado e inferioridade, e em alguns casos deve manter a esperança de algum dia chegar a ser mais um jogador de futebol ou sambista famoso. E só.

 

A culpa desse processo, no entanto, não pode ser lançado à industrialização, mas à falta de organização política. Devemos dizer claramente que a luta pela libertação dos escravos e, de forma mais abrangente, pela democracia racial era e é correta. No momento da primeira luta, contra a escravidão, os povos negros, como nação, deveria ter-se aliado ao conjunto da sociedade explorada contra a oligarquia e o Império. Mas deveria, como aconselhou Marx em relação vienenses, após a revolução de 1848, ter formado suas organizações políticas, definido seu programa de luta, aliando-se aos outros setores explorados e oprimidos e, em nenhum momento, confiado na democracia burguesa. Sem organizações partidárias próprias, sem independência política, sem líderes, principalmente a partir de 1930, o negro começa a ser absorvido pela industrialização. Ele vai formar a maior parte do proletariado do país, tanto o urbano como o rural.

 

Atualmente, passados tantos anos, existe uma ideologia do ocultamento em relação à questão negra. É comum se ouvir que não existe racismo no Brasil, que há democracia racial e, pior ainda, que a questão racial não é um problema nacional. E a própria esquerda, em sua grande maioria, afirma taxativamente que tudo pode ser resolvido através da aliança imediata dos povos negros com a classe operária. Aqui existe um erro de fundo. Embora sejam aliados estratégicos e, em última instância, o negro seja um povo-classe, a questão nacional não é sinônimo de questão social. Este é um velho debate entre Rosa Luxemburgo e Lênin. E Lênin tinha razão. Algumas questões, como os problemas nacionais, e logicamente raciais, a questão da libertação social da mulher e a questão religiosa não terminam com a tomada do poder pelo proletariado. É lógico que a partir daí se coloca a possibilidade real de solução de tais problemas, já que no capitalismo – exatamente porque destrói forças produtivas sociais – qualquer solução mais geral e profunda é impossível. Nesse sentido, existe uma linha programática de transição para a luta dos povos negros, que começa pelas questões específicas do dia-a-dia -– iguais às reivindicações de todos os demais trabalhadores --, tem como centro o problema da democracia racial – a todos os níveis – e termina com a colocação máxima da questão nacional.

 

O problema histórico dos povos negros ainda não foi resolvido. Qual a direção dos povos negros neste capitalismo brasileiro? Como chegar a ela? A questão da direção, do caminho, do objetivo coloca a questão da unificação do movimento, da criação de organismos que interpretem o conjunto das reivindicações, da ação e voz dos negros mobilizados. Ou seja, estamos a falar de política e teologia, já que toda atividade mobilizada teopoliticamente está sempre determinada por dois elementos, as condições da própria realidade objetiva, a situação sócio-cultural da sociedade; e as condições subjetivas, ou seja, de mobilização do próprio movimento, já que a mobilização é formadora de consciência e para que se chegue à consciência da questão negra é necessário percorrer um caminho de construção desta consciência, que parte da luta pelo direito à vida.

 

Embora, haja razões históricas para criticar o protestantismo, erramos quando negamos a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, há setores do movimento de resistência do povo negro que vê com desconfiança o protestantismo. Mas, se as idéias de emancipação do povo negro não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, ao cristianismo que vive o princípio protestante, aos cristãos cabe ter uma atitude solidária e fraterna com as reivindações e lutas da afrobrasilidade. Atitude solidária e fraterna deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos da exclusão racial e social e de ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua excluídos e desapropriados de direitos e bens. Isto  porque o princípio protestante só existe como ideal ético quando traduz anseios e esperanças dos mais variados setores das comunidades.

 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária.

 

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão.

 

Nossa cultura relacional e os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se pode esquecer as pressões globalizantes. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica.  Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado.

 

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional. Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude.

 

Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro.

 

A cultura relacional esconde a injustiça social e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros.

 

Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira. No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 

 

Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela.

 

Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso:

 

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador / vamos fazer um pecado rasgado / suado / a todo vapor / me deixa ser teu escracho / capacho / teu cacho / diacho / riacho de amor / Vê se me usa / abusa / lambuza / que a tua cafusa não pode esperar / quando a lição é de escracho / olha aí / sai de baixo / que eu sou professor / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá / vê se me esgota / me bota na mesa / que a tua holandesa não pode esperar / deixa a tristeza pra lá / vem comer / vem jantar / sarapatel / caruru / tucupi / tacacá (Ney Matogrosso, Não existe pecado ao sul do equador”. 

Letra e música: Chico Buarque e Ruy Guerra. In: "Feitiço Elektra", 1978.

 

Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.

 

Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive. O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza.

 

É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais.

 

Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.

 

Um pensamento protestante que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca.

 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem.

 

Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada. Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro.

 

A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia.

 

O pensamento protestante não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória.

 

A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguémMaria nenhuma.

 

Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente. Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades.

 

A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento protestante afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência.

 

A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento protestante uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas.

 

Ser negro traduz metanóia e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma práxis, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja a afrobrasilidade como princípio protestante implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do princípio protestante dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. Mas, considerando que o princípio protestante possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada comunidade traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. Nesse sentido, não basta construir um pensamento da negação, mas um pensamento da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma práxis do protesto, mas uma práxis da proposta, uma práxis da libertação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto.

 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111). Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência/humilhação/cruz é superficial como realidade imediata. Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela.

 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão “é servo em tudo e está submetido a todo mundo”, então... o cristão “é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém” (Luther, 1955, p. 225).

 

Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para construir uma práxis afrobrasileira do princípio protestante. Uma práxis que parte da negação, mas vai além, transcende, e que fará de todos nós senhores da vida que nos foi entregue.

 

Tu és o Poeta, o grande Assinalado, que povoas o mundo despovoado, de belezas eternas, pouco a pouco... Na Natureza prodigiosa e rica toda a audácia dos nervos justifica os teus espasmos imortais de louco!

“O assinalado”, Cruz e Souza (terceira e última estrofes).

 

 

 


 

 

 

Capítulo 2

 

 

Estamos no passado, não muito distante, mas no passado. O lugar, uma terra arrasada. Um paraíso devastado pela guerra e pelo abandono. Um demônio, chamado Shedu comeu e refastelou-se: atum grelhado na brasa, com repolho vermelho e vinho branco. Tomou um café com pouco açúcar e acendeu o cachimbo. Esticou-se embaixo da velha figueira. A tarde era pesada e excessivamente quente, como só aquela terra sabia ser. Virou-se para um outro demônio, de nome Nebo, e comentou:

 

-- Ah! Como é bom ser um sátiro, querido mestre da loucura e das palavras mortas.

 

Deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólico.

 

-- Como eu gosto de trabalhar com Astarote.

 

O demônio Nebo, mimetizado no verde, de barriga para cima, gostava de ouvir seu parceiro. Gostava de passar as tardes nos campos estorricados, infernizando a vida de quantos homens e animais, perdidos de suas rotas, aparecessem por ali. E entendia perfeitamente aquele ódio demoníaco que Shedu nutria por Astarote.

 

Astarote era um demônio sexual. Os humanos tinham vários nomes para ele: Ásera, Astarte, Attart, Ihstar, Afrodite, conforme o país e o rito de adoração que lhe ofereciam. O próprio Salomão, rei de Israel, prestou-lhe culto e chegou a edificar um templo em sua honra, perto de Jerusalém. Descaracterizado, Astarote tinha uma pele esverdeada, num tom escuro, um hálito sulfuroso e uma mente totalmente degenerada. Usava uma cabeça de touro como símbolo de soberania. Sempre passava voando por cima das videiras calcinadas, despertando no demônio Shedu um ódio especial, uma ira assassina, um desejo de parceria que ele há muito tempo não tinha. 

 

Shedu deu mais uma baforada e colocou o cachimbo de lado. Tirou uma cebola do bolso e deu uma boa mordida. Depois disse para o demônio que o ouvia:

 

-- Nebo, meu desgraçado amigo, há anos atrás, fui dono de um homem alucinado. Foi uma experiência inesquecível. Viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica de meus ódios.

 

Tudo começou numa linda primavera terrestre. Havia um sujeito duro de coração. Perverso para nenhum demônio colocar defeitos. Nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. Uma noite ele se entregou a mim. Queria a minha maldade e eu não lhe neguei. Mais tarde, deu o seguinte depoimento aos soldados que o interrogavam:

 

Havia um sonhador, um doido, sei lá. Já tinha estrangulado várias pessoas. Uma coisa feia. Sempre igual. As moças eram atacadas de madrugada, mordidas, esganadas e tinham seus olhos arrancados. Sim. Era exatamente assim. Mordidas nos ombros, no pescoço, no rosto, estranguladas. Os olhos arrancados. E tudo em apenas um mês. Foi pelo pânico que resolveram evacuar o hospital. Eu, porque não tinha para onde ir, fiquei. E comigo ficou a frase do jovem Gramsci: “Velhos, porque o destino nos fez nascer numa idade velha”. 

 

Dez da manhã. A moça, jovem, usava uma saia justa e blusa de malha. Insinuante, lembrava o vermelho. Convidei-a para conhecer o hospital. Ela riu, nervosa, e entramos. Sem proferir palavras, eu cantava.

 

-- Amelita, querida Amelita... si yo pudiera, como ayer, querer sin presentir.

 

Sempre gostei de tangos. É a nostalgia, ela me agarra e não me solta mais. Atravessamos o salão de entrada do hospital. Ela na frente e eu atrás. Começamos a subir as escadas.

 

-- Si yo tuviera el corazón, el mismo que perdi...

 

Só minha respiração quebrava o silêncio. Chegamos ao primeiro andar. Continuamos. Íamos para o segundo. 

 

--... es posible que a tus ojos, que me gritan su cariño, los cerrara com mis besos.

 

Ela parou. Segurei seus quadris. Sentia a carne rija sob a saia justa. Devagar, bem devagar. 

 

--... me abrazaria a tu ilusión....

 

Num salto ela se voltou. Senti uma dor profunda no rosto e gosto de sangue. Ela deu-me duas, três mordidas. Todas no rosto. Suas mãos me apertaram o pescoço. Caímos. Senti a dor de minhas costelas na batida com os degraus. Ela por cima.

 

Interessante, não senti medo. O gosto de sangue, a dor, a luta. Era um mergulho, apenas isso. Suas mãos foram largando o meu pescoço. Ficamos quietos não sei quanto tempo. Shedu sempre diz que não há lugar tranqüilo na cidade dos homens, mas estávamos silentes, eu e meu monstro. Essa é a paz que Shedu me prometeu. Eu e meu monstro, um sentindo o hálito do outro, a gente se rasgando, xingando, lutando, sentindo o rosa e o vermelho, dançando nas cores. Sem uma palavra.

 

Quietos, ouvimos passos. Alguém subia as escadas. De maneira calma, como se tateasse os degraus com os pés. Terminou os dois primeiros lances, chegou bem à nossa frente e perguntou:

 

-- Quem está aí?

 

Segurava o corrimão. Cega. O que estaria fazendo ali, essa cega e seus fantasmas? 

 

Estendi a mão direita. Ela a tocou e subiu alguns degraus. Eu e a moça bonita não nos mexíamos. A cega subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. Brinquei de dedos com os dedos. Ela quieta, parecia estar presa no tato. Que sensação pode ser tão profunda? Sei que sentia formigas e espelhos pelo corpo. Eu sentia dor, o peso de meu monstro, o sangue, a respiração quase parada.

 

Dizem que eu sou louco. Não sou, não. Lembro-me perfeitamente. O hospital foi se enchendo de gente, que brotava das paredes, do chão ou deslizava do teto. Primeiro, apareceram dois soldados doentes, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. Mas como nos encontraram no caminho, desistiram. Ficaram no primeiro andar mesmo. Uma mulher grande e forte desceu do lustre e eu já não sabia se era a chefe das enfermeiras ou oficial. Também não nos incomodou.

 

A vida voltou ao velho hospital. Havia burburinho, gente arrastando doentes, enfermeiras, a mulher grande e risos. Mas ninguém nos importunava. E nós três ali, quietos, sentindo aquela paz de formigas.

 

O soldado doente, que tinha ficado no quarto bem em frente à nossa escada, abriu a porta devagarzinho e fez um gesto para mim. Chamava a moça bonita. Ela virou o rosto para a porta, sorriu como uma fada e saiu de cima de mim. Como um gato, sem fazer ruído.

 

A partir desse momento, eu e a cega não nos separamos mais. No meio da dor, andávamos tropeçando pelos campos, eu em minha velhice, ela em sua cegueira.

 

O comando militar da cidade já havia informado que haveria novos bombardeios. Na segunda semana de abril foi lindo e triste. Bem de manhã, uma névoa cobria o campo e a casa dos oficiais, que não ficava muito distante do hospital. Todos gritavam. Junto com a garoa fina caiam as bombas. De uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.

 

Fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. Eu e a cega, de mãos dadas, via e ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. De repente, veio a ordem de debandar. Saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. Os soldados corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. E aqui no hospital, eu e a cega caminhávamos no vazio. Mais uma vez estávamos sós.

 

Fomos caminhando devagar para longe do prédio. Era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. Igual a mim, eu acho.

 

Não, valorosos soldados, não sei o nome de ninguém. Nunca me preocupei com nomes. Nunca me lembrei de guardá-los. Do general sei que era imponente, mas triste. Gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. Era triste e só.

 

Ah! O meu monstro. Foi meu apenas durante algumas horas. Também não sei dos meus irmãos. Ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso Shedu nunca fala. Não sei. É muito difícil saber dessas coisas. E eu não sou um homem sábio.

 

-- E a cega?

 

Fiquei com medo. Sei que o general de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. E eu fiquei com medo.

 

Chovia. Era difícil andar. Eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. O mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. Nem mais, nem menos. Paramos ao lado de uma poça. O longe roncava como fera. Não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. Devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. Ela deixou. Seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. Meu medo foi passando. Levantei seu rosto. Éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.

 

Segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. Acho que é a mesma paz que sentia o velho hospital depois do bombardeio. Não sei. Sinceramente, valorosos soldados, não sei mais nada. O seu nome... Não me lembro bem, mas parece que era Dolores. É, só poderia ser Dolores.

 

E assim, caro Nebo, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. E como você pode ver, esse súcubo infernal só apareceu para bagunçar o coreto. Com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. Cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.

 

 

 

Uau! Que sonho estranho. É isso que dá brigar com a Yasmin. Sinto uma culpa danada e depois fico sonhando essas loucuras. E é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. E para quem haveria de contar? Estamos num ônibus leito, atravessando os pampas uruguaios. É chão que não acaba mais.

 

Eu dizendo que queria curtir um pouco de Argentina, ver uns tangos em Buenos Aires e ela querendo, porque querendo, chegar logo em Santiago. Parece até que estamos fazendo uma viagem de trabalho. Desde quando o exílio impede a gente de curtir uns tangos? Brigamos. Ela virou para um lado e eu para o outro. Ela dorme como um anjo, mas eu fico lutando com demônios a noite toda. Êta briga besta.

 


 

 

Capítulo 3

 

 

Parece que foi ontem. Janeiro de 69 estava quase terminando e ainda estávamos sob o choque do AI-5. Recebi um telefonema, na própria redação da Manchete, informando que teria uma reunião com Ricardo, jornalista do JB que fazia Direito na Cândido Mendes. Ele era a nossa ponte com um pessoal que atuava dentro da embaixada dos Estados Unidos. E lá fui eu almoçar no Lamas, ali no Largo do Machado. Aliás, o bom desses pontos é que a gente acabava comendo bem. 

 

Entramos silentes. Sentamos numa mesa do fundo. E seguindo um velho ritual dos freqüentadores do Lamas, pedimos filé com fritas e chope. Por um momento meus pensamentos voaram e fiquei lembrando quando vinha aqui com meus pais, ainda menino. Gostava de ficar olhando para aqueles espelhos e ver minha imagem se multiplicar infinitamente.  

 

-- Acho que a situação vai feder. Já informamos ao poeta e a Joana. O pessoal em Cuba está atento a possíveis novidades.

 

Para entender as relações construídas entre o cristianismo social e os socialistas democráticos, a nova esquerda e o trotskismo, devemos analisar como surgiu na Igreja cristã, católica e protestante, um pensamento crítico do capitalismo e de defesa das populações expropriadas e excluídas nas sociedades modernas. E como os séculos dezenove e vinte foram de revolução social, começaremos a partir daí, já que a Revolução Francesa colocou o pensamento católico e, por extensão, toda a cristandade diante de profundos desafios. Assim, os anos que se seguiram ao pontificado de Pio VI foram de choques com a nova ordem social que se estabelecia na Europa e, em especial, na França. De todas maneiras, este foi um período de aproximações e rupturas, e Napoleão Bonaparte, entre os muitos papéis, cumpriu o de por fim no longo conflito entre católicos e protestantes franceses.

 

Foi também como homem de estado [Napoleão] que impôs o fim do cisma na Igreja francesa. Até que ponto ele era um crente católico é discutível, mas teve o sentido exato do papel que a Religião desempenha para dar unidade, coesão e contentamento a uma sociedade. A utilidade social da Religião não foi, claro, idéia sua: Voltaire, Rousseau, Chateaubriand e muitos outros condutores do pensamento francês já se lhe tinham referido de várias formas. 

 

Embora os choques entre Napoleão e os papas Pio VI e Pio VII traduzissem as difíceis relações entre o poder napoleônico e a Igreja católica, ela mostrou-se disposta ao diálogo com a nova ordem social, já que sua preocupação centrava-se no liberalismo teológico, que era visto como inimigo. Pensadores católicos, como o teólogo Félicité Robert de Lamennais, aconselharam a Igreja a refletir sobre as questões sociais na Europa, em especial as liberdades política e de imprensa, mas as propostas de Lamennais, apesar de sua amizade com o papa Gregório XVI, não produziram o efeito que ele esperava.  Ainda era cedo para a Igreja apresentar ao mundo sua compreensão acerca da nova realidade do mundo.

 

No final do século dezenove, a Europa vivia momentos de conflitos trabalhistas, com o fortalecimento dos sindicatos anarquistas (IWW) e socialistas (II Internacional dos Trabalhadores). Diante da polarização de classes, Leão XIII, cujo pontificado durou de 1878 a 1903, produziu a encíclica Rerum Novarum ("Das coisas novas"), que veio à luz no dia 15 de maio de 1891. O documento discutia os direitos e as responsabilidades do capital e do trabalho, descrevia aquilo que a Igreja entendia como função do governo, e defendia os direitos dos trabalhadores à organização de associações para tentarem conseguir salários e condições de trabalho justas. Esta foi a primeira tentativa da igreja, desde a revolução francesa, de fazer uma leitura dos novos tempos. Dessa maneira, a partir de Leão XIII, a Igreja católica se lançou à reflexão das questões sociais, partindo da defesa da pessoa e da dignidade do ser humano. Isto fica claro quando Leão XIII fala do direito natural, “estável e perpétuo” e do direito do ser humano possuir “as coisas exteriores”, “tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido”. Na verdade, a encíclica traduzia a imersão da Igreja na crise social do século dezenove, quando afirmava que “o homem [...] é senhor de suas ações; também sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da Providência divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e a sua providência”. Esse sentido da imersão da Igreja católica nas questões sociais traduzia na encíclia de Leão XIII a preocupação com a difícil situação do cristianismo, pois reconhecia que a consciência do cargo apostólico impunha “como um dever” tratar de tais problemas.

 

Assim, Leão XIII levantou a tese, sem dúvida revolucionária para a época, do direito dos operários de se associarem para a defesa de suas justas reivindicações, e, posicionando-se contra o pensamento político liberal, disse que era dever do Estado interferir no campo social e econômico, para a proteção dos que não tinham como se defender. Mas, denunciou também o perigo representado pelo comunismo, que vinha abalar valores fundamentais da sociedade e da cultura. Leão XIII percebeu a gravidade da situação, que ameaçava levar para dentro da Igreja as tensões entre capitalismo e socialismo, que distendiam as estruturas da sociedade civil. Os católicos, como o conjunto da sociedade, estavam divididos entre católicos liberais e católicos sociais. Leão XIII procurou definir um ponto de equilíbrio entre os extremos que se confrontavam.

 

Mas a revolução não acabou no século dezenove. Na verdade, se estendeu século vinte adentro com a expansão das idéias socialistas e o surgimento de Estados comunistas que se opuseram à Igreja e ao cristianismo. Assim, a revolução, como movimento social de transformação, criou uma permanente instabilidade, levando muitos a considerarem que os dias da Igreja estavam contados.

 

Caso se fizesse uma avaliação completa das mudanças revolucionárias que têm tido lugar nos mundos do pensamento e da invenção, nas estruturas política e social, e nas condições de vida e trabalho, e caso se levasse em conta a origem das Igrejas na ordem pré-revolucionária ou o Ancien Régime, então a sua sobrevivência com tantas das suas antigas características e acessórios intactos é admirável, para não dizer mais. Não sobreviveram porque estavam bem preparados para a rebelião em que se veriam involuntariamente envolvidos, ou porque, quando os alcançou, mostraram prontos poderes de adaptação às novas circunstâncias. 

 

Como explicou Vidler, a Igreja católica não mostrou prontas respostas às novas circunstâncias, mas evitou perder-se no dilema: ou a liberdade absoluta do desenvolvimento espontâneo ou a radical abolição da liberdade, com suas consequências. Procurou um meio termo, que permitisse reter o princípio da iniciativa privada e sua fecundidade, e o da intervenção pública, e sua não menos evidente necessidade. Assim, diferentemente do liberalismo econômico e do socialismo, a Igreja recusou-se a resolver o dilema, pois discerniu na realidade capitalista uma força insubstituível, uma estrutura modificável, um princípio condenável. Exemplo disso é a encíclica Quadragesimo Anno ("No quadragésimo ano") do papa Pio IX, lançada em 1931, que denunciou os efeitos da concentração do poder econômico sobre os trabalhadores e a sociedade, pediu a distribuição da riqueza segundo as exigências do bem comum e da justiça social, defendeu o direito à propriedade, mas também a oportunidade de acesso à mesma, e declarou que a propriedade tem uma finalidade social e um papel na promoção da harmonia entre as classes sociais. Assim, a Quadragesimo Anno condenou aquilo que mais tarde chamaremos de capitalismo selvagem: 

 

“Ora, a livre concorrência, ainda que dentro de certos limites seja justa e vantajosa, não pode de modo nenhum servir de norma reguladora à vida econômica. [...] Urge, portanto, sujeitar e subordinar de novo a economia a um princípio diretivo, que seja seguro e eficaz. A prepotência econômica que sucedeu à livre concorrência não o pode ser; tanto mais que, indômita e violenta por natureza, precisa, para ser útil à humanidade, de ser energicamente refreada e governada com prudência; ora, não pode refrear-se nem governar-se a si mesma. Força é, portanto, recorrer a princípios mais nobres e elevados: à justiça e caridade sociais”. 

 

E mais adiante acrescenta: 

 

“É coisa manifesta como nossos tempos não só amontoam riquezas, mas acumula-se um poder imenso e um verdadeiro despotismo econômico nas mãos de poucos, que mais das vezes não são senhores, mas simples depositários e administradores de capitais alheios, com que negociam a seu talante. Esse despotismo torna-se intolerável naqueles que, tendo em suas mãos o dinheiro, são também senhores absolutos do crédito e por isso dispõem do sangue de que vive a economia, e manipulam de tal maneira a alma da mesma, que não pode respirar sem sua licença”.

 

Ainda na Quadragesimo AnnoPio XI definiu a posição que os bispos deveriam ter na relação dos católicos com os sindicatos: 

 

“Pertence aos bispos, se reconhecerem que tais associações são impostas pelas circunstâncias e não oferecem perigo para a religião, permitir que os operários católicos se inscrevam nelas, observando a este respeito as normas e precauções recomendadas por nosso predecessor Pio X, de santa memória. A primeira e a mais importante é que, ao lado dos sindicatos, existam sempre outros grupos com o fim de dar a seus membros uma séria formação religiosa e moral, para que eles depois infiltrem nas organizações sindicais o bom espírito que deve animar toda a sua atividade”.

 

E na Divini Redemptoris, lançada em 1937, Pio XI  ao condenar o comunismo considerou o liberalismo como a causa direta daquele mal. 

 

“Não haveria nem socialismo nem comunismo se os que governam os povos não tivessem desprezado os ensinamentos e as maternais advertências da Igreja; eles, porém, quiseram, sobre as bases do liberalismo e do laicismo, levantar edifícios sociais que à primeira vista pareciam poderosas e magníficas construções, mas bem depressa se viu que careciam de sólidos fundamentos, e se vão miseravelmente desmoronando, um após outro, como tem que desmoronar tudo quanto não se apóia sobre a única pedra angular, que é Jesus Cristo”.  

 

Dessa maneira, a partir da Rerum Novarum, três princípios vão estar no centro das encíclicas sociais. O primeiro será a vida, a dignidade e os direitos da pessoa humana. O critério de justiça de toda a política estará no grau com que ela protege a vida humana, favorece a dignidade humana e respeita os direitos humanos. Este princípio será o fundamento da doutrina da Igreja com respeito à guerra, à paz e à vida social. O segundo princípio será o da solidariedade, que será visto como definidor da formação de um mundo novo. É uma expressão moral de interdependência, um aviso de que a humanidade é uma família, sejam quais forem as diferenças de raça, nacionalidade, ou poder econômico. Os povos das terras mais distantes não são inimigos ou intrusos e os pobres não são um fardo, mas irmãs e irmãos, pessoas que os cristãos são chamados a proteger. E o terceiro, que vem como desenvolvimento deste segundo, será o da opção preferencial pelos pobres, no sentido de que os excluídos têm o primeiro direito de reivindicação perante a consciência e as práticas humanas. Embora a linguagem seja nova, já que surge a partir do final dos anos 1960 na América Latina, ela foi absorvida pela Igreja enquanto compreensão das palavras de Jesus em Mateus 25, ou seja, de que a humanidade será julgada em termos da resposta que tiver dado “ao menor entre estes”.

 

Do lado protestante, o século dezenove foi um século inglês. A Inglaterra era o berço da revolução industrial, Londres possuía o centro financeiro mais importante do Ocidente, o comércio britânico rodeava a Terra e a marinha britânica dominava os mares. Os protestantes ingleses estavam reunidos na igreja oficial, a anglicana, mas também em denominações não-conformistas, como a metodista, a batista, a congregacionalista e algumas menores. Mas havia o temor de que aquele tempo de prosperidade e liberdade fosse engolfado em dias como os da Revolução francesa. Assim, o medo e a esperança, que se misturavam, levaram a sociedade inglesa, através de suas igrejas e sociedades religiosas, a encarar a questão social como um desafio para os cristãos.

 

E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra -- eu e Omar de Barros Filho já conversamos sobre isso --, mas voltarei ao tema: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce. A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das cruzadas sociais mais importantes da Inglaterra. E em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico. O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra. Da mesma maneira, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês. 

 

Foi como reação ao socialismo anticlerical de Robert Owen e ao cartismo, que os protestantes deram início ao seu movimento social. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes deram origem ao socialismo cristão na Inglaterra. Dessa maneira, afirmou Maurice: “A necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existisse nas revoluções estrangeiras para se conhecer a si própria, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento. 

 

Nos Estados Unidos, apesar da visão escravagista de muitos religiosos, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento evangélico contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher. Mas um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: A Cabana do pai Tomás, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe, considerava que a escravidão não era apenas um pecado do sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. No livro atacava a consciência nacional escravagista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina. Mas veio a guerra e, com a vitória do norte, a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país e os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”,  falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que escreveu uma obra até hoje famosa, Em Seus Passos Que Faria Jesus?, e o pastor batista Walter Rauschenbusch.

 

Rauschenbush (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

 

Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem.  Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material.  É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas.  A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz.

 

Nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, queles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se  para a conquista que ambos querem.  

 

A leitura da questão social como prioridade da igreja também levou os protestantes à cooperação interdenominacional, assim como à formação de associações não denominacionais. As Associações Cristãs de Moços (1851) e a Christian Endeavor Society (1881) procuraram dar à juventude uma formação ética, social e religiosa. Sob a coordenação de Dwight Moody, um “protestannte privatista”, surgiu em 1886 o Student Volunteer Movement, que tinha como finalidade recrutar jovens para o trabalho missionário, e que estava ligado a um organismo interdenominacional dirigido por John R. Mott (1865-1955). Nessa mesma época, começou a surgir um movimento ecumênico entre as igrejas históricas norte-americanas: Samuel S. Schmucker (1799-1873) escreveu Apelo Fraternal às Igrejas Americanas e, mais tarde, foi fundado o Federal Council of the Churches of Christ in America.

 

Mas o século XX golpeou o caminhar social que a igreja protestante estava construindo ao colocá-la diante de um problema novo: as duas guerras mundiais. Em 1914, as igrejas protestantes, em sua maioria, consideraram a guerra contra a Alemanha justa e apoiaram a declaração de guerra em 1917, transformando-se em agências do governo. Com o final da guerra, o crescimento do nacionalismo e o fortalecimento da política beligerante implementada pelo governo dos EUA, denunciadas pelo Comitê Nye, o protestantismo norte-americano tomou conhecimento do erro cometido e procurou voltar à defesa de políticas pacifistas. Assim, durante II Guerra Mundial forneceu capelães para as forças armadas norte-americanas, deu suporte à Cruz Vermelha e no pós-guerra ajudou na reconstrução das igrejas irmãs européias.

 

Mas, com o final da II Guerra Mundial uma grande parte do mundo tornou-se comunista. Os países comunistas incluíam mais da metade da Europa, a maior parte da Ásia e um país latino-americano (Cuba). Durante os quase 40 anos que se seguiram, católicos e protestantes enfrentaram oposição e perseguição nesses países: cristãos foram presos, internados em campos de trabalhos forçados e mortos. Nos países do Ocidente, em especial nos Estados Unidos e na Europa, a proposta da democracia liberal de separação entre o Estado e as igrejas nacionais protestantes perdeu força e elas, mais uma vez, voltaram a exercer o papel de agências do governo.

 

Vidler considerou que a Igreja dessa era de revolução tende a uma volta à ação social e, contraditoriamente, à leitura interiorizada da Bíblia: fatos que se equilibram com a tendência ao fracionamento e ao surgimento de seitas. Assim, a era da revolução é a era do cisma. E Robertson agrega:

 

Os homens hoje estão divididos entre aqueles que conservaram as suas raízes e perderam o contato com a ordem da sociedade existente, e aqueles que têm observado os seus contatos sociais e perdido suas raízes espirituais. 

 

A partir da segunda metade do século vinte, o capitalismo tomou caminhos que reforçaram sua singularidade no mundo, processo esse que chamamos imperialismo. Assim, em teoria, o mundo passou a ser visto como entidade única ao longo de várias trajetórias, onde perdem força as sociedades nacionais, que foram ingredientes vitais no processo geral de formação deste capitalismo contemporâneo. Mas os processos de construção dos imperialismos geraram modificações nos componentes centrais das culturas e da compreensão do que é o ser humano. A idéia de humanidade foi relativizada, quer a partir do processo de diferenciação dos estados nacionais, quer pela forte tendência na direção à unicidade mundial. Tal situação favoreceu o surgimento do pensamento conservador protestante, que se aprofundou com a mundialização e com a crise do pensamento liberal. Para Robertson, mesmo sem negar que certos aspectos da modernidade, que ampliaram em muito o processo de mundialização, não se pode esquecer que esta deslanchou faz tempo, e que o pensamento conservador protestante norte-americano, assim como suas expressões brasileiras, não cresceram por si só. Mesmo naqueles lugares onde os traços culturais e institucionais norte-americanos não estavam presentes, mas sim os descontentamentos com as diversidades culturais da modernidade, aí os fundamentalismos protestantes ganharam força. Tal fenômeno, apesar das singularidades imperialistas, está ligado à produção da diferença, que é um ingrediente do capitalismo contemporâneo, envolvido na variedade dos mercados nacionais, culturais, étnicos, de gênero e estratificados socialmente. Ao mesmo tempo, o mercado ocorre no contexto das práticas econômicas mundializadas, onde o capitalismo tem que se acomodar à materialidade do mundo com suas contingências culturais. O capitalismo contemporâneo apresenta, então, generalizações referentes à compreensão do mundo como campo global, onde os modos culturais devem ser mapeados. Por isso, o pensamento conservador protestante, com seu viés de defesa da singularidade imperial norte-americana, se aprofundou a partir dos anos 1970. Aparentemente, esse fundamentalismo político-religioso foi o resultado de uma expressão da identidade social. Mas só dizer isso é uma leitura redutora da realidade. É importante levar em conta o problema das particularidades do cenário global e da disseminação de idéias sobre o valor desses particularismos. É preciso focalizar a necessidade das sociedades em declarar suas identidades para propósitos internos e externos. Nesse sentido, o fundamentalismo protestante seria reação e não criação. Mas é preciso também levar em conta a perspectiva de que existe um núcleo na idéia de que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral do capitalismo contemporâneo, o que contribuiu para o surgimento de interpretações concorrentes da história mundial e suas direções. Colocados juntos, estes aspectos, relativização e proliferação de orientações quanto à situação global, estimularam a emergência do discurso sobre os fundamentos da fé cristã e sua ligação umbilical com a democracia imperial norte-americana. Dessa maneira, com a expansão da presença norte-americana no mundo, que fez frente ao crescimento do mundo comunista, o Brasil colocou-se na posição de país que integra o Ocidente democrático, e a expansão dos interesses comerciais e ideológicos norte-americanos no Brasil, para além das questões de fé, levaram as igrejas protestantes a se alinharem na luta contra o comunismo. E na América Latina, com a revolução cubana, aprofundou-se a Guerra Fria. De um lado, formando parte do bloco anticomunista, estavam as igrejas protestantes e, de outro, a crescente mobilização, via sindicatos e partidos, das classes trabalhadoras e intelectuais. E os católicos caminharam no sentido contrário ao dos protestantes.

 

A infância ficou longe. Voltei ao presente, mas continuei calado. Conhecia Ricardo e sabia que podia contar com uma boa história de suspense. Ele nunca entrava direto no assunto. Dava voltas, montava um nariz de cera, e só então ia soltando as novidades. Em pílulas.

 

-- John Tuthill mandou para Washington um relatório baixando o cacete no AI-5. Li trechos. Parece que os americanos continuam achando o Golbery o máximo, mas consideram o Costa e Silva um banana. 

 

Manolo passou sério, me cumprimentou, e fez sua média:

 

-- O seu é ao ponto?

 

-- Como sempre...

 

Ricardo fingiu que não viu nem ouviu.

 

-- Golbery conta com o fracionamento da esquerda. Já o pessoal da linha dura, como os generais Muricy, Aragão, Castilho, Frota e Ramiro querem partir pras cabeças. Os americanos dizem que o temperamentalismo deles é um perigo, que foram eles que pressionaram o Costa e Silva a baixar o AI-5. Acham que esse pessoal pode fazer mais bobagens e levar a situação a ficar insustentável. 

 

-- Você acha que os americanos vão tirar o apoio que dão ao Costa e Silva?

 

-- Acho difícil dizer isso agora. Mas, parece que a assistência econômica dos EUA foi suspensa logo depois do AI-5. Soube que o governo americano congelou o programa de empréstimos bilaterais para o desenvolvimento, adiou a venda de caças A-4 Douglas para a FAB e o fornecimento de equipamentos bélicos. 

 

-- Se essa informação não foi plantada, a crise está instaurada.

 

-- Mas o relatório é cauteloso. Diz que a linha dura está num túnel e acabará saindo do outro lado, se não ficar bloqueada lá dentro. E nisso há um consenso: as passeatas estudantis, greves, manifestações, ação guerrilheira e pressões internacionais podem bloquear os militares dentro do túnel.

