mardi 9 décembre 2008

Lições da apocalíptica

Tememos as catástrofes e as situações que põem em risco a vida humana. Medos semelhantes foram vividos por outras pessoas, em outras épocas. O que podemos aprender com a literatura que elas produziram?

Lições da apocalíptica

O filósofo francês Jean Baudrillard, num simpósio sobre o fim do milênio, afirmou que a engenharia genética anuncia a iminente aparição do homem artificial. E perguntou: o que são os seres humanos? O que acontece com o real quando ele é substituído? O que ocorre com o corpo quando ele se torna inútil? Teremos um corpo de síntese?

O mundo, para Baudrillard, se converteu numa Disneylândia onde o real foi substituído pelo virtual. As transformações dos últimos anos permitem dizer que este milênio "mudará as regras do jogo, mas não sabemos em que direção". Baudrillard acredita que catástrofes se avizinham.

Para o teólogo luterano, Hans Georg Gadamer, o que pode nos salvar das catástrofes é o respeito pelas religiões, mas o caminho para a salvação tem inimigos dentro e fora da Igreja.

"Penso no respeito dos não religiosos para com as religiões, mas, sobretudo, no respeito das religiões entre si, como um meio para salvar o planeta da guerra e da ruína”, afirmou Gadamer, autor de Verdade e Método publicado pela Vozes.

Tais preocupações sobre situações-limite nos levam à apocalíptica, agora sem a paranóia de final de milênio, mas como leitura sobre a viabilidade da existência. Assim situações de risco nos remetem às antigas questões escatológicas.

O período macabeu
Essas questões surgiram com extrema força durante o período macabeu, no Israel antigo e traduziam um tipo central de preocupação: qual o destino humano e quando terminará o caos na história?

Naquela época, chamada helenística, as guerras e as transformações sociais vividas por Israel levantavam questões éticas e políticas. Durante os anos de crise generalizada, a espiritualidade rompeu as cadeias formais e levou a uma produção literária inédita. Tal processo de produção de novas idéias pode ser dividido em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico. Mas para nós, nesse momento, interessa em especial o terceiro deles.

Para falar da apocalíptica é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma profunda compreensão do momento presente. O profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do presente e apresenta sua vontade às pessoas. Mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim alguém que prega uma postura ética. Nesse sentido, a profecia clássica é, sobretudo, moral e revolucionária.

A história de Israel sob os macabeus foi uma história de crise social. Tempo onde a memória emergiu com radicalidade: Deus está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. Essa memória se transformou numa visão global da história. E não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão do momento presente.

Sem dúvida, sábios e mestres, mesmo quando para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam para o presente histórias, memoriais, e omitiam seus verdadeiros nomes. Durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com novos detalhes. Avivado pela palavra profética o povo tomou conhecimento da revelação. E se há na história de Israel uma construção dialética entre conhecimento e fé, no período macabeu fortaleceu-se esse processo desigual e combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.

Dessa maneira, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos que alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.

Na época dos Macabeus, que vai da ascensão dos selêucidas até 67 antes de Cristo, circularam importantes apocalípticos apócrifos [Judite, II Esdras e Baruch], pseudepígrafos [A Carta de Aristéias, O Livro dos Jubileus, Os Oráculos Sibilinos, Enoque etiópico, e o Testamento dos Doze Patriarcas] e um canônico, O livro de Daniel.

Foram os choques durante os três anos em que o templo foi transformado num santuário pagão, com o banimento do judaísmo, que abriu caminho para esse livro peculiar, o mais estudado do período, enquanto literatura apocalíptica: Daniel.

