mercredi 4 novembre 2020

Os limites da existência, segunda parte

 a segunda chave
as muitas águas da justiça
8.
 
quero o azul dos teus olhos

 
 
quem é fraco numa crise é realmente fraco”. provérbios 24.10. quando falamos de crises lembramo-nos de problemas que nos cercam ou que são externos a nós. o que está fora é uma parte da questão, a outra é como nós enfrentamos os problemas. o provérbio acima não fala do que está acontecendo no mundo, mas analisa a nossa maneira de enfrentar as crises.
 
esse provérbio se divide em três momentos. primeiro fala da pessoa que é fraca. a palavra hebraica que traduzimos por fraco, pode ser mais bem traduzida por frouxo. não como expressão grosseira ou agressiva, mas como metáfora de algo que está solto, que não tem firmeza. assim, quem se mostra frouxo, fica desalentado, deixa cair a bola, relaxa e afunda.
 
o segundo momento do provérbio é a expressão idiomática “dia da sara”, que foi traduzida na versão em linguagem de hoje por crise. a expressão “dia da sara” tem o sentido de “aquela que importuna” ou “de esposa rival”. isto porque na tradição do judaísmo antigo, sara, mulher de abraão, era vista como brava e brigona, que maltratou agar, a ponto dessa última fugir de casa.
 
devemos nos lembrar que a família hebraica antiga era poligâmica e a esposa chamada de rival era aquela que em determinado momento entrava em choque com a outra, ou com as outras e desestabilizava o equilíbrio da família. para o senhor, esse era um momento da crise. o homem era o senhor e regente dessa família de estrutura patriarcal, e caso se mostrasse frouxo, diz o ditado hebraico, perderia o controle da situação, entraria em depressão e afundaria.
 
o provérbio parte de uma realidade cultural, ilustrada na família patriarcal machista, onde as mulheres se chocam, e o marido não pode ser frouxo.
 
apesar de não concordarmos com a estrutura poligâmica, patriarcal e machista dessa família, a lição do provérbio permanece válida. assim, contextualizado, podemos dizer que a atitude que você deve tomar diante da crise não pode ser de alguém que se deixa desorientar e afundar.
 
a crise aí descrita fala de um momento onde há um elemento desestabilizador, que enlouquece um ambiente ou uma situação. ser frouxo, ter uma atitude de “deixa estar que depois melhora” pode levar todos a afundarem juntos. esse é o momento da liderança consciente, momento de encarar o problema com sabedoria e firmeza.
 
como aconselhou o rabino shaul, devemos estar alertas, ficar firmes na fé, ser corajosos e fortes. que deus lhe dê firmeza e sabedoria para enfrentar problemas e conquistar vitórias!
 
rua santa clara. posto 4. o sol está de derreter asfalto. dá para fritar ovos na atlântica. aeyal joga peteca com os amigos. a filha de nabukov, de maiô cavado nas costas, lembra o escritor russo, ao menos na minha cabeça de menino.
 
--yoffe, passa dagelle nas minhas costas.
 
obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.
 
caio e tercius, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.
 
miriam fez para mim um calção que é uma bandeira. pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. mas caiu bem.
 
e a turma, uma gang atribulada, quase todos do externato duque de caxias, elogiou. minha pequena, jussara, cujo pai trabalha na souza cruz, ela me deu de presente um pacote do recém-lançado minister, me agarrou pelo braço e saímos... eu com ela, ela com o rebelde dela.
 
jussara tem 14 anos, faz balé e mora na serzedelo correia. eu tenho 16 e fui aluno de latim do pompílio da hora no atheneu são luís, no catete. o velho pompílio gostava do meu latim, eu era o melhor aluno dele. certa vez, me expulsou da sala. e me fez sair pela janela, aos gritos:
 
-- você não é digno de sair pela porta.
pulei. e quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho:
-- nunca viva de maneira que possam dizer para você: “puxa yoffe, nunca imaginei que você fizesse isso”.

pompílio, primeiro negro humano a ser nomeado embaixador na áfrica, dando lições de transgressão a seu pupilo.
 
jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. a gangue, de calções abaixados, brinca de boto furando as ondas...
 
morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. a vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e jussara para me levar ao cinema. e saímos na maior pinta. eu de rancheira e camisa de banlon branca e ela de vestido de fustão rodado. depois do cinema, comemos waffles ali na n. s. de copacabana.  
 
os anos começam a desabrochar. lá em casa, aeyal e a filha de nabukov deram adeus ao juscelino kubistchek, um pouco preocupados com os ares que sopram. aeyal prefere o general lott, mas o povo vai de jânio quadros. o jeitão do magrela não me agrada. é o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da vila maria, em são paulo. 
 
toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio aeyal que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do flamengo. remava. foi capataz de fazenda. levou um tiro de um peão, na barriga. casou-se com minha tia iracema, que era estilista e dona de loja no centro. depois da morte de iracema veio a filha de nabukov, filha de mãe espanhola e pai italiano. bailarina. é vinte anos mais nova que o aeyal e doze anos mais velha do que eu. é amiga, confidente e, às vezes, mãe. esta última função é a que menos gosto.
 
alguns anos depois da morte do shemtós, aeyal e a filha de nabukov me convidaram para morar com eles. os dois filhos, caio e tercius, vieram mais tarde.
 
hoje,  aeyal tem loja de moda, um jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que a filha de nabukov aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia. 
 
-- no que você está pensando? está tão calado.
-- o azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.
-- bobo!
-- é verdade. prefiro esse azul aqui àquele lá.
-- bobo duas vezes. aquele lá é maior. olha, nem fim tem...
-- é, mais o teu eu posso levar comigo.
-- só se eu deixar...
-- e você deixa?
-- depende...
-- de que?
-- ué, para onde?...
-- quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...
-- puxa, então eu deixo.
 

a eternidade concede a paz e a vida para o povo da estrela e todos nós. a oração do justo aplaina os montes e vales da existência.
 
9.
 
moças enjauladas


as situações de limite exemplificam as maravilhas do renascer em vida. vemos isso, por exemplo, na expressão do rabino de nazaré "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado".

lembro-me de uma moça nigeriana, aminal lawal, que foi condenada por ter um filho dois anos depois de separar-se do marido. seria apedrejada, conforme ordena a lei islâmica, a sharia. 

há mais de três mil anos, uma jovem chamada raabe, na palestina, também correu o risco de ser assassinada. 

e para entender o milagre do renascer em vida faço uma rápida correlação entre as histórias de aminal e de raabe. mas é bom lembrar que a cultura da época situava a prostituição como comércio ilegal do amor sexual. e perdão diante de tal culpa e limite era, desculpa, renúncia às consequências punitivas justificáveis em face desta ação que transgredia preceitos afetivos jurídicos, morais e religiosos.

a sharia é a aplicação do alcorão na prática cotidiana, e em alguns países ainda é aplicado como lei. assim, a morte por apedrejamento era um costume no oriente médio, e essa norma também fez parte da torá judaica.

aminal, a moça muçulmana, teve um filho fora do casamento. e por isso devia ser apedrejada. mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar aminal. alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. ou seja, aminal poderia estar grávida do marido.
 
mas, me lembrei de uma caminhada pelo red light district, área livre de amsterdam para o consumo de drogas e sexualidades várias, que fica entre warmoesstraat, oudezijds voorburgwal e oudezijds achterburwal e suas ruas perpendiculares. é aqui que, por trás de cada vitrina de néon vermelho, moças se colocam, corpos à mostra, a espera de clientes. 
 