 

-- É, com mobilização e luta armada, a polarização vai aumentar. Os militares vão cerrar fileiras ao lado do Muricy e do seu pessoal, mas a sociedade não vai embarcar nessa. 

 

No final dos anos 60, quando a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio, a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos. Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonaram a proposta do desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e Fidel Castro. Dessa maneira, a guerrilha surgiu na Colômbia, Guatemala e Bolívia, e foi-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido revolucionário que começou a incendiar o continente, teólogos protestantes, num primeiro momento, e católicos, posteriormente, optam pela estratégia da revolução. Teologicamente, o caminho da revolução levou a uma reflexão que privilegiou a construção teológica a partir da valorização da história, da cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano com Deus.

 

A Teologia da Libertação surgiu assim como fruto de uma reflexão sobre problemas objetivos vividos na América Latina. Opressão e miséria são fenômenos documentados em todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para explicar o surgimento de uma teologia e dos movimentos de libertação que cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e entender que tal situação pode ser vencida.

 

Para além do desenvolvimentismo está uma nova postura, que se transmite depois, rapidamente, à teologia, e será toda uma nova linguagem, uma interpretação econômica, política e, logicamente, teológica da libertação.

 

A expressão teologia da libertação definiu o sentido dessa reflexão, ao considerar que a libertação é o horizonte regulador da fala sobre Deus e que o Deus do discurso é fonte da libertação. Dessa maneira, nesta construção teológica, Deus se manifesta nos diferentes momentos do processo histórico. A teologia passa, então, a ser força geradora de ações que viabilizam uma práxis, oriundas das necessidades das circunstâncias sob as quais um povo está submetido.

 

Por isso, a teologia adquire uma importância capital. Antes, nossos sacerdotes iam à Europa cursar Direito Canônico (...), depois fomos fazer sociologia, economia e política, mas agora se redescobriu que é na teologia onde se encontra a questão. Porque a teologia é a conscientização de todo o processo que se está vivendo; é na teologia que se deve começar a insistir, cada um, em todos os níveis, porque é necessário redescobrir os critérios interpretativos de nossa fé, para que, diante de situações novas, possamos também inventar soluções novas.  

 

Assim, o conceito libertação, nos anos 1960/70, surge a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina. E é a partir do quadro vivido no continente que o conceito se consolida. Libertação, então, passa a ser toda “ação que visa criar espaço para a liberdade”. Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolveu a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural determinado. Nasceu, a teologia da práxis libertadora. Ou como afirmou Assman em 1972:

 

Acabou-se o tempo do desenvolvimento e começou a era da libertação, pois que libertação é o novo nome do desenvolvimento. Partir desta situação histórica para refletir sobre a fé cristã não significa limitar o conceito de libertação ao plano econômico (embora aí esteja a prioridade). A libertação do homem no curso da história exige não só melhores condições de vida, uma mudança radical de estruturas, uma revolução social; exige algo mais: uma nova maneira de ser do homem, uma revolução cultural permanente.

 

Embora tenhamos elaborações como a da Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, de 1962, e Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves, foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a Teologia da Libertação adquiriu direito de cidadania. Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia, que os países pobres estavam submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vivia num meio social em processo revolucionário; e que a igreja latino-americana deveria buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça. Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas enquanto ação transformadora que se estende ao ser humano como totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, sociais e políticas. Se por um lado, as opressões do ser humano latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro, ela também sofreu influência de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais e procuravam na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz o próprio Metz:

 

A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos

 

Na busca de contribuições, a teologia da libertação procurou responder ao desafio de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações pobres latino-americanas. E mesmo sem saber se tinha a capacidade de contribuir na solução destas crises, deve-se reconhecer que tentou. Pessoas e grupos interessados na superação das crises, mesmo aqueles que não compartilhavam de nenhuma crença religiosa, aproximaram-se da teologia da libertação por entender que a reorganização democrática da sociedade tinha a ganhar com as contribuições que vinham dela. Mas, se havia crise do mundo, se havia crise no Brasil, de onde a teologia devia partir? Dussel, numa reflexão sobre erros e acertos do passado, ressaltou a importância do esforço de se fazer uma teologia que enfrente as crises presentes. E caminhará a partir da complexidade do mundo do pobre, conceito este que levará a dois outros: vítima e excluído. Já que para ele exclusão, do latim exclusióne, é uma categoria sócio-econômica, cultural, de gênero, de cor, conforme expõe:

 

É necessário levantar um princípio absolutamente universal que é completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever de produção e reprodução da vida de cada sujeito humano, especialmente peremptório nas vítimas desse sistema mortal, que exclui os sujeitos éticos e só inclui o aumento do valor de troca 

 

Aqui o pobre é visto como vítima e excluído: é aquele que tem negada sua eticidade à vida. Assim, se exclusão é pobreza, é, no entanto, antes de qualquer coisa, morrer no começo, fome, doença, mortalidade infantil, marginalidade. É a negação do dom da vida. E a complexidade desse mundo não pode ser esquecida por aqueles que desejam fazer teologia e apresentar ao mundo a boa nova da salvação. Afirma, também, que há um esforço para silenciar o mundo do pobre-vítima-excluído. Esse esforço se faz presente através de ideologias que visam o mercado transcendentalizado. E esse engano dos capitalismos imperiais alargaram a brecha entre participantes do mercado e excluídos, impõe o pensamento único, e objetiva calar o excluído. A economia é colocada acima da ética, a política é negada enquanto relação e é pregada a morte das ações de transformação social, a fim de calar as vozes dos não incluídos no mercado transcendentalizado. Esta realidade foi vivida pela sociedade brasileira durante o governo militar. E um teólogo anglicano assim definiu este momento vivido pela América Latina e o Brasil:

 

É a este vazio (...) que somos levados pela dominação do capitalismo de mercado. Politicamente, proclama-se que todas as funções do Estado devem ser transferidas à empresa privada. O que temos de fato são governos civis que exercem seu poder através do uso de aparatos policiais e militares, O slogan é: O Estado social escraviza, o estado policial liberta. Hinkelammert cita o chefe da polícia secreta do Chile, que, no auge da sua imposição de políticas monetaristas, disse: A segurança nacional é como a amor: nunca é demais. A metafísica do capitalismo empresarial é necessária para justificar este uso do terror do Estado contra os inimigos de livre empresa. 

 

Diante das pressões reais do estado autoritário no Brasil, a teologia se fez práxis e procurou construir um caminho da liberdade. E a expressão maior dessa tentativa de construção foram as Comunidades Eclesiais de Base. Em janeiro de 1979, D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu fazia um balanço das CEBs:

 

Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: ... esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura.

 

Logicamente, diante de um Partido dos Trabalhadores em formação, principalmente por parte dos agrupamentos socialistas, havia desconfiança ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica. Mas para o bispo e teólogo não havia razões para tal desconfiança. 

 

A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredorÉ verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor.

 

Diante disso, para os socialistas, durante anos circunscritos à clandestinidade e ao exílio, uma questão deveria ser esclarecida: o que são de fato essas comunidades católicas?

 

Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica.

 

Foi essa visão das CEBs, fruto da reflexão teológica da práxis libertadora, que levou a uma aliança de parte da catolicidade com a formação do Partido dos Trabalhadores, conforme argumentava o bispo de Nova Iguaçu:

 

Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer. (...) Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.

 

E se tal aliança é possível, está colocada a discussão das relações entre cristianismo e socialismo. E tem início uma aproximação entre católicos e socialistas que vai marcar a construção do pensamento desse novo partido.  

 

Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do socialismo são de fato cristãos.

 

Assim para o bispo, a história da catolicidade é passível de críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação potencializou o distanciamento entre o cristianismo e o socialismo. Mas, segundo Paul Tillich, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão. Assim, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base possibilitaram, no contexto brasileiro, o diálogo e a aproximação necessários ao partido em construção. E os socialistas aprenderam a entender as contradições da hierarquia e a fazer alianças com os católicos:

 

Qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história. (...) Se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar. 

 

Não somente a lutar juntos, a novidade é que começaram a pensar juntos, a pensar a catolicidade com seus acertos e desacertos. 

 

(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l931, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterrey, na sua chegada ao continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellín foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade

 

As contradições existiam, mas a questão era: será possível contar com um setor do catolicismo nesta construção de um partido de trabalhadores? Paulo J. Krischke, na época exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, respondeu à pergunta mostrando que os socialistas não podiam descartar a possibilidade de que setores da hierarquia tentassem despolitizar as bases da igreja e esvaziar o projeto das CEBS.

 

(...) na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes (...) elas se reforçam mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar a uma unidade monolítica, ou ao controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja.

 

Assim, socialistas e políticos de esquerda aprenderam a acompanhar com atenção o movimento pendular da hierarquia católica. Em análise de conjuntura no jornal Versus, escrevemos sobre a possibilidade de que a Igreja viesse a apoiar o novo partido, pois cada vez mais se distanciava da idéia de construir um partido democrata-cristão. 

 

(...) até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.

 

Dessa maneira, a teologia e sua práxis passaram a fazer parte das discussões da esquerda, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhe faltava, meios de chegar às massas empobrecidas do país. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que a massa de trabalhadores sindicalizados era católica e tinha ligações com as CEBs. Tais realidades eram indiscutíveis e possibilitaram não somente um diálogo entre católicos, uma minoria protestante, os sindicatos e as esquerdas, mas ações e mobilizações conjuntas que caminharam em direção à criação de um partido de classe. 

 

Não era necessário falar mais. Tinha chegado o momento de responder à altura. Quando Costa e Silva tomou posse muitos acreditaram que ia levar a frente uma política reformista. Mas se esses planos existiram, foram para a caixa do chapéu. O governo não tem nenhuma orientação clara e, aliado a gente incompetente, criou novos problemas. Que ninguém me ouça, mas o Golbery tem razão.

 

O movimento estudantil protesta porque o governo é incapaz de realizar uma reforma digna na Educação. Tarso Dutra é um sorvete na testa, mas ficou no cargo. O caso do Márcio Moreira Alves é outra burrada. Se Gama e Silva não fosse tão grosso e a linha dura tivesse deixado à própria Câmara resolver o problema, a situação não teria chegado aonde chegou. Mas do jeito que a coisa foi feita, os deputados não podiam votar a suspensão da imunidade do Márcio. Azar o deles. Enfim, o vento sopra a nosso favor.

 

Almoçamos com vagar. A conversa ficou descontraída e o clima conspiratório foi diluído em chopes gelados de colarinho alto. Mas nomes como Frank Carlucci, o odiado conselheiro político da embaixada americana, John Kubisch, o diretor da divisão Brasil no Departamento de Estado, e outros agentes da central de inteligência pontuaram nossa conversa.

 

Ricardo era muito inteligente, tinha o inglês como segundo idioma e se vestia com elegância. Conhecia pessoalmente muitos dos nossos inimigos. "Ossos do ofício", dizia meio a contragosto. A organização confiava nele por um simples motivo -- os companheiros cubanos também confiavam nele. Várias vezes, ele e Carlucci almoçaram juntos. Era presença obrigatória nas festas da embaixada. 

 

O estilo personalista de ditadores, de regimes e governos militares, foi chamado por Karl Marx de bonapartismo, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses imediatos de sua própria classe. Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima do Legislativo e do Judiciário.

 

O conceito, enriquecido posteriormente por dois teóricos preocupados com a tendência ao surgimento de governos fortes no século 20, Antonio Gramsci e León Trotski, passou a fazer parte da terminologia da sociologia política. Gramsci para o mesmo conceito utilizará um sinônimo, cesarismo. Trotski arriscou uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes e semicoloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.

 

Um bonapartismo não é igual a outro. Não há dois governos bonapartistas inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce o papel de juiz, de árbitro. Nesse sentido, a partir de 1964, os governos militares brasileiros foram bonapartistas. Mas o bonapartismo de Geisel, possivelmente como o de Castelo Branco, foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas equilibrou-se entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes golpeando. Por isso, nos deteremos em seu governo e estilo por considerá-lo modelo do bonapartismo militar brasileiro e por nos dar condições de analisar o processo de conjunto do período militar. Assim, entendendo o estilo de Geisel como uma conseqüência, ao menos em parte, do momento histórico em que governou, podemos traçar um perfil do “estilo político” do bonapartismo militar brasileiro, sem perder de vista algo importante: desde o início: seu governo tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem, no entanto, desestabilizar o poder burguês. O presidente Ernesto Geisel foi o primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército. Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo D´Ávila Mello, em janeiro de 1976. E mandou prender em 1978, um general – Hugo Abreu – que poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados. Estes gestos sem precedentes indicavam um estilo de governar, que tem desnorteado analistas. Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos militares sempre temeram que esses gestos pudessem colocar em risco a unidade corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país. Mas essa interpretação era uma simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro lugar, o general – dentro de sua meta de governo, desenvolvimento com segurança – sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando sua diretriz política de governo (a chamada distenção), as pressões sociais do momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de responsabilidade, as ordens presidenciais.

 

Como estamos falando de um governo bonapartista e de um estilo bonapartista, aqui diretriz política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia burguesa substituindo-as pelo princípio do chefe, que norteia a conduta no interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade civil, chega o momento em que governo e executivo, propriamente, se confundem. Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima dele, e colocá-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação como um todo. Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham falar em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os levou a esbarrar no jogo pendular entre direita e esquerda. Tinham limites estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos burgueses e dos acordos com a linha dura, o núcleo não castelista que se pretendia portador da legitimidade e intérprete da pureza revolucionáriaMas, se o bonapartismo desde os primeiros anos da ditadura “assumira o controle das chaves dos cárceres e dos cofres, os partidos políticos estavam inertes, a atividade parlamentar resumira-se ao exercício de investigação dos limites do Congresso, e os empresários faziam seus negócios no varejo enquanto seus órgãos de classe banqueteavam o regime no atacado. Concluíra-se o processo de desmobilização da sociedade brasileira. De todos as instituições de âmbito nacional e tradição política só uma não coubera inteira no acerto: a Igreja”. É bem verdade que até 1967 ela marchou ao lado do regime, mas em nenhum momento entregou sua independência aos novos donos do poder.

 

Como instituição a Igreja podia fazer muitas coisas, menos uma: dar a César sua própria desmobilização. Ao contrário do empresariado, do funcionalismo público civil e militar, dos partidos políticos e do Congresso, ela não precisava de remuneração terrena ou licença do governo para existir. Essa independência decorria de um patrimônio espiritual amarrado a conceitos de civilização que estavam sendo revogados no Brasil.

 

Mas, essa aliança com o bonapartismo não traduzia a realidade de toda a igreja católica no Brasil. Uma mudança tivera início ainda na década de 1950. A doutrina social da igreja católica, que teve como ponto de partida Leão XIII, começou a tomar corpo no Brasil nos anos 50. É dessa época a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB (1952), que teve Dom Hélder Câmara como seu primeiro secretário-geral; a reestruturação da Ação Católica, que englobava a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), sob uma ênfase espiritual e evangelizadora.

 

Mas nos anos 60, a JUC engaja-se no processo político, rebela-se contra os bispos diocesanos e alia-se a organizações de esquerda não-católicas. Betinho, Herbert José de Souza, homem preocupado com a fome e a miséria no Brasil, por exemplo, em 1962 era líder da JUC, e no correr dos anos 60 transformou-se num dos expoentes da Ação Popular, um dos partidos políticos mais ativos de toda a esquerda, oriundo da JUC e da JOC. É interessante notar que em abril de 1962, a 5Assembléia do Episcopado apoiou as reformas de base de João Goulart e, no ano seguinte, com base na encíclica Pacem in terris (1963), exigiu a participação das ‘massas populares’ no processo de desenvolvimento. Nos anos 63/64, três encíclicas eram discutidas dentro e fora da Igreja, e amplamente analisadas pela imprensa brasileira: Rerum novarum, de Leão XIII, Mater et magistra e Pacem in terris, as duas últimas de João XXIII. E foram elas que formaram a primeira base teórica da moderna esquerda cristã brasileira.

 

Desde 1961, o clero católico estava dividido em três tendências: conservadora, reformista e revolucionária. A ala conservadora era liderada pelo cardeal dom Jaime Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, por dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e por dom Eugênio Sigaud, autor de Reforma Agrária, questão de consciência. 

 

A ala reformista estava sob a direção do cardeal dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo, de dom Hélder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e depois arcebispo de Olinda e Recife, de dom José Távora, arcebispo de Aracaju, e de dom Serafim, arcebispo de Natal. Aliados aos reformistas estavam os dominicanos e uma grande parte do clero secular, que procurava uma ligação maior com as organizações de classe e os sindicatos. Junto a eles, atuava a Ação Católica, que englobava a JEC/JUC e a Juventude Operária Católica. (...) O setor revolucionário era liderado por dom Jorge Marcos, bispo de Santo André, e por vários padres, entre os quais podemos citar Francisco Lage, de Belo Horizonte, Ruas, de Manaus, Almery e Senna, do Recife, Alípio de Freitas, que junto com Julião, dirigiu as Ligas Camponesas, Aloísio Guerra, autor de A Igreja está ao lado do povo?, frei Josaphat, diretor do jornal Brasil Urgente e dom Padim, assistente da Ação Católica. (...) Em 1961, quando esteve no Brasil, frei Cardonnel, intelectual dominicano francês, lançou as bases para a organização da esquerda católica. (...) Depois de oito meses no Brasil (afirmou Cordonnel), penso que o primeiro problema, o mais urgente, é a luta contra a miséria (...). Impugnar esta luta em nome do perigo comunista representa a pior das hipocrisias. 

 

Por causa de seu pronunciamento, foi mandado de volta à França, mas sua pregação deu origem à Ação Popular. Em 1964, o golpe contra João Goulart se deu num momento em que ainda eram pequenas e frágeis as áreas da hierarquia católica sensibilizadas com as mobilizações populares. 

 

É consenso entre os historiadores que a hierarquia da Igreja desempenhou um papel fundamental na criação do clima ideológico favorável à intervenção militar, engajando-se na campanha anticomunista sustentada pelas elites conservadoras: contra a Reforma Agrária, contra os movimentos grevistas, contra as reivindicações dos sargentos, cabos e soldados das Forças Armadas, contra a aliança de cristãos e marxistas que começava a ocorrer nas entidades sindicais e estudantis. 

 

Mas, sem dúvida, esta não era uma postura monolítica da Igreja católica, pois antes do golpe militar, bispos, sacerdotes e leigos apoiaram as Reformas de Base. E logo depois, ainda em 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, num pronunciamento ambíguo, publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã, procurou definir um certo distanciamento do novo regime.

 

Não há dúvida que a ação militar deve consolidar a vitória mediante o expurgo das causas da desordem. Entretanto, o critério da correção e os métodos a serem empregados na busca e no trato dos culpados, as medidas saneadoras e as penalidades não são atribuição da força como tal, mas de outros valores, sem os quais a força não passaria de arbitrariedade, de violência e tirania. Que os acusados tenham o sagrado direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita. (...) Cumpre-nos declarar que não podemos concordar com a atitude de certos elementos que têm promovido mesquinhas hostilidades à Igreja, na pessoa de bispos, sacerdotes, militantes leigos e fiéis.

 

Mas é em 1968 que a Igreja vive o marco de sua virada contra o arbítrio, a repressão militar e as torturas. Este foi o ano das grandes mobilizações contra o regime e de feroz repressão militar. Foi o ano da decretação do Ato Institucional 5, mas ao mesmo tempo o ano em que tiveram início as primeiras experiências das Comunidades Eclesiais de Base. E, em fevereiro de 1969, através do documento Presença da Igreja, escrito por D. Jaime Câmara e aprovado pela CNBB, definitivamente a Igreja católica colocou-se na oposição ao bonapartismo.

 

A situação institucionalizada no mês de dezembro último [refere-se ao AI-5] possibilita arbitrariedades, entre as quais a violação de direitos fundamentais, como o de defesa, de legítima expressão do pensamento e de informação: ameaça à dignidade da pessoa humana, de maneira física ou moral; institui poder que, em princípio, torna muito difícil o diálogo autêntico entre governantes e governados, e poderá levar muitos a uma perigosa clandestinidade. 

 

No correr do regime bonapartista, dezenas de padres e leigos católicos atuaram na oposição, quer através de entidades das sociedades civil e religiosas, quer integrados às organizações e partidos clandestinos de esquerda. Na contra-ofensiva, o regime sentiu-se livre para prender e torturar padres e leigos católicos. 

 

Dos dois fenômenos, um era acessório e transitivo, pois nem todos os terroristas eram padres, muito menos se podia dizer que todos os padres simpatizassem com a esquerda, quanto mais com a esquerda armada. O segundo fenômeno era essencial e permanente: o regime fazia da tortura de presos um instrumento primordial de investigação e não pretendia mudar de posição.

 

Situação esta que formatou nos anos de chumbo a solidariedade militante entre os cristãos e a esquerda brasileira. Ou, como mais tarde dirá Philip Potter, ex-Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais:

 

Foi este Jesus que falou aos seus discípulos, assim como a nós: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. E aquela verdade é conhecida e praticada quando se é justo e se afirma a dignidade de cada ser humano. 

 

Podemos dizer, comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo conteúdo de classe burguês, o estilo bonapartista de Geisel não foi tão ideológico no sentido imediato do termo, já que não representou o setor militar comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente. Os gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem produto de um temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nos cinco anos de governo, e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista: acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais, militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até aquele momento. Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para uma conciliação nacional. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas. A esta estratégia, Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada pelo bonapartismo: aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais precisa antecipar-se ou enfrentar. São os shows bonapartistas montados especialmente e que permitem ao executivo manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de 64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou intensamente. Podemos citar alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a repressão ao Movimento de Convergência Socialista. Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se abria, principalmente a partir das mobilizações operárias e sindicais de 1978, esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de 1978. E nem tudo que valia para março/abril de 1978 podia, por exemplo, ser aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.

 

Assim, o bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número de problemas sociais maiores do que seus antecessores e porque conseguiu fazê-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do regime. 

 

Por ser bonapartista o regime, os militares e o governo que se sucederam a partir de 1964 formaram um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos que tentaram elaborar uma doutrina de conjunto, e para ser cumprida num longo período, para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Antes de pensar sobre a viabilidade desse projeto integrado de desenvolvimento, é importante analisar as bases sobre as quais se apoiou. A partir do material publicado pelos teóricos da Escola Superior de Guerra, conforme analisamos no jornal Versus, é possível tirar algumas conclusões: 

 

(1) Os militares consideraram que o movimento de 31 de março teve um caráter de revolução, que implicou num processo tríplice: a formação uma nova camada dirigente que teria como meta a destruição do pensamento tradicional, tanto ao nível político, como econômico. 

 

(2) Tendo em vista a crise anterior a 1964, dos anos 1961-63, e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart necessitaram do apoio dos setores tradicionais, que em termos estratégicos não mereciam nenhuma confiança, os militares passaram a se considerar reserva moral da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores tradicionais ou oligárquicos como tática, tentaram excluí-los do processo político, sempre que estes se mostravam ousados ou como fator de aglutinação do descontentamento ou da oposição. 

 

(3) É um reducionismo afirmar que o movimento de 31 de março foi a expressão da penetração do capital estrangeiro no Brasil. Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da geopolítica ocidental, ele considerou também que era possível o desenvolvimento a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que teve foi exatamente inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais de “que a dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos transnacionais”. Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da Escola Superior de Guerra-ESG, ao nível da economia, foi que a entrada de capital estrangeiro pode gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem, ou seja, um processo gradual de desenvolvimento, a partir de um certo grau de acumulação. Daí consideraram de secundária importância no processo geral da economia a questão da dívida externa. 

 

(4) Levando em conta a impossibilidade de fazer crescer a economia em todos os seus itens, a política econômica da inteligência militar procurou criar o que eles chamaram de pólos de desenvolvimento, começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a mais-valia atraíriam mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado começaram, ou continuaram, esta seria a expressão correta, a dar importância ao setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionado diretamente com o resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos são menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas surgiu de um fenômeno concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em consideração a política de construção de grandes obras, que junto à questão militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção asiático no projeto militar, que esteve mais ligado à rápida realização da mais-valia do que à intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras tiveram claro fim estratégico.

 

(5) A teoria política desenvolvida pela ESG e sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno conjuntural de repressão mostrou que os militares acreditavam estar enfrentando de fato uma revolução.

 

Mas, devido à internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível mundial, é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do capitalismo. Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de pagamentos e da dívida externa. E mesmo que se dê importância secundária a este fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos fatores de dependência e que torna impossível o desenvolvimento como meta integrada. A verdade é que o equilíbrio fracionado da situação mundial favoreceu naquele momento o projeto hegemônico brasileiro. De forma conjuntural, mas favoreceu. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964, considerou que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão segurança.

 

Esta é a lição dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida em 1978 na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o general:

 

O Brasil tem condições geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos países mais importantes, uma potência em condições de influir nas decisões de ordem mundial.

 

Nesta frase estava sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma leitura mais atenta do texto nos conduz à certeza de que o projeto de poder brasileiro incluía a construção de arsenal nuclear. A noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” estava vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder mundial sem poder nuclear era visto como ficção num mundo dominado pelo conceito de soberania. Em decorrência, o general Meira Matos e toda a inteligência militar consideraram que a busca de status de potência conduz a mudanças e a conflitos nas relações tradicionais. 

 

Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil potência despertaria receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes militares, no plano interno o preço era a supressão da liberdade, pré-condição implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do pensamento do general Meira Matos. Ele próprio disse que a segurança é o ônus que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”. 

 

Diante do bonapartismo militar, uma parte representativa do protestantismo histórico não se colocou na oposição ao regime, nem mesmo optou pela neutralidade, ao contrário, fez-se solidário.     

 

Mas conversa de jornalista sempre termina em jornal.

 

Ricardo contou da raiva que o noticiário sobre o AI-5, de 14 de dezembro de 68, no Jornal do Brasil produziu no meio militar. 

 

“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38o em Brasília. Mín.: 3o nas Laranjeiras”. Dines, espertamente, colocara no alto da primeira página do JB de 14 de dezembro de 68, o clima criado pelo AI-5. No outro extremo, chamada para uma matéria interna: Ontem foi o Dia dos Cegos. O resto era noticiário sobre o AI-5, mas tinha ainda uma foto ridícula de Costa e Silva. 

 

-- Eles babaram de ódio, quando perceberam o que o JB fez. A partir daí a censura vai checar tudo, até horóscopo. 

 

-- É, mas gosto da postura do Estadão.

 

-- É, parece que o Mesquita peitou os caras. Mas, não sei bem como foi...

 

-- O jornal foi apreendido antes do AI-5.

 

-- Antes do AI-5?

 

-- É, Costa e Silva tinha ido a Belo Horizonte para uma formatura e para inaugurar um computador, mas o pessoal da redação sabia que uma tempestade estava se formando... Estavam de olhos e ouvidos em Brasília, onde o clima era tenso. Os deputados votavam o pedido de licença para que o Marcito fosse processado, sob a acusação de ter ofendido as Forças Armadas...

 

-- Bem, até aí nada, porque todo mundo estava acompanhando a votação.

 

-- O velho Mesquita, na verdade Júlio Mesquita Filho, ao saber que a Câmara não daria a licença para que o Marcito fosse processado, redigiu um editorial para a página três: Instituições em Frangalhos. Falava do impasse e dos atos institucionais. O cenário era sombrio. 

 

-- Acertou em cheio...

 

-- Previu o tiro no peito da democracia.

 

-- É, mas não acaba aí...

 

-- O texto desceu para as oficinas e a produção do jornal seguiu seu ritmo. No começo da noite daquela quinta-feira ligaram da Polícia Federal para perguntar ao secretário de redação, Oliveiros Ferreira, quais seriam as manchetes da primeira página no dia seguinte. Ele falou, o censor não disse nada e a impressão do jornal continuou.

 

-- Na madrugada daquela sexta-feira, que por incrível era 13, o chefe da Polícia Federal em São Paulo, general da reserva Sílvio Corrêa Andrade, apareceu nas oficinas do Estado e pediu para ver o jornal. Leu o editorial e não gostou. Mandou parar a impressão e apreender os exemplares prontos. Mais de 100 mil jornais já estavam a caminho do interior de São Paulo. Foi o maior pepino... 

 

-- E isso aconteceu umas 20 horas antes de Costa e Silva assinar o AI-5. O Mesquita, então, avisou ao chefe da Polícia Federal e ao Abreu Sodré que não ia aceitar autocensura. Era problema do regime. Então, à noite, os homens chegaram para ficar... 

 

-- É isso aí, quem lamber botas hoje no futuro vai cair com eles.

 

-- Um dia esse regime vai despencar. A censura é a violência visível da ditadura. O resto a gente mal vê e não sabe. Mas a censura não. Por isso, o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e o Estadão estão fazendo história...

 

Em seu artigo “A Bíblia cativa, Cristo no céu e a igreja ausente”, de 1989, Mendonça cita o teólogo presbiteriano norte-americano Richard Shaull, ao falar da efetividade do sacerdócio universal dos crentes na oportunidade que os ativistas das Comunidades Eclesiais de Base tinham no exercício de seus dons:

 

(...) os católicos romanos revivesceram uma das maiores ênfases da Reforma Protestante do século XVI e a estão agora pondo em prática de uma maneira que os protestantes nunca foram capazes de fazê-lo.

 

Partindo da afirmação de Shaull, Mendonça explicava as causas da perda de espaço por parte das igrejas protestantes históricas para a Igreja católica e para as pentecostais como fruto de uma crise eclesiológica. Esta crise estaria decorrendo do vazio cristológico, do desajuste entre a história da salvação e o momento histórico, e da pressão ideológica oriunda do primeiro mundo e que realimentava essa defasagem histórica. E Mendonça afirmava:

 

O grande debate que se processa nas igrejas girando em torno das teses fundamentalistas contra o comunismo, (...) embora em linguagem teológica, não passa de teses ideológicas que se esforçam por desviar a atenção das igrejas das grandes massas desvalidas. A grande crise eclesiológica reside no fato de que as igrejas não estão se dando conta disso. 

 

Em nosso estudo, verificamos que a situação descrita por Mendonça remonta a processos históricos que tiveram origem nas próprias contradições do transplante do protestantismo para o Brasil. E que no correr do século XX, essas contradições se aprofundaram, consolidando tendências. Optamos, então, por analisar as raízes de uma das denominações protestantes, a batista brasileira, por acreditar que a partir dela, respeitados os diferentes modelos missionários, podemos entender melhor a opção do cristianismo protestante durante os anos do bonapartismo militar.  

 

A primeira igreja batista brasileira foi fundada em 1882 em Salvador, embora nessa época já existissem duas outras organizadas por sulistas norte-americanos, residentes na região de Santa Bárbara do D'Oeste e Americana, em São Paulo. Foram os casais de missionários norte-americanos Willian Buck Bagby e Anne Luther Bagby, e Zacharias Clay Taylor e Kate Stevens Crawford Taylor, que deram início ao movimento batista no Brasil. Iniciaram sua missão em Salvador, na Bahia. Chegaram ali no dia 31 de agosto de 1882 e no dia 15 de outubro, fundaram a primeira igreja batista brasileira com cinco membros: os dois casais de missionários norte-americanos e o ex-padre Antônio Teixeira. Essa origem, no entanto, remonta ao escravismo norte-americano, conforme analisa Elizete da Silva:

 

A denominação Batista também foi atingida pelo divisionismo ocasionado pelas atitudes frente à escravidão. Em 1845, os batistas norte-americanos separaram-se conforme o posicionamento contra a escravidão. Organizou-se a Convenção Batista do sul para abrigar as igrejas que admitiam o trabalho escravo, representando delegações de oito estados do sul escravista. Foi a Convenção Batista do Sul dos EUA que estabeleceu a denominação Batista em solo brasileiro. (...) A guerra de Secessão, na década de 1860, concretamente demonstrou a divisão vigente na sociedade e no protestantismo norte-americano. "Nos Estados Livres, a ascensão dos evangélicos de mentalidade reformista tinha dado um novo sentido de direção e de propósito moral a uma classe média ascendente tentando se adaptar a uma nova economia de mercado. O Sul com seus degredados trabalhadores cativos e seus brancos pobres e preguiçosos - parecia estar, para a maioria dos nortistas, num processo de violação flagrante da ética trabalhista protestante e do ideal da concorrência aberta". 

 

Após a derrota do sul, muitos confederados, inclusive ex-combatentes, vieram tentar a sorte no Brasil, especialmente em São Paulo. A relação entre a religião e a vida política, para os agentes da imigração norte-americana para o Brasil era olhada de forma maneira bastante estreita, já que parte deles, pastores protestantes, a exemplo do Rev. B. Dunn, via o país como uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Em seu livro Brazil, The Home for Southieners,  Dunn apresentou o país dessa maneira, o que ajudou os sulistas olharem o Brasil como uma alternativa segura. O médico M. F. Gaston, por exemplo, veterano do Exército Confederado e originário da Carolina do Sul, que escreveu Hunting a Home in Brazil, faz no livro um relato minucioso das vantagens que os sulistas encontrariam aqui. O sudeste brasileiro, com terras quase virgens, era apresentado como possibilidade para bons empreendimentos. Ele disse, após ter visitado as terras da região de Campinas, que “as vantagens para o cultivo do algodão nessa região dão-lhe primazia sobre a parte meridional dos Estados Unidos. O elemento adicional do trabalho escravo está aqui apto a trazer resultados que não podem ser assegurados pelo trabalho assalariado nos Estados Sulistas; e tão logo os negros se tenham familiarizado com o modo adequado de trabalhar o algodão, poderemos antecipar uma produção excedendo a qualquer uma que já tenha sido realizada nos Estados Unidos”. A propaganda desses agentes da imigração surtiu efeito: cerca de dois mil e quinhentos sulistas se deslocaram para São Paulo. A esperança de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava mobilizou famílias inteiras. E assim chegaram as primeiras famílias batistas à colônia de Santa Bárbara D’Oeste. Porém, nem todos os batistas aqui chegados eram favoráveis à escravidão. Na verdade, os batistas tiveram duas atitudes frente à ela: os primeiros colonos eram favoráveis e foram proprietários de escravos. Já os missionários e os batistas brasileiros em geral, após a abolição, em 1888, condenaram o escravismo como incompatível com a fé cristã. Essas diferentes atitudes demonstram as dificuldades que tinham para tratar do assunto. Em Santa Bárbara D’Oeste, primeiro núcleo batista, o trabalho escravo existiu como mão-de-obra usada na agricultura e em tarefas domésticas. Os colonos batistas eram senhores de escravos, a exemplo da senhora Ellis, dona de um sítio e que providenciara hospedagem nos primeiros meses ao casal de missionários W. Bagby, fundador da Primeira Igreja Batista do Brasil. Conforme o diário da senhora Bagby, “depois de dormir uma noite na capital paulista, os missionários tomaram o trem para Santa Bárbara, onde chegaram sob forte aguaceiro. Na estação os aguardavam os enviados da senhora Ellis, com dois cavalos e um escravo, para carregar a bagagem. A estrada até o sítio estava bem lamacenta mas ao chegar, foram carinhosamente recebidos”.

 

Conforme conta Crabtree, a Junta de Richmond, nos EUA, ao avaliar, em 1859, as possibilidades de envio de missionários para o Brasil, admitiu que havia similaridades entre os dois países e uma vantagem que deixaria os missionários norte-americanos bem aclimatados em terras brasileiras, o fato de, em ambos os países, haver escravidão: “o Brasil era como os Estados Unidos, tem escravos e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país”. E o missiólogo batista Donaldo Price confirma as razões de tal escolha:

 

Os primeiros batistas que aqui chegaram, chegaram como imigrantes, não como missionários. Chegaram depois da derrota sulista na guerra entre os estados, ou a guerra civil norte americana. E queriam vir para uma nação que ainda tivesse escravatura, assim escolheram o Brasil. 