Caso situemos o livro de Daniel no período macabeu [1], enquanto edição de antigos fragmentos do período babilônico, organizados e contextualizados, o capítulo onze descreverá as guerras entre lágidas e selêucidas e as investidas de Antíoco IV Epifânio contra Jerusalém e o templo. Aqui, ao contrário do que acontece na profecia anterior, o autor descreve fatos e detalhes querendo demonstrar que é testemunha ocular. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da perseguição de Antíoco IV Epifânio, entre os anos de 167 e 164 a.C. [2] Convém notar que Daniel, para a tradição judaica, é um sábio e não um profeta, e por isso seu livro está incluído nos Escritos (ketuvim) e não nos Profetas (neviim).

Os capítulos sete a 12 de Daniel são chamados de “vaticinia ex eventu”, porque o autor testemunhou os fatos históricos que descreve. Esses capítulos são uma reação contra a helenização da Judéia e às perseguições em curso, mas, paradoxalmente, também uma forma de pensamento afetado pela civilização helenística.

A partir da segunda metade do livro, o editor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: fidelidade e martírio.

Não é nossa intenção aqui analisar os capítulos finais do livro de Daniel, que permitem diferentes interpretações, quer para judeus como para cristãos, mas entender a característica dessa literatura. Como a profecia anterior, o apocalipse é uma promessa de salvação diante da catástrofe. Mas, sob vários aspectos, é uma revolução de forma e conteúdo da experiência revelatória do judaísmo anterior.

Revolução de forma e conteúdo
Os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria sociedade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas. Para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão de Deus poderia mudar, caso o homem mudasse.

Os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado, vendo a sua era como o derradeiro elo de eventos que se desenrolam em seqüência pré-ordenada. As visões de Daniel implicam uma divisão tripartida da história do mundo.

Em primeiro lugar, há o período que vai da formação de Israel, seu estabelecimento em Canaã, até a destruição de seus reinos e do primeiro templo. O segundo período, que se entremeia ligeiramente com o primeiro, foi o tempo dos quatro impérios mundiais. O terceiro período, que se sobrepõe ligeiramente com o segundo, é escatológico e derradeiro: o clímax da história.

Ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está a seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação de Israel, a manifestação final do Reino de Deus. O escritor apocalíptico oferece um panorama amplo da ascensão e queda de impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. Seu olho focaliza um novo mundo.

Outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o Reino do céu. Os profetas clássicos, com exceção de Ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. Sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. Já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o rei divino.

O ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. Anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de Eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. Agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial para a história.

A preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. O poder divino não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. Assim, o capítulo 12 de Daniel é o primeiro texto canônico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos” (Dn 12:2). No final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento, como estrelas, para todo o sempre” (Dn 12:3).

É importante notar que é no período macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular. A fé na ressurreição aparece de forma muito clara em II Macabeus 7.9 e 14.46 e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos (II Mc 7.11, 14, 23, 29 e 36). Antes, só tínhamos em todo o Antigo Testamento dois versículos que falavam da ressurreição (Isaías 26.19 e Jó 19.26s).

Três outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época, embora apócrifos e pseudepígrafos, são os livros de Enoque, II Esdras e Baruch.

Enoque é uma obra longa, uma edição de fragmentos vários, da qual certas partes podem ser anteriores a Daniel. No correr do livro, o narrador Enoque (Gênesis 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. O livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino humano, e uma seção chamada Similitudes, referente ao eleito ou filho do homem, que será mandado por Deus nos últimos dias para julgar a humanidade.

Em II Esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre Israel, o aparente abandono em que Deus deixa o povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. Um anjo dá a Esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo para que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.

Baruch, de quem se diz ter sido escriba de Jeremias, trata de questões similares. Contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a Lei, um trecho profético, onde Jerusalém personificada se dirige aos judeus da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas.

A importância dessa coleção de textos sob o nome de Baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com Jerusalém, pela oração, pelo culto à Lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.

Assim, os diferentes textos apocalípticos nos levam à discussão do destino humano frente às situações-limite e apresentam uma mensagem de esperança, através de simbolismos singulares e forte escatologia, onde o mal é vencido e o bem prevalece no cenário cósmico.