red light district é, na verdade, um parque temático sexual, onde são desovados diariamente milhares de turistas e adolescentes que chegam em ônibus pulmann. note-se que é proibido tirar fotos das moças que estão nas vitrinas. é um bairro que faz o tipo boêmio, embora aqui tudo seja milimetricamente planejado. está cheio de bares, sex shops e tabacarias onde você pode comprar sementes de maconha das mais diferentes qualidades. a atmosfera é surrealista. 
 
as moças nas vitrinas me lembraram a boneca barbie, que já passou dos 50, mas continua a ser a plastificação da sexualidade de consumo. aquelas moças estão barbificadas sob as luzes de néon, numa espécie de jogo virtual, onde personalidades e imagens sexuais são criadas para transmitir uma ideia de liberdade que não existe no mundo real. falo de jogo virtual porque as vitrinas transmitem a sensação de interação on-line, de plataforma virtual, presente no imaginário da garotada que se pluga ali. a moça não existe, mas sim a personagem, ou avatar, que recebe a missão de seduzir. a noção de jogo é sutil, mas está presente e é desafiante.
 
as moças estão de roupas íntimas, ou nuas, com um olhar maroto para os passantes. caso haja interesse, negociarão serviços e preços. o serviço padrão é 15 minutos de sexo oral e coito por 50 euros. o que acontece nas vitrines não é domínio do real, mas o virtual usado como plataforma de jogos da imaginação. o comportamento sexual acaba sendo irrelevante ou responsável por emoções de vida real. num jogo desse tipo, a função do olhar e os possíveis mergulhos no imaginário é o que conta. por isso, vemos grupos de jovens, tirando sarro, desafiando uns aos outros, como se estivessem num parque de diversões. não basta olhar, é necessário ser olhado e as moças sabem disso, e provocam com piscadelas ou um sorriso mais provocante e dirigido. e a garotada vem abaixo, como se tivesse realizado uma conquista de verdade. sexo com a moça da vitrina é de simples execução. afinal, com a personagem não se dialoga, se pergunta quanto custa. por isso, apesar da expressão grotesca, é um fast food para jovens em bando. 
 
após um século de lutas femininas por direitos e sentido de vida, é difícil, mesmo sob o argumento econômico de que elas fazem assim porque querem, olhar sem constrangimento mulheres enjauladas. 
 
aqueles que defendem a permanência da prostituição de vitrina em amsterdam dizem que tem vantagens, porque as moças são seus próprios patrões, não têm que pagar percentagem dos rendimentos para o proprietário de um bordel -- a não ser o aluguel razoavelmente alto do quarto – e pode escolher seu próprio horário de trabalho. além do que, dizem, como há um fluxo interminável de clientes, podem faturar algumas centenas de euros por dia de trabalho. e porque trabalhar aqui pode ser mais seguro, pois com um gesto de mão podem acionar um botão para chamar o proprietário ou a polícia. 
 
mas a verdade é que tal exposição humilha. elas estão expostas lá na vitrina para que todos possam ver e, por isso, a maioria delas não vive em amsterdam. não querem ser reconhecidas por amigos, parentes e vizinhos. outro fato importante é que a maioria delas não é natural dos países baixos, mas moças que vieram da europa oriental ou da södra unionen. 
 
red light district é o mais antigo bairro de amsterdam. tem fachadas do século xiv, canais e becos encantadores. aqui está a mais antiga igreja da cidade, a igreja de são nicolau, construída entre 1366 e 1566. e como o bairro era point da marujada, aqui na igreja você encontra as tumbas de almirantes em pinturas e esculturas de barcos. a torre octogonal é de estilo gótico-renascentista, era uma referência para os barcos que atracavam no porto.
 
zlabya, raabe, a moça da cidade de jericó, depois da sua libertação, tornou-se mulher de salmon, filho de calebe, e mãe de boaz. é bom lembrar que as prostitutas na antiguidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um eterno maior do que todos os deuses que ela conhecera. a cidade de jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o eterno dos hebreus fizera na saída do egito e durante a caminhada no deserto: soubemos que o senhor secou o mar vermelho diante de vocês quando saíram do egito. também ficamos sabendo como, a leste do rio jordão, vocês mataram seom e ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos.
 
zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida como praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. é a palavra que designa a atividade de raabe, a jovem que escondeu os espiões enviados por josué. tal palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. a forma feminina é usada para indicar a prostituta. tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, tinham suas próprias casas e deviam ser evitadas. poucas vezes, a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.
 
ambas mulheres, aminal e raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume de suas culturas. a primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião dos cananeus, ou seja, uma prostituta cultual. ambas mereciam a morte, mas renasceram para a vida pelo milagre do perdão. e perdão implica em libertação oferecida e esquecimento, por isso não importa mais se aminal adulterou ou se raabe era prostituta. mas há uma diferença, não sei se para aminal houve de fato libertação.
 
já raabe confiou na misericórdia e no poder da eternidade e renasceu em vida. e fez um declaração marcante ao reconhecer que o eterno estava acima dos deuses cananeus: a eternidade é em cima no céu e aqui em baixo na terra. 
 
estas palavras, proferidas por raabe, são sentido pleno da vida e contrição. 
centenas de anos mais tarde, o rabino de nazaré, descendente da prostituta raabe, disse a um religioso que o convidou para jantar: você está vendo esta moça? quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não para de beijar os meus pés desde que entrei. você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus alvos errados estão perdoados. mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado. 
 

perdoar é esquecer, libertar, renascer. eis o milagre que cobriu raabe. mas como ficam as outras moças enjauladas?
  
10.
 
o inverno de todos os levantar-se
 
 
a contemplação de iohanan, também conhecido como o apocalipse, não deve ser lido como fonte de argumentos em prol de iminente fim do mundo. para fundamentar tal visão, partimos da análise de teólogos como agostinho, de reconhecido peso na história da igreja, e de teólogos contemporâneos como hans schwars, que escreveu o mistério das sete estrelas.
 
o núcleo da contemplação de iohanan dispõe-se em três septenários, que recapitulam a história da humanidade e da igreja sob forma simbólica, mostrando que as calamidades da história estão englobadas num plano sábio do eterno. este dirá a última palavra, mas o livro não permite calcular a data da consumação dos tempos ou da parusia do messias. o apocalipse é um livro de conforto e esperança e não um livro de desgraças. deve ser lido dentro dos parâmetros do gênero literário apocalíptico, que tem estilo e linguajar próprios. quem não leva em conta tais peculiaridades corre o risco de deduzir do texto o que ele não quer dizer.
 
a contemplação de iohanan, com seus símbolos, leva muita gente à tentativa de calcular a data do fim do século presente. por isso, antes de qualquer coisa, vamos trabalhar com os critérios deduzidos do próprio gênero literário apocalíptico e apresentar os problemas suscitados pelo livro e as soluções mais plausíveis para o mesmo. 
 
querida zlabya dividiremos esta reflexão em quatro partes: o que é um apocalipse? o contexto histórico da contemplação de iohanan. e sua interpretação. questões especiais. 
 