 

Mas, se a Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos trouxe para o Brasil uma tradição conservadora, há uma outra matriz, liberal, no pensamento batista que remonta às suas origens inglesas.

 

(...) desde os primórdios do protestantismo no Brasil, seus seguidores estiveram associados a movimentos liberais, os quais favoreceram sua radicação. Há, portanto, entre o liberalismo brasileiro e o protestantismo uma afinidade de propósitos em muitos pontos. 

 

As pressões conservadoras, no entanto, tornaram-se permanentes no pensamento batista do sul dos Estados Unidos, no correr do século XIX, com a adesão à doutrina da exclusividade batista em termos de fidelidade neotestamentária, que ficou conhecida como landmarquismo. Assim, apesar de sua origem liberal e de seu passado de lutas em favor das liberdades civis, democráticas e do cidadão na Inglaterra e nas colônias norte-americanas nos séculos XVII e XVIII, as igrejas batistas do sul dos Estados Unidos, no século XIX, acabaram cedendo às pressões do landmarquismo, fundamentando o pensamento conservador dentro das igrejas ligadas à Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos. E foi a existência e permanência desse paradoxo, pensamento landmarquista, conservador e fundamentalista e pensamento democrático e liberal que possibilitou o diálogo entre a igreja batista brasileira e o bonapartismo militar. E essa convergência aconteceu a partir da postura e ações dos batistas brasileiros em relação à presença dos Estados Unidos. Pelas páginas do Jornal Batista evidencia-se que aquele país foi apresentado como um modelo político e religioso para a América Latina. A outra América era tratada como um novo Israel, com papel especial no plano de Deus para a história global, em função de sua formação protestante. A partir daí as relações entre os dois países devem ser incrementadas. Assim, o pensamento batista brasileiro, expresso em órgãos como O Jornal Batista, não traduziu apenas o liberalismo inglês do século XVII. Ao receber uma influência direta dos batistas do sul dos Estados Unidos, miscigenou-se e gerou o que chamamos de pensamento liberal-conservador. Mesquida explica esta dialética que uniu a educação protestante de origem missionária à sociedade brasileira no final do século XIX e no correr da primeira metade do século XX, a partir de quatro hipóteses: (1) do desejo das elites liberais do sudeste brasileiro de se aproximarem dos Estados Unidos e de imitarem seu modelo político, econômico e cultural; (2) do interesse norte-americano de exercer hegemonia cultural, econômica e política no Brasil; (3) do fato de que a maçonaria contribuiu para a implantação dos protestantes no Brasil; (4) devido à desestruturação da sociedade brasileira nos últimos trinta anos do século XIX, fato que ofereceu oportunidade a atores sociais internos e externos de minar a ordem econômica, política e social. Estas contradições, que construíram o pensamento liberal de viés conservador do protestantismo batista, são analisadas por Martins Segundo a pesquisadora,

 

a inter-relação entre o social e o religioso, durante os anos 70 e 80, nas igrejas batistas de Ribeirão Preto mostra que a população pesquisada percebe, de modo geral, a ausência de alterações no aspecto doutrinário (estritamente religioso), poucas e superficiais alterações adaptativas no aspecto estrutural e orgânico, e muitas decorrentes de alterações sócio-culturais observadas na membresia. (...) A percepção da secularização se evidencia pela disponibilidade entre liderança religiosa e membresia. Esta disparidade decorre da postura individualista da membresia na busca do atendimento de suas necessidades religiosas e materiais, rejeitando a ação política como forma de atendimento dessas necessidades. A liderança religiosa, por outro lado, vê no atendimento das necessidades materiais e/ou religiosas da membresia a possibilidade de ação política independentemente do momento de crise que deve ser o responsável pela rejeição sócio-política encontrada na membresia.

 

A pesquisa realizada em Ribeirão Preto oferece elementos para entender o perfil do pensamento batista brasileiro nos anos 70 e 80. Nada muda em relação à eclesiologia e à doutrina, mas no nível das relações sócio-políticas, ao mesmo tempo em que à membresia é oferecido um discurso de afastamento da ação política, os dirigentes da igreja batista mantêm um estrito vínculo com o poder bonapartista. Assim, os batistas brasileiros, a partir das contradições inerentes ao seu próprio pensamento político, de matriz liberal-conservadora, caminharam para a realização de uma aliança não explicita com o bonapartismo militar, a partir de suas relações históricas e ideais com os Estados Unidos. Mas este não foi um processo linear. Antes do golpe militar de 1964, setores da igreja batista traduziam seu liberalismo a partir de uma leitura do evangelho social, proposto por pensadores batistas norte-americanos como Rauschenbusch. Afirma Burity:

 

A despeito de serem os batistas historicamente arredios aos posicionamentos político-ideológicos, foi dentre eles que surgiu uma das mais concretas demonstrações de como os protestantes liam a realidade brasileira. Trata-se do Manifesto dos Ministros (MM), apresentado à nação brasileira e à denominação Batista em particular, em setembro de 1963, publicado no jornal denominacional, O Jornal Batista, e na revista da mocidade, Juventude Batista, assinado pela Ordem dos Ministros Batistas do Brasil (OMBB). 

 

No Manifesto publicado pelo O Jornal Batista em 14 de setembro de 1963, a Ordem dos Ministros Batistas do Brasil, entidade que congregava os pastores que serviam às igrejas da Convenção Batista Brasileira, em assembléia geral, realizada em Vitória, apresentou uma proposta que traduzia anseios diante do imperativo social vivido pela nação. É certo que tal Manifesto não refletiu o conjunto dos batistas brasileiros, pois, conforme analisa Burity,

 

para a estrutura organizacional dos batistas, rigorosamente falando, não há nenhuma fala representativa do conjunto dos membros das igrejas, pelo fato de não haver o peso de um colegiado superior, como ocorre em denominações como a Metodista, a Presbiteriana, a Luterana, etc. Teoricamente, cada congregação é autônoma e vincula-se à Convenção Batista Brasileira sem ser a ela submetida. Trata-se de uma federação de igrejas. Um pronunciamento em nome da denominação só é possível por delegação explícita de poder para tal através da Convenção, reunida em assembléia. 

 

Mas, sem dúvida, expressou sentimentos de parte de sua liderança. Por sua importância para o estudo das contradições internas do pensamento batista brasileiro diante do bonapartismo militar, consideramos importante apresentar aqui trechos do documento.

 

Reconhecemos ser um privilégio dos batistas brasileiros a infindável responsabilidade de contribuir não somente para a solução dos problemas que no momento assoberbam o nosso povo, como também para a determinação do seu destino histórico. Não o afirmamos apenas porque sejamos uma parcela apreciável desse mesmo povo, mas porque entendemos ser essa participação inerente à missão de 'sal da terra e luz do mundo', que o Senhor mesmo nos outorgou. (...) Entenderam-no assim também Guilherme Carey, o pai das missões modernas e corajoso batalhador contra o sistema das castas na Índia, Roger Williams, o pioneiro da liberdade religiosa em nosso continente, Walter Rauschenbusch, o arauto das implicações sociais do Evangelho, Martin Luther King Jr., o campeão da luta pelos direitos da minoria negra oprimida, e tantos outros batistas ilustres através dos tempos.


No Manifesto, os pastores batistas, embora dissessem reconhecer a importância e o significado das instituições, afirmavam que a legitimidade de qualquer regime, sistema ou instituição, está condicionada às possibilidades que criam para a plena realização da pessoa e de sua humanidade. Dessa maneira, se apresentaram como defensores da liberdade em todas as suas formas de expressão: liberdade de consciência, de religião, de imprensa, de associação, de locomoção, bem como da autodeterminação dos povos desde que livremente manifesta. Para eles, tais concepções de direitos e deveres da pessoa humana estavam presentes na Constituição Federal de 1946, na carta das Nações Unidas e na Declaração dos Direitos do Homem, e deveriam ser universalmente aplicados, de maneira “a banir da face da terra a exploração do homem pelo homem ou pelo Estado, em qualquer das suas formas, e os totalitarismos de toda espécie, assegurando-se a prática da verdadeira democracia”. 


Os pastores signatários do Manifesto alertaram a denominação Batista e, por extensão, à nação, para a inadequação da estrutura social, política e econômica do país e sugeriram a necessidade de um exame objetivo da realidade brasileira, com a finalidade de reestruturação da sociedade em moldes que possibilitassem o atendimento das aspirações e necessidades do povo. 


Essa necessidade ressalta da verificação (...) da irracional aplicação dos recursos públicos, que deveriam antes se destinar, mais liberalmente, aos ministérios da Saúde, Educação e Agricultura, para a solução de problemas sociais angustiantes; da sobrevivência de regimes feudais de propriedade e exploração da terra; da generalizada pobreza das populações carecentes do alimento indispensável à sobrevivência; da injustiça na distribuição das riquezas e da utilização destas para o cerceamento das liberdades essenciais; da inadequada exploração das nossas riquezas naturais, cujo aproveitamento não só deveríamos intensificar, como fazer revestir-se de significação social; do crescente empobrecimento do patrimônio nacional pela remessa para o exterior dos lucros extraordinários auferidos em nosso país; da corrupção que tem campeado nos pleitos eleitorais, na prática policial (quer preventiva, quer corretiva), na previdência social, no preenchimento de cargos públicos, na aplicação dos recursos sindicais, etc.


Condenaram, ainda, a repressão policial aos movimentos populares da cidade e do campo, que devriam antes que nada ser “carinhosamente estudados para que viessem a ser orientados construtivamente para o bem geral, através do atendimento das suas justas reivindicações”, como também aos “movimentos de greve, que se constituem em instrumento legítimo de reivindicação social e de preservação dos direitos dos trabalhadores”. E, traduzindo um anseio de parte do povo brasileiro, defenderam a realização de reformas de base, que foram assim nominadas: “a) reforma agrária, que venha atender às reivindicações do homem do campo explorado; b) reforma eleitoral, que venha liquidar as circunstâncias que possibilitam e estimulam os nossos maus costumes políticos; c) reforma administrativa, que ponha termo ao nepotismo, ao filhotismo e à ineficiência tão generalizada quanto onerosa dos serviços públicos; d) reforma da previdência social, que venha pôr em funcionamento as nossas leis sociais com o pleno reconhecimento e o efetivo atendimento dos direitos dos que trabalham”.

 

Mas as pressões contra o pensamento liberal de esquerda expresso no Manifesto dos Ministros batistas, tanto externas como internas, foram fortes e cresceram dentro da denominação os setores que faziam a leitura conservadora do liberalismo batista. E assim, os batistas foram girando à direita e lançaram uma Campanha Nacional de Evangelização que teve claros argumentos políticos para sua organização:

 

a urgência dessa hora requer uma cruzada nessas proporções. As crises na atual conjuntura nacional e mundial exigem uma mobilização total e apressada de todas nossas forças.

 

A discussão política tornou-se acalorada dentro do Jornal Batista. Os setores conservadores, alinhados com a oposição ao governo de João Goulart, ganharam espaço e expressão. Assim, discutiu-se até se Jesus foi revolucionário ou reacionário:

 

Se temos o Novo Testamento por regra de fé e prática e a Jesus como nosso exemplo, por que, como ele, não nos colocamos acima das paixões políticas? Estamos como igrejas tentando diretamente influenciar na política e isto Jesus não fez! Na suposição de estarmos sendo influenciados pelo Velho Testamento, cabe então dizer que até agora a nossa mensagem não está sendo dirigida nem ouvida pelos opressores, mas pelos oprimidos. Estamos colocando em suas bocas termos de reivindicações sociais, protestos pelas injustiças, semeando ódio e discórdias. Falamos aos crentes que se assentam nos toscos bancos de nossas igrejas, na sua quase totalidade paupérrimos e sem qualquer influência na administração pública. Isto Amós não fez; nem Paulo! Onde então a fonte de nossa inspiração revolucionária? 

 

E o jornal lançou um apelo ao povo brasileiro, afirmando que sombras se estendiam sobre a vida política brasileira e que a hora era incerta. E diante disso, perguntava “como pode Deus nos abençoar enquanto falamos de revolução sangrenta e nos preparamos para matar nosso vizinho, amigo, e colega, e até o nosso irmão se for necessário, para estabelecer a só chamada justiça social?”  E o pensamento batista foi-se atrelando à pregação feita pelos teóricos da Guerra Fria. Num artigo sobre o comunismo, Natanael Rangel, um dos mais expressivos articulistas de O Jornal Batista na época, dizia:

 

Em 1903 Lenine fundou o movimento conhecido como bolchevismo com o apoio de dezessete companheiros. No ano de 1917, o mesmo Lenine conquistou a Rússia com um partido de aproximadamente 40 mil membros. Por volta de 1959 o partido de Lenine havia conquistado um bilhão de pessoas. Em uma geração o comunismo ateu arrebanhou para a esfera sob seu controle mais de um terço da população do mundo. Há hoje no mundo cinco crianças aprendendo nas escolas pormenores sobre o comunismo ateu, para cada criança recebendo quaisquer ensinamentos, seja onde for, a respeito de Cristo. Tais fatos são atemorizantes, mas inelutavelmente verdadeiros, é o que revela o Dr. Fred Schwarz em “Você pode confiar nos comunistas”, livro que a crítica vem consagrando como um dos mais completos e mais perfeitos sobre o comunismo. Para o Dr. Schwarz, batista de convicção, o comunismo não é apenas um sistema político e um sistema econômico mas também uma filosofia de vida que se opõe a todo e qualquer sistema religioso. Vale a pena ler “Você pode confiar nos comunistas”, à venda na Casa Publicadora Batista por apenas Cr$330,00. 

 

E aqueles que defendiam o Evangelho social, principalmente os estudantes universitários, passaram a ser tachados de comunistas. 

 

Dou logo nome aos bois. Trata-se dos agentes internos e externos da União Cristã de Estudantes do Brasil, particularmente de suas células acadêmicas – as associações cristãs acadêmicas. Aquilo que em 1927 era uma União de Estudantes para o trabalho de Cristo, hoje não passa de mais um órgão bem disfarçado do Comunismo Internacional. (...) Aí começa o chavão comunista. Condena-se a manutenção do estado atual e mobiliza-se a juventude para a luta contra a exploração e a miséria. Ninguém poderá ser neutro e ficar do lado da democracia e da livre iniciativa. A mocidade deve levantar-se contra os esquemas estruturais importados, isto é: contra os Estados Unidos da América do Norte. O que se pretende é retirar os jovens de nossas igrejas locais, para lança-los nas mãos dos agitadores comunistas. E a isto se dá o nome de ´testemunho cristão´. Uma obra perniciosa. Lobo sob manto de ovelha. Já é tempo de desmascarar o embuste comunista da UCEB

 

Mas da mesma maneira que inimigos externos foram atacados, inimigos internos eram descobertos e denunciados. O que obrigou até mesmo à Comissão de Ação Social da Convenção Batista ter de explicar que não apoiava a revolução. Na reunião de seu quorum local, realizada a 14 de dezembro de 1963, tomou a Comissão de Ação Social da Convenção Batista Brasileira conhecimento das considerações feitas pelo pastor Delcyr de Souza Lima em artigo intitulado “Rabo de Foguete” (O Jornal Batista, 14.12.1963):

 

Como bem se poderá verificar pelo texto gravado (e que será proximamente impresso), nunca falou o pastor Dr. Lauro Bretones de evangelho importado, ou usou qualquer expressão que honestamente pudesse justificar a idéia de que se pretende atrelar a Igreja à Revolução. (...) pela sua grosseria e pelo seu absurdo deixamos de comentar, embora a repilamos com veemência, a insinuação de que atuamos no seio da Denominação com o mesmo espírito, métodos e propósitos dos agitadores comunistas. Confiamos na nobreza e na inteligência de nossos irmãos. E prosseguimos, olhos postos na gloriosa visão do Reino de deus! Pela Comissão de ação Social, Hélcio da Silva Lessa, relator.

 

Veio o golpe e os batistas brasileiros construíram um profícuo relacionamento com o bonapartismo militar. E o Manifesto dos Ministros batistas passou a ser visto como demonstração de não ortodoxia, pois se articulara com o pensamento liberal de esquerda. Uma demonstração de como o texto foi percebido pela corrente crescentemente hegemônica entre os batistas brasileiros foi o editorial de O Jornal Batista do dia cinco, assim como o do dia 12 de abril de 1964, em que o presidente da Ordem dos Ministros batistas, José dos Reis Pereira, procura desmontar a argumentação do Manifesto, ele que tinha sido um de seus signatários.

 

Segundo o reverendo Jaime Wright tal postura de alinhamento com os militares tinha uma lógica, a de que os evangélicos, de um modo geral, sempre aspiraram a uma rápida ascensão econômica e social. E com o golpe militar deram-se as condições para esta ascensão social. E, por isso, em 1964, os evangélicos foram os primeiros a apoiar o golpe. 

 

No centro de São Paulo, vi constrangido do meu escritório um grupo de estudantes do Mackenzie saindo às ruas no dia dois de abril dando vivas à revolução. 


Em todos os setores da repressão que visitei sempre encontrei evangélicos (...). O chefe do SNI (extinto Serviço Nacional de Informações) em São Paulo era um presbítero. O chefe do CIE (Centro de Informações, hoje Centro de Inteligência do Exército) era um presbiteriano. (...) Certa vez, o diretor do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), em São Paulo, me disse que a repressão não estava preocupada com protestantes de modo geral, mas com os católicos. ´Os protestantes trazem seus probleminhas e ficamos sabendo de tudo´, disse-me o diretor.  

 

Azevedo afirma que a celebração do indivíduo, no pensamento protestante em geral e do protestantismo batista em particular, é uma resposta moderna ao problema do lugar do ser humano na sociedade. 

 

No entanto, esta resposta convive com valores pré-modernos. Entre os batistas, a autonomia (rejeição a qualquer axiologia de origem exterior e transcendente) convive com a teonomia e mesmo com a eclesiologia. 

 

Esses valores facilitaram o alinhamento da igreja batista brasileira ao pensamento bonapartista militar. Tal alinhamento consolidou-se a partir de duas matrizes presentes na formação dos batistas brasileiros: uma de origem liberal e outra conservadora, a ideologia salvacionista, expressão teológica do landmarquismo, que se fortaleceu diante das pressões do imperialismo e da Guerra Fria. Tal realidade levou parte expressiva dos pastores batistas e por extensão da denominação a reafirmarem esses conteúdos conservadores e optarem por uma práxis solidária com o regime bonapartista. Esse posicionamento foi reforçado por contradições internas da denominação, não resolvidas nas décadas anteriores, que são as do permanente choque entre a ideologia salvacionista e a teologia do evangelho social. 

 

Apesar da aparente neutralidade e omissão diante da repressão, torturas e arbitrariedades do regime, seria um erro uniformizar a atuação de batistas e protestantes. Sem negar o apoio dado ao regime militar bonapartista, é necessário ver que tal fenômeno não era monolítico e isento de contradições. Ou como explica Freston:

 

O protestantismo como baluarte da ditadura. Nessa fase, a sociologia do protestantismo é dominada por brasileiros de origem protestante, mas rompidos com suas igrejas. Escrevendo durante o regime militar, sua produção salientava a alienação protestante. (...) Enquanto a Igreja Católica no Brasil se transformou em defensora da democracia, as igrejas protestantes passaram a ser vistas como baluartes do regime. No título de uma obra do período, a associação já não era protestantismo e democracia, mas Protestantismo e Repressão.

 

Dessa maneira, como afirmou Mendonça, os católicos durante o governo militar, não sem contradições internas, reviveram uma das ênfases da Reforma Protestante do século XVI, o sacerdócio universal dos crentes através da ação militante e evangelizadora das Comunidades Eclesiais de Base, opondo-se ao autoritarismo do regime militar bonapartista. Em contrapartida, os protestantes históricos, com exceções, conforme nota Freston, perderam-se na heteronomia, o que os levou à perda de espaço diante da Igreja católica e das igrejas pentecostais. Esta crise foi vivida pela igreja batista brasileira. Mas, depois de 1985, com a queda do regime militar, as igrejas históricas, e a Batista em particular, procuraram posicionar-se diante da democratização do país. 

 

“O trabalho de nossas igrejas e de nossa denominação precisa de frequente avaliação, a fim de evitar a esterilidade do tradicionalismo. Isso especialmente se torna necessário na área de métodos, mas também se aplica aos princípios e práticas históricas em sua relação à contemporânea”. 

 

Dessa maneira, nessa era de revolução e transformações sociais, a Igreja católica construiu uma doutrina social que partiu do princípio da vida. Seu critério de justiça de qualquer política passou a ser, então, o grau de defesa que ela faz da vida humana, se favorece a dignidade e respeita os direitos humanos. Este princípio norteia o catolicismo social com respeito à guerra, à paz e à vida social. Outro princípio é o da solidariedade, visto como normativo da possibilidade de um mundo novo, já que é expressão moral de interdependência, não importa quais sejam as diferenças de raça, nacionalidade, ou poder econômico. E um terceiro é o da opção preferencial pelos pobres, no sentido de que os excluídos têm o primeiro direito de reivindicação perante as práticas humanas. 

 

À essa leitura do catolicismo social juntou-se o Evangelho social dos protestantes europeus e norte-americanos, a partir da leitura bíblica da responsabilidade social e do socialismo utópico. A ação combinada, mas desigual em ações e tempos, dessas duas visões levaram ao cristianismo social, que se expressou enquanto Teologia da Libertação na América Latina e, no Brasil, também através de movimentos organizados pela base, que vieram a influenciar o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. É importante ressaltar que os protestantes históricos no correr do regime militar, com exceções, perderam-se na heteronomia, mas que, depois de 1985, essas igrejas, e a Batista em particular, posicionaram-se diante da democratização do país, levantando o princípio protestante da autonomia e o princípio democrático da liberdade política, afirmando que as igrejas têm que aceitar a responsabilidade da autocrítica, pois é prejudicial negar às pessoas o direito de discordar, ou considerar que os métodos das igrejas são perfeitos.

 

Assim, a teologia e sua ação fizeram parte das discussões da esquerda brasileira, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhes faltava, meios de chegar às massas. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que os trabalhadores sindicalizados eram católicos e tinham ligações com as CEBs. Tais realidades possibilitaram um diálogo entre católicos, setores protestantes, os sindicatos e as esquerdas, mas também ações e mobilizações conjuntas que levaram na direção da criação de um partido de classe. 

 

Rua Santa Clara. Posto 4. O sol está de derreter asfalto. Dá para fritar ovos na Atlântica. Walter joga peteca com os amigos. Lolita, de maiô cavado nas costas, lembra Nabukov, ao menos na minha cabeça de menino.

 

-- Luís, passa Dagelle nas minhas costas.

 

Obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.

 

Marcus e Júlio, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.

 

Maria fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem.

 

E a turma, uma gang atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha pequena, Jussara, cujo pai trabalha na Souza Cruz, ela me deu de presente um pacote do recém-lançado Minister, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.

 

Jussara tem 14 anos, faz balé e mora na Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:

 

-- Você não é digno de sair pela porta.

 

Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho, mas sábio:

 

-- Nunca viva de tal maneira, que possam dizer para você: “Puxa Luís, nunca imaginei que você fizesse isso”.

 

Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo.

 

Jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. A gang, de calções abaixados, brinca de boto furando as ondas...

 

Morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. A vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles ali na N. S. de Copacabana.  

 

Os anos 60 começam a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopram. Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo. 

 

Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos gosto.

 

Alguns anos depois da morte do Amynthas, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde.

 

Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia. 

 

-- No que você está pensando? Está tão calado.

 

-- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.

 

-- Bobo!

 

-- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá.

 

-- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem...

 

-- É, mais o teu eu posso levar comigo.

 

-- Só se eu deixar...

 

-- E você deixa?

 

-- Depende...

 

-- De que?

 

-- Ué, para onde?...

 

-- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...

 

-- Puxa, então eu deixo.

 


 

 

Capítulo 4

 

 

Serginho e Maria Cristina estavam sorridentes como sempre. Moravam em Santiago, numa casa grande, de dois andares, com jardim, lareira e muito conforto. Para nós que chegávamos, era uma mansão. Mas em dois dias, eu e Yasmin descobrimos que ter uma casa confortável, em Santiago, não era nenhuma coisa do outro mundo. 

 

Serginho e Maria Cristina eram exilados especiais. Nossos amigos no Rio de Janeiro, trabalhamos juntos no jornal O Sol e na TV Continental. Aliás, na TV Continental chegamos a fazer um programa louquíssimo, Blow Up, que deu muito trabalho para a censura. Serginho, fotógrafo, tinha descoberto o trotsquismo com Mário Pedrosa, um intelectual que marcou nossas vidas naqueles anos chilenos. 

 

Logo na nossa primeira noite, fomos apresentados à comissão de frente do trotsquismo emergente: João, Jaime e Túlio. Não foi uma noite agradável. Jaime, com a grossura posadista que lhe era peculiar, perguntou se eu era stalinista. Logicamente ouviu um sim, acompanhado de uma retumbante declaração de que todos os que faziam autocrítica da luta armada não passavam de uns desbundados. Foi o que bastou. Tivemos uma violenta discussão, devidamente aplacada por nossos anfitriões.

 

Serginho, um gentleman, entregou-me, quando já ia para o quarto, um exemplar da Revolução Traída, de Trotski. Mas, antes de dormir, como se não bastasse, ainda briguei com Yasmin, que concordou com a exposição de Jaime sobre o trágico papel de Stálin na União Soviética. Dormi com ciúmes, com o ego massacrado, achando que saíra de um inferno para cair em outro.

 

Lílian é minha grande amiga chilena. É uma graça, una chilenita de cabelos negros, olhos negros e quase gordinha. Uma doçura de pessoa. Morre de rir de minhas gafes com o espanhol e com sua pronúncia.

 

A anedota que mais gosta e que conta para todo mundo, é da confusão que fiz entre duas palavras cuello e culo. Eu tinha que comprar uma coleira para o meu cachorro, o Putz, e fui a uma loja de ferragens. Uma moça muito simpática me atendeu e eu nem pensei duas vezes:

 

-- Señorita, necesito un collar para el culo de mi perro.

 

A moça me olhou horrorizada e foi chamar um homem, que já veio me olhando feio.

 

-- O que o senhor quer mesmo?

 

E de novo, muito sério, reafirmei meu pedido:

 

-- Un collar para el culo de mi perro.

 

O homem não sabia se pulava no meu pescoço ou se caía na gargalhada, mas corrigiu:

 

-- No es culo de mi perro, es cuello de mi perro.

 

E foi buscar a coleira para o Putz.

 

Demorou alguns segundos para cair a ficha. Só então entendi que culo não é uma palavra elegante. Pedi desculpas. Contei para os amigos e comecei, então, a estudar espanhol seriamente.

 

Lílian é muito amiga de Yasmin. E nos tem ajudado nas coisas do dia-a-dia nesta cidade grande e desconhecida. Nos ajudou a encontrar uma casinha linda, aqui na Villa Santa Carolina. As casas da Villa são todas pré-fabricadas, com as paredes internas de aglomerado. São à prova de terremoto. Se o tremor for muito forte, o telhado escorre para fora, não desabando sobre os moradores.

 

A casa tem um jardim, quintal enorme, três quartos, sala ampla, cozinha e banheiro. Eu e Yasmin amamos. Decoramos com móveis rústicos, bem à maneira chilena, colocamos rede na sala, compramos uma linda casa de cachorro para o Putz e num dos quartos fizemos nosso escritório e adega. Logicamente, nossos vinhos são comprados aqui mesmo na vinícola Santa Carolina. É o maior charme.

 

Eu e Yasmin estamos estudando na Universidade do Chile. Estamos revalidando o curso de jornalismo que fizemos no Brasil. Eu fiz PUC e ela Federal. Eu fui desligado da universidade e ela cortada pelo 477, uma famigerada lei que impede ativistas políticos de estudarem. E nisso tudo, Lílian, que é do Partido Socialista, vive nos dando uma força.

 

Não estamos longe da Universidade, do Pedagógico, onde estudamos. Dá até para ir a pé, mas normalmente tomamos um micro-ônibus, uma liebre, como os chilenos dizem.

 

Nós três, eu, Yasmin e Lílian, às vezes, no final das aulas, vamos para um bar em frente à universidade e ficamos conversando. Nós brasileiros somos, comparados com os chilenos, muito agitados. Lílian me parece calma, reflexiva e muito alegre. Está sempre rindo. Não tem as angústias e problemas existenciais que caracterizam os exilados brasileiros.

 

-- Você está errado, Luís. Não somos nem tão pacíficos, nem tão alienados...

 

-- Duvido, acho que aqui não tem nem suicídio.

 

-- Errou. Os suicídios se dão no inverno. As famílias pobres não têm como comprar carvão para a estufa. E diante da fome, do frio e do desemprego, muitos pais de família matam toda a família e se suicidam. Às vezes, são encontrados congelados dentro de casa.

 

Yasmin faz uma careta. Ela sempre faz uma careta quando ouve algo chocante. E pergunta:

 

-- E a Unidade Popular, o que está fazendo?

 

-- Nós estamos organizando as pessoas nas poblaciones, que são os bairros pobres da periferia. Através da organização e do cadastramento das famílias, sabemos quem está desempregado, qual é sua capacitação e como e onde podemos empregá-los. Temos também um programa de leite gratuito para as crianças e cestas básicas para os desempregados. Mas isso não resolve o problema... 

 

-- É verdade, a meta tem que ser o pleno emprego, mas não acredito que vocês consigam isso tão facilmente, completa Yasmin.

 

-- Outro problema é que existe fuga de capital. Os empresários têm medo de Allende, do socialismo, e por isso muitos fecham suas fábricas e vão embora.

 

-- Hoje temos, por causa disso, um monte de fábricas que está sendo administrada pelos próprios trabalhadores. E na sua grande maioria a produção aumentou...

 

-- É, mas por quanto tempo? É possível um capitalismo sem empresários? Tenho minhas dúvidas sobre o modelo chileno...

 

-- Calma Luís. Estamos começando. O governo da Unidade Popular é um governo de transição, queremos o socialismo, esse é nosso objetivo, mas faremos tudo para evitar uma guerra civil.

 

Yasmin dá a sua famosa risadinha. Sarcasmo puro. Ela é socialista, já está no Partido Socialista, mas discorda da ala reformista. Yasmin é a nossa Rosa Luxemburgo.

 

-- A insurreição operária é o caminho. Essa história de transição pacífica leva à derrota. Mas o partido sem dúvida é o Socialista. É um partido de massas e não é burocrático. Ele tem tudo para dirigir a insurreição dos trabalhadores chilenos.

 

Como não concordo com Yasmin nessa questão de partido – estou ligado ao Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR --, chegou a hora de ser sarcástico:

 

-- Mira compañera, com estos huevones nadie va a lugar ningún...  

 

Pronto, armei a barraca. De uma tacada só agredi minhas duas amigas. Elas ficam uma fera, me chamam de mirista irresponsável, bombero loco, e pedem a conta.

 

Yasmin já me conhece bem e Lílian está descobrindo a fera. As duas, de repente, pulam em cima de mim, agarram minha barba, puxam meus cabelos e gritam para todo o bar ouvir:

 

-- Loco, loco, bombero loco...

 

E caem na gargalhada. 

 

Coitada da Yasmin. Este primeiro ano de Chile está sendo terrível. Mas ela guerreia por seus sonhos como uma Joana D'Arc. Temos tudo para viver dignamente. A casa é bonita e charmosa, estamos construindo um agradável círculo de amizades e o dinheiro que trouxemos do Brasil dá para viver alguns anos. Além do mais, nunca vimos tanta liberdade em nossas vidas. Podemos ser felizes.

 

Mas eu estou enlouquecendo. É um processo de violência que iniciou lentamente, no início da juventude, quando comecei a praticar karatê. Tive grandes mestres, como o Lírton, mas  o maior deles, sétimo dan, foi um ex-treinador da seleção japonesa. Depois de um ano de treinamentos intensivos, eu era uma máquina programada para espancar quem quer que fosse. Mas agora, em Santiago, sinto-me acuado, numa sociedade que nós exilados da luta armada desprezamos por considerar pacífica.

 

Como liberar essa vontade de violência, esse desejo de fazer justiça em nome do proletariado? Saída não há. Quem sabe a solução é o suicídio? Yasmin, às vezes, tem que me carregar, bêbado de cair, até em casa. Numa dessas, quase morri de coma alcoólica. Ela cuidou de mim chorando. Outras vezes, sai de casa sem saber se ao voltar vai me encontrar pendurado pelo pescoço numa gravata, amarrado no cano do chuveiro, à moda Santos Dumont.

 

Violência? Você sabe o que é violência?

 

Um dia saí de casa e estava atravessando calmamente uma rua quase deserta da Villa Santa Carolina. Eram umas três da tarde. Sol a pino e muita poeira. De repente, uma bicicleta que não sei de onde saiu, me atropelou pelas costas. Caindo, saltei no ar, me virei, dei um urro de guerra e pulei sobre o rapaz. Disparei uma seqüência de golpes sobre seu rosto. Sangrando, espumando, sujo de terra, atordoado, enquanto eu o esmurrava, ele tentava dizer alguma coisa. Até que uma frase, simplesmente desesperada, saiu de seus lábios em meio a golfadas de sangue.

 

-- Estou tendo um ataque epiléptico.

 

Fui atravessado por uma dor profunda. Tão grande, tão grande, como se estivesse participando do assassinato de alguém muito querido. Coloquei o rapaz no colo, arrastei-o até o meio fio e amparei sua cabeça. Ele não falava. Seus olhos estavam esgazeados, distantes, seu rosto muito pálido, os lábios cortados, começavam a inchar. E a camisa branca coberta de sangue. Fiquei ali até ele se recuperar. Depois, saí tonto, andando pela rua com um vazio enorme no peito, e uma vontade de pedir socorro, de chorar. 

 

Essa mesma noite, depois de conversar longamente com Yasmin, visitei meus amigos João e Dulce. Eles estavam a mais tempo em Santiago e poderiam me sugerir algum psiquiatra. E lá fui eu falar com Hugo Alexandre, um mago da psiquiatria chilena que cuidava dos atormentados da colônia brasileira. Hugo Alexandre era um personagem. Dava plantão no hospital psiquiátrico da cidade, usando uma longa capa, negra por fora e vermelha por dentro, que lembrava as capas dos estudantes da Universidade de Coimbra.

 

Às vezes, no saguão do hospital, rodopiava como Batman, a capa flanava, e ele saia correndo. Tratava os loucos com carinho. Certa vez, vi chegar um sujeito furioso, aos berros, amarrado em camisa de força. Hugo Alexandre mandou que o soltassem e, com medo, os enfermeiros obedeceram. Hugo abriu as asas, ou melhor, os braços e a capa e envolveu o homem num abraço negro. O sujeito ficou mansinho. Tinha encontrado alguém mais louco que ele. 

 

Não, Hugo Alexandre não mandou me internar. Mas me encheu de drogas. Um mogadon antes de dormir, e um valium dez depois de cada refeição. Efeito que era bom, não fazia nenhum. Parecia que eu me recarregava em fios de alta tensão. Algumas noites vagava pelas ruas, ia para o último andar de um dos prédios das torres de San Borja, as mais altas de Santiago, e corria pela mureta. Lá embaixo, o breu da noite. Por que será que eu não tinha medo de nada?

 


O cambalear do prazer e da culpa

 

 

Diante da violência, eu me pergunto: até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. 

 

Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a consequente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha).

 

Assim, prazer, do latim placeretraduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura.

 

Daí que para pensar o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente.

 

Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978,  Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa  

 

Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se poeta e não profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz.

 

Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora.

 

Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa. Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. (...) Deus é o grande problema e a grande plateia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”. 

 

Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 

 

Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha. 

 

Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 

 

Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 

 

A religiosidade dita primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.

 

Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de sublime e trágico.