Essa característica diferencia profecia e apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus (propheemi = dizer em lugar de). Nem sempre focaliza o futuro, refere-se muitas vezes às situações do presente, procurando sacudir as pessoas de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-as a conduta moral digna e correta. A profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos.

Nos apocalipses desaparece a índole moralizante: o que preocupa são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota do mal e vitória do bem. As visões, os sonhos e os símbolos fantasistas, que os profetas já cultivavam, tornam-se elementos dominantes na forma literária dos apocalipses.

Assim, durante o período macabeu idéias novas afloraram em meio à vida judaica. Podemos citar o ressurgimento da figura da mulher, com a história de Judite e a personificação da Sabedoria (Eclesiástico 24), o casamento monogâmico [3], o banho batismal [4] e elementos de uma teologia do Espírito Santo [5]. Mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo:

A ressurreição, recompensa maior diante da catástrofe [6]; e a figura do Messias, promessa da autoridade profética, restauradora da justiça [7].

Essas duas idéias deram vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. A partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do Messias e na recompensa divina através da ressurreição. Esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto. E diante de situações-limite transmitiram esperança.

E assim, porque a esperança escatológica responde ao risco da existência, relemos Jürgen Moltmann: Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido, agora poderá se realizar o que há muito tempo se esperava. Este é o pathos messiânico com que se acolhe e se batiza ‘a modernidade’. Agora se realizará o que Gioachino di Fiori predissera: a idade das luzes é a “terceira vinda do Espírito". Agora o homem se torna capaz de dominar a terra e por isso também de restabelecer aquela semelhança com Deus que havia se esmaecido por sua culpa. A glória reflete ainda uma vez a sua luz: esta é a idade das luzes (Aufklärung, enlightenment, ilustração, Iluminismo), o momento do êxodo definitivo dos seres humanos da sua ‘minoridade culpável’ para o "exercício livre e público da própria razão". [8]

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Notas
[1] Chifflot, Th.- G / Vaux R. De, La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.
[2] Idem, op. cit., p. 787.
[3] Escrito de Damasco, capítulo 4, Qumran, caverna 1. Analisando o texto de Gênesis 1.27, o Escrito de Damasco interpreta a relação entre Adão e Eva como modelo para o casamento. E diz que em toda sua vida o homem só deve ser casado uma vez. Após a morte de um dos cônjuges, o outro não pode casar de novo. In Klaus Berger, Qumran e Jesus, Editora Vozes, Petrópolis, 1994, pp. 75-77.
[4] Conforme Escrito de Damasco; Regra da Seita caverna 1; 4 Q 414 (textos da caverna 4, segundo versão de R.H. Eisenmann e M. Wise, The Dead Sea Scrolls Uncovered, 1992); e Rolo da Guerra, caverna 1. A Regra da Seita 4: 21-22 diz: “Ele derramará sobre eles o Espírito da Vida como água purificadora para a purificação de todos os males”. In Klaus Berger, op cit., p. 69.
[5] Em 4 Q 521, fragmento 1, coluna 2, linha 6, o texto afirma, depois de nomear o Messias: “E o seu Espírito vai parar sobre os humildes, e ele restabelecerá os fiéis com seu poder”. In Berger, op cit, p. 105.
[6] 2 Macabeus 7; Daniel 12:2-3; Escrito de Damasco 4:4.
[7] ”O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 3:13. “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2). “O Messias da justiça, o rebento de Davi”. 4Q 252. “Assim ele (Deus) o glorificou, quando tu te santificaste para ele, quando ele te tornou um santo dos santos (...) ele decidiu sobre o teu destino e em muito multiplicou a tua glória, e te tornou primogênito para ele eternamente”. 4Q 416 1:4-5. In Berger, op. cit., pp. 90-92, 96-97.
[8] Jürgen Moltmann, L’Avvento di Dio. Escatologia Cristiana, Queriniana, Brescia, 1998, pp. 207-226.