a palavra grega apokálypsis quer dizer revelação. o gênero literário apocalíptico esteve voga entre os estelares nos dois séculos anteriores e posteriores ao mashiah. a sua origem se deve ao fato de que os profetas foram escasseando em israel após o exílio babilônico, 587-538 antes da era comum -- os últimos profetas bíblicos, ageu, malaquias e zacarias, exerceram o seu ministério nos séculos seis e cinco antes de o.
 
após o século quinto o povo da terra da estrela continuou sujeito ao jugo estrangeiro: retornando do exílio babilônico em 538 a.e.c., ficou sob o domínio persa até alexandre magno (336-323 a.e.c.) da macedônia, que conquistou a terra da estrela, anexando-a ao império macedônico. 
 
após a morte do imperador, a palestina ficou sob os egípcios, na dinastia dos ptolomeus, até o ano de 200 antes da era comum nesta data, os sírios ocuparam e dominaram a terra da estrela, constituindo aí o período dos antíocos ou selêucidas. 
 
as questões escatológicas que surgem durante o período macabeu traduzem três tipos de preocupações: como israel se libertará da dominação pagã e o reino de deus se realizará? qual o destino último dos justos e dos pecadores? quando terminará o caos e a maldade na história?
 
acontece que as guerras e as violentas transformações sociais vividas por israel não levantaram apenas questões escatológicas, mas também éticas e políticas. assim, durante esses anos de crise generalizada, a visão espiritual rompeu suas cadeias formais e permitiu uma produção multifacetada até então inédita na história judaica. esquematicamente, podemos agrupar este processo de produção de novas idéias em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico.
 
para falar dos três é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma profunda compreensão do momento presente e do coração de deus. nesse sentido, o profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do momento presente e, chamado pelo eterno, apresenta sua vontade ao povo. mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim um atalaia que prega uma postura correta diante do eterno. nesse sentido, a profecia clássica sempre foi também um exercício ético.
 
a história da terra da estrela sob os macabeus foi uma história de crise social. tempo que permitiu o surgimento e necessitou a presença de profetas. tempo onde a memória dos servos do eterno emergiu com toda a sua radicalidade: ele está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. esta memória se transformou numa visão global da história. e não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão daquele momento presente e da vontade do eterno para seu povo escolhido.
 
sem dúvida, o eterno falou a seu povo através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam para a realidade presente histórias memoriais, e, sobretudo, omitiam seus verdadeiros nomes. durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com maiores detalhes. avivados pela palavra profética, o povo tomou conhecimento da revelação do eterno. se há na história da revelação um desenvolvimento gradual e se a base histórica da revelação é linear, mas o desenvolvimento da fé não o é, no período macabeu chegou-se a um processo combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade.
 
dessa maneira, quer nos escritos éticos, quer nos escritos políticos, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos. mas, sem dúvida, essa revolução do pensamento religioso estelar alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica.
 
situamos na época dos macabeus, período que vai da ascensão dos selêucidas até 67 antes da era comum, a seguinte literatura: apócrifos éticos, literatura de sabedoria: tobias; sentenças de ieshua ben sirah, eclesiástico; livro da sabedoria de salomão. apócrifos políticos, literatura nacionalista: i macabeus, ii macabeus. apócrifos apocalípticos, literatura de revelação: judite, ii esdras e baruch. entre os pseudepígrafos da era dos macabeus, temos a carta de aristéia; o livro dos jubileus; os oráculos sibilinos; enoque etiópico; e o testamento dos doze patriarcas.
 
como a profecia anterior, a contemplação de iohanan é uma revelação de aviso do julgamento do eterno e promessa de salvação. mas sob vários aspectos, é uma transformação na forma e conteúdo da experiência de revelação do judaísmo anterior.
 
os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria sociedade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas, que podiam afetar ou modificar o juízo divino iminente. para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão do eterno poderia mudar, caso a comunidade se arrependesse.
 
os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado e unificado, vendo a sua própria era como derradeiro elo de eventos que se desenrolam em sequência pré-ordenada. ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está a seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação da terra da estrela, a manifestação final do reino do eterno na terra. o escritor apocalíptico oferece um panorama muito mais amplo da ascensão e queda de vastos impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. seu olho focaliza outro mundo.
 
outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. os profetas clássicos, com exceção de ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei.
 
o simbolismo misterioso e a ênfase na escatologia indicam uma ligação com a profecia tardia do pré-exílio, mas o pensamento apocalíptico deve muito à tradição da sabedoria helenística. 
 
o ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial do eterno para a história.
 
a preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. o poder do eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. assim, o capítulo doze de daniel é o primeiro texto bíblico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos”. no final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre”.
 
é importante notar que é no período macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular daí para a frente. a fé na ressurreição dos mortos aparece de forma muito clara em ii macabeus e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos. antes, só temos em todo o antigo testamento dois versículos que falam do ser levantado da morte.
 
outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época -- embora considerados apócrifos e pseudepígrafos, por não estarem no cânon estelar -- são os livros de enoque, ii esdras e baruch.
 
enoque é uma obra longa, uma edição de fragmentos vários. no correr do livro, o narrador enoque (gn. 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. o livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada similitudes, referente ao eleito ou filho do homem, que será mandado pelo eterno nos últimos dias para julgar a humanidade.
 
em ii esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre israel, o aparente abandono em que o eterno deixa seu povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. um anjo dá a esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias.
 
baruch, de quem se diz ter sido escriba de jeremias, trata de questões similares. contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a lei, um trecho profético, onde a cidade de david personificada se dirige aos estelares da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas.
 
a importância dessa coleção de textos sob o nome de baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com a cidade de david, pela oração, pelo culto à lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico.
 
assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: a pseudonímia do autor. é um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo. o caráter reservado das revelações. estas foram comunicadas ao personagem da antiguidade; deviam, porém, ficar em segredo até os dias do autor do apocalipse.  frequentes intervenções de anjos. estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros do eterno que colaboram com a providência divina na dispensação da salvação, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. um simbolismo singular. animais podem significar pessoas e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. 
 
o recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como símbolos de bonança; 3 ½, como símbolo de penúria e tribulação. é a exuberância do simbolismo dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. o leitor deve entender esse simbolismo a partir de passagens bíblicas e extra-bíblicas paralelas. há símbolos que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos ... os autores de apocalipses se sentem livres para conceber seus símbolos, suas visões e personificações. propõem cenas sem se preocupar com o verossímil da realidade. nesse sentido constroem virtualidades, conforme vemos na descrição da cidade de david futura. e uma forte escatologia. 
 
os apocalipses se voltam todos para os tempos finais da história e os descrevem apresentando a intervenção do eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa.
 
este traço diferencia a profecia do apocalipse. a profecia é sempre uma palavra dita em nome do eterno (propheemi = dizer em lugar de). nem sempre visa ao futuro, refere-se muitas vezes a situações do presente, procurando sacudir os homens de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-os a conduta moral digna e correta. a profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos, mas nem sempre voltado para a escatologia. 
 
nos apocalipses o foco moral perde força: o que preocupa iohanan são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota definitiva dos maus e prêmio para os bons. os símbolos e visões, que os profetas já cultivavam, tornam-se os elementos dominantes na forma literária dos apocalipses. 
 
assim, durante o período macabeu muitas idéias novas afloraram em meio à vida judaica. podemos citar desde o ressurgimento da figura da mulher, com a história de judite e a personificação da sabedoria, o casamento monogâmico, o batismo, e elementos conceituais da doutrina do espírito. mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo: a recompensa apresentada pelas profecias apocalípticas, que se traduz concretamente na ressurreição; e a promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do mashiah.
 