 

E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. Não separo, para mim elas são a mesma coisa. (...) a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser.   


Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce. Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas. 

 
E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. 

  

Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo.  

 

Voltando a Bataille, a transgressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo. 

 

E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado.

 

Papai tosse, dando aviso de si, vem examinar as tramelas, uma a uma. A cumeeira da casa é de peroba do campo, posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção e fujo atrás dos homens, me contendo por usura, fazendo render o bom. Se me tocar, desencadeio as chusmas, os peixinhos cardumes. Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes: dorme logo, que é tarde. 

 

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los. Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama.

 

Sim, mamãe, já vou: passear na praça sem ninguém me ralhar. Adeus, que me cuido, vou campear nos becos, moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim. Quando esta nossa cidade ressonar em neblina, os moços marianos vão me esperar na matriz. O céu é aqui, mamãe. Que bom não ser livro inspirado o catecismo da doutrina cristã, posso adiar meus escrúpulos e cavalgar no torpor/dos monsenhores podados. Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho das flores murchas no chão. 

 

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. É o pecado de que fala Baudelaire. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado, mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 

 

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama

 

As fábricas têm os seus pátios, os muros têm seu atrás. No quartel são gentis comigo. Não quero chá, minha mãe, quero a mão do frei Crisóstomo me ungindo com óleo santo. Da vida quero a paixão. E quero escravos, sou lassa. Com amor de zanga e momo quero minha cama de catre, o santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador. Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.

 

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana. 

 

O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.

 

Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio. Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso:

 

Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bemEu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa.

 

Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade extrema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.

 

A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- felix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 

 

Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização. Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.

 

Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante: Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã. 

 

E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que a religião dá sentido à vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções. 

 

Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.

 

O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que vai além do cristianismo, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 

 

Assim, no plano do prazer, temos a linguagem do prazer, que é  negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a palavra é a negação do que define o humano por oposição ao animal.

 

E Adélia Prado, majestosamente, nos mostra isso em seu poema Objeto de Amor.

 

De tal ordem é e tão precioso o que devo dizer-lhes que não posso guardá-lo sem que me oprima a sensação de um roubo: cu é lindo! Fazei o que puderdes com esta dádiva. Quanto a mim dou graças pelo que agora sei e, mais que perdoo, eu amo.

 

E quando entrevistada pelo jornalista Pedro Bial, em programa televisivo, no dia 27 de dezembro de 1998, ao ouvir a pergunta tantas vezes repetida... como uma senhora mineira, católica e mãe de família, podia usar expressão tão grosseira, Adélia Prado justificou o uso da expressão mal-dita afirmando que a palavra traduzia a sacralização do corpo, templo de Deus, em sua imagem e semelhança.

 

 

 


 

 

Capítulo 5

 

 

São Paulo, Vila Santa Isabel. É noite de sexta-feira. Noite de festa em bairro da periferia. Bailes de São João em cada esquina. Uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraça a Bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora:

 

-- Senhor, eu não sei do Luís. Não sei porque largou a Manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. Ah! Senhor, ouve esta mãe. Acalma o coração dele, dê-lhe paz. Ajuda ele, Pai adorado. Eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. Ajuda também a Yasmin. É uma moça tão boa. Não permita que Luís a faça sofrer.

 

A oração de Maria me remete ao artigo Figuras do Marxismo Weberiano, de Michael Lowy, que apresenta pontos de intersecção entre o pensamento de Marx e Weber, procurando mostrar a existência de um produtivo marxismo weberiano. De minha parte, farei contrapontos a algumas formulações de Lowy, com a finalidade de manter um diálogo entre o pensamento weberiano visto como imbricado ao pensamento marxiano e a análise de Dussel

 

De todas as maneira, não podemos esquecer, como afirmam Filoramo e Prandi, que os estudos socio-religiosos de Weber (1864-1920) formam uma parte considerável dentro de sua vasta produção e se distingue pela originalidade da impostação, comparados com o latente funcionalismo que caracteriza a tradição sociológica nesse setor. De fato, é preciso sublinhar, antes de tudo, que Weber não aceita a equação marxista de religião enquanto alienação ou o esquema, de igual matriz, do reflexo, nem se coloca o problema dos funcionalistas sobre o eventual papel de coágulo ideológico, desempenhado pela religião nas sociedades antigas e modernas. Isso não impede que o estudioso alemão pense na religião como um fato cultural de natureza não transcendente, produto histórico:

 

A ação religiosamente ou magicamente orientada – escreve ele em Economia e sociedade – tira a sua original consistência de um processo mundano. As ações que se apresentam como religiosas ou mágicas precisam ser realizadas a fim de que tudo corra bem e possas viver longamente sobre a terra”. 

 

Maria não vê, mas alguns anjos acompanham com atenção e reverência aquela oração de fé. Ela está conversando com o Deus Criador dela e deles. Suas asas, enormes, estão abertas. O ambiente brilha com intensidade. Ah! Se ela pudesse ver. Se pudesse... De memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o Salmo 91...

 

-- Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, a sombra do Onipotente, descansará...

 

De olhos cerrados, coloca a Bíblia sobre a cama, junta as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta de Deus. E completa a oração.

 

--...porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. Saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação.

 

Em 1975, Lowy escrevia. “Segundo Weber, os conceitos das ciências sociais não devem ser ‘gládios para atacar adversários’ mas somente ‘relhas de arado para surribar o imenso campo do pensamento contemplativo’, porque ‘cada vez que um homem de ciência faz intervir seu próprio julgamento de valor, não há mais compreensão integral dos fatos”. É verdade que, em certos escritos metodológicos, Weber reconhece que os valores do observador, nas ciências sociais, desempenham um papel destacado na seleção do objeto da pesquisa científica, na determinação da problemática das questões a serem postas. Mas ele assinala que as respostas fornecidas, a pesquisa mesma, o trabalho empírico do cientista, devem estar livres de qualquer valoração, e seus resultados aceitos por todos. Como se a escolha das questões não determinasse, em larga medida, as respostas mesmas! Lucien Goldmann assinala, com muita razão, o caráter contraditório da posição de Weber que se situa a meio do caminho entre o desconhecimento do determinismo social do pensamento sociológico nos positivistas e sua aceitação integral pelos marxistas”. 

 

Ora, exageros à parte, não se trata de demonizar Weber, mas, como o próprio Lowy assinalava, discutir o alcance de suas sociologias especiais e, para nós, a importância de sua sociologia da religião enquanto instrumental metodológico para as ciências das religiões.

 

As lágrimas escorrem por seu rosto. Rosto de mãe que recorda o filho ainda pequeno orando com ela o Pai Nosso. Sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. Lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado Golias. E o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu.

 

Era um apartamento gostoso aquele de Santa Teresa, no Rio. Ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. Era apaixonada pelo marido. Pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. Amynthas morreu de complicação cardíaca. Foi tudo muito rápido. Perderam o apartamento. Tiveram que ir para Perdões. Ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. Foram para a fazenda do tio Ari. Ela ficou lá uns meses e voltou para o Rio. Tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças.

 

E aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto Davi. Foi massacrada pelas circunstâncias. Empobrecida, moravam num quarto alugado na rua Paissandu, ali no Flamengo. O menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. O dia todo na praia. O Luís trabalhava e estudava. Lia os testamentos, tinha amigos cristãos. O Eterno, sem dúvida, haveria de ajudá-lo.

 

Mas a vida era muito dura. Recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela Aliança para o Progresso. Num momento de desespero, cortou os pulsos. E em plena crise, foi internada em um hospital psiquiátrico em Jacarepaguá. 

 

De pé, Maria coloca os testamentos sobre a mesa. E continua a lembrar-se das visitas que o Luís lhe fazia aos domingos. Ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. Ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. Mas ela sabia que um jovem não resolve muito bem certos problemas.

 

Meses depois, recebeu alta. Casou-se com um professor de São Paulo, dono de uma escola no bairro do Carrão. Mudou-se para a casa dele. Casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. Levou o rapaz Alex. Luís afastou-se dela, da família, de todos.

 

Passaram-se anos. Será que ele me odeia? Será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? Pela fome? A esta mãe só restava a oração. E como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo. 

 

Se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. Era um quartel-general do Eterno no quarteirão. Mas ela sabia que não estava sozinha. No mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo Luís. As tias Lucy e Alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele.

 

Mas o que tem isso a ver com as abordagens de Marx acerca do conhecimento e do capitalismo? Tem muito porque com a derrocada do comunismo nos países do Leste, o pensamento marxiano se viu diante do dilema de decretar, ele próprio, a falência de sua metodologia e visão de mundo ou, a partir de um diálogo transdisciplinar, rever conceitos e formulações visando sobrevivência e superação. Nesse sentido, Weber fornece elementos imprescindíveis para esse diálogo. 

 

E como constatei ao voltar do meu segundo exílio, não podemos passar batido pela riqueza policrômica da Segunda Internacional, que faz parte da própria tradição marxista. Em 1978, escrevi que o marxismo ou é pluralista ou morre. E citei alguns exemplo da época: “Willy Brandt considera Rosa Luxemburgo – felizmente ela está morta – sua mestra. Allende costumava citar Kautsky – é famoso o seu debate com o MIR em Concepción. Olof Palme e Carlos Altamirano – principalmente o segundo – consideram que Lênin fez grandes aportes à teoria marxista. Agora mesmo, na Itália, se dá uma luta teórica entre Berlinger – o comunista – e Bettino Craxi sobre a questão do pluralismo ideológico. Numa sociedade democrática e num partido socialista estes são temas abertos, teóricos e, nesse sentido, de discussão. Mas em nosso país a teoria e a ideologia são casos de polícia”. 

 

E por que Weber não aparece nesta discussão. Por que não é citado, nem levado em conta? Por vários motivos. Weber vê o capitalismo com a racionalidade dos engenheiros que utilizam relógios de ponto na análise da produção industrial. Apesar da afirmação de que para o calvinista a produção capitalista é uma “gaiola de ferro”, Weber, vê o capitalismo como espírito novo, racional, legal, razão burocrática. Ou como ele mesmo afirma: “Um dos componentes fundamentais do espírito do moderno capitalismo e não apenas deste, mas de toda a cultura moderna: a conduta racional baseada na idéia da vocação, nasceu (...) do espírito da ascese cristã Basta reler o trecho de Franklin, transcrito no início desse ensaio, para perceber que os elementos fundamentais do que lá se denominou ‘espírito do capitalismo’ são justamente os que ora apresentamos como conteúdo da ascese vocacional do puritanismo, apenas sem a sua fundamentação religiosa, já desaparecida no tempo de Franklin”. 

 

Por isso será olhado com desconfiança pelo marxismo clássico, inclusive pela Segunda Internacional, como irracionalista que abre caminho para a contrarrevolução burguesa na Alemanha. 

 

E foi assim, por misericórdia e amor, que o Eterno ordenou a seus anjos guardarem a vida do Luís. É certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. Luís declarava-se ateu, e conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. Só confiava em si próprio. E não queria ajuda de ninguém. Mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um demônio. Shedu, o demônio das onze horas. E como Shedu não trabalhava sozinho, lá estavam em parceria permanente, Astarote e Nebo. O inferno particular de Luís era violento, degenerado e alucinado. Mas quem definia o rumo era Shedu. 

 

Os anjos do Senhor já haviam advertido aos demônios: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. Mas permaneciam à distância. Há uma lei que nem o Eterno viola. É o livre arbítrio que Ele próprio deu às pessoas. Assim, Luís tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. Daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. Estava sempre rodeado dos três demônios, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. A certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. Eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os demônios, da ordem que tinha vindo do trono de Deus: não toquem na vida do Luís.

 

Maria não podia ver o mundo espiritual. Mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. Quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. A criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. Desesperada, uma das tias, Iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. A pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. Durante dias, entre a vida e a morte, Luís ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira.

 

Convém notar que a Escola de Frankfurt surgiu num contexto histórico muito especial. No início, grandes pensadores judeus como o rabi Nehemiah Nobel, Martin Buber e Gershom Scholem e outros mantiveram um estreito relacionamento com o instituto. Mas, a negação das tendências à espiritualidade e ao misticismo judaico fortaleceu e permitiu o resgate da tradição marxista. Ao mesmo tempo, o mundo estava assistindo à revolução bolchevique e à revolução social na Alemanha. Esses pensadores judeus da Escola de Frankfurt estavam próximos do Partido Social Democrata alemão e do Partido Comunista. Estavam preocupados com a crítica e veem as dores do mundo com profundo pessimismo. Nesse sentido, Weber fornecerá instrumental para uma sociologia da história negativa e sem esperança. Lukács e Freud completarão esse pano de fundo. É nesse contexto que surge na Escola de Frankfurt grandes pensadores, entre os quais devemos citar Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse.

 

Uma vez mais, temos de tomar com pinças o apoiar-se em Weber para aprofundar as categorias da análise marxista. Para Weber o conceito de legitimidade apoia-se em algum tipo de dominação, o que segundo Dussel tira a possibilidade dessa legitimidade transformar-se  em noção de validade ético-normativa.

 

Ou como diz Weber, em texto citado por Dussel, “os que atuam socialmente podem atribuir validade legítima a uma ordem determinada: a) em merecimento à tradição: validade do que sempre existiu; b) em virtude de uma crença afetiva (emotiva, especialmente): validade do novo revelado ou do exemplar; c) em virtude de uma crença racional de acordo com valores: vigência do que se tem como absolutamente valioso: d) em merecimento ao [legalmente] estatuído positivamente, em cuja legalidade se crê”.

 

Donde podemos concluir, exatamente porque os três primeiros motivos são materiais (tradição, afetividade e valores), que a religião, para Weber, tem validade social quando é aceita como tradição vigente, porque motiva emocionalmente os fiéis pela crença consensual em valores ou pelo reconhecimento de leis que são cumpridas comunitariamente. Assim, o conteúdo de sentido dá validade à ordem. Ou seja, transmite legitimidade à religião. Mas tal legitimidade é essencialmente instável porque é uma probabilidade e também porque tal ordem está organizada a partir de uma estrutura de dominação.

 

E Weber expõe seu conceito de dominação. “Entendemos aqui por dominação a estado de coisas pelo qual uma vontade explícita (mandato) do dominador ou dos dominadores influi sobre os atos dos outros (do dominado ou dos dominados), de tal sorte que, num grau socialmente relevante, estes atos têm lugar como se os dominados tivessem adotado por si mesmos e como máxima de agir o conteúdo do mandato (obediência)”. 

 

É interessante que Enrique Dussel mostra que a legitimidade do capitalismo, tal como visto por Weber se tornou ilegítima e já não inclui nem o tipo de dominação burocrática instrumental, nem o carismático excepcional. Nesse sentido, trabalhando com o conceito bourdiano, considera que o tipo de dominação carismático weberiano foi negado. Para Dussel, as legitimidades vistas por Weber caducaram e um novo processo está em gestação, mas por causa dos limites de seu marco teórico o próprio Weber não conseguiu visualiza-lo. E qual é esse novo tipo de dominação que se apresenta? Para Dussel é “a legitimidade que alcançam os novos sujeitos sociais emergentes, e que não se fundamentam, pelo menos em seus começos, em nenhum tipo de dominação – mas de organização com uma certa disciplina interna”.

 

É interessante notar que em um dos últimos parágrafos de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber diz que “ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nesta prisão [a produção capitalista de mercadorias], ou se, no fim desse tremendo desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias, ou ainda se nenhuma dessas duas – a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsiva espécie de autojusticação. Nesse caso, os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados como ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado. Mas, conscientemente, foge de qualquer avaliação da possibilidade de real transformação da sociedade capitalista, afirmando que se fizesse isso entraria no campo dos juízos de crença e de valor. 

 

Na verdade, Weber foge de tal análise por carência de instrumentalidade e não por uma posição metodológica ou ética. Dessa maneira, seu pessimismo é claramente consequência de sua abordagem metodológica.

 

Não podemos esquecer que a modernidade sofreu, na visão de Weber, uma influência causal significativa do ethos racional protestante, que trouxe os rigores da ascese para o mundo através da Reforma protestante. Assim, para os protestantes, a vocação dos escolhidos estaria em cumprir as tarefas seculares, impostas ao indivíduo por sua posição no mundo, através de uma leitura especial da certeza da graça e da salvação, que se traduziria por meio de uma dedicação ao trabalho. 

 

fides efficax se traduziria em resultados objetivos, a certitudo salutis. Fundamentada num método consistente e consciente, a vida do protestante passa a ser racionalizada e dominada pela finalidade de aumentar a gloria de Deus na terra. Tal conduta ética metodologicamente sistematizada teria influenciado o desenvolvimento do capitalismo.

 

Mas até onde tal esquema metodológico é falsa consciência e leva à uma distorção da compreensão da formação do Estado moderno? E até onde pode agregar novas instrumentalidades à análise marxista? Acreditamos que é ideológica ao não ver que a questão da existência do Estado capitalista está ligada a um contexto de relação sociedade/poder. 

 

Assim, somos obrigados a olhar a religião com olhos diferentes, já que o conceito de legitimidade utilizado por Weber é de difícil normatividade. O legítimo é o aceito como válido, mas fundado numa estrutura social onde a maior parte cumpre a vontade de outro como própria, realizando interesses dos dominadores e não os próprios. Ou seja, a questão da legitimidade leva à questão do poder.

 

E é o próprio Weber quem diz – citado por Dussel -- que “poder significa a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”. 

 

Em outras palavras, enquanto tal probabilidade for mantida, a dominação é exercida e a legitimidade é válida.  

 

Por outro lado, fazendo o caminho do historiador Antônio Nespanha, podemos dizer – ampliando a abrangência de nossa análise -- que de perspectivas diversas e com diferentes intenções, Marx e Weber desenharam a leitura do moderno estado capitalista. Marx caracterizou o advento da modernidade capitalista pela separação entre política e economia. E reservou o conceito Estado para a descrição de um modelo em que a política formalmente se destaca da esfera da exploração, emergindo como pretensa portadora de interesses gerais. Weber, por seu lado, agrega a essa carga conceitual novos elementos como os conceitos de burocracia, racionalização territorial, seleção meritocrática, uma forma abstrata e geral de regulação [o direito igual], e um modelo também impessoal de participação política [a democracia representativa]. 

 

Assim, a partir de Marx e Weber, a construção do Estado capitalista pode ser descrita através de processos que se integram, onde se faz presente a convicção epistemológica de que a política, tal corno a matemática, tem uma verdade e que essa verdade pode ser comunicada por processos racionais. Com essa visão morre um ideário político baseado na probabilidade e na opinião. Essa é a tarefa realizada, dos finais do século dezesseis aos inícios do século dezoito, pelo racionalismo. Donde herdamos a ciência política, o individualismo e o contratualismo. Temos então a instauração de um monismo político, que concentra todo o poder no Estado, expropriando as competências políticas dos polos periféricos. A origem do processo está relacionada com o fomento da moderna guerra de colonização, com a expansão dos interesses financeiros internacionais e com a necessidade do controle social de vastos espaços geográficos. Essa concentração do poder levou ao estatismo e à identificação do direito com o legalismo, à reorganização do espaço e a construção de territórios políticos centralizados, homogeneizados e racionalizados. Surgiram então a engenharia territorialas reformas administrativas, as fronteiras artificiais, como por exemplo na África, e a geopolítica.

 

Hoje, este modelo entrou em caducidade, mas a compreensão de novos paradigmas de organização política a partir dos excluídos nos obriga a uma releitura de Marx e, entendidos os limites expostos, também da análise crítica weberiana.

 

Maria orava insistentemente para que a criança não morresse. E fez um acordo com o Eterno criador. Prometeu que a criança seria dele, para Ele, conforme fosse o desejo dele. Deu seu primogênito como oferta ao Senhor. Nazireu do Eterno. Sem dúvida, ela fica lembrando... o Eterno ouviu sua oração e aceitou sua oferta. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado fazia um ano, e da Itália chegou uma pomada milagrosa: penicilina. Três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. Um mês depois teve alta.

 

Que bom saber que o Eterno cumpre o que promete. Luís estava sob a guarda dele. Ela só tinha que ter paciência. Qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.

 


 

O mestre das palavras mortas

 

 

Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?

 

Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.

 

Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos.

 

Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno.

 

E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.

 

Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.

 

Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas.

 

Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens.

 

Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.

 

Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero.

 

Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.

 

Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa.

 

Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa.

 

Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado". 

 

E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou:

 

-- Luís, entra na roda.

 

Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.

 

-- Quem é você?

 

Astarote respondeu:

 

-- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.

 

Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu:

 

-- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.

 

Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu. 

 

-- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra.

 

Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.

 

Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.

 

No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas. 

 


 

 

 

Capítulo 7

 

 

Este inverno está terrível. Eu e Yasmin estamos nos separando. Não tem lógica nenhuma. Eu a amo, eu preciso dela, mas não agüento ir ao Pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.

 

Ando deprimido, não consigo aceitar o Chile como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao Brasil. O frio, as árvores desfolhadas, esse sol sem força que não esquenta nada, nem ninguém...

 

Hoje resolvi andar sem destino. Peguei a Bernardo O’Higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. O inverno de Santiago é cinza. E eu carrego o meu trem sob um céu cinza. Paro num bar, sento e peço um conhaque. Tiro um livro do bolso e começo a ler. Sou professor assistente da cadeira de psicologia social. Dou aulas de Reich.

 

Análise do caráter e A revolução sexual estão entre meus livros prediletos. Tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado neste Chile de Allende. Os comunistas não gostam de Reich e pressionam para eu desistir de meu projeto. 

 

A vida é tão simples (...). Apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. A consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. Sua base somente pode ser a democracia do trabalho natural. Amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. Deverão regê-la também, afirma o amigo Reich. Eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.

 

Irina, minha amiga e catedrática de Psicologia Social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em Santiago, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. É meio woodstock, mas eu gosto. Só não sei se vai dar certo. Já tive vários problemas.

 

Vi minha terapeuta transando com um dos nossos. Vi por acaso, mas não gostei. Na verdade, morri de ciúme. Márcia é uma jovem belíssima. Do tipo loira esguia. Às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. Somos uns dez, mais ela e Rodolfo, outro terapeuta.

 

Num desses dias, estávamos sentados em roda, e Márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. Ele se levantou. Eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. Foi a maior confusão. Mas por que você fez isso? E o sujeito chorando. Chorando de soluçar. Imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.

 

Por que eu fiz? Porque queria. Você não disse para eu me expressar? Então quebrei a cara dele. Pressionaram e eu dei um abraço nele. Pedi desculpas. Ele aceitou.

 

Outra vez saímos da terapia, em grupo. Estávamos, não sei porque, na maior felicidade. Ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de Lílian.  A menina deu o maior berro, de susto, imagino.

 

Dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. Ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. Os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. Parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. Todo o esforço do Lírton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, florava naturalmente. Eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.

 

Uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.

 

-- Ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.

 

Perdi a concentração. O balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. Os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. Uma multidão. Eu ia ser linchado...

 

Lílian me salvou. Chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. Mas a multidão não desistiu. Correu para a delegacia. Queriam me linchar de qualquer jeito. Eu era um perigo para a pacífica sociedade chilena.

 

E uma outra história foi contada ao delegado. Eu, um carateca brasileiro, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.

 

Depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. Já tinha ouvido o depoimento de Lílian e do pessoal da terapia. Ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.

 

Irina e Márcia diagnosticaram machismo incurável. Lílian gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 

 

O conhaque é espanhol. Reich continua a falar mal da família monogâmica, diz que a comuna é a nova família. Os comunistas nunca vão aceitar isso.

 

A compulsão à destruição é obsessiva. Conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de Brasília. Joguei Yasmin fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. Mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. Eu e Náiade fazemos sexo doze horas seguidas. E dormimos as outras doze horas. Conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. Só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 

 

É impossível esquecer aquela noite. Era inverno, passamos pela casa de Gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na Universidade do Chile. Antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. Mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. Minha euforia era contagiante. Noite gelada, céu estrelado e uma sensação de estranhos poderes. Náiade se enroscava em mim. Estava feliz. Todos meus amigos estavam felizes. Luís superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. Não vai se suicidar.

 

Aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com Mário Pedrosa e Mary, sobre minha situação. E o velho Mário, muito sábio, declarou: "Não se preocupem, é uma crise epistemológica. Se ele superar, aprende com ela e vai em frente. Cresceu. Se não superar, se suicida. Não merece a vida que tem". Todos tinham um amor muito grande por mim. Muito grande mesmo. Eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. Só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. O importante era guerrear a guerra da vida. O resto, ora que resto?

 

Era noite de São João. Convidei um grupo de amigos para jantar em casa. Tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. Antes, porém, fui fazer uma visita ao João. Quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do Rio de Janeiro. Estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. Parecia um grilo. Olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. Dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. O sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. Convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. Com Náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. Horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? Os dois. Ele e ela.

 

Todos se sentam à mesa. Levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:

 

-- Vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?

 

Ela responde afirmativamente. Todo mundo está estatelado, principalmente Náiade. 

 

Eu pergunto:

 

-- Como é seu nome?

 

-- Anabella.

 

Eu e Alex fazendo pesca submarina na praia Vermelha. A gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. Não usamos acqualung. Mergulhamos no fôlego.

 

Levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.

 

Da praia Vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. Ficamos em frente ao mar aberto. 

 

Instalamos nosso QG ali. Escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.

 

O mergulho. O sol atravessa às duras penas a transparência do mar. Só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. Os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.

 

O arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. Eu e Alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. A gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. Nem fisga para lagosta a gente traz. Bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. É a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.

 

Caçonete é a meta. Mas não é fácil. Depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. Água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.

 

Depois do cação vem a arraia e o polvo. Se o mar tem cação, tudo bem. É uma questão de destreza e mira. Às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. Você persegue e ele mergulha. Você vai até onde o fôlego dá. Pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.

 

Já a arraia são outros quinhentos. Ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. Se bobear, você passa por ela e nem vê. Ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 

 

Esse é o momento. Você está em vôo livre, por cima, armado. Tchum... O arpão corta a água e atravessa a arraia. Ela fica grudada no fundo se contorcendo. Você tira a faca e corta o rabo dela. Segura o arpão e a traz para a superfície.

 

-- Peguei, peguei uma arraia...

 

Alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.

 

Tem ainda o polvo. O certo é pescá-lo com fisga. Ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. O melhor é a fisga. Por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.

 

Parada para o lanche.

 

-- Tia Lucy fez os sanduíches. Misto quente, frio.

 

-- Ta bom.

 

-- Você está gostando de morar com o Walter?

 

-- Ele é gente fina. Está me ensinando boxe.

 

Eu e Alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. Geralmente sou eu quem brigo. Ele é muito inteligente. Aprendeu a ler aos três anos de idade, mas não gosta de estudar. Já fugiu da escola várias vezes. É um típico menino do Rio. Passa o dia na praia. Magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o Amynthas, diz orgulhosa a pequena Maria. É um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. Marinho.

 

-- Gostaria de ter conhecido o Amynthas, ou me lembrar dele.

 

-- Você era o nariz de batatinha. Ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.

 

-- Pó, e isso é sinal de gostar?

 

-- Para ele sim. O Amynthas tinha um padrão de educação meio antigo. Quem ama, educa.

 

-- Você apanhou muito, não é?

 

-- Não mais que o necessário. Amynthas e Maria ficavam loucos comigo. Eu era um menino da pá virada.

 

-- Por falar nisso, acho que o tempo vai virar. Vamos mergulhar mais um pouco. Se o mar picar, adeus pesca.

 

-- Vamos lá.

 

Já temos uma arraia, mas sei que Alex não quer voltar de mãos vazias. Quando não pescamos nada, levamos mariscos. Eles aqui são grandes e bonitos.

 

Tia Lucy gosta. Transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. Nas mãos dela tudo vira banquete. E na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos. Tio Waldemar, Daniel e Eduardo também comentam e aprovam. Eu e Alex somos os heróis da noite.

 

Waldemar é filho de alemães. Seu pai tinha uma metalúrgica em Joinville, onde Daniel e Eduardo nasceram.

 

Ele e tia Lucy se conheceram no Rio, quando ele fazia faculdade de medicina. Depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no Rio.

 

É um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. Trabalha sozinho, em casa. Usa telefone, a Western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. Forneceu madeira para a construção do Maracanã e está ganhando muito dinheiro.

 

O mar picou e Alex não pegou nada. Fico na minha. Para ele não ficar muito chateado, pegamos umas dúzias de mariscos, embrulhamos tudo em jornais, colocamos nas bolsas e nadamos devagar, de volta à praia. 

 

O céu nublou, sopra um vento sul que deve trazer chuva. É bom acelerar o passo...

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 8

 

 

Ontem recebi uma carta do Rio de Janeiro. Uma carta de meu primo Daniel. Durante muitos anos morei com meus primos Daniel e Eduardo, ali na Glória. O sonho dos dois era serem pilotos da força aérea. Cursaram Agulhas Negras, mas Eduardo acabou indo para a intendência. Hoje é coronel. E o Daniel foi desligado. Parece que fez uma barbeiragem num de seus treinamentos e quase enfiou o avião em cima de uma torre de alta tensão.

 

Ficou na maior fossa. Todo mundo pensando que ele ia desistir de viver... Mas, deu a volta por cima. Começou a ler a Bíblia e a freqüentar as reuniões dos batistas numa igreja lá perto do Rio Comprido. Fez medicina e se tornou missionário.

 

Daniel é um sujeito peculiar. Inteligente, culto, fala e escreve bem. Digo peculiar, porque eu e ele crescemos no meio da malandragem da Glória. Conhecíamos todos os bandidos do pedaço. E curtíamos as noitadas ali na taverna.

 

Quando éramos garotos, gostávamos de colocar umas bombas chamadas cabeça de negro no banheiro dos homens, que tinha uma portinha ao estilo de bar de farwest. Era uma loucura, os marinheiros que ficavam por ali agarrados às prostitutas, de vez em quando eram apanhados de surpresa por uma violenta explosão no mictório.

 

Saíam às carreiras, com as calças no meio das pernas, gritando feitos loucos. E nós lá fora, rolando de rir do desespero alheio.

 

Outras vezes, a situação engrossava. Uma vez nosso amigo Camões, um cara parrudão, um pouco pro violento, mas muito amigo nosso, teve uma briga feia, num beco ali perto. Um cara o pegou de jeito, deu-lhe uma banda, e começou a bater a cabeça do Camões no meio fio. Com a cabeça quebrada e sangue correndo por todo lado, Camões conseguiu pegar seu canivete automático e enfiar na barriga do cara.

 

No desespero, correu para a taverna. Mas correu com o canivete na mão. Toda a turma estava lá bebendo. No desespero, Camões passou o canivete para o Alemão, que passou para o Lourenço, que passou para o Daniel, que sentou em cima.

 

Não deu nem tempo do pessoal respirar e chegou a dona justa. Pularam em cima do Camões como gato em cima do rato. Todo mundo branco quase fazendo nas calças. Mas todos sentados. Os tiras se engalfinharam com o Camões. Todo mundo sentadinho, branco quase fazendo nas calças, mas sem sair do lugar. Como se nada estivesse acontecendo. Levaram o Camões. Chamaram o Alemão e o Lourenço para irem juntos. Meu primo ficou quieto. Bom moço, sentado em cima do canivete.

 

Dá-lhe Luís. Estou com saudades. Espero que você e Yasmin estejam felizes com a vida nova aí em Santiago. Todo mundo está preocupado com vocês. Ninguém entendeu porque você deixou a Manchete e se mandou. Só quem está mais despreocupado é o Eduardo. Ele vivia dizendo “ainda vou ter que tirar o Luís da prisão”. Sei que você sabe se virar. Mas não se esqueça de Jesus, meu chapa, só ele é o Filho de Deus. Só ele é garantia de vida eterna. Tudo o mais, por importante que seja, é apenas vapor, vaidade humana. Lembra-se de quando conversávamos sobre a bíblia? A gente ficava de madrugada, na varanda do apartamento, tomando ovomaltine batido no liquidificador com leite e cubos de gelo, com açúcar e muita espuma, e falando sobre os heróis da fé. Lembra-se da coragem de Isaías, que foi cortado pelo meio. E do meu xará, que enfrentou leões, mas não afinou? É não deixe de ler a bíblia. O apóstolo Paulo, quando escreveu ao seu amigo Timóteo, disse que a escritura é a palavra de Deus, dada ao homem para guiá-lo na experiência da salvação. É livro único porque tem um único mentor, o próprio Deus, que soprou o seu hálito criativo sobre os homens que o escreveram. Além de um mentor único, as escrituras sagradas têm um personagem principal, Cristo. Ele próprio, quando esteve aqui, em carne e osso, disse que deveríamos examinar as escrituras, porque julgamos ter nelas a vida eterna e são elas mesmas que dão testemunho de sua filiação e de sua autoridade.A bíblia, primo de guerras e aventuras, conta uma única história, a tragédia da queda da humanidade nas trevas e sua salvação através de Cristo. Eu e você gostamos de escrever, por isso vou arriscar uma imagem que é comum à sua atividade literária: as escrituras têm um autor, que é Deus. Um argumento, só Cristo pode salvar o pecador. Um roteiro, a história da salvação. E centenas de capítulos, a história da salvação em cada época, em relação a cada povo e a cada homem. 

 

"Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança", disse o apóstolo Paulo quando escreveu aos cristãos em Roma.

 

Aliás, no início dessa carta aos romanos, ele afirma que a causa da condenação de Deus ao mundo é a ignorância deliberada do homem. "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a própria divindade, claramente se reconhecem, desde o começo do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas".

 

Não se esqueça disso, a ação e a presença de Deus nunca estiveram escondidas do homem, pois a natureza revela o poder e a divindade do verdadeiro Deus a todos os homens. A ignorância deliberada, que tem por base raciocínios nulos, tornam o homem indesculpável perante Deus.

 

Pode ser que essa conversa pareça distante da sua realidade atual. Mas quero que você recorde verdades que já conhece. Quero conversar sobre a bíblia, porque sei que o marxismo centra seus argumentos na impossibilidade de ser ela um livro inspirado. Você me desculpe, mas na próxima carta vou voltar ao assunto, com argumentos mais profundos. 

 

Aqui todo mundo está bem. Você sabe que não gostamos dessa ditadura. Mamãe torce pelo Juscelino, como mineira quatrocentona, eu e o Eduardo torcemos por você, mas achamos que você pode ser um grande político sem ser ateu.

 

Manda um abração pro Allende!

 

Dá-lhe Luís!

 

Do primo Daniel.

 

Carta maneira. Daniel sempre conseguiu me fazer pensar, mesmo quando discordo dele. Talvez seja essa sinceridade transparente com que ele diz as coisas. Ele não precisava seguir esse caminho. Mas o fato de ter dinheiro nunca significou muito para ele.

 

Daniel estudava em colégio de menino rico, no Santo Inácio, ali na rua do Catete, mas sempre teve amigos pobres e paupérrimos. Aliás, Camões talvez seja o maior de todos. Juntos falsificavam carteirinhas do Flamengo para entrar nos bailes de carnaval, davam o chapéu em trocador de bonde e se apaixonaram por duas gêmeas que moravam na rua Santo Amaro.

 

Se ele escrever, leio e respondo. Mas sem grossura. Daniel merece todo o respeito do mundo.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 9

 

 

-- Escrevi para minha mãe. Contei que conheci um homem maravilhoso. Você. Disse que estou apaixonada.

 

-- Será que ela vai acreditar?

 

-- Claro, nunca falei de homem nenhum assim.

 

-- Mas só tem um mês que estamos juntos!

 

Eu e Anabella estamos morando emprestado num apartamento de sala, banheiro e cozinha, mínimo, perto do rio Mapocho. O bairro é barra pesada. Nas primeiras noites não dormíamos direito por causa dos tiros. Nada político. É briga mesmo nos bares e inferninhos da rua em frente. Agora já acostumamos. Às vezes, antes de dormir fico tentando adivinhar o tipo da arma usada. Tiro de calibre 22, 32 e, vez ou outra, 45.

 

-- Acho aquele nosso café da manhã uma loucura.

 

-- É, os argentinos, não se arriscaram. Mas qualquer francês ia dizer que é muito sofisticado.

 

Ostras com vinho branco gelado. Esse é o nosso café nas manhãs de sábado. Moramos ao lado do Mercado Municipal. As ostras são fresquíssimas, o vinho é servido em copo e tudo ao preço de uma média com pão e manteiga. Mas os companheiros argentinos do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, PRT -- La Verdad, preferiram não arriscar. Um deles alegou gastrite. Vieram discutir a formação do partido no Brasil. Acham que as condições estão mudando e que o governo, dentro de alguns anos, terá que aceitar uma abertura política. Eu concordo. Anabella acha que estamos delirando.

 

-- A barra está pesadíssima.

 

-- Está, mas vai mudar.

 

-- Olha, eu estava namorando o Mariozinho, ali na praia do Leme, pertinho do forte. Eram umas dez da noite. Nós estávamos na areia. De repente, apareceu um soldado. Ele enfiou o fuzil na cara do Mariozinho, me xingou de tudo que era palavrão. Disse que ia nos prender, porque éramos subversivos. Foi uma loucura. Então, abriu a braguilha...

 

Coloquei os dedos nos lábios de Anabella, pedindo silêncio. Seus olhos estavam marejados. Eu conhecia uma porção de histórias como essa. Histórias de humilhação.

 

-- Deixe para contar outra hora. Não vale a pena começar o sábado assim.

 

Estou trabalhando numa metalúrgica no bairro operário de Vicuña Mackenna. Sou soldador. É uma fase nova e dura na vida. Acordo às cinco da manhã e entro na fábrica às 6h45. Trabalho até às cinco da tarde. Chego literalmente morto em casa, às sete da noite. Aí, só dá para tomar banho, comer alguma coisa e desmaiar. Passo o dia, não somente soldando, mas carregando ferro de um lado para o outro. Nem sexo faço mais durante a semana.

 

Sábado e domingo são dias especiais e, por isso, devem ser muito bem aproveitados.

 

-- Vamos para Valparaíso.

 

-- Isso mesmo, almoçar à beira-mar.

 

E lá vamos nós, num micro-ônibus, descendo a cordilheira em direção ao oceano Pacífico. Valparaíso é uma cidade histórica. Lembra-me a II Guerra Mundial e o Bismarck, encouraçado alemão que afundou em frente à cidade. Encontramos um restaurante que fica quase na areia, de frutos do mar. É um restaurante digno. Não muito limpo, mas não é sujo. A maresia é forte e fria. Na verdade, está ventando. Anabella está de calça verde, uma blusa de malha de manga comprida e um colete felpudo de cor vinho. Corre pela areia, enquanto pelicanos sobrevoam sua cabeça. Alguns, despreocupados, caminham ao seu lado. Aproveito a cena e tiro algumas fotografias.

 

-- Uma amiga minha, que trabalha na Gillete, vem passar as férias aqui no Chile. Quero que você a conheça. É louquíssima. É quase uma irmã.

 

-- Será que alguém com a cabeça no lugar viria passar as férias no Chile?

 

-- Você está exagerando.

 

-- Não estou. Só estou dizendo que chamar a sua amiga de louquíssima é pleonasmo. Se vem para o Chile de Allende e não é de esquerda, só pode ser louca mesmo. É isso que eu quero dizer.

 

-- Você complica tudo. Não se esqueça que está baratíssimo fazer turismo no Chile.

 

-- É, nisso você tem razão, mas ainda acho que ela é louca. Afinal, é sua amiga.

 

-- Estava pensando. Você toparia passar umas férias na Argentina? Eu tenho que ir ao Brasil. Você me esperaria em Buenos Aires, e voltaríamos a Santiago por Bariloche, passando pela região dos lagos, Osorno, Puerto Montt e Valdívia.

 

-- Tem a fábrica. Tenho que ver se é possível.

 

Eu, de jornalista, tinha virado soldador. E Anabella fazia um curso de fresadora na Universidade Técnica. Estava se preparando para trabalhar em fábrica, no Brasil, quando voltássemos definitivamente. Apesar das dificuldades, acreditávamos que a formação de um partido socialista passaria inevitavelmente pelas novas cidades industriais que tinham surgido nos últimos anos. Apostávamos no ABC paulista.

 

Assim, durante a semana, ambos vestíamos macacões, usávamos luvas grossas, óculos de segurança, e vivíamos uma vida nova, pesada e cansativa, mas cheia de esperança no futuro glorioso da humanidade. Aos sábados nos divertíamos, viajávamos, comíamos em restaurantes baratos e dançávamos à noite. Aos domingos, tínhamos reuniões políticas.

 

 

 

Não gosto de praia, gosto de mar.

 

Deitar na areia, torrar, nunca curti. Vou à praia aos domingos de manhã por obrigação social. Senão fico desenturmado. Jogo futebol de areia no final da tarde, porque o sol está fraco. A claridade e o calor da manhã me incomodam. Prefiro a noite.

 

Do hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no alto da Tijuca, onde nasci, dando uma quebrada pela Mangueira, atravessando toda a zona sul até a Barra da Tijuca, conheço tudo. Esse é o meu Rio. Mais tenho os meus espaços: a taverna da Glória, a Prado Júnior e a galeria Alaska.

 

Noite e juventude transviada. Lugar por onde andam os malditos. Meus amigos beatniks, de corrente no pescoço, meus amigos existencialistas, que lêem Sartre, Camus e cantam Boris Vian: “Je viens de recevoir/ mes papiers militaires/ pour partir à la guerre./ (...) Je ne veux pas la faire,/ je ne suis pas sur la terre/ pour tuer des pauvres gens./ (...) Je m’en vais déserter...” Tudo isso, mais o inferno sexual de alguns deles, que sofrem com seus romances proibidos, mergulhados em culpa, álcool e drogas.

 

É o caso de Luciano. Ele é apaixonado por um garoto de 18 anos. Um menino caladão, que só de vez em quando sorri. Luciano morre de ciúmes e talvez por isso o garoto desaparece. Acho que ele tem uma vida dupla. Aliás, não acho que seja namorado de Luciano, acho que é michê.

   

A viagem do amigo Luciano é alucinante. Começou com as prises de lança-perfume, depois partiu para as anfetaminas, agora compra um medicamente para otite, que ele destila e injeta na veia do braço. No lugar das veias tem manchas roxas e hematomas.

 

Depois de injetar-se, Luciano fica com os olhos vidrados, olhando para o nada. Fica caído, num canto do quarto, como um trapo.

 

Não sei qual é o barato, mas é algo ligado ao desespero da vida dele. Quando o garoto desaparece ou quando a vida pesa, ele se droga. E como a vida dele é uma droga, ele se droga sempre.

 

Luciano é um sujeito culto, mas o que ele sabe não produz nada. Escreve um livro que nunca termina e tem projetos que nunca começou.

 

Somos amigos, mas ele me odeia. Gosto da vida e acho que ela vale a pena. Ele tem um tropismo pela morte.

 

Já foi internado duas vezes no Dr. Eiras para tratamento psiquiátrico, mas não adiantou. Sai de lá, inchado, de tanto medicamento, aparentemente manso, falando devagar. Um mês depois, já secou por inteiro, está falando rápido como locutor do jóquei e se drogando a mais não poder. Por isso, as pessoas o chamam de Luciano bolinha.

 

Se fosse traduzir a personalidade de Luciano numa palavra diria agressividade. Às vezes, parece que vai babar como um cachorro louco e agredir quem está na frente. Como é muito magro, pele e osso, nesses momentos ele treme muito.

 

Quando escreve um texto mostra para todo mundo, ri muito e fica na maior euforia. Gostamos desse pique de Luciano. Ele escreve bem e todos na Manchete sabemos disso, mas sua produção depende de tantos fatores e humores, que a maioria prefere não contar com ele.

 

Não gosto de praia, gosto de mar.

 

Mar é nadar, mar é pescar, mar é a imensidão besta, infinito verde, um mundo abaixo da linha da aparência. Passei grandes momentos no mar.

 

Aprendi a nadar com a pequena Maria, em Icaraí, jogado no mar. Não afundei e depois tive aulas, com ela, de respiração, movimentos e técnicas. Em casa todos nadamos, mas o grande mestre era o Amynthas.

 

Alex se afogou pela primeira vez aos cinco anos. Entrou na arrebentação de peito aberto. Maria nem notou. Foi resgatado por um salva-vidas.

 

Só uma vez dei um vexame desses. No Flamengo, mar furioso de inverno, sob a bandeira vermelha. A bem da verdade, eu já tinha nadado e voltava para a praia quando fui golpeado na nuca por uma muralha de água.

 

Rodopiei, comi areia e fui agarrado por dois salva-vidas que me pegaram pelos braços e me trouxeram até a praia. Eram umas seis da tarde. Alex deitou e rolou. Tirou o maior sarro. Fiz uma ficha de afogado na barraca dos salva-vidas, rodeado de curiosos, assinei o papel e saí na maior vergonha. Mas quem manda nadar em mar de ressaca?

 

Gosto de nadar à noite. Entrar no mar ali em frente à Santa Clara e ir devagar, bem devagarzinho, em frente. Depois fico de papo pro ar, boiando, olhando pro céu. É o melhor lugar para você namorar estrelas. Depois, de novo, bem devagar, devagarzinho, nado em direção ao colar de luzes de Copacabana.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 10

 

 

Dá-lhe Luís.

Estou aqui de novo. Infelizmente, vou começar esta carta com uma notícia ruim. Lembra-se do seu amigo Luciano, aquele que trabalhava na Manchete. É, ele se matou. Estava na casa do primo, num estado depressivo lastimável. Depois de uma longa conversa e com aval de Luciano, o primo telefonou para uma clínica pedindo que mandassem uma ambulância. Nesse meio tempo, Luciano levantou-se da poltrona, correu em direção à janela e atirou-se. Espatifou-se oito andares abaixo. 

 

Foi a maior depressão, mas de certa forma um fim desse era esperado. Infelizmente. 

 

 

 

Texto revelado. Texto confiável?

 

Eu disse na última carta que gostaria de conversar com você sobre a Bíblia. A questão é: será que ela merece confiança. É tudo uma baboseira ou posso confiar no que ela diz?

 

Quando Moisés levava seu povo, que tinha sido escravo no Egito, em direção a uma terra prometida, Deus disse a ele:

 

"Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais (...). Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando". 

 

Um milênio e meio depois, um discípulo de Jesus escrevia assim aos judeus que tinham aceitado o Messias:

 

"(...) havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo". 

 

Aqui vemos não somente um Deus de amor falando aos nossos antepassados, homens e mulheres de nossa espécie, de várias maneiras, através das Escrituras, mas ligando a revelação do antigo testamento a uma outra apresentada em Cristo. 

 

A revelação das escrituras no antigo testamento prepara o terreno para uma nova revelação: Cristo. Este Cristo é Deus feito carne e osso, que morre em lugar do homem rebelado, e cria as condições para um novo e eterno relacionamento entre Deus e cada um de nós.

 

Mas Deus não parou aí. Hoje, além da natureza, das escrituras, da revelação que é Cristo, ele fala através do Espírito Santo, que é nosso advogado, aquele que apela, argumenta, fortalece e defende. Jesus, não nos deixou órfãos. Ele prometeu, que "o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito".

 

Lembre-se, Luís, você não está sozinho, abandonado. Há alguém que fará você recordar-se daqueles ensinamentos essenciais à sua salvação.

 

Como você gosta de temas complicados e eu quero fazer uma defesa racional da fé, vou aprofundar um pouco mais minha exposição. Na verdade, o único conceito teológico que deixa claro que a revelação nas escrituras é cem por cento divina e cem por cento humana é o conceito plenário-verbal. 

 

Em primeiro lugar, Deus soprou. Há uma ação clara de Deus, de presença ativa e poder. Essa ação de soprar seu hálito divino é a inspiração. Em segundo lugar, este soprar não se dá apenas sobre um trecho ou outro das Escrituras, mas sobre ela toda, de conjunto. É uma inspiração plena.

 

Mas é também uma inspiração verbal. Todas as palavras e relacionamentos verbais, nos manuscritos originais, são inspirados. O texto inteiro está sob inspiração. É Cristo quem diz isso. "Porque, digo com toda a certeza, até que o céu e a terra passem, nem um yod - a menor letra do alfabeto hebraico, que se parece um apóstrofo - ou um risquinho, jamais passará da lei, até que tudo se cumpra". Assim, referindo-se ao antigo testamento, Jesus deu a seus discípulos um conceito sublime de inspiração.

 

Ora, se Jesus nega qualquer relativismo em relação à inspiração, por outro lado eu discordo das posições que sugerem a possibilidade de que os textos foram psicografados. Acredito, Luís, que o Espírito Santo apresentou as idéias, ajudou os escritores bíblicos a verbalizarem a revelação, respeitando a realidade cultural, de estilo e vocabulário de cada um, evitando, porém, erros em relação à mensagem. Não há entropia. O processo de revelação é indutivo, mas não viola a personalidade do escritor.

 

Sei que você entendeu. A conclusão, então, é clara e coerente. Os manuscritos originais são cem por cento divinos e cem por cento humanos. Nesse contexto, quando todos os fatos descritos e previstos pelas Escrituras forem totalmente conhecidos, veremos que ela é plenamente verdadeira. Isso é a inerrância bíblica.

 

Houve uma época, aos dezesseis anos, que você sonhava em ser pastor. Não sei por onde andam seus sonhos. Mas como conheço você, vou deixar a teologia um pouco de lado. Quero falar de arqueologia. Afinal, quando os homens se calam, as pedras clamam.

 

Você concorda comigo que a Bíblia é um livro muito antigo, não é? Mas Deus, na sua bondade, criou as condições para que tivéssemos hoje um texto quase perfeito em relação aos manuscritos originais. Vejamos algumas evidências. Os rolos de manuscritos descobertos em 1947, nas cavernas de Qumran, no mar Morto, incluem fragmentos e livros do antigo testamento e do período helênico. Esta biblioteca foi escondida pelos essênios, um grupo de judeus piedosos, nas cavernas de Qumran no ano 68 d.C., prevendo ofensivas maiores dos romanos. Desde o ano 66, judeus e romanos estavam em guerra.

 

No ano 70, Tito, general romano, destruiu Jerusalém. Mas a providência divina cuidou para que a biblioteca dos essênios fosse salva e quase dois mil anos depois chegasse até nós quase inteira. Aí estão importantes fragmentos de Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Samuel, Salmos, Eclesiastes, Isaías, Jeremias e Habacuque.

 

Em relação ao antigo testamento, as descobertas arqueológicas de Qumran aproximam em centenas de anos esses manuscritos de seus originais. Discordando dos marxistas, que afirmam que os evangelhos, Atos dos Apóstolos e os textos de Paulo são posteriores ao período apostólico, alguns especialistas afirmam que fragmentos desses textos podem ser encontrados na biblioteca de Qumran. Se essas afirmações forem corretas, os evangelhos de Marcos e Lucas, Atos dos Apóstolos e as epístolas de Paulo foram escritas antes do ano 68, e considerados de tal importância a ponto de serem incluídos na biblioteca dos essênios.

 

Ainda sobre o novo testamento é importante dizer que é o documento histórico antigo melhor confirmado pelo testemunho dos manuscritos. Temos hoje 24 mil cópias antigas de porções do novo testamento. Em todos esses textos, comparando um com outro, foram encontrados apenas cinco por cento de variação: erros de cópia e variações de ortografia. A crítica textual, através da reconstrução, reduziu esta percentagem para 0,05%. Ou seja, das cerca de oitenta mil palavras do novo testamento, só existem dúvidas em relação a quatrocentas palavras. Temos assim, o texto do novo testamento praticamente intacto.

 

Agora vai uma novidade. Tenho quase certeza que você desconhece, porque está acontecendo agora e nos últimos anos você abandonou seus estudos teológicos.

 

Em relação ao livro de Gênesis, há uma prova irrefutável de sua veracidade. Dois professores da Universidade de Roma, Paolo Mathiae e Giovanni Petinato, estão dirigindo escavações no sítio arqueológico de Tell Mardickh, desde 1964. Na região escavada, existiu a cidade de Ebla. A cidade, no auge de seu poderio comercial, 2.300 anos a.C., possuía uma população de 260 mil pessoas. Ebla foi destruída, em 2.250 a.C. por Naram-sin, neto de Sargão, o grande.

 

O interessante, Luís, é que a equipe de arqueólogos já desenterrou aí dezessete mil tabletes, a grande maioria de relatórios comerciais entre Ebla e as cidades vizinhas.

 

Sodoma, Gomorra e as três outras cidades da planície mesopotâmica, citadas em Gênesis 14, durante séculos foram consideradas lendas, pelos historiadores. Agora, no entanto, temos certeza de que essas cidades existiram, pois nos tabletes de Ebla, os nomes e as atividades comerciais de Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar são relatadas em detalhes.

 

Fantástico. A arqueologia e a história confirmam a veracidade do texto bíblico.

 

 

 

A questão canônica.

 

Outro problema: bíblia judaica, protestante, católica. Afinal, quantas bíblias existem?

 

Essa discussão está ligada à questão de que livros da bíblia são inspirados e quais não são. Essa definição de que livro deve estar ou não na bíblia os teólogos chamam de cânon, palavra grega que quer dizer vara reta, régua, e que acabou sendo interpretada como medida. Assim, eu diria que temos uma bíblia e dois cânones. 

 

Os judeus, que por tradição só aceitam o antigo testamento, consideram como inspirados vinte e quatro livros, que dividem em Lei, os cinco livros de Moisés, em Profetas, composto pelos livros proféticos, e em Escritos, formado pelos livros poéticos, os cinco rolos e os livros históricos. Esse cânon judaico foi aceito pelo uso geral antes mesmo de Jesus nascer. Mas, só foi oficialmente definido pelo rabinato como inspirado na reunião de Jâmnia, nos anos 90 d.C.

 

Em relação ao antigo testamento, a igreja reformada, de Lutero, Calvino e Zwinglio, adotou o cânon judaico. A diferença está na ordem e no número de livros. A igreja reformada dividiu o livro de Reis em 1o e 2o Reis, o livro de Crônicas em 1o e 2o Crônicas, e o livro Esdras-Neemias também em dois, o livro de Esdras e o livro de Neemias. E os doze profetas menores, que para os judeus compõem um livro só, para a igreja reformada são doze livros separados. 

 

Embora o conteúdo seja um só, os judeus têm vinte e quatro livros no Tanach, mas os protestantes têm trinta e nove. Embora a seqüência de organização dos livros do antigo testamento seja basicamente por assunto, a igreja reformada tem razão em fazer estas divisões, pois cada escritor, no caso dos profetas menores, por exemplo, fala da ação de Deus em realidades e épocas diferentes.

 

Já a igreja católica agregou oficialmente, no Concílio de Trento, em 1546, ao cânon judaico mais quatorze textos. Os livros de Judite, Tobias, 1o, 2o, 3o e 4o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, a Carta de Jeremias, adições em Ester e os capítulos 3.24-90, 13 e 14 em Daniel.

 

Esses livros e adições, chamados apócrifos, termo grego que quer dizer "escondido", apareceram oficialmente, pela primeira vez, com a tradução grega do antigo testamento, realizada na cidade de Alexandria entre os anos 250 e 150 antes de Cristo. Esta tradução, conhecida por Septuaginta, apesar de sua importância histórica, já que transformou a bíblia num livro ocidental, combinou textos reconhecidos pelos judeus como inspirados com literatura religiosa não inspirada. Assim, os apócrifos nunca foram aceitos, quer pela igreja reformada, quer pelos judeus, como inspirados.

 

E qual o critério utilizado por nós, protestantes, para definir que tal livro é inspirado ou não. Em primeiro lugar, a autoridade de Deus. Nos livros inspirados do antigo testamento sempre encontramos expressões como "assim diz o Senhor", afirmação inexistente nos apócrifos.

 

Além disso, os livros inspirados afirmam taxativamente que foram escritos por servos de Deus, como Davi, Salomão, Isaías, Jeremias, etc. E foram comprovados como autênticos pela historiografia judaica e dos povos vizinhos. Já o texto apócrifo, Susana, por exemplo, acrescentado ao livro de Daniel, é classificado como ficção. Outro argumento muito forte, para nós, é que foram citados e avalizados por Jesus. Da mesma maneira, os apóstolos e os pais da igreja os usaram, citaram, e guardaram. E por último, a tradição judaica religiosa e intelectual, até o ano 100 de nossa era, os considerou inspirados.

 

Quanto ao novo testamento não há diferenças entre a igreja católica e a igreja reformada. É muito importante, porém, esclarecer que a igreja cristã não criou um cânon. A igreja apenas reconheceu oficialmente os livros escritos por apóstolos de Jesus e discípulos dos apóstolos, que foram amplamente utilizados e guardados pelos pais da igreja.  São vinte e sete livros.

 

Os apócrifos do novo testamento foram rejeitados porque não faziam parte do cânon não-oficial dos pais da igreja, Policarpo, Justino Mártir, Irineu, entre outros, e porque não foram incluídos no cânon do sínodo de Hipona, realizado em 393 d.C.

 

Dessa maneira, o cristianismo tem uma mesma Bíblia e dois cânones: o da igreja reformada, com 66 livros, e o da igreja católica, atualmente acrescido de sete livros: Judite, Tobias, 1o e 2o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico e Baruque, já que a Carta de Jeremias aparece como capítulo 6 de Baruque, e mais as adições nos livros de Ester e Daniel.

 

 

 

Vou parar por aqui. Não jogue as cartas fora. Guarde-as, porque elas têm uma seqüência temática. Acredito que consigo expor o que desejo em mais uma. E não deixe de me responder. Gostaria muito de saber o que você anda pensando.   

 

Manda um abração pro Allende!

 

Dá-lhe Luís!

 

Do primo Daniel.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 11

 

 

A situação está ficando feia. Os enfrentamentos entre militantes da Unidade Popular e da direita criaram uma situação de instabilidade generalizada. Camponeses e agricultores têm sido mortos nas ocupações das fazendas, É bala, foiçada e pedrada. O pessoal briga com o que tem na mão. 

 

Depois que a Vanguarda Organizada do Povo, a VOP, foi indultada, seus militantes, esses sim legítimos bomberos locos, isso se não estiverem infiltrados pela CIA, já são responsáveis por seis assassinatos, inclusive de um ex-ministro de Allende, o democrata cristão Edmundo Pérez.

 

A crise econômica não está fácil. A inflação já passou dos 300%, o déficit na balança comercial vai além dos 450 milhões de dólares. O que é muito, se levarmos em conta que quando Allende chegou ao governo havia um superávit de 175 milhões de dólares.

 

A dívida externa nesses últimos três anos aumentou cerca de 60% e o déficit fiscal chega a 45%. A produção industrial continua caindo de forma absurda, o que afeta diretamente aos trabalhadores. Há escassez de tudo, farinha de trigo, pão, carne, refrigerantes, detergentes, pasta de dente e até vinho. Essa situação está criando um mercado negro sem paralelo na história chilena.

 

Embora não tenhamos estatísticas confiáveis, a direita fala que a desnutrição e a mortalidade infantil estão aumentando e que o nível de vida dos trabalhadores baixou para patamares inferiores ao de meados da década de 60.

 

Logicamente, diante desse quadro, todos estamos nos preparando para o pior. A sociedade chilena está dividida de alto a baixo. E essa situação não pode se manter por muito tempo. Isso vai estourar daqui a pouco.

 

Estamos tomando uma série de precauções. As células dos partidos receberam ordens de se armarem. Além das armas, que devem ser guardadas nos bairros operários de periferia, nas fábricas e nos acampamentos, os militantes devem ter em casa garrafas para a produção de bombas molotovs, lanternas, velas e até água potável. É claro que ninguém leva isso muito a sério, mas a ordem é essa.

 

Alguns partidos da UP pretendem lançar às ruas, para combate, milícias uniformizadas e armadas como se fossem carabineiros. A intenção é confundir as forças da direita. Não sei se isso funciona...Às vezes não dá tempo para organizar tão bem. É gente que não aparece, outras são presas. Uma guerra civil não é um desfile militar, por isso tenho lá minhas dúvidas, sobre essas idéias.

 

Também há uma ordem para que as milícias abandonem logo no primeiro dia de combates o bairro Alto, onde vive o grosso da burguesia chilena. Eles acreditam que setores da Aeronáutica apoiarão Allende e, por isso, não descartam o bombardeio do bairro Alto. Estou torcendo para que seja assim, mas esta é outra incógnita. 

                

Se tudo der certo, ou melhor, como foi planejado, comandos atacarão pontos estratégicos para os militares e mesmo alvos civis fundamentais para a direita. Não queremos que eles tenham tempo para mobilizar setores como os dos camioneiros.

 

As fábricas serão defendidas à custa da própria vida. E se isso não for possível, devem ser dinamitadas. Por isso, em todas as fábricas controladas pelos trabalhadores queremos estocar o material explosivo necessário para ações de defesa, de ataque, ou mesmo de autodestruição. 

 

De minha parte, o comando León Trotsky vai lutar junto com o MIR e devemos nos reunir, em caso de golpe, em Indumet. Ali estamos vários companheiros da Fração Bolchevique da 4a Internacional Trostsquista. É gente séria, quase todos com experiência de clandestinidade e alguns de luta armada. Eu sou em desses. Sou especialista em bombas antitanques e organizei em junho a mudança parcial da linha de produção de uma fábrica metalúrgica da Corvi. Antes só fazíamos janelas e portas de metal, mas depois também granadas. 

 

Minha missão é ir para Indumet. O comando León Trotsky está se reunindo dia sim, dia não. Estamos fazendo treinamento de guerrilha urbana. Uso de armas curtas, operações noturnas, ataque a tanques, quais seus pontos vulneráveis, o perigo das lagartas e da infantaria, que lhe dá proteção, o uso correto das molotovs.

 

Tudo isso eu conheço, mas a força de um comando está na ação em equipe. Por isso, o treinamento é fundamental. Um dos problemas mais complicados é o que fazer com o companheiro ferido. Em guerra aberta de rua, não há muito como defender um companheiro ferido. A vida de um pode custar a vida de todos. Por isso, temos um acordo entre nós. Tentaremos sempre esconder o ferido e deixar com ele água e uma arma.

 

No Brasil ganhei do poeta uma pistola que pertenceu ao guerrilheiro boliviano Inti Peredo. Fiquei muito alegre, mas um alerta do poeta tirou parte da alegria:

 

-- Antenor, lembre-se: a última bala é para você.

 

Esse era nosso acordo na época do MNR. E eu sei que aqui pode ser igual.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 12

 

 

Dá-lhe Luís.

 

Sabe aquele general que jogava buraco aqui em casa com papai e mamãe, antes do papai ter o derrame? Você deve se lembrar, aquele que empastelou o Binômio, o jornal do José Maria Rabelo, em Belo Horizonte?Bem, deixa para lá... Vamos ao fato. Segundo John McCone, que foi diretor da CIA e hoje está no staff da ITT, as corporações norte-americanas estão derramando dinheiro grosso, para derrubar o Allende. Parte desse dinheiro já foi entregue à oposição liderada por Jorge Allessandri. O presidente da ITT, Harold Geneen, entrou com um milhão de dólares.

 

As outras empresas que foram citadas são a Anaconda, a Kennecott, a Ralston Purina e a Northern Indiana Brass Company. Se a situação já estava feia com o boicote internacional dos bancos Chase Manhattan, Chemical, First National City, Manufacturers Hanover e Morgan Guaranty, agora parece que a Marinha chilena resolveu partir para o pau. Falta a adesão do Exército e da Aeronáutica. Acho que você deve se preparar para o pior.

 

 

 

Mas, quero continuar minha carta anterior, quero falar de justiça e graça.

 

Ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, o Deus do antigo testamento é o mesmo Deus de hoje. Ele sempre foi um Deus de amor e compaixão, conforme vemos em Gênesis, quando fez as primeiras vestimentas de peles para o homem e a mulher, desnudos pelo pecado. Ou quando, Noé é agraciado com a salvação.

 

Esse mesmo Deus, no novo testamento, diz através de seu Filho: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!”. 

 

Mas se é um Deus de amor e misericórdia, é também um Deus de justiça. "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração; então se entristeceu o Senhor por ter feito o homem na terra, e isso pesou no seu coração. Disse o Senhor: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito". 

 

É claro que falar de Deus como um ser que se entristece e se arrepende é utilizar uma linguagem antropomórfica. Mas, apesar disso, o que o texto transmite é que este Deus é pessoal, não está passivo diante dos acontecimentos históricos e que tem atitudes reais para com a conduta humana. 

 

Assim, o arrependimento de Deus não deve ser entendido como uma mudança de seus propósitos, mas de atitude. Aliás, neste texto vemos duas atitudes bem definidas por parte de Deus. Uma é a da justiça, que se traduz em destruição do que se degenerou, e outra a da graça, diante de Noé. Essa graça reafirma o propósito da redenção.

 

Temos na bíblia um único Deus. Acontece que a bíblia, como história de Deus em relação a sua criação, fala de experiências. Nós vamos progressivamente, através dos eventos em primeiro lugar e posteriormente através de revelação, crescendo no conhecimento de Deus. Esse crescimento durante o antigo testamento, que de Abraão até Jesus cobre um período de dois mil anos, foi lento e gradual. 

 

O homem engatinhava no conhecimento de Deus e este, cheio de amor, tinha que definir limites, para que o homem não morresse. É o pai usando da sua autoridade para não deixar o filho enfiar o dedo na tomada, beber água sanitária ou brincar com a faca que viu na cozinha.

 

Os exemplos parecem simples demais. Mas foi exatamente isso que Deus fez no antigo testamento, definiu leis e mandamentos, para que seu povo não fosse destruído pela ignorância. Ele explica sua pedagogia: "Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus". 

 

No antigo testamento, Deus nos mostrou a necessidade de um Salvador e no novo testamento nos deu esse Salvador. E como o apóstolo Paulo mostra, a graça, esse amor não merecido, precisa estar baseada na lei, ou seja, na autoridade paterna. Deus é o mesmo. No tempo certo, com o crescimento do conhecimento de seus filhos sobre Ele, adotou atitudes diferentes, condizentes com um momento novo na história da humanidade.

 

Justiça e graça não se opõem. Antes, são atitudes divinas inseridas em seu propósito de redenção da espécie humana. Respostas à realidade criada pela aceitação ou não-aceitação desta salvação oferecida pelo Criador. 

 

O segundo livro de Samuel, dos capítulos 11 ao 20, fala da profunda depressão vivida por Davi em conseqüência de seu adultério, e como tal situação desencadeou um processo de desestruturação de sua família e do reino como um todo.

 

Tudo começou quando Davi, apesar de ter oito esposas, cobiçou a mulher de Urias, um de seus homens mais corajosos. Cobiçou e realizou a sua cobiça, adulterando com ela no terraço da casa real. É interessante notar, que tempos depois, quando Bate-Seba manda informar-lhe que está grávida, o rei não denota nenhuma atitude de arrependimento, mas opta pelo caminho aparentemente mais fácil e sanguinolento: o assassinato de seu soldado. A fidelidade de um bravo é recompensada com a dissimulação, a hipocrisia, a ingratidão e o homicídio.

 

Nem bem o cadáver de Urias esfriara, já que o luto de sete dias foi puramente formal, Bate-Seba recolhe-se à casa real e torna-se mulher de Davi. Passado um ano, o profeta Natã apresenta a Davi a parábola do homem rico que se apropria da ovelha do homem pobre. 

 

"Tu és este homem", vocifera Natã. Denunciado publicamente, Davi chora o seu pecado diante de Deus. Arrepende-se e é perdoado. Mas os frutos dos dois pecados cometidos, adultério e assassinato, ele haveria de colhê-los na sua própria família.

 

Não somente o reino sofreu as conseqüências da transgressão, já que a confiança que o povo depositava no rei foi imediatamente quebrada. Da mesma maneira, sua família olhava com desconfiança esse pai que se mostrava fraco e evasivo diante de suas obrigações familiares.

 

Temos, então, a morte do primeiro filho de Davi e Bate-Seba, o incesto de Amnom e Tamar, e o ódio crescente de Absalão pelo seu meio-irmão Amnom. É impressionante notar que passados dois anos, a única postura de Davi em relação ao filho incestuoso foi apenas de muita ira. Não há da parte do pai nenhuma atitude objetiva. Não há diálogo, crítica, punição...Nada. Apenas ira acumulada. Podemos imaginar como isso tocou o coração de Absalão, irmão de sangue de Tamar, ao ver dois anos passarem-se sem que o pai tomasse qualquer atitude.  E Absalão fez justiça com as próprias mãos, assassinando o irmão. 

 

Tal situação fracionou mais ainda as relações familiares. Davi amava a Absalão, e este ansiava pelo perdão do pai. Mas nunca mais foram reatadas as relações de amor entre pai e filho. É verdade que depois de três anos de separação, Absalão consegue ver o pai, que o beija. Até que ponto este beijo foi o pedido de perdão, de um pai omisso a seu filho rebelado, não sabemos. O beijo como cumprimento era um costume oriental. O certo é que o ressentimento de Absalão não foi curado.

 

Temos, então, mais uma seqüência de tragédias. Absalão lidera uma conspiração contra o próprio pai, toma o trono e obriga Davi a fugir com toda a sua família e soldados de confiança. O rei é apedrejado e amaldiçoado. Em fuga, "o rei Davi e todo o povo que ia com ele chegaram exaustos ao Jordão, e ali descansaram".

 

Sem dúvida, esses últimos cinco anos tinham sido terríveis. Esse Davi, deprimido à beira do Jordão, estava longe de lembrar o pastor alegre e confiante no Senhor que derrotara Golias. A auto-suficiência do rei, sua insensibilidade e racionalização levaram-no ao pecado. Agora estava ali, às margens do rio, tendo dentro de si uma confusão de sentimentos acumulados: medo, ira, rejeição, culpa. 

 

Quando se arrependera, depois da exortação de Natã, Davi escreveu o salmo 51 e posteriormente o salmo 32. Dois textos belíssimos. O primeiro, sobre a confissão do pecado e o arrependimento. O segundo, sobre a felicidade daquele que recebe o perdão. Agora, no fundo do poço, com a família destroçada, suas concubinas sendo possuídas publicamente pelo próprio filho, destronado e amaldiçoado, só lhe restava descansar em Deus. 

 

O reinado de Absalão será curtíssimo. Ele é assassinado e o rei Davi vive um momento de profunda angústia. Recupera-se da dor da morte do filho rebelde, mas tão amado, e começa a reconquistar cada uma das tribos, em parte graças à participação diplomática e militar de seu amigo e braço direito durante todos esses anos: Joabe.

 

A tempestade estava passando. Os anos de chumbo terminavam. E Davi recomposto emocional e espiritualmente poderá dizer no final de sua vida:

 

"Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel me falou: aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo definida e segura. Não fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?”.

 

O Senhor Deus restaurara a vida de Davi. 

 

Mas fica uma pergunta: será que o rei durante esses anos trágicos tinha consciência do processo que estava vivendo? Temos uma pista bastante interessante: os já citados salmos 51 e 32. Vejamos o que eles dizem.

 

No salmo 51, salmo de confissão e arrependimento, logo no versículo três, Davi afirma: "(...) eu conheço as minhas transgressões e o meu pecado está sempre diante de mim".

 

Davi, na verdade tinha consciência do erro cometido. Quando escreve o salmo, ele já parou de racionalizar o seu erro. Ele não se justifica mais. É interessante ver como essa compreensão que tem de si próprio é real. Davi, neste salmo, usa palavras como purificar, lavar, renovar, restituir, sustentar, livrar e abrir, para dizer o que Deus precisa fazer por ele. Aqui ele vê suas limitações, vê sua humanidade decaída e pede a Deus que seja Deus pleno em sua vida. 