essas duas idéias deram uma vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. a partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do messias e na recompensa divina através da ressurreição. esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto. 
 
os romanos em 63 antes da era comum invadiram o território palestino e impuseram seu jugo aos estelares, jugo que perdurou até que o povo da terra da estrela foi expulso da sua terra no ano 70 da era comum, com a queda e ruína da cidade de david. nessas circunstâncias de vida o povo da terra da estrela, não tendo profeta, sentia necessidade de ser consolado e alentado para não desfalecer. foi então que autores estelares se puseram a cultivar o gênero literário apocalíptico, que tem afinidade com a profecia, mas não se identifica com esta. 
 
iohanan tinha razões para consolar seus companheiros perseguidos e predizer a vitória final do bem sobre o mal, porque esta é anunciada pelas profecias e promessas feitas a israel. o autor de um apocalipse nada acrescenta a essas promessas, apenas as tornam atuais, repetindo-as de maneira enfática em momento penoso da história do seu povo e anunciando para breve o cumprimento das mesmas. de resto, a salvação, já oferecida pelo eterno em fases anteriores de tribulações da terra da estrela, era penhor de que o senhor não abandonaria seu povo. 
 
no fim do século primeiro depois da era comum tornava-se cada vez mais penosa a situação dos discípulos do rabino de nazaré disseminados no império romano. em verdade, ieshuah deixou este mundo, intimando aos discípulos para que aguardassem sua volta gloriosa; não lhes quis indicar, porém, nem o dia nem a hora de sua vinda, pois esta deveria ser tida como a de um ladrão que aparece imprevistamente à meia-noite; vigiassem, pois, e orassem em santa expectativa. todavia, apesar da sobriedade das palavras de ieshuah, os discípulos esperavam que a sua vinda se desse em breve, enquanto ainda vivesse a geração dos apóstolos mesmos. à medida, porém, que se passavam os decênios, essa esperança se dissipava; a não poucos parecia que o mashiah havia esquecido a sua igreja e que vão era crer no evangelho. 
 
a situação se tornara ainda mais angustiosa desde que nero, em 64, desencadeara a primeira perseguição violenta contra os discípulos do rabino de nazaré. ser discípulo equivalia a ser tido como inimigo de césar. havia naturalmente um confronto entre mentalidade cristã e mentalidade pagã, e por viverem numa sociedade pagã, os discípulos do rabino de nazaré se abstinham de participar de festas de família, das celebrações cívicas, dos jogos públicos, e de profissões e ramos de negócio, que traduziam a mentalidade politeísta e supersticiosa da época. 
 
na ásia menor o ambiente estava carregado dessa presença do pensamento do pensamento pagão: o culto ao imperador era ponto chave da fidelidade de um cidadão romano. desde 195 a.c., esmirna possuía um templo consagrado à deusa roma. em 26 d.c., as autoridades da cidade ergueram outro santuário em honra à tibério, lívio e ao senado. em pérgamo, desde 29 a.c., se instituiu o culto ao imperador. na cidade de éfeso, nos inícios do reinado de augusto, foi construído um altar dedicado a ele, que ficava no templo de diana. os habitantes da ásia menor praticavam estes cultos e sentiam beneficiados pelos governantes de roma, já que eles puseram fim às guerras civis na região, o que assegurou à população desenvolvimento da indústria, do comércio e da cultura. 
 
outro perigo para o cristianismo se fazia notar na ásia menor em fins do século i. as gentes dessa região era religiosa, de sorte que dava acolhida não somente às religiões tradicionais do império e ao cristianismo, mas também aos cultos de mistério de mitra, cibele e apolo, trazidos do oriente. tais mistérios fascinavam pela sua índole secreta e por sua promessa de divinização. 
 
esse estado de coisas permite tirar a seguinte conclusão: na ásia menor uma religião que, como o cristianismo, professasse rigorosamente um deus único e transcendente manifestado por um só salvador, ieshuah, devia necessariamente defrontar-se em breve com formidável aliança de todas as forças do paganismo: sistemas religiosos, interesses políticos, planos econômicos deviam armar-se num combate unânime e cerrado contra o monoteísmo cristão; ser discípulo do mashiah, em tais circunstâncias, significaria sofrer o ódio e o boicote geral de parentes, amigos e concidadãos não discípulos do rabino de nazaré, de tal modo que até mesmo na vida cotidiana do lar o cristão se sentiria sufocado por causa de sua fé. 
 
assim, o império romano realizou dez perseguições contra os discípulos do rabino de nazaré, dirigidas por nero (64), domiciano (95), trajano (112), marco aurélio (117), sétimo severo (fim do segundo século), maximiano (235), décio (250), valeriano (257), aureliano e diocleciano (303).
 
a situação sugeria a não poucos discípulos de ieshuah ou a apostasia em relação ao divino mestre ou uma espécie de pacto com as idéias do paganismo, de sorte a dar origem ao sincretismo religioso (caracterizado principalmente pelo dualismo ou o repúdio à matéria que a mística oriental muito propalava). foi em tais circunstâncias sombrias que iohanan quis escrever a contemplação vivida. 
 
a finalidade do livro torna-se assim evidente. o autor visava, acima de tudo, alentar nos seus fiéis a coragem; a contemplação de iohanan, em consequência, é essencialmente o livro da esperança cristã ou da confiança inabalável no senhor em ieshuah e nas suas promessas de vitória. pergunta-se então: como terá iohanan procurado levantar o ânimo e corroborar a esperança dos leitores? haverá, em nome de deus, prometido dias melhores aqui na terra em recompensa da fidelidade a cristo, de maneira que quem fosse hostilizado por causa de ieshuah viria a ser estimado pelos concidadãos e acariciado por prósperas condições de vida temporal? 
 
como se sabe, grande é o número de sistemas que tentam interpretar o apocalipse. todos concordam sobre o sentido geral do livro, que quer anunciar a vitória do bem sobre o mal, do reino do mashiah sobre as maquinações dos pecadores. divergem, porém, quando tentam indicar a época precisa em que o apocalipse situa essa vitória. as diversas teorias se agrupam sob os títulos seguintes:
 
sistema do fim dos tempos: iohanan estaria descrevendo os embates finais da história. esta interpretação esteve em voga na antiguidade; foi posta de lado na idade média; do século xvi aos nossos dias é mais e mais prestigiada principalmente por parte de correntes que profetizam o fim do mundo para breve;
 
sistema da história antiga (do século i aos séculos iv/v): o apocalipse descreveria a luta do judaísmo e do paganismo contra os discípulos do mashiah, luta que terminou com a queda da roma pagã (476) e o triunfo do cristianismo;
 
sistema da história universal: o apocalipse apresentaria, sob a forma de símbolos, uma visão completa de toda a história do cristianismo; descreveria sucessivamente os principais episódios de cada época e do fim do mundo. 
 
todas estas interpretações são, de algum modo, falhas, pois não levam em conta suficiente o estilo próprio do livro e querem deduzir do apocalipse notícias que satisfaçam aos anseios ou à curiosidade do leitor. por isto, deixando-as de lado, propomos a leitura da recapitulação, proposta por alio. examinemos essa teoria:
 
antes do mais, é necessário observar que nem todo o livro do apocalipse está redigido em estilo apocalíptico. as coisas que são, revisão da vida das sete comunidades da ásia menor às quais iohanan escreve; o estilo é sapiencial e pastoral; as coisas que devem acontecer depois. esta é a parte apocalíptica propriamente dita, para a qual se volta a nossa atenção. observemos a estrutura dessa parte: a corte celeste, com sua liturgia. o cordeiro "de pé, como que imolado", recebe em suas mãos o livro da história da humanidade. tudo o que acontece no mundo está sob o domínio desse senhor, que é o rei dos séculos. notemos assim que a parte apocalíptica do livro se abre com uma grandiosa cena de paz e segurança; qualquer quadro de desgraça posterior está subordinado a essa intuição inicial. 
 
o corpo do livro, que se segue, compreende três septenários: os sete selos: as sete trombetas: as sete taças. 
 
pergunta-se: uma estrutura construída de forma tão sofisticada poderá ainda ser o reflexo imediato da história tal como ela é vivida pelos homens? não seria, antes, o fruto de um arranjo lógico ou do trabalho de alguém que reflete sobre os acontecimentos e procura discernir alguns fios condutores por debaixo das diversas ocorrências da vida cotidiana?
 
sabemos que o estilo de iohanan é comparado ao voo de uma águia que gira em torno do objeto contemplado até finalmente dar o bote ou dizer claramente o que quer. levando em conta esta peculiaridade de estilo, podemos dizer que o autor não expõe os sucessivos acontecimentos concretos da história do cristianismo, mas apresenta a realidade invisível que se vai afirmando por trás dos episódios visíveis da história. 
 
em outros termos: o apocalipse apresenta (sob a forma de símbolos) a luta entre ue satanás, luta que é o fundo e a coluna dorsal de toda a história. cada septenário (o dos selos, o das trombetas e o das taças) é uma peça literária completa em si mesma; o número sete, aliás, significa plenitude ou totalidade, segundo a mística dos antigos. 
 
após os três septenários, ocorre a queda dos agentes do mal: a queda de babilônia, símbolo da roma pagã; a queda das duas feras que regem babilônia, o poder imperial pagão e a religião oficial do império; a queda do dragão, supremo instigador do mal. 
 
em contrapartida, a seção final mostra a cidade de david celestial, esposa do cordeiro e antítese da babilônia pervertida. os versos 22.16-21 constituem o epílogo do livro. aprofundemos um pouco mais o sentido do tríplice septenário central do apocalipse. 
 
o primeiro, o dos selos, nos dá a ver a paulatina abertura do livro que está nas mãos do cordeiro. é o septenário mais sóbrio e nítido, que, pode-se dizer, resume o livro inteiro; examinemo-lo de perto:
 
o primeiro selo corresponde a "um cavalo branco, cujo cavaleiro tinha um arco. deram-lhe uma coroa e ele partiu vencedor e para vencer ainda". o cavalo branco reaparece em 19,11-16; seu montador é o senhor dos senhores e o rei dos reis. - consequentemente dizemos que o primeiro septenário se abre com uma figura alvissareira: a do verbo de deus ou evangelho que, vencedor, porque já propagado no mundo, se dispõe a mais ainda se difundir. sobre este pano de fundo vêm os três flagelos clássicos da história:
 
o segundo selo corresponde ao cavalo vermelho, símbolo da guerra; 0 terceiro selo é o do cavalo negro, símbolo da fome negra e da carestia que a guerra acarreta; o quarto selo é o do cavalo esverdeado, símbolo da peste e da morte decorrentes da guerra e da fome (6,7s). aí estão os três flagelos que afligem os homens em todos os tempos e que as escrituras do povo da estrela frequentemente menciona. 
 
depois disto, o quinto selo apresenta os mártires no céu pedindo a deus justiça para a terra ou o fim da desordem que campeia no mundo. reproduzem o clamor dos justos de todos os tempos ansiosos de que termine a inversão dos valores na história da humanidade. em resposta, é-lhes dito que tenham paciência e aguardem que se complete o número dos habitantes da cidade de david celestial. 
 
o sexto selo já nos põe em presença do desfecho da história: chegou o grande dia do juízo final. aparecem então os justos na bem-aventurança celeste: os estelares representados por 144.000 assinalados, e os provenientes do paganismo, a constituir "uma multidão inumerável de todas as nações, tribos, povos e línguas"; celebram a liturgia celeste. 
 
aqui se encerra propriamente o primeiro septenário; compreende em suas grandes linhas os aspectos aflitivos da história da humanidade e o anseio dos justos para que a ordem se restabeleça; a consumação da história é, para os fiéis, vitória e felicidade. a consolação que iohanan quer transmitir aos seus leitores, consiste precisamente em mostrar que as calamidades sob as quais os homens gemem, estão envolvidas num plano sábio de deus, onde todos os males estão dimensionados para que sirvam à salvação das criaturas e à glória do criador. eis aí a síntese do apocalipse apresentada com clareza no primeiro septenário. 
 
e o sétimo selo corresponde a um silêncio de meia-hora. sim, o livro se abriu por completo. iohanan espera a execução dos desígnios de deus contidos no livro aberto. este silêncio de meia-hora é o "gancho" que remete ao segundo septenário. 
 
o segundo e o terceiro septenários retomam o conteúdo do primeiro com algumas variantes. observemos, para começar, que terminam cada qual com a consumação da história. o segundo septenário tem em vista principalmente os flagelos que afligem o mundo profano: a terra, a vegetação, as águas, os astros... ao contrário, o terceiro septenário tem em mira as sortes da igreja perseguida pelo dragão (satanás) e seus dois agentes (o poder imperial pagão, que manipula a religião oficial do estado pagão). observemos dentro do segundo septenário o "gancho" do qual pende o terceiro septenário: é entregue a iohanan um livrinho, doce na boca e amargo no estômago. como entender isto? -- o segundo septenário apresenta a execução do plano de deus contido no livro cujos selos se abriram. portanto, se deve haver outra série de revelações, deve haver também outro livro que as traga; é precisamente este que iohanan recebe, amargo no estômago, porque portador de notícias pesadas para os discípulos do rabino de nazaré fiéis. 
 
merece atenção especial o intervalo ocorrente entre o segundo e o terceiro septenários. ele prepara a série das taças, apresentando os grandes protagonistas da história da igreja: a mulher e o dragão no capítulo 12; as duas bestas, manipuladas pelo dragão, sendo que a primeira sobe do mar, quem olha da ilha de patmos para o grande mar, se volta para roma e representa o poder imperial perseguidor, ao passo que a segunda besta sobe da terra -- quem de patmos olha para o continente próximo, volta-se para a ásia menor, onde campeia o culto religioso do imperador. 
 
a sede capital destes dois agentes é babilônia, a roma pagã. o cap. 12, ao apresentar a mulher e o dragão, é também uma síntese da mensagem da apocalipse e da história da igreja, que será comentada na quarta parte deste estudo. - como dito, os agentes do mal estão fadados a perecer, como se lê em 17,1-20,15, dando lugar à cidade de david celeste e à bem-aventurança dos justos. 
 