 

Duas coisas ficam claras nessa oração do rei Davi. Por um lado, reconhece que está vivendo o momento mais terrível de usa vida: distante de seu Deus, esse Deus que transformou um menino desprezado pelo pai, pastor de ovelhas, sem perfil para nada mais heróico, em rei ungido de Israel. Mas, se tem esta autocompreensão de seu estado de pecador pusilânime e irremediavelmente perdido, por outro, tem consciência de que não é isso que Deus quer para ele. "Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito reto".

 

E no salmo 32, o rei canta a alegria do perdão recebido. Ele se diz feliz, bem-aventurado, e explica que esses sentimentos existem porque "não ocultei os meus pecados".

 

Depois de reconhecer suas limitações, de ter seus pecados perdoados e de viver a alegria do perdão, Deus diz a Davi: "Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob as minhas vistas, te darei conselho".

 

Davi estava curado de seus pecados, mas Deus continuaria a lhe educar. Receberia ensinamentos e cresceria no conhecimento de seu Deus, de si próprio, e de seu próximo, enquanto estivesse vivo. Graças a esse crescimento permanente nós, as gerações futuras, fomos abençoados com os momentos de chumbo da vida do rei Davi, com seu arrependimento e com o conhecimento posterior que Deus lhe deu.

 

No correr das escrituras, Deus mostra seu propósito de redenção do ser humano e da terra. Assim, o livro de Gênesis fala da criação do universo, do lugar do homem nesse universo, da entrada do pecado no mundo, da genealogia de Adão a Noé, da perversidade e do castigo do velho mundo e das antigas famílias da humanidade.

 

É o livro dos princípios (bereshit, em hebraico), que mostra Deus como criador de todas as coisas. Deus é o criador pessoal, sábio, interessado nas coisas que faz e tem um propósito definido em toda a sua obra. Assim, o homem que ele cria é feito a sua imagem e semelhança, cheio de glória, com capacidade intelectual, moral e espiritual. "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a, dominai sobre (...). Eis que vos tenho dado (...). Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom (...)".

 

Nesses primeiros capítulos do livro de Gênesis encontramos uma teologia do ser humano e uma teologia da terra. Na primeira, vemos que esse homem criado a semelhança de Deus, com o propósito de governar, gerar e trabalhar, com responsabilidade moral sobre toda a criação e diante de Deus, desobedece. A desobediência, que também pode ser vista como rebelião diante da autoridade de Deus, gera o pecado e este a morte. "(...), mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás".

 

Deus tinha avisado, a desobediência haveria de marcar o início do reino da morte na vida humana, como nos explica o apóstolo Paulo. "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens porque todos pecaram". Espiritualmente morta, a humanidade é expulsa do paraíso e separada da presença de Deus. Essa situação leva a uma teologia da terra. O mundo deixa de ser "muito bom" e torna-se "maldito". 

 

Tal situação de morte e maldição tinha que ser quebrada. Mas a humanidade estava morta. Aquele que deveria dominar sobre a terra, tornou-se escravo. Só Deus poderia intervir. E é a esta intervenção planejada, programada e implementada pelo próprio Deus que chamamos de redenção. Assim, junto com a morte, vem o plano divino da redenção. E Deus fala a Satanás: "Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela. Ele lhe ferirá a cabeça e você lhe ferirá o calcanhar". 

 

A serpente mata ferindo o calcanhar, e o homem mata a serpente esmagando-lhe a cabeça. Esta imagem, Deus a transforma em realidade escatológica. A serpente é o próprio Satanás, que tem sua cabeça esmagada por Cristo. Esta é a primeira promessa de redenção feita pelo próprio Deus e assim entendida pela igreja cristã, como está escrito: "Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isso se manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo".

 

Esse plano de redenção vai ser implementado através da formação, num longo processo histórico, do povo de Deus. A promessa de uma nação escolhida para servir e proclamar a redenção foi feita ao patriarca Abraão: "Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Assim será a tua posteridade. Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça". E Deus firma um pacto como Abraão. Na verdade, mais que um pacto, é uma aliança de graça, que se confirmará no correr de anos, séculos e milênios através de novos pactos.

 

Deus escolheu Abraão e sua família com a finalidade de abençoar todas as famílias da terra. Faz dele pai de uma multidão. "Ora, tendo a escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: em ti serão abençoados todos os povos", diria dois mil anos mais tarde o apóstolo Paulo.

 

Essa aliança com Abraão não se restringiria a uma nação, embora tivesse como ponto de partida da promessa os descendentes físicos do patriarca. Essa nação, situada num lugar estratégico, encruzilhada para povos do Ocidente e Oriente, situada entre as grandes nações da terra, receberá o nome de Terra de Israel, neto de Abraão, que deixará de ser enganador para tornar-se, pela graça do Deus Altíssimo, vencedor. "Já não te chamarás Jacó e sim Israel: pois como príncipe lutaste com Deus e os homens, e prevaleceste". 

 

Com Moisés, a libertação da escravidão no Egito e a entrada na terra prometida, esse povo de Deus começa a viver sua fase teocrática, através de juízes que ministram as leis dadas por Deus no monte Sinai. São tempos difíceis, de aprendizado nas coisas de Deus, de erro e acerto, de afastamento e aproximação de Deus. 

 

Ainda no Sinai, Deus já havia alertado para a responsabilidade da aliança. "Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha". Como qualquer pacto, este também tinha dois lados: a promessa de Deus e a responsabilidade dos escolhidos. Era um pacto condicional, porque implicava por parte de Israel, ser "reino de sacerdotes, nação santa".

 

É importante notar, que com a criação da nação de Israel, Deus mostra que seu plano de redenção também está dirigido aos povos e nações. Egito, Moabe, Amom, Canaã, Fenícia, Assíria, Babilônia, Pérsia e todas as pequenas nações do mundo antigo deveriam ouvir a mensagem da redenção. Historicamente, vemos que isso acontece de forma marcante durante o reinado de Salomão, filho do rei Davi.

 

"Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo entendimento e larga inteligência como a areia que está na praia do mar. (...) De todos os povos vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra, que tinham ouvido da sua sabedoria". 

 

Se olharmos para Israel, podemos achar que o plano de Deus fracassou. Afinal, o período de juízes foi profundamente atribulado, o período do reino unido foi curto e a nação dividida acabou invadida e desterrada. Mas, apesar do fracasso humano, Deus foi um sucesso durante todo o período. Desde o Egito do faraó Sesostris III, do qual José, filho de Jacó, foi primeiro-ministro, até Hirão, rei de Tiro, que comerciava madeira com Salomão, todos os povos vizinhos e mesmo distantes tomaram conhecimento da existência do Deus único, criador dos céus e da terra.

 

Durante o reinado de Jeroboão II, rei de Israel, entre os anos 793-753 a.C., por exemplo, um profeta nacionalmente conhecido, oriundo de Gate-Hefer, povoado próximo a Nazaré, chamado Jonas ben Amitai, pregou na capital assíria, Nínive, durante o reinado de Assur-Dan. Tal pregação produziu um avivamento em direção ao monoteísmo como nunca se viu na história assíria.

 

Da mesma maneira, já durante o exílio, Daniel foi estadista durante os reinados de Nabucodonosor, Dario e Ciro. Testemunhou e profetizou para esses reis com tal ousadia e determinação, que Dario fez editar um decreto para todo o império babilônico, afirmando:

 

"Faço um decreto, pelo qual em todo o domínio do meu reino os homens tremam e temam perante o Deus de Daniel, porque ele é o Deus vivo e que permanece para sempre; o seu reino não será destruído e o seu domínio não terá fim. Ele livra e salva, e faz sinais e maravilhas no céu e na terra (...)".

 

Mas o plano de redenção da humanidade não podia restringir-se ao exclusivismo judaico. No tempo certo, a promessa que Deus fizera a Adão e Eva no paraíso "se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai".

 

A partir de agora, "é chegado o reino dos céus". O tão esperado reino messiânico começa a ser estabelecido. Com a chegada do Cristo tem início uma nova ordem. Essa nova ordem será traduzida em novo pacto, não mais com sangue de animais (sacrifícios rituais) ou mesmo de homens (circuncisão), pois "visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes (...). Jesus, porém, tendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando daí em diante, até que seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés". 

 

Já não vivemos na sombra, estamos na luz, que é Cristo.

 

Em cima do alicerce se constrói o prédio. E esse prédio é construído não em cima da tradição do antigo Israel, mas sobre "uma pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será de modo algum envergonhado. (...) Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Vós, sim, que antes não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia".

 

Agora, a redenção é plena para os gentios, sem a intermediação de Israel. Surgiu, com o novo pacto, uma nova nação, a Igreja de Cristo. Em Jesus se dá o cumprimento das antigas promessas feitas em Abraão. Quem são, então, os verdadeiros descendentes de Abraão, os verdadeiros beneficiados pelas promessas de Deus a ele?

 

São os crentes em Cristo em todas as nações. Abraão não só recebeu a justificação pela fé, mas recebeu esta benção antes de ser circuncidado. Abraão é o pai de todos aqueles que, sejam circuncidados ou não, seguem o exemplo de sua fé.

 

Os fiéis são chamados a assumir as responsabilidades de povo escolhido por Deus e de nação santa. Somos a semente de Abraão e as nações de toda a terra serão abençoadas por nossa definição missionária, apresentando a elas a redenção em Jesus Cristo, prometida ainda no Jardim do Éden. Pessoas de todas as nações são chamadas, como explicou Jesus:

 

"Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas".

 

Deus é o Deus da história. Seu próposito de redimir a humanidade do pecado foi planejado na eternidade passada e está em franco desenvolvimento. Hoje em dia, o crescimento da Igreja aumenta, proporcionalmente, mais rápido do que a população mundial. Diariamente, mais de 70 mil pessoas aceitam a redenção do pecado oferecida em Cristo Jesus.

 

"(...) vi e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos".

 

Passada a fase da Igreja, aberta com o derramar do Espírito Santo, conforme descrito em Atos 2, teremos o cumprimento pleno da promessa, que começa com a volta de Jesus Cristo e a construção, por Deus, de um novo universo.

 

"Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram (...)".

 

Enfim, os inimigos que, sorrateiramente, lá no Éden roubaram ao homem a glória, a vida e a comunicação perfeita com Deus, estão debaixo dos pés de Cristo. Onde está ó morte a tua vitória! Satanás e seus demônios foram lançados no lago de fogo. Tudo se fez novo. Há um novo homem, uma nova família, uma nova raça, uma nova terra. E uma benção de proporções universais, eterna. Este é o plano de Deus. 

 

É isso, a redenção está ao alcance da tua mão. 

 

Manda um abração pro Allende!

 

Dá-lhe Luís!

 

Do primo Daniel.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 13

 

 

Astarote transformara o útero de Yasmin numa caverna maldita. O demônio rompera as cadeias da forma e do espaço. Como fêmea, nua e sensual, abriu uma gaveta e olhou dentro. Enrugado e ressecado, um feto jazia inerte. Seus olhos grandes estavam espantados, como se tivessem sido cegados por trevas eternas. Seu rosto chupado e suas mãos estendidas pareciam pedir perdão por alguma coisa. Astarote, cheio de ódio pela vida, pegou o feto no colo, cantou uma cantiga de ninar e depois perguntou:

 

-- Como vai esse serzinho desprezível?

 

Guardou o feto de novo no armário. Seu pensamento sobrevoou as antigas terras da Síria e Palestina. Viu homens e mulheres lhe prestando culto. Prostitutas cultuais oferecendo amor e fertilidade. Promessas de prosperidade e bom augúrio. Abriu uma segunda gaveta. Um tumor vermelho, do tamanho de um ovo de galinha, vivo e palpitante olhou para o demônio. Astarote riu e sibilou com raiva:

 

-- Os homens sabem que são frágeis diante da vida. Temem o desfecho. A morte, tumor querido, rasga a esperança. O meu prazer consiste em atapetar o caminho do inferno.

 

E fechou a gaveta de um golpe.

 

Abriu, então, uma terceira gaveta e tirou de lá as memórias vividas com os demônios Shedu e Nebo.

 

Eu me lembro quando caiu a primeira bomba. Afinal, poucas vezes em toda a minha existência participamos de uma destruição tão organizada. Durante anos, planejamos cada detalhe, tomamos posse de homens e mulheres de partidos políticos, pensamentos e sonhos aparentemente diferentes. Demônios da guerra chegaram aos milhares, dominaram os ambientes e planejaram todas as ações. Nós auxiliamos. A meta era incrementar o ódio a todos os níveis.

 

Eles eram quatro adultos e quatro crianças. Todos cobertos com chagas e doenças de pele, que produziam pus amarelo forte e cheiro de enxofre. Os cabelos tinham caído parcialmente, o que lhes dava uma aparência de bonecos maltratados. E todos tinham perdido os dentes.

 

Empestiados, fedorentos, maltrapilhos. Estavam imersos na angústia. As dores e o sofrimento apontavam como única saída o suicídio. Mas um poder que, sem dúvida, não vinha deles, os empurrava para frente. E foi essa vontade de viver, que os levou a se ajudarem mutuamente. A cidade parecia uma escultura derretida, com formas infernais, um silêncio de túmulo e um cheiro de podre que nunca desapareceu.

 

Toda a água de superfície estava contaminada e queimava como fogo, quando em contato com a pele ou os lábios. Havia uma pequena fonte subterrânea, um olho d’água. Eles se protegiam do sol e da chuva que queimava num galpão de madeira, sem janelas. Era a única sensação agradável que sobrara: a de estar na sombra.

 

Era o inferno. Uma parceria perfeita entre demônios e homens. Nós o criamos com toda a força de nossa obstinação e o fizemos pior e mais terrível que todas as lendas e histórias que ouvíramos antes. Não havia uma única árvore viva em dezenas de quilômetros. Nenhum pássaro cruzava os ares. Até os insetos tinham desaparecido. De vez em quando, encontravam debaixo de alguma pedra um escorpião solitário. E ficavam olhando com um misto de desespero e dor. O escorpião, para eles, era o irmão na sobrevivência. Muitas vezes, olhavam e começavam a chorar. Era um diálogo patético.

 

À noite, quando não fazia tanto calor, plantavam hortaliças e com cuidado regavam planta por planta. Cobriram a plantação com um telhado improvisado, para que não estorricasse sob o sol ou morresse com a chuva.

 

Ter relações sexuais era horrível e doloroso. O contato das carnes queimadas pela radiatividade, o cheiro que exalavam, a penetração num organismo doente e quase podre inviabilizava o amor. Além do mais, tinham medo de ter filhos deformados.

 

Eu, Shedu e Nebo realizávamos nosso ódio. Nós demônios odiamos a espécie humana. Se é impossível vencer quem os criou, ao menos resta-nos a possibilidade de destruir a criatura. Um ser feito do pó da terra, algo tão material, frágil e passageiro não merecia ter os privilégios que tem, nem mesmo a semelhança com aquele que os criou. Nós nos rebelamos sim. E somos movidos pelo ódio, nos movemos nas sombras, queremos a morte e em nós não há lugar para arrependimento. Nosso objetivo é roubar, matar e destruir. E naqueles dias conseguimos isso como nunca antes. Mas temos inimigos. Inimigos que se tornam poderosos porque se unem à fonte da vida, àquele que é senhor sobre todos, inclusive sobre nós. Esses inimigos são os que levam o nome de cristãos. É preciso destruir os humanos rapidamente. Caso contrário, em Cristo surgirá uma nova espécie e esta, sem dúvida, será superior e imortal.

 

Em meio àquela destruição apareceu, não sei de onde, protegido por anjos, um missionário. E ele contou muitas histórias para aqueles homens e mulheres, de olhos rasgados, que desconheciam a Jesus, o Cristo, e o Reino do Eterno.

 

-- Havia um lugar além do Universo, um mundo de estrelas, habitado pelo Deus único, criador e eterno. Ele estava rodeado de seres criados de excepcionais poderes. Acontece que esses seres não tinham o privilégio da reprodução, nem o prazer do gozo do mundo material. Eram apenas seres de poderes excepcionais.

 

Mas Deus decidiu criar uma nova espécie, com a qual pudesse se relacionar, manter parceria, que participasse de seus objetivos e metas. Mais do que criatura, filhos. Ligados ternamente ao Criador, que se recriando povoassem uma região sem fim destinada a eles: o Universo. Assim, em amor, Deus escolheu um mundo pequeno e, num jardim previamente plantado, criou um ser lindo, perfeito.

 

Astarote parou de pensar na guerra. Olhou para as paredes do útero e urrou: Shedu, Nebo, Astarote! Demônios de um mundo vazio! Senhores isolados! Perdidos na solidão eterna! Quanto mais gritava, mais disforme e contraído ficava. Parecia agora não uma jovem sensual e lasciva, mas uma mancha de sangue, grudada nas entranhas invadidas. Teatralmente, perguntou-se:

 

É possível apunhalar o amor?

Qual é mais digno:

O ódio de Medéia, a mãe,

Ou o amor de Édipo? 

Qual é mais ódio? Qual é mais amor?

O amor se esconde

Sob os escombros da cidade, na galeria inundada do metrô,

Atrás da máquina de Coca-Cola.

O velho amor dos séculos,

Repetido, gasto, se esconde,

Ele é xingado,

Virou merchandising,

Foi despido

E crucificado nu

Numa esquina da 5th Avenue.

É possível apunhalar o amor?

 

Sua gargalhada ecoou através de cada milímetro daquele corpo doente. E pensou que, à maneira de Nebo, o demônio das palavras mortas, ele também sabia fazer poesias.

 

Odeio. Odeio os ensinamentos do missionário. Mas, o que ele ensinou àqueles miseráveis, mortos-vivos do terror nuclear, fez deles seres novos. Salvos. Reconstruídos espiritualmente pela engenharia genética da vida eterna em Jesus, o Ungido de Deus. Em poucos anos, todos estavam mortos, adultos e crianças, mas ressuscitarão, livres e eternos. Belos. Novinhos em folha. E eu perdi. E me revolvo de ódio no sangue dessa desgraçada, só de pensar que perdi, que apodrecerei, eu também, fechado eternamente em trevas.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 14

 

 

11 de setembro de 1973. Dez horas da manhã. Acordo. A noite foi longa e insone. Ficamos em treinamento até de madrugada. Tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. Allende se mostra indeciso. Deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. Mas não quer romper a legalidade. Se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer.

 

Muita gente da Unidade Popular confia na fidelidade das forças armadas ao governo. Mas parece que essa não é a experiência histórica...

 

Peguei a rádio Corporación. É Allende. Ele está falando.

 

-- Certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da rádio Magalhães. Minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. Soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Marinha, mais o senhor Mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de Carabineiros...

 

-- Diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!

 

-- Em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.

 

-- Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Estavam comprometidos. A história os julgará. Certamente, a rádio Magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. Não importa. Continuarão a ouvi-la...

 

-- Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

 

-- Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores!

 

-- Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição.

 

Ele parou de falar, mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. O que está acontecendo... Por que esse derrotismo?

 

Giro o dial. Uma voz metálica ameaça. Estarrecido ouço o general Augusto Pinochet ordenar a rendição incondicional do companheiro Allende, caso contrário a Força Aérea bombardeará o palácio La Moneda.

 

Corro até a janela e olho para o palácio. Imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... Bombardear... Não, isso é impossível. Giro o dial de novo e pego o rádio-amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... Em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda.

 

Será que um golpe contra Allende pode ser bem-sucedido? É impossível prever. E o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? Não irão às ruas, não vão resistir?

 

Peguei um diálogo... 

 

O Palácio de La Moneda está cercado por tropas do Exército. A polícia de Allende recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos militares.

 

O presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Allende suicidou-se, foi fuzilado?

 

-- Creio que a história do suicídio é falsa. Acabei de falar com o adido naval... Eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante Patrício Carvajal ao general Pinochet.

 

-- De acordo. Acaba de me chamar o subsecretário da Marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. Esse cara é traiçoeiro. Se quiser se render, que vá ao ministério da Defesa para se entregar aos comandantes.

 

Allende está acuado no palácio. Por telefone fala com o Ministério da Defesa. Só aceita dialogar no palácio presidencial.

 

-- O presidente da República só recebe em La Moneda, diz uma voz por telefone.

 

-- Esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. Nós estamos nos mostrando débeis. Não aceito nenhum encontro. Encontro significa diálogo. A rendição é incondicional. É bem claro o que digo: rendição incondicional. Se quiser, ele que venha e se entregue. Se não, vamos bombardear o palácio o quanto antes.

 

Pinochet está irado. Seus pares concordam com ele.

 

-- De acordo... Em dez minutos, vamos bombardear La Moneda, declara o vice-almirante Patrício Carvajal.

 

Hawker Hunters, aviões de caça da Força Aérea chilena, surgem como pequenos pontos no horizonte. Vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. E os mísseis, um, dois, três... Perco a conta, vão acertando o alvo. O centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. Um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua democracia.

 

Paredes internas do palácio desabam. 

 

-- Pegue o ministério do Allende e vamos mandar todo mundo para fora do país. Já... De avião..., diz Carvajal.

 

-- Tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda Pinochet.

 

-- Minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. No caminho, vão sendo eliminados...

 

O general Gustavo Leigh, comandante da Força Aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. Para ele, comunista bom é comunista morto.

 

Os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos:

 

-- Esse sujeito é um facho.

 

Os assessores de Allende estão abandonando o palácio, a pedido do próprio presidente. Agitam uma bandeira branca. Pinochet quer saber se Allende integra o grupo.

 

-- E Allende? Saiu ou não saiu?

 

-- Não saiu, diz que o ministro Flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição.

 

-- Não há nenhuma condição decorosa. Esse imbecil, o que ele está pensando? A única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito.

 

Pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar Salvador Allende e seu círculo mais próximo para o exílio, num avião. Mas, a pressão de Leigh vai ganhando espaço entre os militares. Por volta do meio-dia, Pinochet concorda que seria preferível que o presidente morresse.

 

-- Mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas o avião cai quando estiver voando.

 

-- De acordo... 

 

Sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no Hotel London. Quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato?

 

Após a saída dos assessores, o presidente Allende, dentro de La Moneda, é fuzilado por um grupo de militares. Informado, o Ministério da Defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles Pinochet. Mas não contam a verdade.

 

-- Leigh e Pinochet, Carvajal. Há uma informação de dentro do La Moneda. Pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. They say Allende comitted suicide and is dead nowDigam-me se me entendem.

 

-- Entendido.

 

-- Entendido.

 

-- Em relação ao avião para a família, a medida não tem mais urgência.

 

-- Que joguem o corpo de Allende num caixão e o embarquem junto com a família. Que o enterro seja feito em outra parte, em Cuba. Até para morrer esse cara nos causou problemas.

 

São as últimas palavras de Pinochet. O zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. E eu começo a chorar. Convulsivamente. 

 

 

 

Nunca tinha visto nada igual. O céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre Santiago. Uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade.

 

Não consigo sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel há uma sede do Partido Socialista. De lá de dentro matraqueia uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista esta cercada por militares entrincheirados.

 

Um helicóptero do Exército aparece, voa baixo, pára em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. Fazem isso várias vezes. A impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. É impossível por o pé na rua.

 

Quando chega a tarde recebo um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Anabella fala comigo chorando:

 

-- Estou presa, você precisa vir me soltar.

 

Passa pela minha cabeça que se eu não for soltá-la nunca mais vou vê-la. Mas eu tenho que ir para Indumet, tenho que juntar-me ao companheiros do comando León Trotsky, com os companheiros do MIR. Tenho que salvar Anabella... Ela vai ser fuzilada... 

 

 

 

No dia seguinte, a primeira coisa que faço, numa atitude totalmente tresloucada, é, esgueirando-me o melhor que posso, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Chego lá e peço para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebo ordem de prisão:

 

-- Você é brasileiro? Está preso.

 

Não têm onde me por: me deixam no corredor, e aí fico de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. É o segundo dia do golpe, está uma confusão danada, e lá pela tarde o Quartel General começa a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caem dentro do corredor. Soldados correm para todos os lados. Trocam o soldado que me vigia e eu aproveito a confusão e dou uma ordem:

 

-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.

 

O soldado reclama, diz que não pode, mas diante de minha intransigência acaba concordando. Quando chego ao quinto andar, peço ao assessor de imprensa que providencie um jipe militar, porque tenho que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar minha companheira que está presa, por engano.

 

-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível...

 

Concordo com ele e o soldado, ainda confuso, me deixa sair do quartel. Chegar ao hotel não será fácil. Há trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levanto minha carteira de jornalista, e grito:

 

-- Sou jornalista.

 

Corro e pulo na trincheira. Converso um pouco, explico que tenho que seguir em frente e ouço:

 

-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você.

 

Quando estou quase chegando à outra trincheira, volto a gritar:

 

-- Sou jornalista...

 

E assim à noite, por puro milagre, chego inteiro, são e salvo, ao hotel.

 

 

 

-- Hoje tenho que ir direto à Base Aérea de Cerrillos.

 

Ela que fica num bairro distante do centro da cidade. E eu passo o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não há condução. Há o toque de recolher, que proíbe às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo está parado. Às quase cinco da tarde passa um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chega próximo, lanço-me à frente dele e começo a gritar para que pare. Ele para. O taxista me diz que esta indo para casa, que fica longe, na cidade de Valparaíso. Então, ousadamente, dou-lhe voz de prisão:

 

-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso.

 

Ele olha para mim, estupefato, e pergunta:

 

-- O senhor é da embaixada brasileira?

 

Sei que o governo brasileiro está apoiando o golpe militar, por isso não hesito:

 

-- Sou.

 

Então ele me leva até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea está sendo bombardeada com morteiros. O táxi passa pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. Rapidamente, os militares da Aeronáutica nos cercam. Cai uma garoa forte.

 

Ordenam que eu desça do carro. Fico no meio de um gramado, nas guaritas há soldados armados com fuzis e metralhadoras. Dão uma segunda ordem:

 

-- Tira a roupa, toda a roupa.

 

Debaixo da garoa fina, tiro a roupa e mergulho numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado.

 

Um oficial sai de uma das guaritas e pede o meu passaporte. Explico que vim buscar minha companheira. Debaixo da chuva fina, ele abre o passaporte, que é falsificado, olha-o rapidamente e me devolve. Manda chamar Anabella. Ela vem chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chora de raiva, por ter sido enganado, nega-se a nos levar de volta. Dirijo-me ao oficial e digo:

 

-- Este homem não quer nos levar de volta.

 

O oficial responde:

 

-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.

 

E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.

 

 

 

Quando chegamos ao hotel, Anabella conta que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal, não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. No breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel.

 

No hotel o ambiente está alvoroçado. A televisão apresenta uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não vou me entregar.

 

Anabella e eu sabemos que podemos ser denunciados, mas não temos escolha. Vamos passar esta noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana.

 

Acordo sobressaltado. Estão esmurrando a porta. Vou abrir. Levo uma coronhada na cara. É tudo muito rápido. Abro os olhos, em meio ao sangue que escorre pelo meu rosto, e levo outra coronhada. A cada coronhada eu desmaio e quando volto a mim sou golpeado de novo. Levam tudo o que podem levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, somos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogam num ônibus, deitados. Começam então a maltratar Anabella. Chutando-na e pisoteam. Eu grito:

 

-- Não façam isso, ela está grávida.

 

É mentira, mas eles param.

 

Não sabemos para onde estão nos levando. Uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, somos obrigados a descer diante de um quartel: é o regimento Tacna. Vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. Minha cabeça dói terrivelmente. Sinto o rosto inchado e quente. Minha camisa está empapada de sangue, já meio endurecido. A sensação é muito desagradável. Parece que estou vivendo um pesadelo. O sentido de realidade se perde no meio desse cenário de morte.

 

Nos largam numa espécie de cozinha. Eu caio no chão e apesar de muito machucado tenho uma sensação de alívio. O chão de ladrilho é frio e transmite uma sensação agradável ao meu corpo. Estou vivo. Isso é o que importa.

 

Eu e Anabella estamos quietos. Quebro o silêncio e arrisco uma frase de humor:

 

-- Não se preocupe. Eles não têm nada contra você. Na semana que vem você já estará em Copacabana, no maior bronze.

 

Sei que vou morrer. Vão me meter uma bala na cabeça e vão me jogar numa vala qualquer. Estou calmo. Minha intimidade com Deus está anda precária, por isso não oro, nem peço nada. Mas gostaria que Anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o Rio de Janeiro, ali para o Posto 4, para curtir a praia que ela tanto gosta.

 

O que pensa um homem antes de morrer? Sempre tive essa curiosidade. E agora estou tendo a oportunidade de matá-la. Não penso em nada. É como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. Nem mesmo posso dizer que estou plenamente consciente.

 

Mais do que pensar, eu sinto. Sinto os ladrilhos frios no meu rosto inchado. E isso é agradável. Sinto o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. Tão pesado que parece que vai entrar chão adentro. E isso também é agradável. 

 

Talvez essas sejam as sensações de um feto. Ele não pensa, sente. E o tempo já não existe. Estou aqui faz minutos ou horas? Não sei...  

 

Chega um coronel e nos informa:

 

-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde.

 

O tempo é um redemoinho e eu estou mergulhando nele. Num momento estamos cansados, machucados, tontos, noutro, somos agarrados, levantados, levados. Nos colocam no início de uma fila, umas oito pessoas caminhando para o paredón.

 

De repente, um tenente me chama. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chama. Saio da fila, faço um sinal para Anabella me acompanhar. E o oficial me pergunta:

 

-- Você foi preso com muito material subversivo, é verdade?

 

Digo que é verdade, que sou jornalista, e que tudo foi comprado. Ele diz que também tem muitos daqueles livros em casa. Sinto uma empatia profunda com aquele jovem. Estou diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do La Moneda.

 

Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatem os outros companheiros.

 

Somos então mandados para interrogatório. Combino rapidamente com Anabella que apenas eu falarei para não entrarmos em contradição. Explico aos militares que estou estudando na Universidade do Chile, que amo esse país e que nunca me passou pela cabeça sair do Chile. É um interrogatório leve. Vêem que sou correspondente estrangeiro, e me entregam um salvo-conduto para que tenha livre trânsito.

 

Estamos apenas com a roupa do corpo. Não temos nada. Mas a vida é o bem maior, mesmo quando temos apenas a roupa do corpo. Andarillhamos pelo centro de Santiago, até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas. O hotel está cheio de conhecidos, velhos companheiros, exilados brasileiros. Dudu, filho do Zé Maria, é um deles. Será que esse é o melhor lugar para um brasileiro se esconder?

 

Do hotel telefono para Nova Iorque, para um grande amigo meu, Peter, que pertence ao Socialist Workers Party. Não consigo falar com ele, peço então a uma amiga que trabalha no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Peter. Explico a situação e peço para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. Dois dias depois, o dinheiro chega. Compramos roupas. Quando os aeroportos abrirem chegarão também as passagens.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 15

 

 

O centro de Santiago se transformou num parlamento. Não podemos ouvir claramente as vozes porque estão amordaçadas, podemos ouvir os pensamentos que se debatem em meio aos clamores de justiça e liberdade.

 

Cada homem e mulher da Unidade Popular, não importa o matiz político, tem o coração partido e sente-se abandonado pelo destino. Ninguém fala, cada um olha para o outro como se vivesse o momento maior da traição. O terror vai tomando conta dos corpos e mentes.

 

Aqui, no minicentro formado por Ahumada com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podemos ouvir os pensamentos da gente que lutou e morreu na tragédia dos últimos dias. 

 

O cenário de todos esses dias é parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensangüentados, rasgados, mutilados vagueiam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. Ninguém fala alto, ninguém reparte panfletos ou jornais. Não se vêem grupos ou círculos. Ninguém escuta argumentos, ninguém polemiza.

 

Ninguém é partidário. Somos todos apolíticos, sombras que vagueiam pelo centro.

 

A poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob comando de oficiais observam se alguém traspassa a fronteira do bom senso e abre a boca.

 

Pensamos. Olhamos o companheiro que passa e pensamos. Ele entende e nos responde. Todos falamos, a comunicação é plena e solidária, apesar do medo. Sem som, sem voz, nos comunicamos. 

 

Eis o espelho do Chile atual, medo e esperança, dialogam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção. 

 

Preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção.

 

Ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da democracia.

 

Não se preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos peatones.

 

 

 

Cena Um

Diálogo Um

 

 

Jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um sonho.

 

-- No dia 11 de setembro eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento.

 

Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa e a parca verde oliva queimadas.

 

-- Nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.

 

Senhora de 55 anos chora o filho desaparecido.

 

--Digam aos militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos...

 

Moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão...

 

-- Pão nós temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos...

 

 

 

Cena Um

Diálogo Dois

 

 

Jovem triste...

 

-- Estive de guarda do lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas.

 

-- Eles estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo com elas. Essa mudança nós não queremos.

 

Velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso. 

 

-- Não percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar. 

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- É isso mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones... O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles. 

 

Homem baleado no peito...

 

-- Faço parte da direção do Grupo de Amigos do Presidente -- GAP e sempre defendi a idéia de que em caso de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência...

 

 

 

Cena Um

Diálogo Três

 

 

Um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada.

 

-- E se as mudanças forem boas? E se houver mais empregos?

 

Velho, de óculos...

 

-- Os milicos darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo... 

 

Jovem triste...

 

-- A situação política e militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer rápido, no máximo em meia hora...

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Mas porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui? Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o dinheiro de fora começa a entrar?

 

Velho, de óculos...

 

-- Diga-me senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima do seu cadáver.

 

Velho, de óculos...

 

-- O setor privado chileno está de braço dado com os militares.

 

Homem baleado no peito...

 

-- Allende preferiu ir para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos.

 

Velho, de óculos...

 

-- E há mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém.

 

 

 

Cena Dois

Diálogo Um

 

 

Jovem triste...

 

-- Fui despertado às cinco e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade. Eram sete da manhã. 

 

Velho, de óculos...

 

-- Minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?...

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. Sempre votei nulo.

 

Velho, de óculos...

 

-- Então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...

 

Moça desgrenhada

 

-- As armas falam mais alto que as urnas...

 

Homem baleado no peito...

 

-- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate.

 

 

 

Cena Dois

Diálogo Dois

 

 

Índio mapuche, forte, troncudo. 

 

-- Os militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado. 

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- É, os mapuches não têm opção.

 

Senhora de 55 anos...

 

-- Temos que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar.

 

Jovem triste...

 

-- Eu e Isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta.

 

Moça desgrenhada...

 

-- Mas o que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados com o La Moneda?

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- E de que valeu votar na Unidade Popular?

 

Velho, de óculos...

 

-- Valeu votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o momento de usarmos outras armas...

 

Homem baleado no peito...

 

-- Os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar sobre o La Moneda.

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a oposição?

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Pior ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita gente da UP...

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Se ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim.

 

 

 

Cena Dois

Diálogo Três

 

 

Homem baleado no peito...

 

-- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar.

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Tudo começou o governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes.

 

Índio mapuche, forte, troncudo.

 

-- Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode.

 

Moça desgrenhada...

 

-- Os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares nem democráticos são...

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- É, mas, em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado.

 

Índio mapuche, forte, troncudo.

 

-- Concordo em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que Allende estava implodindo o estado de direito...

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- É, a Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei.

 

Senhora de 55 anos...

 

-- Estou de acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e a direita, o que fez em toda a história da República?

 

Moça desgrenhada...

 

-- Não me interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular pode ser uma mierda, mas é o meu governo.

 

Homem baleado no peito...

 

-- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.

 

Jovem triste...

 

-- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio.

 

 

 

Cena Três

Diálogo Um

 

 

Jovem triste...

 

-- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.

 

Moça desgrenhada...

 

-- Estão falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho?

 

Senhora de 55 anos...

 

-- Será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?

 

Moça desgrenhada...