por conseguinte as calamidades que o apocalipse apresenta a se desencadear sobre o mundo, não hão de ser interpretadas ao pé da letra; antes, depreender-se-á o seu sentido à luz das cenas de paz e triunfo que iohanan intercala entre as narrativas de flagelos (enquanto os justos padecem na terra, há plena segurança no céu, conforme o apocalipse). justapondo aflições na terra e alegria no céu, iohanan queria precisamente dizer aos seus leitores que as tribulações desta vida estão em relação estrita com a sabedoria de deus; foram cuidadosamente previstas pelo senhor, que as quis incluir dentro de um plano muito harmonioso, plano ao qual nada escapa. 
 
em consequência, ao padecer as aflições da vida cotidiana, os discípulos do rabino de nazaré deviam se lembrar de que tais adversidades não esgotam toda a realidade, mas são apenas as facetas externas e visíveis de uma realidade que tem seu aspecto celeste e grandioso. as calamidades sob as quais os discípulos do rabino de nazaré do primeiro século se sentiam prestes a desfalecer, não os deveriam impressionar, constituíam como que o lado de baixo de um tapete que, visto no seu aspecto autêntico e superior, é um verdadeiro tapete oriental, cheio de ricas cores e belos desenhos. 
 
eis a forma de consolo que iohanan queria incutir aos seus leitores, não só do séc. i, mas de todos os tempos da história: os acontecimentos que nos acometem aqui na terra são algo de ambíguo ou algo que tem duas faces: uma exterior, visível, a qual é muitas vezes aflitiva e tende a nos abater; outra, porém, interior, invisível aos olhos da carne, mas perceptível aos olhos da fé, a qual é grandiosa e bela, pois faz parte da luta vitoriosa do bem sobre o mal; é mesmo a prolongação da obra do cordeiro que foi imolado, mas atualmente reina sobre o mundo com as suas chagas glorificadas. por isto, enquanto os discípulos do rabino de nazaré na terra gemem (ai, ai, ai!), os bem-aventurados na glória cantam (aleluia, aleluia, aleluia!). 
 
no céu os justos não se acabrunham com o que acontece de calamitoso na terra: continuam a cantar a deus porque percebem o sentido verdadeiro das nossas tribulações. no dizer de iohanan, essa mesma paz e tranquilidade devem tornar-se a partilha dos discípulos do rabino de nazaré na terra, pois, embora vivam no tempo e no mundo presentes, já possuem a eternidade e o céu sob forma de semente, semente da graça santificante, que é semente da glória celeste. 
 
assim o apocalipse oferece uma imagem do que é a vida dos seguidores do rabino de nazaré e a vida da comunidade de fé: é uma realidade simultaneamente da terra e do céu, do tempo e da eternidade. na medida em que é da terra e do tempo, apresenta-se aflitiva. este aspecto, porém, está longe de ser essencial: no seu âmago, a vida do cristão é celeste e, como tal, é tranquila, à semelhança da vida dos justos que no céu possuem em plenitude aquilo que os discípulos do rabino de nazaré possuem na terra em germe. 
 
o capítulo doze sintetiza toda a história da igreja sob a forma da luta entre a mulher e o dragão, figuras paralelas às da mulher e da serpente. este trecho apresenta uma mulher gloriosa e sofredora ao mesmo tempo. está para dar à luz um filho que um monstruoso dragão espreita para abocanhá-lo. a mulher gera seu filho, que tem os traços do messias. ele escapa ao dragão e é arrebatado aos céus. dá-se então uma batalha entre miguel com seus anjos e o dragão, que acaba sendo projetado do céu sobre a terra, onde procura abater a mulher-mãe, perseguindo-a de diversos modos. mas o próprio deus se encarrega de defender a mulher no deserto durante os três anos e meio ou os quarenta e dois meses ou os mil duzentos e sessenta dias de sua existência. 
 
vendo que nada pode contra essa figura grandiosa, a serpente antiga atira-se contra os demais filhos da mulher, tentando perdê-los. que significa este capítulo? está claro que o dragão representa satanás, aquele que é "mentiroso e homicida desde o início". 
 
quanto à mulher, não pode ser identificada com algum personagem individual, mas é a mulher que perpassa toda a história da salvação. com efeito; já à primeira hawah, mãe da vida, deus prometeu um nobre papel na obra da redenção. a primeira hawah se prolongou na filha de sião, o povo da terra da estrela, do qual nasceu o messias. a filha de sião culminou na segunda hawah, a igreja de cristo. por isso, a mulher é gloriosa, mas sofredora como o povo da terra da estrela, pois os filhos que ela gera estão sujeitos a ser atingidos pela sanha do dragão, que age neste mundo como um adversário já vencido, mas desejoso de arrebanhar os incautos que lhe deem ouvidos. agostinho diz que o demônio é um cão acorrentado: pode ladrar, fazendo muito barulho, mas só morde a quem se lhe chegue perto. por último, esta mulher-mãe, igreja que exerce sua maternidade por toda a história da salvação, se consumará na cidade de david celeste, a esposa do cordeiro. 
 
a batalha entre miguel e o dragão não corresponde à queda original dos anjos, mas significa plasticamente a derrota de satanás, vencido quando cristo venceu a morte por sua ressurreição e ascensão. deus permite satanás tentar os homens nestes séculos da história da igreja, com um fim providencial, provar e consolidar a fidelidade dos crentes. satanás só age por permissão de deus. 
 
a duração de 1260 dias ou três anos e meio que a mulher passa no deserto, não significa cronologia, mas tem valor simbólico. com efeito, três anos e meio, 42 meses e 1260 dias são termos equivalentes entre si: correspondem à metade de sete anos. sete é o símbolo da totalidade, da perfeição, da bonança e, por conseguinte, a metade de sete é o símbolo do que está inacabado, da dor. portanto, três anos e meio (e as expressões equivalentes em meses e dias) no apocalipse traduzem toda a história da igreja na medida em que não é algo concluído, que é a penosa luta da igreja entre a primeira e a segunda vinda de cristo, no deserto deste mundo. 
 
e o capítulo vinte fala de um aparente reino milenar do rabino de nazaré sobre a terra, estando satanás acorrentado. o milênio seria inaugurado pela primeira ressurreição, reservada aos justos apenas, aos quais seria dado viver em paz e bonança com cristo. terminado o milênio, satanás seria solto para realizar a seu ataque final, que terminaria com a sua derrota definitiva. dar-se-iam então a segunda ressurreição, para os demais seres humanos, e o juízo final. 
 
a teoria milenarista, entendida ao pé da letra, foi professada por antigos escritores da igreja: justino (+165), irineu (+202), tertuliano (+ após 220), lactâncio (+ após 317). agostinho (+430) propôs novo modo de entender o texto, a partir a leitura de iohanan 5.25-29, onde se lê: “em verdade, em verdade vos digo, aquele que ouve a minha palavra... passou da morte para a vida. em verdade, em verdade vos digo, que vem a hora, e já veio, em que os mortos ouvirão a voz do filho de deus e os que a ouvirem viverão”. 
 