 

-- Matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora aos militares...

 

Homem baleado no peito...

 

-- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque Cormo.

 

Moça desgrenhada...

 

-- A senhora tem alguma esperança em Pinochet?

 

Senhora de 55 anos...

 

-- Não falei de Pinochet, falei de gente desalmada...

 

Moça desgrenhada...

 

-- Mas e Pinochet? Gosta ou não gosta?

 

Senhora de 55 anos...

 

-- Você está me provocando... Claro que não gosto.

 

Moça desgrenhada...

 

-- Senhora, não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos...

 

Senhora de 55 anos...

 

-- E os meus também...

 

Jovem triste...

 

-- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- O que você acha de Allende?

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Eu que pergunto: em que deu seu governo?

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome?

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Allende ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade.

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Então foram os militares, e eu não tenho nada com isso...

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- Vocês se aliaram à direita civil...

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- De acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e não sou de direita.

 

Operário, veste um macacão manchado de graxa...

 

-- O único que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira.

 

Um homem destoa do ambiente...

 

-- Sabe de uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile.

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

 

--¡Se siente, se siente, Allende está presente!

 

Jovem triste...

 

-- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário.

 

“Olha, estamos no meio do golpe”.

 

“Então estamos indo para o La Moneda, com reforços”. 

 

“Não sejam loucos. É impossível, estamos isolados”.

 

Homem baleado no peito...

 

-- Além das armas do parque Cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de Irarrázaval.

 

 

 

Cena Três

Diálogo Dois

 

 

O jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio.

 

-- Ele entendeu. Era uma despedida. Senti novamente de sentido de missão que me levara ao GAP. O combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi sua vida. Não há tempo. 

 

-- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas.

 

-- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo.

 

-- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.

 

-- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas, de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos”.

 

-- Meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus.

 

-- Logo chegou a ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna.

 

-- Eu fiquei, no meio daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado.

 

-- Quando desci do ônibus, um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram.

 

-- Depois de carregar a camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta.

 

-- Fomos colocados em galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados à meia-noite. Depois às cinco da manhã.

 

-- Às dez e meia, voltei para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos.

 

-- Havia mudança de guarda a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados.

 

-- A comissão política ordenou que déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe.

 

Um homem de quarenta anos entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê.

 

-- Eu também combati no palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro.

 

Jovem triste...

 

-- Eu não queria morrer aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 

Homem baleado no peito...

 

-- Fomos para Indumet. Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega, então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio.  

 

Homem de quarenta anos...

 

-- O presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana. Eram quase duas da tarde.

 

Homem baleado no peito...

 

-- Carabineiros começam a cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio. 

 

Homem de quarenta anos...

 

-- Discutimos se devíamos nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro.

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 

 

 

Cena Três

Diálogo Três

 

 

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.

 

A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.

 

León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.

 

Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola. 

  

Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhou incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.

 

Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.

 

Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.

   

Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.

 

O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.

 

Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.

 

Tentei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”. 

   

Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui com esse comando.

 

No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.

 

Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.

 

Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.

 

Os militares tinham ocupado todas as rádios.

 

O homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe:

 

--Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos.

 

O operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa:

 

-- Eis um homem digno.

 

O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a fazer silêncio.

 

Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado.

 

Saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir.

   

Esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações.

 

Falamos por telefone com diferentes regiões de Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de Santiago sem armas...   

 

Está confirmada a morte de Allende. Do comando que partiu de Sumar restam poucos homens...

 

Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!

 

A curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”. 

 

 

 

Meu olhar passeia triste pelo microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por fantasmas...

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 16

 

 

A meu Senhor e meu Deus, como estou triste, como é profundo este abismo. Os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. Tudo isso ficou colado em minha alma. Estou morto.

 

Ontem, eu e Anabella vimos carabineiros retirando corpos que flutuavam no rio Mapocho. Pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. Há um medo generalizado. Ninguém acredita no que está acontecendo. Todos queremos acordar desse pesadelo.

 

Anabella olha pela janela do quarto. Acende um cigarro e continua olhando. Suas mãos finas tremem. Fora dois detalhes, que traduzem a angústia e o desespero, parece uma estátua diante da janela. As mãos tremem e umas poucas lágrimas rolam em seu rosto.

 

Não sei o que dizer.

 

Os pensamentos revoam. Distantes passam voando e vão embora. Meu pai, minha mãe... É como se minha alma procurasse pousar em algum lugar mais não encontrasse terra firma. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Nunca algo foi tão verdadeiro.

 

Senhor Deus perdoa minha auto-suficiência. Não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros me digam o contrário. Não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada.

 

Levanto-me, vou até a janela. Fico ao lado de Anabella. Ponho a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. Sei que não tenho o direito de quebrar esses momentos de reflexão. São os primeiros em muitos dias. Não tivemos tempo, não paramos para pensar, apenas fugimos da morte. Estamos mortos.

 

Lá fora alguns operários com britadeiras fazem um buraco no meio da rua. Que cena terrível. Homens de cera cavando sepulturas no asfalto. O ruído atravessa nossos sentidos e esmaga nossos sentimentos. Não existe realidade, não existe sonho, tudo é pesadelo. Sinto uma dor forte no estômago. Tiro a mão do ombro de Anabella e me sento de novo.

 

Senhor Deus, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. Nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. Perdoa minha luxúria. Perdoa o sofrimento que causei a Yasmin.

 

Olho para a janela e Anabella continua paralisada. Meus olhos estão mareados pelas lágrimas. Anabella parece Yasmin. Sei que são diferentes, mas o foco se perde e Yasmin está diante da janela olhando os operários de cera, que cavam sepulturas no asfalto.

 

-- Luís, a guerra não acabou. Allende está morto, parte da liderança da Unidade Popular está presa, mas a guerra não acabou.

 

-- Yasmin, querida Yasmin, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. Vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora.

 

-- Não seja pequeno-burguês. Você está vivo e tem muita coisa a fazer. A realidade é maior que o seu pesadelo.

 

Ah! Onde estará Yasmin, Túlio, Luiz Carlos, Nélson, Vânio...

 

Senhor Deus, se Yasmin está certa, levanta-me. Aceito a guerra se for a tua guerra. Talvez seja essa a oração de minha mãe. Liberta-me da violência e livra-me do mal.

 

Oh! Senhor Deus cuida também dos amigos e parentes de


 

 

 

    Luis Bernardo Acevedo Andrade  

     Pedro Gabriel Acevedo Gallardo  

     María Eliana Acosta Velasco  

     Miguel Angel Acuña Castillo 

     Juan Antonio Acuña Concha  

     Ejidio Roespier Acuña Pacheco  

     René Roberto Acuña Reyes  

     José Salvador Acuña Yañez  

     José Domingo Adasme Nuñez.

     Francisco Eduardo Aedo Carrasco  

     Luciano Aedo Hidalgo  

     Manuel Jesús Aedo Landeros  

     Luis Evangelista Aguayo Fernandez  

     Héctor Domingo Aguayo Olavarria.

     Santiago Domingo Aguilar Duhau  

     Manuel Antonio Aguilera Aguilera  

     Stalin Arturo Aguilera Peñaloza  

     Desiderio Aguilera Solis  

     Juan Antonio Aguirre Ballesteros  

     Antonio Aguirre Vasquez  

     José Ernesto Agurto Arce  

     Jorge Aillon Lara  

     Cherif Omar Ainie Rojas  

     Salvador Alamos Rubilar.