“não vos admireis disto, pois vem a hora em que ouvirão sua voz todos os que estão nos sepulcros. os que praticaram o bem sairão para a ressurreição da vida, os que, porém, praticaram o mal, sairão para a ressurreição do juízo". 
 
nesse trecho, o senhor distingue duas ressurreições: uma, que se dá "agora" ("e já veio"), no tempo presente, quando ressoa a pregação da boa nova: é espiritual e publicitada através do batismo; equivale à passagem da vida no pecado para a vida na graça que santifica. a outra é futura e se dará no fim dos tempos, quando os corpos forem transformados pela vida na graça por enquanto latente nos salvos. 
 
assim, no apocalipse a ressurreição primeira é a passagem da morte para a vida que se dá na conversão de cada cristão, quando este começa a viver a vida sobrenatural ou a vida do céu em meio às lutas da terra. a segunda ressurreição é, sim, a ressurreição dos corpos, que se dará quando cristo vier em sua glória para julgar todos os homens e por termo definitivo à história. 
 
mil anos designam a história da igreja na medida em que é luta vitoriosa ("mil" é um símbolo de plenitude, de perfeição; "mil felicidades", na linguagem popular, são "todas as felicidades"). pela redenção na cruz, cristo venceu o príncipe deste mundo, tornando-o semelhante a um cão acorrentado, que muito pode ladrar, mas que só pode morder a quem voluntariamente se lhe chegue perto (agostinho). 
 
é justamente esta a situação do maligno na época que vai da encarnação à parusia do mashiah ou no decurso da história do cristianismo. por isto os três anos e meio que simbolizam o aspecto doloroso desses séculos (já estamos no vigésimo-primeiro século), são equivalentes a mil anos, caso queiramos deter nossa atenção sobre o aspecto feliz, transcendente ou celeste da vida do cristão que peregrina sobre a terra: a graça santificante é a semente da glória do céu. 
 
assim se vê quanto seria contrário à mentalidade de iohanan tomar ao pé da letra os mil anos do capítulo 20 e admitir um reino milenário de cristo visível na terra após o término da história atual. 
 
o sistema da recapitulação proposto merece a preferência aos demais, pois é o que mais leva em conta a mentalidade e o estilo de iohanan. este, também no seu evangelho, recorreu ao estilo da recapitulação em espiral. contudo não se pode negar as alusões do apocalipse aos personagens e situações da história antiga -- nero, a invasão dos bárbaros, roma, babilônia ... 
 
mediante essas referências, iohanan não tinha em vista deter a atenção do seu leitor sobre episódios da antiguidade, mas mencionar tipos característicos de mentalidades humanas ou de situações de vida que acompanham toda a história da igreja: assim nero vem a ser o protótipo dos soberanos políticos que perseguem a igreja em qualquer época -- há muitas reproduções de nero através da história. por isto também o número seiscentos e sessenta e seis da besta do apocalipse, adversária dos discípulos do rabino de nazaré, equivale, segundo a interpretação mais provável, à expressão kaisar neron, imperador nero. 
 
roma e babilônia, por sua vez, designam de maneira típica o poderio deste mundo que, com seus mil atrativos de esplendor e prazer, procura seduzir os discípulos de cristo para o pecado. a luta a que iohanan assistiu, entre roma pagã e a igreja, é evocada no apocalipse não por causa da luta propriamente dita, mas dentro de uma perspectiva mais ampla, isto é, a fim de simbolizar e predizer o combate perene que se vai travando entre o poder diabólico e cristo através dos séculos, até terminar com a plena vitória de ieshuah. 
 
estas considerações concorrem para evidenciar quanto é vã a tentativa de descobrir a predição de fenômenos estranhos da hora presente (bombas atômicas, explosões, enchentes e secas, discos voadores) nos quadros da contemplação de iohanan. estes são quadros típicos e perenes, quadros que se reproduzem por todo o decorrer da história, variando apenas de aspectos. 
 
a sua mensagem abrange todas as situações análogas: querem, sim, dizer que as desgraças da vida presente, por mais aterradoras que pareçam, estão sujeitas ao plano da eternidade que provê, a qual tudo faz concorrer para o bem daqueles que 0 amam. 
 
reyna dá a sua famosa risadinha, não liga para as contemplações do profeta. é pé no chão.  sarcasmo puro. ela é libertária, já está com os solidários, mas discorda da ala reformista. reyna é a nossa rosa luxemburg.
 
e ela me lembra duas outras mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal estelar-cristã. a primeira faz parte da literatura humana, é diadorim. 
 
de diadorim, disse guimarães rosa, através de riobaldo, no grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”.
 
 “guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. aquilo era de chumbo e ferro”.
 
mas diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha seu inimigo nomeado: hermógenes.
 
 “vigiei diadorim; ele levantou a cara. vi como é que olhos podem. diadorim tinha uma luz. reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. o que diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto o eterno dura. mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do hermógenes”.
 
“eu dizendo que a mulher ia lavar o corpo dele. ela rezava rezas da bahia. mandou todo o mundo sair. eu fiquei. e a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. ela me mal-entendia. não me mostrou de propósito o corpo. e disse…

diadorim - nu de tudo. e ela disse:
- 'ao eterno dada. pobrezinha…'
e disse. eu conheci! como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… que diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… estarreci. a dor não pode mais do que a surpresa. a coice d'arma, de coronha…” 
 
grande sertão: veredas, caminho e descaminho, verde e seco, limite. diadorim possui jeitos de fêmea, atos másculos de jagunço, “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: bravo e a feroz na luta. sempre pronto para o combate, diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”. 
 
a segunda mulher-guerreira é jael e faz parte da literatura hebraica antiga. dela nos conta juízes 4.
 
“porém sísera fugiu para a barraca de jael, mulher de héber, o queneu. ele fez isso porque jabim, rei de hazor, estava em paz com a família de héber. jael saiu da barraca para encontrar sísera e lhe disse: entre, meu senhor. entre na minha barraca. não tenha medo. então ele entrou, e jael o cobriu com um tapete. e sísera pediu a ela: por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. depois cobriu sísera de novo. e ele disse: fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”.
 
“sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. aí jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. a estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. e ele morreu. quando baraque chegou, perseguindo sísera, jael saiu para encontrá-lo e disse: venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. então baraque foi com ela e encontrou sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”.
 
jael, a cabra selvagem, no século 12 antes da era comum matou sísera, o chefe das milícias cananeias. débora, profeta efraimita, disse que jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços. 
 
é isso mesmo, dançando débora cantou que jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela. 
 
a história em juízes 4 fala de uma época sem limites, como os sertões das gerais de guimarães rosa. jael não era efraimita e juntamente com seu homem, héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. mas por bravura guerreira foi elogiada por baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. e foi bem-vinda no bando. 

num momento de dispersão dos clãs hebreus, débora convocou baraque e seus guerreiros para lutar. o texto estelar de juízes mostra a liderança de débora, e a coragem de jael, em oposição à racionalidade militar de baraque e a miserabilidade de sísera. o texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens e convocar os clãs à união. essa convicção e posicionamento é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananeia-palestina. mil e trezentos anos depois, na carata cristã aos hebreus, o autor fará menção ao tempo dos juízes, cita baraque, mas omite débora e jael. e a mulher-guerreira parece esquecida.

no que se refere a diadorim e jael é necessário desconstruir as ideias de exclusão da mulher-guerreira e analisar os relatos sob uma nova leitura. 
 

a mulher-guerreira não é a mãe, nem a esposa, nem a prostituta, nem a feiticeira. ela deve ser procurada ali onde não estão as anteriores. assim teremos diadorim e jael para homem nenhum botar defeito. igual a reyna. 