     Eduardo Enrique Alarcon Jara  

     Cecil Patricio Alarcon Valenzuela  

     Miguel Del Carmen Albornoz Acuña  

     Alberto Albornoz Gonzalez  

     Alejandro Albornoz Gonzalez  

     Daniel Alfonso Albornoz Gonzalez  

     Felidor Exequiel Albornoz Gonzalez  

     Guillermo José Albornoz Gonzalez  

     Hernán Fernando Albornoz Prado  

     Juan Humberto Albornoz Prado  

     Jaime Aldoney Vargas  

     Eduardo Gustavo Aliste Gonzalez  

     Nelson Cristián Almendras Almendras 

     Luis Jorge Almonacid Dumenes  

     Mirta Mónica Alonso Blanco  

     Jorge Ladio Altamirano Vargas  

     María Inés Alvarado Borgel  

     Juan Emilio Alvial Mondaca  

     Cardenio Ancacura Manquian  

     Alejandro Ancao Paine  

     María Angélica Andreoli Bravo 

     Jorge Elías Andronicos Antequera 

     Juan Carlos Andronicos Antequera 

     Lucio Hernán Angulo Carrillo 

     Antonio Aninao Morales 

     José Luis Appel De La Cruz 

     Carlos Alberto Aracena Toro

     Roberto Enrique Aranda Romero 

     Pablo Ramón Aranda Shmied 

     Dignaldo Herminio Araneda Pizzini 

     Luis Alberto Araneda Reyes 

     José Gilberto Araneda Riquelme 

     Rafael Eduardo Araneda Yevenes 

     Jorge Antonio Aranguiz Gonzalez 

     Santiago Edmundo Araya Cabrera 

     Alfonso Del Carmen Araya Castillo 

     Jorge Manuel Araya Mandujano 

     Rafael Segundo Araya Villanueva 

     Manuel Heriberto Araya Zavala 

     Bernardo Araya Zuleta 

     Ariel Arcos 

     Guillermo Jesús Arenas Diaz 

     Víctor Daniel Arevalo Muñoz 

     Alberto Vladimir Arias Vega 

     Manuel Jesús Arias Zuñiga 

     Diana Frida Aaron Svigilsky 

     Luis Sergio Aros Huichacan 

     Levi Segundo Arraño Sancho 

     Gabriela Edelweiss Arredondo Andrade 

     María Del Carmen Arriagada Jerez 

     Rubén David Arroyo Padilla 

     Juan Luis Ascencio Solis 

     José Ramón Ascencio Subiabre 

     José Braulio Astorga Nanjari 

     Enrique René Astudillo Alvarez 

     José Luis Astudillo Celedon 

     Omar Enrique Astudillo Rojas 

     Ramón Osvaldo Astudillo Rojas 

     Vicente Atencio Cortes 

     Angel Omar Athanasiu Jara 

     Pablo Germán Athanasiu Laschan 

     Alejandro Juan Avalos Davidson 

     Oscar Eduardo Avello Avello 

     Celso Avendaño Alarcon 

     César Osvaldo Del Carmen Avila Lara 

     Roberto Iván Avila Sepulveda 

     Juan Bautista Avila Velasquez 

     Oscar Luis Del Carmen Aviles Jofre 

     José Oscar Badilla Garcia 

     Ambrosio Eduardo Badilla Vasey 

     José Luis Baeza Cruces 

     José Lucio Bagus Valuenzela

     José Emiliano Balboa Benitez 

     Tito Roberto Balboa Chavez 

     Jenny Del Carmen Barra Rosales 

     Luis Alberto Barraza Ruhl 

     José Guillermo Barrera Barrera 

     Antonio Arturo Barria Araneda 

     Guido Ricardo Barria Bassay 

     Héctor Alejandro Barria Bassay 

     Manuel Enrique Barria Navarro 

     Juan Esteban Barrientos Aedo 

     Osvaldo Segundo Barriga Gutierrez 

     Alejo Barriga Nahuelhual 

     Juan Bautista Barrios Barros 

     Alvaro Miguel Barrios Duque 

     Jaime Antonio Barrios Meza 

     Manuel Eduardo Bascuñan Aravena 

     Juan Bautista Bastias Riquelme 

     Luis Alberto Bastias Sandoval 

     Guillermo Roberto Beausire Alonso 

     Manuel Mario Becerra Avello 

     Wilson Alfredo Becerra Cifuentes 

     Mario Omar Belmar Soto 

     José Claudio Beltran Curiche 

     José Ignancio Beltran Meliqueo 

     María Isabel Beltran Sanchez 

     Lincoyan Yalu Berrios Cataldo 

     Emilio Betanzo Ortega 

     Silvio Francisco Bettancourt Bahamondes 

     Patricio Biedma Schadewaldt 

     Jacqueline Del Carmen Binfa Contreras 

     Manuel Orlando Bioley Ojeda 

     Juan Andrés Blanco Castillo 

     Domingo Bartolome Blanco Tarres 

     Vicente Ramón Blanco Ubilla 

     Manuel Antonio Bobadilla Bobadilla

     Ismael Rolando Bocaz Muñoz 

     Octavio Julio Boettiger Vera 

     Cecilia Miguelina Bojanic Abad 

     José Héctor Borquez Levican 

     Miguel Angel Arturo Brant Bustamante 

     Rubén Bravo Bravo 

     Francisco Javier Bravo Nuñez 

     Guillermo Alberto Bravos Rivas 

     Juan De La Cruz Briones Perez 

     Alan Roberto Bruce Catalan 

     Amelia Ana Bruhn Fernandez 

     José Gaston Buchhorsts Fernandez 

     Carmen Cecilia Bueno Cifuentes 

     René Burdiles Almonacid 

     Osvaldo Burgos Lavoz 

     Elba Burgos Saez 

     Alfredo Arnaldo Busch Oyarzun 

     Guillermo Del Carmen Bustamante Sotelo 

     María Teresa Bustillos Cereceda 

     José Ignancio Bustos Fuentes 

     Ricardo Segundo Bustos Martinez 

     Sonia De Las Mercedes Bustos Reyes 

     Jaime Mauricio Buzio Lorca 

     Tomás Orlando Cabello Cabello 

     José Angel Cabezas Bueno 

     Rubén Guillermo Cabezas Pares 

     José Hugo Cabezas Pérez 

     Segundo Enrique Cabezas Pérez 

     Antonio Sergio Ernesto Cabezas Quijada 

     Pedro Antonio Cabezas Villegas 

     Juan De Dios Cabreras Figueroa 

     Sergio Enrique Cadiz Cortez 

     Luis Nelson Cadiz Molina 

     Jaime Del Transito Cadiz Norambuena 

     Francisco Javier Calderon Nilo 

     Jorge Eduardo Calderon Otaiza 

     José Calderon Ovalle 

     Mario Eduardo Calderon Tapia 

     Lorenzo Maximiliano Calfil Huichaman 

     Eduardo Alejandro Alberto Campos Barra 

     José Alejandro Campos Cifuentes 

     Sebastían Hernaldo Campos Diaz 

     Rubén Antonio Campos Lopez 

     José Gabriel Campos Morales 

     Heriberto Campos Vines 

     Anselmo Antonio Cancino Aravena 

     Adán Del Carmen Cancino Armijo 

     Eduardo Canteros Prado 

     Clara Elena Canteros Torres 

     Manuel Fernando Canto Gutierrez 

     Ramón Alfredo Capetillo Mora 

     Horacio Neftali Carabantes Olivares 

     Raúl Iván Carcamo Aravena 

     Saúl Sebastían Carcamo Rojas 

     Rudy Carcamo Ruiz 

     Víctor Modesto Cardenas Valderrama 

     Marcelino Cardenas Villegas 

     Luis Caupolican Carfurquir Villalon 

     Ricardo Eduardo Carrasco Barrios 

     Mario Sergio Edrulfo Carrasco Diaz 

     Carlos Alberto Carrasco Matus 

     Abel Carrasco Vargas 

     Iván Sergio Carreño Aguilera 

     Cristina Magdalena Carreño Araya 

     Enrique Del Angel Carreño Gonzalez 

     Manuel Antonio Carreño Navarro 

     Jorge Ernesto Carrion Castro 

     Cristian Victor Cartagena Perez 

     Manuel Filamir Cartes Lara 

     Enrique Armando Carvallo Lira 

     Mario Eduardo Casanova Pino 

     Gabriel Castillo Cerna 

     Nestor Hernán Castillo Sepulveda 

     Gabriel Del Rosario Castillo Tapia 

     José Eugenio Castro Alvarez 

     Juan Isaías Castro Brito 

     Daniel Antonio Castro Lopez 

     José Ignancio Castro Maldonado 

     Héctor Guillermo Castro Saez 

     Cecilia Gabriela Castro Salvadores 

     Pedro Daniel Castro Sepulveda 

     Oscar Manuel Castro Videla 

     Isidoro Segundo Castro Villanueva 

     Manuel Ramón Castro Zamorano 

     Celindo Catalan Acuña 

     Hernán Eusebio Catalan Escobar 

     Samuel Alfonso Catalan Lincoleo 

     Pedro Luis Catalan Ojeda 

     Manuel Elías Catalan Paillal 

     Reinaldo Catriel Catrileo 

     Carlos Alberto Cayuman Cayuman 

     Pedro Pascual Cea Cabezas 

     Mauricio Carmelo Cea Iturrieta

     Juan Angel Cendan Almada

     Horacio Cepeda Marinkovic

     Humberto Patricio Cerda Aparicio

     César Domingo Cerda Cuevas

     Osvaldo Del Carmen Cerda Huard

     Manuel Antonio Cerda Meza

     Pedro Antonio Cerda Zuñiga

     Luis René Cespedes Caro

     Alfonso Cespedes Pinto

     Julio Chacon Hormazabal

     Juan Rosendo Chacon Olivares

     Arturo Chacon Salgado

     Roberto Salomón Chaer Vasquez

     Juan Guillermo Chamorro Arevalo

     Manuel Natalio Chamorro Gomez

     Nicolás Chanez Chanez

     Alfonso René Chanfreau Oyarce

     Ismael Dario Chavez Lobos

     Juan Eleuterio Cheuquepan Levimilla

     Luis Alberto Cid Cid

     Cristino Humberto Cid Fuentealba

     Washington Cid Urrutia

     Sergio Eduardo Jose Cienfuegos Cavieres

     Gastón Eduardo Cifuentes Norambuena

     Jean Ives Claudet Fernandez

     Germán René Cofre Martinez

     José Lorenzo Cofre Obadilla

     Eleuterio Ramón Colpihueque Lican

     Alberto Colpihueque Navarrete

     Marcelo Renan Concha Bascuñan

     Hugo Antonio Concha Villegas

     José Enrique Conejeros Troncoso

     Héctor Hernán Contreras Cabrera

     Sergio Contreras Contreras

     Luis Omar Contreras Godoy

     Abundio Alejandro Contreras Gonzalez

     Claudio Enrique Contreras Hernandez

     Luis Eduardo Contreras Leon

     Carlos Humberto Contreras Maluje

     Héctor Manuel Contreras Rojas

     Humberto Cordano Lopez

     Luis Alberto Cordero Muñoz

     Raúl Guillermo Cornejo Campos

     Luis Angel Ariel Cornejo Fernandez

     José Abel Coronado Astudillo

     Juan Elías Cortes Alruiz

     Juan Segundo Cortes Cortes

     Juan Manuel Cortes Fernandez

     Gastón De Jesús Cortes Valdivia

     Manuel Edgardo Del Carmen Cortez Joo

     José Enrique Corvalan Valencia

     Plutarco Enrique Coussy Benavides

     Eduardo Segundo Crisostomo Salgado

     Crisostomo Toro Manuel Humberto

     Roberto Cristi Melero

     Lizandro Tucapel Cruz Diaz

     Carlos Luis Cubillos Galvez

     Domingo Clemente Cubillos Guajardo

     José Bernardino Cuevas Cifuentes

     José Emiliano Cuevas Cuevas

     Miguel Cuevas Pincheira

     Pedro Curihual Paillan

     Mauricio Segundo Curiñanco Reyes

     Nelson Wladimiro Curiñir Lincoqueo

     Sergio D'Apollonio Peterman

     Carlos Jacinto D'Apollonio Zapata

     Luis Herminio Davila Garcia

     Luis Carlos De Almeida

     Bernardo De Castro Lopez

     Félix Santiago De La Jara Goyeneche

     José Luis De La Maza Asquet

     Guillermo Del Canto Ramirez

     José Enrique Del Canto Rodriguez

     Carmén Angélica Delard Cabezas

     Gloria Ximena Delard Cabezas

     Alfonso Domingo Diaz Briones

     Carmen Margarita Diaz Darricarrere

     Luis Alfredo Diaz Jeria

     Víctor Manuel Diaz Lopez

     Rafael Alonso Diaz Meza

     Lenin Adán Diaz Silva

     Jose Abel Diaz Toro

     Muriel Dockendorff Navarrete

     Gustavo Efraín Dominguez Jara

     Tomás Rogelio Dominguez Jara

     Uldarico Donaire Cortez

     Jaime Patricio Donato Avedaño

     Sara De Lourdes Donoso Palacios

     Jorge Humberto D'Orival Briceño

     Jacqueline Paulette Drouilly Yurich

     Patricio Del Loreto Duque Orellana

     Alfredo Duran Duran

     Carlos Patricio Duran Gonzalez

     Luis Eduardo Duran Rivas

     Luis Enrique Elgueta Diaz

     Martín Elgueta Pinto

     Antonio Elizondo Ormachea

     María Teresa Eltit Contreras

     Jaime Emilio Eltit Spielman

     Gerardo Antonio Encina Perez

     Edgardo Enriquez Espinoza

     Luis Errazuriz Veliz

     Claudio Jesús Escanilla Escobar

     Elisa Del Carmen Escobar Cepeda

     Daniel Francisco Escobar Cruz

     Ruth María Escobar Salinas

     Alejandro Escobar Vasquez

     Rodolfo Alejandro Espejo Gomez

     Pedro Segundo Espinoza Barrientos

     Jaime Del Carmen Espinoza Duran

     Jorge Hernán Espinoza Farias

     Eliana María Espinoza Fernandez

     Luis Alfredo Espinoza Gonzalez

     Mamerto Eulogio Espinoza Henriquez

     Jorge Enrique Espinoza Mendez

     Modesto Segundo Espinoza Pozo

     Rebeca María Espinoza Sepulveda

     Basilio Eugenio Eugenio

     Gustavo Manuel Farias Vargas

     Carlos Patricio Fariña Oyarce

     Mario Fernandez Acum

     Luis Anselmo Fernandez Barrera

     Julio César Fernandez Fernandez

     Mario Fernandez Gonzalez

     Sergio Fernando Fernandez Pavez

     Carlos Julio Fernandez Zapata

     Santiago Abraham Ferrus Lopez

     Oscar Enrique Fetis Sabelle

     Sergio Iván Fetis Valenzuela

     Joel Fierro Inostroza

     Raúl Marcial Figueroa Burkhardt

     Eliodoro Figueroa Gonzalez

     Miguel Antonio Figueroa Mercado

     Carlos Segundo Figueroa Zapata

     Albano Agustín Fioraso Chau

     José Orlando Flores Araya

     César Agusto Flores Baeza

     María Olga Flores Barraza

     Carol Fedor Flores Castillo

     José Edilio Flores Garrido

     Lorenzo Flores

     Julio Fidel Flores Perez

     Sergio Arturo Flores Ponce

     Sergio Raúl Flores Reyes

     José Segundo Flores Rojas

     Nelson Del Carmen Flores Ugarte

     Carlos Fonseca Faundez

     Alberto Mariano Fontela Alonso

     José Hernán Fredes Garcia

     José Freire Medina

     Isaías José Fuentealba Calderon

     Francisco Javier Fuentealba Fuentealba

     Jorge Isaac Fuentes Alarcon

     José Alberto Fuentes Fuentes

     Luis Hernán Fuentes Gonzalez

     Juan De Dios Fuentes Lizama

     Juan Francisco Fuentes Lizama

     Luis Fernando Fuentes Riquelme

     Humberto De Las Nieves Fuentes Rodriguez

     Raúl René Fuentes Vera

     Sergio Manuel Fuenzalida Loyola

     Gonzalo Iván Fuenzalida Navarrete

     Pablo Gac Espinoza

     Nelsa Zulema Gadea Galan

     Luis Alberto Gaete Balmaceda

     Gregorio Antonio Gaete Farias

     Carlos Enrique Gaete Lopez

     Alonso Fernando Gahona Chavez

     Sergio Alberto Gajardo Hidalgo

     Carlos Alfredo Gajardo Wolff

     Domingo Octavio Galaz Salas

     Andrés Tadeo Galdamez Muñoz

     María Galindo Ramirez

     Néstor Alonso Gallardo Aguero

     Juan Angel Gallegos Gallegos

     Guillermo Galvez Rivandeneira

     José Adolfo Gamonal Suarez

     Segundo Nicolás Garate Torres

     Carlos Miguel Garay Benavides

     Héctor Marcial Garay Hermosilla

     Pedro Juan Garces Portigliati

     José Felix Garcia Franco

     José Andrés Garcia Lazo

     Benancio Bernabe Garcia Ovando

     Vicente Irael Garcia Ramirez

     Alfredo Gabriel Garcia Vega

     Dagoberto Enrique Garfias Gatica

     Máximo Antonio Gedda Ortiz

     Juan Antonio Gianelli Company

     José Domingo Godoy Acuña

     José Mariano Godoy Acuña

     José Nazario Godoy Acuña

     Julio César Godoy Godoy

     Carlos Enrique Godoy Lagarrigue

     Francisco Baltazar Godoy Roman

     Luis Alberto Godoy Sandoval

     Susana Del Rosario Gomez Andrade

     Sergio Arturo Gomez Arriagada

     Luis Alberto Gomez Cerda

     Ilucinio Gonzalez Bustamante

     Teofilo Zaragozo Gonzalez Calfulef

     Guillermo Gonzalez De Asis

     José Gilberto Gonzalez De La Torre

     Ignacio Orlando Gonzalez Espinoza

     José Emilio Gonzalez Espinoza

     Héctor Genaro Gonzalez Fernandez

     Eduardo Alberto Gonzalez Galeno

     Luis Enrique Gonzalez Gonzalez

     Ramiro Carlos Gonzalez Gonzalez

     Hernán Galo Gonzalez Inostroza

     María Elena Gonzalez Inostroza

     Luis Francisco Gonzalez Mariquez

     Luis Genaro Gonzalez Mella

     Víctor Manuel Gonzalez Millones

     Claudio Enrique Gonzalez Nuñez

     Elías Dagoberto Gonzalez Ortega

     Hugo Arner Gonzalez Ortega

     Francisco Juan Gonzalez Ortiz

     Carlos Manuel Gonzalez Osorio

     Juan Rosendo Gonzalez Perez

     Rodolfo Valentin Gonzalez Perez

     Iselcio Enrique Gonzalez Sandoval

     Francisco Eduardo Gotoschlich Cordero

     Fernando Grandon Galvez

     Jorge Arturo Grez Aburto

     Juan Segundo Guajardo Pizarro

     Luis Julio Guajardo Zamorano

     Orlando Patricio Guarategua Quinteros

     Luis Alberto Guendelman Wisniak

     Angel Gabriel Guerrero Carrillo

     Carlos Eduardo Guerrero Gutierrez

     Enrique Renato Guerrero Muñoz

     José Manuel Guggiana Espoz

     José Fernando Gutierrez Ascencio

     Artemio Segundo Gutierrez Avila

     Daniel Antonio Gutierrez Ayala

     Marcelo Del Carmen Gutierrez Gomez

     Oscar Armando Gutierrez Gutierrez

     María Isabel Gutierrez Martinez

     Luis Sergio Gutierrez Rivas

     Jack Eduardo Gutierrez Rodriguez

     Sergio Enrique Gutierrez Seguel

     Julio Esteban Henriquez Bravo

     Juan Isaías Heredia Olivares

     Miguel Andrés Heredia Vasquez

     Eduardo Enrique Hernandez Concha

     Carlos Segundo Hernandez Flores

     Nelson Hernandez Flores

     Oscar Nibaldo Hernandez Flores

     José Abraham Hernandez Hernandez

     Manuel Jesús Hernandez Inostroza

     Gaspar Antonio Hernandez Manriquez

     Gonzalo Hernandez Morales

     Daniel Hernandez Orrego

     Juan Humberto Hernandez Zaspe

     Alicia Mercedes Herrera Benitez

     Jorge Antonio Herrera Cofre

     Rosalindo Delfin Herrera Muñoz

     José Manuel Herrera Villegas

     Aurelio Enrique Hidalgo Mella

     Sergio Jorge Hidalgo Orrego

     Arturo Enrique Hillerns Larrañaga

     José Santos Hinojosa Araos

     Luis Armando Horn Roa

     Roberto Huaiqui Barria

     Gervasio Héctor Huaiquil Calviqueo

     Joel Huaiquiñir Benavides

     Reinaldo Segundo Huentequeo Almonacid

     Domingo Huenul Haiquil

     José Ricardo Huenuman Huenuman

     Oscar Lautaro Hueravillo Saavedra

     Enrique Lelio Huerta Corvalan

     Samuel Huichallan Llanquilen

     Fabián Enrique Ibarra Cordova

     Luis Antonio Ibarra Duran

     Rolando Antonio Ibarra Lopez

     Juan Ernesto Ibarra Toledo

     Héctor Inostroza Paredes

     Iván Sergio Insunza Bascuñan

     Leonardo Antonio Iribarren Iribarren

     Juan Félix Iturra Lillo

     Alexei Vladimir Jaccard Siegler

     José Hipólito Segundo Jara Castro

     José Juan Carlos Jara Herrera

     Mario Jara Jara

     Luis Adolfo Jaramillo Jaramillo

     Reinaldo Luis Jeldres Riveros

     Francisco Del Rosario Jeldres Vallejos

     Víctor Jerez Meza

     Enrique Jeria Silva

     Raúl Luis Jimenez Barrera

     Luis Carlos Jimenez Cortes

     Claudio Raúl Jimeno Grendi

     Mauricio Edmundo Jorquera Encina

     Guillermo Jorquera Gutierrez

     Maria Isabel Joui Petersen

     Yactong Orlando Juantok Guzman

     Mario Jesús Juica Vega

     George Max  Patrick Klein Pipper

     Alberto Segundo Kruteler Quijada

     Ramón Isidro Labrador Urrutia 

     María Cecilia Labrin Saso

     Luis Humberto Lagos Cid

     Sergio Hernán Lagos Hidalgo

     Victoriano Lagos Lagos

     Ogán Esteban Lagos Marin

     Sergio Humberto Lagos Marin

     Gloria Esther Lagos Nilsson

     Oscar Reinaldo Lagos Rios

     Ricardo Ernesto Lagos Salinas

     Luis Armando Lagos Torres

     Jorge Andrés Lamana Abarzua

     Marcelino Rolando Lamas Largo

     Gabriel Valentín Lara Espinoza

     Eduardo Enrique Lara Petrovich

     Fernando Antonio Lara Rojas

     José Miguel Larenas Inostroza

     Luis Alejandro Largo Vera

     Frida Elena Laschan Mellado

     Juan De Dios Laubra Brevis

     Aroldo Vivian Laurie Luengo

     José Renato Lazcano Campos

     Luis Rodolfo Lazo Maldonado

     Samuel Del Tránsito Lazo Maldonado

     Ofelio De La Cruz Lazo 

     Carlos Enrique Lazo Quinteros 

     Samuel Altamirano Lazo Quinteros 

     Alonso Lazo Rojas 

     Luis Segundo Lazo Santander 

     Luis Alberto Leal Arratia 

     Sergio Hernán Leal Diaz 

     Heriberto Del Carmen Leal Sanhueza 

     Juan Alberto Leiva Vargas

     Bernardo Mario Lejderman Konujowska

     Sergio Francisco Leon Espinoza

     José Patricio Del Carmen Leon Galvez

     Elsa Victoria Leuthner Muñoz

     Raúl Wladimir Leveque Carrasco

     Rodolfo Iván Leveque Carrasco

     René Andrés Linsambart Rodriguez

     Manuel Lizama Cariqueo

     José Domingo Llabulen Pilquinao

     Mónica Ghislayne Llanca Iturra

     Juan Manuel Llanca Rodas

     Leandro Llancaleo Calfuquen

     Nelson Nolberto Llanquilef Velasquez

     José Julio Llaulen Antilao

     Antonio Llido Mengual

     Luis Gastón Lobos Barrientos

     Luis René Lobos Gutierrez

     Mariano Loncopan Caniuqueo

     Mario Alfonso Lopez Aliaga

     Jaime Eugenio Lopez Arellano

     Violeta Del Carmen Lopez Diaz

     Ricardo Octavio Lopez Elgueda

     Arazati Ramón Lopez Lopez

     Bernabé Del Carmen Lopez Lopez

     Ernesto Alfredo Lopez Lopez

     José Ricardo Lopez Lopez

     Abraham Lopez Pinto

     Leopoldo Lopez Rivas

     María Cristina Lopez Stewart

     Nicolás Alberto Lopez Suarez

     Carlos Enrique Lorca Tobar

     Edgardo Orlando Loyola Cid

     Juan Rodrigo Mac Leod Trever

     Alfonso Segundo Macaya Barrales

     Gumercindo Fabian Machuca Morales

     Zacarías Antonio Machuca Muñoz

     María Cecilia Magnet Ferrero

     Luis Omar Mahuida Esquivel

     Juan Bosco Maino Canales

     Luis Bernardo Maldonado Avila

     Carlos Germán Maldonado Torres

     Juan Apolinario Mamani Garcia

     Juan Segundo Mancilla Delgado

     Adolfo Ariel Mancilla Ramirez

     Omar Lautaro Manriquez Lopez

     Luis Anibal Manriquez Wilden

     Luis Alberto Marchant

     Rodolfo Arturo Marchant Villaseca

     Jorge Rogelio Marin Rossel

     Hugo Tomás Martinez Guillen

     Eugenia Del Carmen Martinez Hernandez

     Agustín Alamiro Martinez Meza

     Francisco Herminio Martinez Noches

     Guillermo Albino Martinez Quijon

     Fermin Del Carmen Martinez Rojas

     Marco Antonio Martinez Traslaviña

     Víctor Alfonso Martinez

     Héctor Pedro Maturana Espinoza

     Luis Emilio Gerardo Maturana Gonzalez

     Juan Bautista Maturana Perez

     Washington Hernán Maturana Perez

     Samuel Eduardo Maturana Valderrama

     René Del Rosario Maureira Gajardo

     Sergio Adrian Maureira Lillo

     José Manuel Maureira Muñoz

     Rodolfo Antonio Maureira Muñoz

     Sergio Miguel Maureira Muñoz

     Segundo Armando Maureira Muñoz

     Mario Osvaldo Maureira Vasquez

     Rodrigo Alejandro Medina Hernandez

     Gaspar Medina Medina

     Santos David Melgarejo Rojas

     José Andrés Meliquen Aguilera

     Alejandro Robinson Mella Flores

     Pedro Segundo Mella Vergara

     Mario Ramiro Melo Pradenas

     Nalvia Rosa Mena Alvarado

     René Ernesto Menares Diaz

     Ireneo Alberto Mendez Hernandez

     Juan Aniceto Meneses Reyes

     Pedro Juan Merino Molina

     Ulises Jorge Merino Varas

     Víctor Fernando Mesina Araya

     Bernando Samuel Meza Rubilar

     Manuel Jesús Mieres Toro

     Juan Milla Montuy

     Pedro Millalen Huenchuñir

     Jaime Pablo Millanao Caniuhuan

     William Robert Millar Sanhueza

     Pedro Gonzalo Millas Marquez

     Gregorio Mimica Argote

     Dario Francisco Miranda Godoy

     Carlos Enrique Miranda Gonzalez

     Eduardo Francisco Miranda Lobos

     Francisco Miranda Miranda

     Oscar Hernan Enrique Miranda Segovia

     Iván Octavio Miranda Sepulveda

     René Enrique Missene Burgos

     Juan Rene Molina Mogollones

     José Roberto Molina Quezada

     Waldemar Segundo Monsalvez Toledo

     Sergio Sebastian Montecinos Alfaro

     Carlos Roberto Montecinos Urra

     Enrique Segundo Montero Montero

     Juan José Montiglio Murua

     Raúl Gilberto Montoya Vilches

     Eugenio Iván Montti Cordero

     Luis Desiderio Moraga Cruz

     Juan Héctor Moraga Garces

     Mario Ruben Morales Bañares

     Edgardo Agustín Morales Chaparro

     Rubén Eduardo Morales Jara

     Víctor Hugo Morales Mazuela

     Armando Edelmiro Morales Morales

     Rosa Elena Morales Morales

     Miguel Luis Morales Ramirez

     José Luis Morales Ruiz

     Pedro Nolasco Morales Ruiz

     Newton Larry Morales Saavedra

     Mario Fernando Moreno Castro

     Germán Rodolfo Moreno Fuenzalida

     Julio Hernán Moreno Pulgar

     Carlos Alberto Morgado Oyarce

     Iván Nelson Moya Zurita

     Nicanor Moyano Valdes

     Moisés Eduardo Mujica Maturana

     Jorge Hernán Muller Silva

     Eliseo Del Carmen Muñoz Alarcon

     Leopoldo Daniel Muñoz Andrade

     José Miguel Muñoz Bizama

     José Eulalio Muñoz Concha

     Manuel Del Carmen Muñoz Cornejo

     Hernán Rigoberto Muñoz Gonzalez

     Jorge Rodrigo Muñoz Mella

     Heraldo Del Carmen Muñoz Muñoz

     Manuel Jesus Muñoz Muñoz

     Julio Orlando Muñoz Otarola

     Jorge Hernán Muñoz Peñaloza

     Mario Enrique Muñoz Peñaloza

     Ramiro Antonio Muñoz Peñaloza

     Silvestre René Muñoz Peñaloza

     Onofre Jorge Muñoz Poutays

     Raúl Antonio Muñoz

     Luis Gregorio Muñoz Rodriguez

     Wuilzon Gamaniel Muñoz Rodriguez

     José Apolinario Muñoz Sepulveda

     Luis Alberto Muñoz Vasquez

     Luis Gonzalo Muñoz Velasquez

     Juan Miguel Mura Morales

     Vitalio Orlando Mutarello Soza

     Jorge Patricio Narvaez Salamanca

     Arturo Alejandro Navarrete Leiva

     Fernando Alfredo Navarro Allendes

     Manuel Jesús Navarro Salinas

     Sergio Del Carmen Navarro Schifferli

     Miguel Nazal Quiroz

     Cesar Arturo Emiliano Negrete Peña

     José Ligorio Neicul Paisil

     Marta Silvia Adela Neira Muñoz

     Carlos Alberto Nieto Duarte

     Luis Fernando Norambuena Fernandois

     Domingo Antonio Norambuena Inostroza

     Luis Fernando Novoa Aguilera

     Luis Francisco Pascual Nuñez Alvarez

     Rodolfo Marcial Nuñez Benavides

     Ramón Osvaldo Nuñez Espinoza

     Héctor Jaime Nuñez Muñoz

     Luis Hernán Nuñez Rojas

     Martín Nuñez Rozas

     Juan Héctor Ñancufil Reuque

     Domingo Antonio Obreque Obreque

     Jorge Luis Ojeda Jara

     Víctor Fernando Olea Alegria

     Jorge Alejandro Olivares Graindorge

     Zoilo Galvarino Olivares Guerra

     Fernando De La Cruz Olivares Mori

     Mario Samuel Olivares Perez

     Gary Nelson Olmos Guzman

     Mario Armando Opazo Guarda

     Segundo Antonio Opazo Parra Pedro

     Iván Gerardo Ordoñez Lamas

     Miguel Iván Orellana Castro

     Juan René Orellana Catalan

     Juan René Orellana Gatica José Del Carmen

     José Guillermo Orellana Meza

     Sefarín Del Carmen Orellana Rojas

     Nelson Ricardo Orellana Tapia

     Jorge Osvaldo Orrego Gonzalez

     Benjamin Antonio Orrego Lillo

     Juan Fernando Ortiz Letelier

     Jorge Eduardo Ortiz Moraga

     Juan Osvaldo Ortiz Moraga

     Ramón Remigio Ortiz Orellana

     Francisco Hernán Ortiz Valladares

     José Miguel Osores Soto

     Juan Agustín Osses Melgarejo

     Luis Gerardo Otarola Valdes

     Miguel Hernán Ovalle Narvaez

     Sergio Daniel Oviedo Sarria

     Flavio Arquimides Oyarzun Soto

     Héctor Segundo Pacheco Avendaño

     José Remigio Padilla Villouta

     Enrique Julio Pagardoy Saquieres

     Juan José Paillalef Paillalef

     Sergio Luis Paillamilla Treulen

     Julio Manuel Paine Lipin

     Edgardo Iván Palacios

     Gregorio Palma Donoso

     Manuel Fermin Palma Palma

     Daniel Francisco Palma Robledo

     Vicente Segundo Palomino Benitez

     Luis Jaime Palomino Rojas

     José Rosario Segundo Panguinamun Ailef

     Sergio Amador Pantoja Rivera

     Alejandro Arturo Parada Gonzalez

     Javier Ernesto Parada Valenzuela

     Sergio Raúl Pardo Pedemonte

     Silvio Vicente Pardo Rojas

     Juan Antonio Eduardo Paredes Barrientos

     Ernesto Enrique Paredes Perez

     Egidio Enrique Paris Roa

     Jorge Manuel Pavez Enriquez

     Hernán Manuel Peña Catalan

     Juan Francisco Peña Fuenzalida

     Michelle Marguerite Peña Herreros

     José Julian Peña Maltes

     Mario Fernando Peña Solari

     Nilda Patricia Peña Solari

     Aurelio Clodomiro Peñailillo Sepulveda

     Luis Alcides Pereira Hernadez

     Aroldo Armando Pereira Meriño

     Reinalda Del Carmen Pereira Plaza

     Andrés Pereira Salsberg

     Juan Carlos Perelman Ide

     Hernán Santos Perez Alvarez

     Jerónimo Jonadac Perez Aravena

     Pedro Hugo Perez Godoy

     José Leonardo Perez Hermosilla

     Sergio Alfredo Perez Molina

     Adelino Alfonso Perez Navarrete

     José Rosendo Perez Rios

     Aldo Gonzalo Perez Vargas

     Carlos Fredy Perez Vargas

     Esteban Marie Louis Pesle De Menil

     Matilde Pessa Mois

     Guillermo Ernesto Peters Casas

     Jose Francisco Pichulman

     Juan Raul Pichulman

     Jorge Vicente Pierola Pierola

     Juan Dario Pincheira Chavez

     Héctor Ricardo Pincheira Nuñez

     Gilberto De La Cruz Pino Baeza

     Alejandro Alberto Pinochet Arenas

     Luis Humberto Piñones Vega

     Edras De Las Mercedes Pinto Arroyo

     Héctor Santiago Pinto Caroca

     Hernán Pinto Caroca

     José Felidor Pinto Pinto

     Isidro Miguel Angel Pizarro Meniconi

     Waldo Ulises Pizarro Molina

     Gabriel Alejandro Pizarro San Martin

     Miguel Segundo Plaza Narvaez

     Pedro Enrique Poblete Cordova

     Claudia Victoria Poblete Hlaczik

     José Liborio Poblete Roa

     Juan Mauricio Poblete Tropa

     Orlando Miguel Ponce Quezada

     Exequiel Ponce Vicencio

     Benedicto Poo Alvarez

     Armando Portilla

     Reinaldo Salvador Poseck Pedreros

     Arsenio Poupin Oissel

     Juan Antonio Povaschuk Galeazzo

     Lorenzo Alberto Prat Marti Arturo

     José Guillermo Purran Treca 

     Hernán Leopoldo Quezada Moncada

     Mario Luis Quezada Solis

     Hernán Quilagaiza Oxa

     Suarez Luis Quinchavil

     Juan Luis Quiñones Ibaceta

     Marcos Esteban Quiñones Lembach

     Abelardo De Jesús Quinteros Miranda

     Tulio Roberto Quintiliano Cardoso

     Wilfredo Hernán Quiroz Pereira

     Laureano Del Carmen Quiroz Pezoa

     Anselmo Osvaldo Radrigan Plaza

     William Osvaldo Ramirez Barria

     Gustavo Guillermo Ramirez Calderon

     Robinson Enrique Ramirez Del Prado

     José Adrian Ramirez Diaz

     María Julieta Ramirez Gallegos

     Ricardo Ignacio Ramirez Herrera

     Tomás Enrique Ramirez Orellana

     José Santos Ramirez Ramirez

     José Manuel Ramirez Rosales

     Oscar Orlando Ramos Garrido

     Gerardo Alejandro Ramos Huina

     José Moises Ramos Huina

     José Alejandro Ramos Jaramillo

     Osvaldo Del Carmen Ramos Rivera

     Oscar Arturo Ramos Vivanco

     Ramón Edmundo Rebolledo Espinoza

     Luis Emilio Recabarren Gonzalez

     Manuel Guillermo Recabarren Gonzalez

     Manuel Segundo Recabarren Rojas

     Alberto Segundo Reinante Raipan

     Ernesto Reinante Raipan

     Modesto Juan Reinante Raipan

     Elizabeth Mercedes Rekas Urra

     Dixon Retamal Cornejo

     Francisco De Asis Retamal Matamala

     Oscar Abdón Retamal Perez

     Julia Del Rosario Retamal Sepulveda

     Asrael Leonardo Retamales Briceño

     Carlos Ramón Reyes Avila

     Agustín Eduardo Reyes Gonzalez

     Segundo Hernán Reyes Gonzalez

     Sergio Alfonso Reyes Navarrete

     Daniel Abraham Reyes Piña

     Sergio Alejandro Riffo Ramos

     Sonia Del Transito Rios Pacheco

     Guillermo Rios Soto Herbit

     Hugo Daniel Rios Videla

     Carlos Ramón Rioseco Espinoza

     Erika Del Carmen Riquelme Briones

     Juan Antonio Riquelme Briones

     Federico Riquelme Concha

     Jaime Nury Riquelme Gangas

     Jorge Orlando Riquelme Guzman

     Vidal Del Carmen Riquelme Ibañez

     Anibal Raimundo Riquelme Pino

     Juan De Dios Riquelme Riquelme

     Octavio Saturnino Riquelme Venegas

     José Miguel Mario Manuel Rivas Rachitoff

     Patricio Fernando Rivas Sepulveda

     Heriberto Rivera Barra

     Luis Alfredo Rivera Catricheo

     Luis Enrique Rivera Cofre

     Juan Luis Rivera Matus

     Lorenzo Rivera Ramirez

     Arturo Enrique Riveros Blanco

     Arturo Enrique Riveros Chavez José Hernán

     Sergio Alberto Riveros Villavicencio

     Juan De Dios Roa Riquelme

     Jorge Robles Robles

     Jaime Eugenio Robotham Bravo

     José Santos Rocha Alvarez

     Florentino Aurelio Rodriguez Aqueveque

     Juan Carlos Rodriguez Araya

     Héctor Roberto Rodriguez Carcamo

     Bernardino Rodriguez Cortez

     Mireya Herminia Rodriguez Diaz

     Juan Bautista Rodriguez Escobar

     Miguel Angel Rodriguez Gallardo

     Artagnan Rodriguez Gonzalez

     Jesús De La Paz Rodriguez Gonzalez

     Daniel Eliseo Rodriguez Lazo

     Pablo Rodriguez Leal

     Luis Fernando Rodriguez Riquelme

     Alejandro Rodriguez Urzua

     Miguel Enrique Rodriguez Vergara

     Sergio Gervasio Rodriguez Villanueva

     Carlos Patricio Rojas Campos

     Alfredo Rojas Castañeda

     Oscar Eliecer Rojas Cuellar

     Hernan Artemio Rojas Fajardo

     José Adolfo Rojas Medez

     Juan Orlando Rojas Osega

     Heriberto Rojas Peña

     Aladin Esteban Rojas Ramirez

     Miguel Rojas Rojas

     Gilberto Antonio Rojas Vasquez

     Guillermo Haroldo Rojas Zamorano

     Ramiro Antonio Romero Gonzalez

     José Fernando Romero Lagos

     Roberto Del Carmen Romero Muñoz

     Francisco Javier Alejandro Rozas Contador

     Florencio Rubilar Gutierrez

     José Liborio Rubilar Gutierrez

     José Lorenzo Rubilar Gutierrez

     Gerardo Ismael Rubilar Morales

     Clara Luz Rubilar Ocampo

     Juan De Dios Rubio Llancao

     Julio Alberto Rubio Llancao

     Sergio Fernando Ruiz Lazo

     Jorge Carlos Romualdo Ruz Zuñiga

     José Alfonso Saavedra Betancourt

     Enrique Antonio Saavedra Gonzalez

     Guido Arturo Saavedra Inistroza

     José De Las Nieves Saavedra Vergara

     Luis Onofre Saez Espinoza

     Zenón Saez Fuentes

     Jorge Roberto Saez Vicencio

     Jorge Sagaute Herrera

     Héctor Manuel Sagredo Araneda

     José Sel Carmen Sagredo Pacheco

     Manuel Salamanca Mella

     Ernesto Guillermo Salamanca Morales

     Humberto Salas Salas

     José Alberto Salazar Aguilera

     Raúl Salazar Ernesto

     Raimundo Salazar Muñoz

     Carlos Eladio Salcedo Morales

     Diego Celso Saldias Cid

     Oscar Eladio Saldias Daza

     José Sofanor Saldivia Saldicia

     René Nolberto Salgado Salgado

     Jorge Orosman Salgado Salinas

     Ariel Martín Salinas Argomedo

     Marcelo Eduardo Salinas Eytel

     Juan De Dios Salinas Salinas

     Alfredo Ernesto Salinas Vasquez

     Mario Salinas Vera

     Raúl Buridan San Martin Barrera

     José Isaias San Martin Benavente

     Luis Hernán San Martin Cares

     Julio San Martin

     Luis Dagoberto San Martin Vergara

     Juan Carlos San Martin Zuñiga

     Francisco Segundo Sanchez Arguen

     Carlos Enrique Sanchez Cornejo

     Símon Eladio Sanchez Perez

     Gerónimo Humberto Sandoval Medina

     Miguel Angel Sandoval Rodriguez

     Mario Sandoval Vasquez

     Oscar Omar Sanhueza Contreras

     Manuel Eduardo Sanhueza Mellado

     Juan Carlos Sanhueza Sanhueza

     Alamiro Segundo Santana Figueroa

     Ignacio Del Transito Santander  Albornoz

     José Eduardo Santander Miranda

     Ariel Dantón Santibañez Estay

     Ceferino Del Carmen Santis Quijada

     Francisco Javier Santoni Diaz

     Hernán Sarmiento Sabater

     Juan Carlos Schmidt Arriagada

     Ricardo Augusto Schmidt Arriagada

     Luis Orocimbo Segovia Villalobos

     Nibaldo Cayetano Seguel Muñoz

     Carlos Gustavo Segura Hidalgo

     Domingo Antonio Sepulveda Castillo

     Manuel Sepulveda Cerda

     Daniel Mauricio Sepulveda Contreras

     Juan De Dios Sepulveda Gonzalez

     Renato Alejandro Sepulveda Guajardo

     Celedonio De Las Rosas Sepulveda Labra

     Alfonso René Sepulveda Montanares

     Luis Leopoldo Sepulveda Nuñez

     Manuel Jesús Sepulveda Sanchez

     Cardenio Sepulveda Torres

     Osvaldo Manuel Sepulveda Torres

     Marcela Soledad Sepulveda Troncoso

     Benedicto De La Rosa Sepulveda Valenzuela

     Roberto Esteban Serrano Galaz

     David Silberman Gurovich

     Pedro Eduardo Silva Bustos

     Fernando Guillermo Silva Camus

     Luis Ramón Silva Carreño

     Manuel Silva Carreño

     Samuel Eduardo Silva Contreras

     Claudio Guillermo Silva Peralta

     Gerardo Ernesto Silva Saldivar

     Luis Armando Silva Silva

     Javier Enrique Sobarzo Sepulveda

     Rosa Elvira Soliz Poveda

     Jorge Gerardo Solovera Gallardo

     Jaime Gilson Sotelo Ojeda

     Rubén Simón Soto Cabrera

     Hugo Enrique Soto Campos

     Antonio Patricio Soto Cerna

     Luis Alberto Soto Chandia

     Hernán Soto Galvez

     Cesareo Del Carmen Soto Gonzalez

     Gustavo Edmundo Soto Peredo

     Segundo Marcial Soto Quijon

     Luis Horacio Soto Silva

     Rubén Soto Valdes

     Walter Raúl Stepke Muñoz

     Jacobo Stoulman Bortnik

     Juan Ismael Suil Faundez

     Manuel Jesús Tamayo Martinez

     Guillermo Alfredo Tamburini

     Luis Rolando Tapia Concha

     Raúl Francisco Tapia Hernandez

     Julio Fernando Tapia Martinez

     Miguel Angel Tapia Rojas

     Teobaldo Antonio Tello Garrido

     Einar Enrique Tenorio Fuentes

     Carlos Alberto Teran De La Jara

     Jorge Segundo Thather Muñoz

     Claudio Francisco Thauby Pacheco

     Claudio Romulo Tognola Rios

     Enrique Alfonso Toledo Garay

     José Vicente Toloza Vasquez

     Sergio Daniel Tormen Mendez

     Nicomedes Segundo Toro Bravo

     Gonzalo Marcial Toro Garland

     Enrique Segundo Toro Romero

     Eduardo Emilio Toro Velez

     Luis Esteban Toro Veloso

     Osvaldo Alfonso Torres Albornoz

     Ruperto Oriol Torres Aravena

     Henry Francisco Torres Flores

     Ernesto René Torres Guzman

     Jaime Bernado Torres Salazar

     Alejandro Antonio Tracanao Pincheira

     Eliseo Maximiliano Tracanao Pincheira

     José Miguel Tracanao Pincheira

     José María Tranamil Pereira

     Ernesto Traubmann Riegelhaupt

     Luis Hernán Trejo Saavedra

     Jorge Andres Troncoso Aguirre

     Ricardo Troncoso Leon

     Ricardo Aurelio Troncoso Muñoz

     Mariano León Turiel Palomera

     Rodrigo Eduardo Ugas Morales

     Bernabe De San José Ulloa Luengo

     Juan Eladio Ulloa Pino

     Víctor Adolfo Ulloa Pino

     Luis Armando Ulloa Valenzuela

     Gilberto Patricio Urbina Chamorro

     Bárbara Gabriela Uribe Tamblay

     Oscar Julian Urra Ferrarese

     Raúl Urra Parada

     Cleofe Del Carmen Urrutia Acevedo

     David Edison Urrutia Galaz

     Héctor Daniel Urrutia Molina

     Luis Alberto Urrutia Sepulveda

     Juan Segundo Utreras Beltran

     Juan José Valdebenito Miranda

     Adán Valdebenito Olavarria

     Lila Ludovina Valdenegro Carrasco

     Arturo Jesús Valderas Angulo

     Flavio Heriberto Valderas Mancilla

     Manuel Nemesio Valdes Galaz

     Edelmiro Antonio Valdes Sepulveda

     Oscar Dante Valdivia Gonzalez

     Aliro Del Carmen Valdivia Valdivia

     Víctor Eduardo Valdivia Vasquez

     Basilio Antonio Valenzuela Alvarez

     Luis Armando Valenzuela Figueroa

     Luis Oscar Valenzuela Leiva

     Alcibiades Valenzuela Retamal

     Jorge Orlando Valenzuela Valenzuela

     Julio Del Transito Valladares Caroca

     Oscar Enrique Valladares Caroca

     José Miguel Valle Perez

     René Daniel Vallejos Parra

     Jorge Vallejos Ramos

     Alvaro Modesto Vallejos Villagran

     Bautista Van Schouwen Vasey

     Edwin Francisco Van Yurick Altamirano

     Rubén Vara Aleuy

     Carlos Antonio Vargas Arancibia

     Pedro León Vargas Barrientos

     Juan Alejandro Vargas Contreras

     Félix Marmaduque Vargas Fernandez

     Manuel De La Cruz Vargas Leiva

     María Edith Vasquez Fredes

     Luis Justino Vasquez Muñoz

     Jaime Enrique Vasquez Saenz

     Héctor Manuel Humberto Vasquez Sepulveda

     Juan Bautista Vasquez Silva

     Arturo Vega Gonzalez

     Julio Roberto Vega

     Luis Eduardo Vega Ramirez

     Víctor Humberto Vega Riquelme

     Héctor Ernaldo Velasquez Mardones

     Héctor Heraldo Velasquez Mardones

     José Raúl Velasquez Vargas

     Rubén Alejandro Velasquez Vargas

     Héctor Veliz Ramirez

     Rachel Elizabeth Venegas Illanes

     Grober Hugo Venegas Islas

     Claudio Santiago Venegas Lazzaro

     Omar Roberto Venturelli Leonelli

     Ida Amelia Vera Almarza

     Bernada Rosalba Vera Contardo

     Sergio Emilio Vera Figueroa

     Juan Vera Oyarzun

     Exequiel Del Carmen Verdejo Verdejo

     Luis Eduardo Vergara Corso

     Héctor Patricio Vergara Doxrud

     Luis Armando Vergara Gonzalez

     Pedro José Vergara Inostroza

     Héctor Orlando Vicencio Gonzalez

     Edmundo José Vidal Aedo

     Hugo Alfredo Vidal Arenas

     José Abraham Vidal Ibañez

     José Alfredo Vidal Molina

     Jaime Benjamin Vidal Ovalle

     José Mateo Segundo Vidal Panguilef

     Abel Alfredo Vilches Figueroa

     Juan Santiago Vilches Yañez

     José Caupolican Villagra Astudillo

     Emperatriz Del Tránsito Villagra

     Manuel Jesús Villalobos Diaz

     Waldo Ricardo Villalobos Moraga

     Elías Ricardo Villar Quijon

     Agustín De La Cruz Villarroel Carmona

     Juan De Dios Villarroel Espinoza

     Víctor Manuel Villarroel Ganga

     Jorge Eduardo Villarroel Vilches

     Juan Aurelio Villarroel Zarate

     Arturo Segundo Villegas Villagran

     Celsio Nicasio Vivanco Carrasco

     Nicolás Hugo Vivanco Herrera

     Víctor Julio Vivanco Vasquez

     Hugo Ernesto Vivanco Vega

     Gabriel José Viveros Flores

     Carlos Mario Vizcarra Cofre

     Joaquín Walker Arangua

     Luis Guillermo Wall Cartes

     José Arturo Weibel Navarrete

     Ricardo Manuel Weibel Navarrete

     Modesta Carolina Wiff Sepulveda

     José Florencio Yañez Duran

     Juan Miguel Yañez Franco

     Horacio Yañez Jimenez

     Jorge Bernabé Yañez Olave

     Luis Alberto Yañez Vasquez

     Ceferino Antonio Yaufulem Mañil

     Miguel Eduardo Yaufulem Mañil

     Oscar Romualdo Yaufulem Mañil

     Mario Jaime Zamorano Donoso

     Victor Manuel Zamorano Gonzalez

     Luis Armando Zani Espinoza

     Carlos Zapata Aguila

     Pedro Antonio Zarate Alarcon

     Carlos Hugo Zelaya Suazo

     Eduardo Humberto Ziede Gomez

     Jorge Lautaro Zorrilla Rubio

     José Rafael Zuñiga Aceldine

     José Segundino Zuñiga Aceldine

     Luis Hipólito Zuñiga Adasme

     Francisco Arnaldo Zuñiga Aguilera

     Héctor Cayetano Zuñiga Tapia

     Eduardo Fernando Zuñiga Zuñiga

 

presos e desaparecidos no Chile. Em nome de Jesus Cristo, teu Filho, que também foi preso, torturado e assassinado, que foi levantado pelo Pai... em nome dele eu imploro por justiça e paz. Amém. 

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O autor

 

 

 

Jorge Pinheiro é jornalista e teólogo. Fez Jornalismo na PUC do Rio de Janeiro, mas não terminou. Tentou dar sequência ao curso na Escuela de Periodismo da Universidade do Chile, mas o golpe chileno frustrou seus planos. Nos anos 90 fez sua graduação e pós-graduação em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo/SP. E já, no novo milênio, fez Mestrado e Doutorado em Ciências da Religião na Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. E posteriormente fez dois Pós-Doutorados em Ciências da Religião, o primeiro na Universidade Presbiteriana Mackenzie e o segundo na Universidade Metodista de São Paulo. Seu Doutorado e seu segundo Pós-Doutorado foram realizados no Brasil e na França, na modalidade “sanduíche”, na Faculté de Théologie Protestante de Montpellier.

 

Desde a época de secundarista, no Rio de Janeiro, tem intensa atividade política. Foi exilado entre 1971 e 1974 no Chile e Argentina e, posteriormente, em 1977, na Espanha e Portugal. Em dezembro de 1979 foi anistiado. Nos anos 90, passou a focar a questão social a partir de uma perspectiva cristã, o que, segundo ele, “aumentou e não diminuiu meu compromisso com os deserdados da terra”. 

 

Durante 21 anos exerceu função pastoral, primeiro na na Missão Batista Memorial da América Latina e depois na Igreja Batista em Perdizes, ambas em São Paulo/SP. Exerceu o magistério teológico como professor de Teologia Contemporânea e Teologia Sistemática na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É escritor com livros publicados nas áreas de Política e Teologia.

 

Com humor, gosta de apresentar os relatórios do Serviço Nacional de Informações, SNI, sobre sua atuação política, esclarecendo que discorda categoricamente das apreciações e opiniões levantadas acerca de suas atividades e artigos publicados. A seguir, eis a íntegra de tal documento:

 

“Em conformidade com a portaria n008 de 16 de janeiro de 1996, da Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar da Presidência da República, e em atendimento a requerimento de Jorge Pinheiro dos Santos, protocolado no dia 21 de julho de 1998, informo que nos arquivos em poder desta Subsecretaria há registros sobre fatos e situações com as seguintes indicações a respeito do requerente:

 

Jorge Pinheiro dos Santos, brasileiro, casado, jornalista, filho de Amynthas Jorge dos Santos e Maria José Pinheiro, nascido no dia 05 de março de 1945, no Rio de Janeiro/RJ, (...) foi editor do jornal Versus, diretor do jornal Ponto de Partida e diretor do jornal Convergência Socialista, todos em São Paulo/SP.

 

Do relatório da Operação Lótus, realizada em 1977/78, pelos DOPS/SP, para apurar atividades do Partido Socialista dos trabalhadores (PST), extrai-se o seguinte sobre o requerente: ‘integrou o grupo denominado Ponto de Partida que criou, no Chile, a Liga Operária (LO); colaborou diretamente na feitura do jornal Independência Operária, órgão da Liga Operária, no Brasil, sendo que em fins de 1976 alugou uma casa em Atibaia/ SP, destinada a aparelho de imprensa, passando a ser responsável pelo setor; em março/abril de 1978, participou de um congresso da Liga Operária em Ubatuba/SP, ocasião em que a referida organização passou a denominar-se PST, passando a integrar o Comitê Central (CC), a Comissão Executiva e o Secretariado do Partido, e a compor a Coordenação Nacional da Convergência Socialista (CS), bem como o núcleo da CS no jornal Versus, em São Paulo/SP; em julho de 1978, participou de um congresso da Tendência Bolchevique (TB), em Bogotá/ Colômbia, ocasião em que a TB passou à Fração Bolchevique (FB), sendo que o mesmo passou a compor o Comitê Central e o Secretariado da FB; foi convidado para fazer parte da Comissão de Coordenação da FB, mas não aceitou, pois para isso teria que se radicar na Colômbia; e ainda, em julho de 1978, fez entrega à FB da importância de Cr$180.000,00, como contribuição do PST brasileiro’.

 

Integrou a mesa diretora dos trabalhos da 1a Reunião Estadual da CS, realizada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 02 de julho de 1978, a qual objetivou o lançamento das bases para a constituição de um Partido Socialista Brasileiro,

 

Compareceu à 1a Convenção Nacional da CS, realizada no Ginásio de Esportes, no Cambuci, em São Paulo/SP, em 20 de agosto de 1978.

 

Foi indiciado no Inquérito Policial n051/78, instaurado pelo DOPS/SP, para apurar as atividades de elementos ligados a antiga organização subversiva denominada Liga Operária, desmantelada em 1977 e reestruturada com a denominação de PST, e que continuou as suas ações subversivas através de seus membros. No relatório do encarregado do inquérito, datado de 17 de outubro de 1978, foram registrados os seguintes dados  sobre o requerente: vulgo Luís, professor, foragido, qualificado indiretamente, elemento do CC do PST, respondendo pela Secretaria Internacional, com intensa atividade subversiva desde o início da década de 70, um dos fundadores, no Chile, do grupo Ponto de Partida, participou de um congresso Trotskista em Bogotá/ Colômbia; integrou também o CC da CS; em seu veículo estacionado na rua Tavares Bastos, defronte ao no 679, foram encontrados documentos de cunho subversivo, inclusive o documento tratando sobre ‘O caminho que o PST deve tomar nesses próximos meses’; a farta documentação contra Jorge Pinheiro dos Santos fez com que ele se mantivesse em local incerto e não sabido. Por fim, o encarregado do inquérito concluiu que os indiciados cometeram infrações capituladas na Lei de Segurança Nacional (LSN) e determinou a remessa dos autos à 2a Auditoria Militar da 2a Circunscrição Judiciária Militar (2CJM), para os devidos fins. 

 

Em 30 de outubro de 1978, o juiz auditor da 2a Auditoria do Exército da 2a CJM expediu o mandato de prisão no 15/78, contra o requerente, em virtude de ter sido decretada, naquela data, por aquele Juízo, a prisão preventiva do mesmo, nos termos do artigo 60 do Decreto-Lei n898/69 (LSN) e artigos 254, 255 letras ‘a’ e ‘b’ do Código de Processo Penal Militar (CPPM), nos autos do Processo no 29/78. Na mesma data, o juiz auditor dirigiu ofício ao General Comandante do II Exército, encaminhando em anexo o referido mandato de prisão contra o requerente, solicitando daquela autoridade determinar providências (artigo 8 letra ‘c’ do CPPM) no sentido do cumprimento do mesmo, com o recolhimento do preso ao Presídio da Justiça Militar Federal, em São Paulo/SP.

 

O jornal Folha da Tarde, de São Paulo/SP, em sua edição de 31 de outubro de 1978, publicou que havia sido decretada a prisão preventiva de onze elementos do PST, entre os quais o requerente, o qual encontrava-se foragido.

 

O Diário Popular, em sua edição de 2 de fevereiro de 1979, sob o título ‘Jorge Pinheiro comparece à 2a CJM para interrogatório’, publicou matéria divulgando que o requerente, editor-chefe do jornal Versus, único revel no processo sobre o clandestino PST, havia comparecido no dia anterior, à 2a Auditoria da 2a CJM, espontaneamente, para prestar depoimento no referido processo. Segundo o artigo, depois do interrogatório, o Conselho Permanente de Justiça considerou cessada sua revelia e revogou a prisão preventiva contra ele decretada.

 

Foi um dos autores de um documento intitulado ‘Um Primeiro Borrador’, datado de 27 de junho de 1979, o qual pautou-se por uma proposta para discussão para todos os militantes da CS, a fim de que pudessem elaborar um documento final a ser levado a Convenção Nacional da CS, propondo a linha política a ser seguida pela mesma, visando a construção de um Partido dos Trabalhadores.

 

Em 12 de julho de 1979, integrou a mesa coordenadora de um debate sobre o tema ‘Constituinte – As liberdades democráticas e o Socialismo’, promovido pelo Setor Jovem Metropolitano do MDB de Porto Alegre/RS, no Plenário da Assembléia Legislativa/RS e que teve como conferencistas convidados os deputados peruanos Enrique Fernandez Chacón e Hugo Blanco Galdóz. No dia seguinte ao evento, o requerente, os referidos peruanos e outros, se reuniram no edifício Santa Crus, na rua dos Andradas, no 1234, apartamento 2803, em Porto Alegre/RS.

 

O jornal O Trabalho, em sua edição no 40, de 26 de novembro de 1979, publicou matéria sob o título ‘Nicarágua em debate’, referindo-se a um debate realizado na Universidade de Campinas (Unicamp), em 22 de novembro de 1979, entre militantes da Organização Socialista Internacional (OSI) e CS, para o qual o requerente havia sido convidado.

 

Em dezembro de 1979, a 2a Auditoria da 2a CJM declarou extinta a sua punibilidade pela Anistia, com fundamento no artigo 1o da Lei no 6.683/79, c/c o artigo 123 II do Código Penal Militar (CPM).

 

Em janeiro de 1980, foi relacionado entre os dirigentes da CS que participaram da Conferência Internacional do Comitê de Organização e da Reconstrução da IV Internacional, que seria realizado na Colômbia.

 

Também em janeiro de 1980, foi relacionado entre os integrantes da ‘Tendência pela Defesa do Partido e pela Legalidade’ da Convergência Socialista.

 

Juntamente com outros membros da Comissão Nacional da CS, participou de uma reunião extraordinária ampliada do ‘Comitê Paritário pela Reconstrução da IV Internacional’, realizada em Bogotá/ Colômbia, no período de 19 a 23 de fevereiro de 1980.

 

O jornal O trabalho, no 53 de 15/31 de março de 1980, publicou artigo sob o título ‘Convergência: Queremos um PT sem patrões’, assinado pelo requerente, no qual expõe a proposta da CS com relação à articulação do Partido dos Trabalhadores.

 

Foi autor do editorial intitulado ‘O sonho acabou, mesmo!’ publicado no jornal Convergência Socialista no 11, da segunda quinzena de abril de 1980, no qual a CS tornou público a sua versão sobre as reivindicações salariais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

 

O jornal Convergência Socialista n12, da primeira quinzena de maio de 1980, publicou artigo sob o título ‘Os trabalhadores nada têm a perder... a não ser suas cadeias!’, de autoria do requerente, no qual faz ‘proselitismo do apoio, manutenção e solidariedade à greve dos metalúrgicos do ABC, da derrubada do regime militar, da construção de um governo dos trabalhadores e de um Brasil socialista’.

 

O jornal Convergência Socialista no 14, da primeira quinzena de junho de 1980, publicou artigo intitulado ‘Uma visita ao Sr. Ministro’, de autoria do requerente, fazendo entrevista a uma audiência com o ministro da Justiça, concluindo com considerações depreciativas ao regime e ao governo da época.

 

Em 29 de agosto de 1980, participou de um ato realizado no Sindicato dos Químicos, em São Paulo/ SP, em homenagem ao 40o aniversário da morte de Trotsky.

 

O jornal Convergência Socialista no 20, da primeira quinzena de setembro de 1980, sob o título ‘Chile sete anos depois. O fracasso da Frente Popular’, de autoria do requerente, refere-se depreciativamente à Unidade Popular chilena, que reunia socialistas e comunistas, faz proselitismo do trotskismo e relata fases de sua militância naquele país, quando exilado.

 

Em março de 1981, foi relacionado entre os líderes da IV Internacional.

 

Em janeiro de 1984, integrou relação de militantes da Alicerce da Juventude Socialista, em São Paulo/ SP.

 

É o que se contém arquivado neste Órgão até a presente data. Brasília/DF, 31 de dezembro de 1998. David Bernardes de Assis, assessor”.

 

Segundo o autor, “posicionar-se no Brasil a partir de uma ética da responsabilidade social, implica em entender o paradoxo da cultura brasileira: vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande & senzala, e a moral libertária da contracultura do oprimido – a moral do não existe pecado do lado de baixo do Equador.

 

“Qualquer atuação no campo social implica em compreender esta realidade. Consciente de que as sociedades devem se organizar através do jogo democrático, a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo das fontes de nossa existência: amor, conhecimento e liberdade”.

 

“Por isso, falamos de um processo, que crescerá conforme cresça a consciência de que temos uma tarefa: transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente”.

 

Exatamente por isso, Jorge Pinheiro gosta de lembrar a seus leitores certas palavras ditas num morro distante: “Felizes os que têm misericórdia, porque Deus terá misericórdia deles também”. Soli Deo, glória!