11.
 
a canção de reyna
 
“mulheres da cidade de david, eu sou negra e bela. sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”. cantares de salomão.
 
zlabya, talvez você conheça essas imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade. mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, já que o livro de cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de salomão. 

aqui estamos diante de uma constatação fundamental: a moça inspiradora dos poemas de amor do livro de cantares era uma bela negra. e quando as filhas da cidade de david, que faziam parte da casta dominante ligada à corte, protestaram ao descobrir a paixão do rei, a sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "eu sou negra e formosa, ó filhas da cidade de david, como as tendas de quedar, como as cortinas de salomão".

na versão inglesa king james a moça era negra, porém bela, mas no texto estelar não há distinção entre "porém" e "e". a conjunção hebraica “ve” pode ser traduzida por "porém" e "e". o tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma diferença enorme.  
mas, por que os tradutores ocidentais optaram pelo “porém”? porque essas traduções foram feitas através do filtro cultural branco e racista, a partir da versão latina dos textos estelares e discípulos do rabino de nazaré, a vulgata, que introduziu o “porém”: “nigra sum sed formosa”. eu sou negra, “porém” formosa. não negra e bela, mas bela apesar de negra.  

no texto estelar de reis, no primeiro livro, encontramos a história da rainha do sul, ou seja, rainha de sabá. uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a salomão. queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. assim, o antigo texto estelar está interessado nela por causa de sua inteligência. mas um fato significante sobre sabá é que ela era negra. não se sabe exatamente de que região. poderia ser do iêmen ou do norte da áfrica, possivelmente a etiópia. os falashas, estelares etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de menelik, o filho de salomão e sabá. e também para os discípulos do rabino de nazaré negros de todo o mundo, sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de cantares de salomão. 
 
o poeta w. b. yeats releu o versículo “sou negra e bela” e poemou assim: salomão cantou a sabá e beijou a face negra dela.     

onde os discípulos do rabino de nazaré africanos celebraram a cor negra de sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. na rainha de sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à convicção hebreia. em sua rendição, aparentemente, sabá perdeu também a cor negra de sua pele.

assim a história de uma mulher sábia não combina com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã europeia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao “outro de cor negra”. dessa maneira, o “outro de cor negra” foi domesticado, seduzido e subjugado. e a leitura cristã do texto é que sabá capitula a salomão e torna-se culturalmente “branca”. 

sabá foi companheira de salomão e o texto pode ser lido assim. mas a tradição, a partir da vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da europa sobre oriente, do homem sobre a mulher e do branco sobre o negro. 

mas os textos estelares falam de negros e de nações africanas como cuxe, mizraim e pute, que hoje são etiópia, egito e líbia. e até a construção do canal de suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas. o cenário da atuação divina cobria também a península do sinai, o egito, que está na áfrica. e israel era visto como parte do continente africano. só com a construção do canal de suez, a áfrica passou a ser olhada como continente separado do oriente médio. nos textos estelares e dos discípulos do rabino de nazaré, a terra do povo é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro.  


e, embora muitos humanos da áfrica vejam as comunidades dos discípulos do rabino de nazaré como de origem europeia, a análise da história demonstra que a religião da terra da estrela teve origem multirracial e que começou a ser escrita na áfrica. 
a canção da sulamita é a preferida de reyna, mulher-guerreira consciente de raça e gênero que diz: “eu sou negra e bela, como as barracas do deserto, como as cortinas do palau de salomão”.

12.
 
não toquem na vida do yoffe
 
são paulo, vila santa isabel. é noite de sexta-feira. noite de festa em bairro da periferia. bailes de são iohanan em cada esquina. uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraça a bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora:
 
-- senhor, eu não sei do yoffe. não sei porque largou a manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. ah! senhor, ouve esta mãe. acalma o coração dele, dê-lhe paz. ajuda ele, pai adorado. eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. ajuda também a reyna. é uma moça tão boa. não permita que yoffe a faça sofrer.
 
miriam não vê, mas alguns mensageiros da eternidade acompanham com atenção e reverência aquela oração de fé. ela está conversando com o eterno criador dela e deles. suas asas, enormes, estão abertas. o ambiente brilha com intensidade. ah! se ela pudesse ver. se pudesse... de memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o salmo 91...
 
-- aquele que habita no esconderijo do altíssimo, a sombra do onipotente, descansará...
 
de olhos cerrados, coloca a bíblia sobre a cama, junta as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta do eterno. e completa a oração.
 
-- porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação.
 
as lágrimas escorrem por seu rosto. rosto de mãe que recorda o filho ainda pequeno orando com ela o pai nosso. sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado golias. e o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu.
 
era um apartamento gostoso aquele de santa teresa, no rio. ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. era apaixonada pelo marido. pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. shemtós morreu de complicação cardíaca. foi tudo muito rápido. perderam o apartamento. tiveram que ir para perdões. ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. foram para a fazenda do  ari. ela ficou lá uns meses e voltou para o rio. tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças.
 
e aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto davi. foi massacrada pelas circunstâncias. empobrecida, moravam num quarto alugado na rua paissandu, ali no flamengo. o menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. o dia todo na praia. o yoffe trabalhava e estudava. lia a bíblia, tinha amigos crentes. o eterno, sem dúvida, haveria de ajudá-lo.
 
mas a vida era muito dura. recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela aliança para o progresso. num momento de desespero, cortou os pulsos. e em plena crise, foi internada em um castelo psiquiátrico em jacarepaguá. 
 
de pé, miriam coloca a bíblia sobre a mesa. e continua a lembrar-se das visitas que o yoffe lhe fazia aos domingos. ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. mas ela sabia que um jovem não resolve muito bem certos problemas.
 
meses depois, recebeu alta. casou-se com um professor de são paulo, dono de uma escola no bairro do carrão. mudou-se para a casa dele. casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. levou o rapaz alex. yoffe afastou-se dela, da família, de todos.
 
passaram-se anos. será que ele me odeia? será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? pela fome? a esta mãe só restava a oração. e como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo. 
 
se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. era um quartel-general do eterno no quarteirão. mas ela sabia que não estava sozinha. no mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo yoffe. as tias lucy e alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele.
 
e foi assim, por misericórdia e amor, que o eterno ordenou a seus anjos guardarem a vida do yoffe. é certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. yoffe declarava-se ateu e, conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. só confiava em si próprio. e não queria ajuda de ninguém. mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um limite, ahava, o limite das onze horas. e como ahava não trabalhava sozinha, lá estavam em parceria permanente, sharon e  adara. o inferno particular de yoffe era alucinado, degenerado e violento. mas quem definia o rumo era ahava. 
 
os mensageiros do eterno já haviam advertido aos limites: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. mas permaneciam à distância. há uma lei que nem o eterno viola. é o livre arbítrio que ele próprio deu às pessoas. assim, yoffe tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. estava sempre rodeado dos três limites, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. a certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os limites, da ordem que tinha vindo do trono do eterno: não toquem na vida do yoffe.
 
miriam  não podia ver o mundo espiritual. mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. a criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. desesperada, uma das tias, iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. a pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. durante dias, entre a vida e a morte, yoffe ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira.
 
miriam orava insistentemente para que a criança não morresse. e fez um acordo com o  eterno eterno. prometeu que a criança seria dele, para ele, conforme fosse o desejo dele. deu seu primogênito como oferta ao senhor. nazireu do eterno. sem dúvida, ela fica lembrando... o eterno ouviu sua oração e aceitou sua oferta. a segunda guerra mundial tinha terminado fazia um ano, e da itália chegou uma pomada milagrosa: penicilina. três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. um mês depois teve alta.

que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.