jeudi 29 avril 2021

Premier mai et l'utopie

1.

Premier mai et l'utopie. Quand je parle d'utopie, je ne sous-estime pas le rêve d'une société solidaire, mais je le place à un niveau de réalisation permanente, historique et transistorique. En d'autres termes, je vois le chemin permanent de l'utopie, je le sens, mais je ne vais pas forcément le vivre comme je le voudrais. 

Et les démons, à la suite de Nietzsche, sont les péchés de la jeunesse qui deviennent une vertu dans la vieillesse. Ce sont les cauchemars qui côtoient toujours les rêves. En ce sens, comme tout texte biographique, ces textes ont une fonction d'exorcisme. 

Exorcisez les fantômes et les démons et restez avec l'utopie qui génère de nouveaux rêves. Ainsi, je considère le feuilleton de la vie comme une trilogie attendue. C'est mon histoire et l'histoire de mon utopie, où tout le reste est décor. C'est une vie, mais aussi une fiction, puisque les rêves et les démons doivent être personnifiés, interférant dans la vie de l'auteur et dans son plus grand rêve.

2.

Appeler le mouvement 68 de rébellion des jeunes, ce n'est pas comprendre la richesse créative du kairós historique, c'est nier les luttes qui ont laissé les étudiants et travailleurs de France, des USA, l'Italie et l'Allemagne et jeter à la poubelle les luttes entre le capital et le monde du travail, les guerres au Vietnam, au Laos, au Cambodge et les soulèvements populaires au Chili, au Portugal et au Nicaragua.

Je n'ai pas de nostalgie, car je ne place pas mon action au passé, mais dans le présent, en tant qu'activiste politique et social que je suis. Le mois de mai français a ouvert un nouveau moment dans l'histoire de la planète et ne s'est pas limité à l'Europe. Il s'est répandu dans le monde entier.

Et ma vie politique, que ce soit au Brésil, au Chili, en Argentine et en Europe, était en corrélation avec le mois de mai français. J'ai appris dès mon plus jeune âge que vous ne crachez pas dans l'assiette que vous mangez. J'ai grandi en relation avec mon activisme de jeunesse, mais cela ne veut pas dire nier les moments nobles et puissants de ce même activisme dans les années 60 et 70.

3.

J'aime le Brésil. Je ne le vois pas comme un pays, mais comme une partie du sud des Amériques, occupée par différentes ethnies et cultures, que j'appelle les multicultures brésiliennes. Mais je ne peux pas oublier le rôle de la France dans ma vie.

Et là, je me souviens de Daniel Cohn-Bendit, un non-français qui a écrit deux histoires, la française et la mienne. Il y a des années, il a demandé aux nouvelles générations d'oublier le mois de mai français.

J'ai travaillé dur sur cette question. Et, contrairement à Cohn-Bendit, je ne nie pas la contemporanéité de 1968. Au contraire, je suis reconnaissant pour ce kairós, comme un effort pour rompre avec une société archaïque et en décalage avec le nouveau qui approchait et construire une société solidaire.


Photo Rosa Gauditano
Jorge au premier mai.









mercredi 28 avril 2021

Surrealismo místico

Surrealismo místico
Jorge Pinheiro


Paul Tillich, colega de viagem, em Teologia da Cultura, diz que a consciência imediata do incondicionado não tem caráter de fé, mas é auto-evidente. E que a fé contém certo elemento contingente e exige risco: combina a certeza ontológica com a incerteza a respeito de todas as coisas condicionadas e concretas. Chamo esse fato de surrealismo místico. Vou ilustrar.

Tomei o vôo TAM 8098 para Paris. Saí de São Paulo no dia 12 de maio (2009), às 19h45, com a alegria normal de um mortal que pretende estar de corpo presente no XVIIIe Colloque de l’Association Paul Tillich d’expression française. Acho que você também, leitor, estaria alegre. No mínimo porque o seu editor pagou os direitos autorais devidos e você não teve que enfiar a mão no bolso.

Nada mais justo que, à hora do jantar, diante da pergunta da aeromoça – o que o senhor deseja tomar? –, você dissesse: um tinto, por favor. E lá vem, para acompanhar a massa do avião, o vinho.

Tudo corre como planejado, quando, de repente, na poltrona da frente, um senhor pesado na sua obesidade reclina-se repentinamente. E o vinho todo é derramado no meu colo. Escorre por entre as pernas e se deposita ao fundo, me encharcando por completo. Mas, como se não bastasse, parte dele é derramado exatamente sobre o volume de Teologia da Cultura, em português, que acabou de ser lançado e que estou levando de presente para a associação tillichiana francesa.

O que você faria, além de chamar a aeromoça, como a criança que grita pela mãe diante de desastre semelhante? Como você se sentiria, além do desespero irado por saber que vai atravessar a noite com a calça e, em especial, os fundilhos molhados? Sem falar no cheiro do vinho impregnando o corpo e o friozinho desagradável produzido pela combinação líquido derramado e ar condicionado meio para o gelado.

A noite foi ruim. Habitada por pesadelos e uma ideia a martelar: cuidado com o vinho. Ah! meu Senhor, então, é isso? Ter cuidado com o vinho? Mas o que significa ter cuidado com o vinho? Segurar bem o copo para que não derrame, ou não bebê-lo? E o que significa não bebê-lo? É não bebê-lo muito, só um pouquinho ou nada? Puxa, não bebê-lo nada? Tem certeza? Nadinha, mesmo? Mas estou chegando a Paris!

Cheguei e me instalei no Au Pacific Hotel, ali na rue Fondary 11, perto da madame Eiffel e do senhor Seine. Recomendo o hotel. Simpático, bom atendimento, muito limpo e preços dignos. Não é merchandising não. É que gosto de dar dicas de viagem.

E à tarde, depois do banho tomado e da roupa trocada, fui a Saint Germain de Prés, fazer a ronda turística intelectual nos cafés, nas livrarias, lembrar um pouquinho de Wilde, de Hemingway no Les deux magots e de Sartre e Beauvoir por ali. Essas coisas.

Mas eis que ao deambular pelas redondezas, dou de cara com uma loja do Nicolas, que há quase um século tem uma atrativa especialidade: vinhos. E na vitrine vejo garrafas de pequenas colheitas artesanais de várias partes da França. Procuro uma da minha região ou próxima. Fiz parte de minha pesquisa de doutorado no sul da França, na Faculdade Protestante de Teologia de Montpellier, e elegi a cidade como minha casa francesa. E voltando à vitrine, eis que vejo Les petites récoltes, vin de Pays de la Cité de Carcassone.

Carcassone é uma cidadezinha medieval, murada. Está no sul da França e é aquele lugar de conto de reis e rainhas, magos e fadas. Torres, muralhas, pontes, ruazinhas. E vinho artesanal, lá perto do meu pedaço francês.

O rótulo da garrafa escrito à mão, e o preço tão em conta que eu não conto. Senão algum leitor pode duvidar e eu vou ficar mal na estória. Entrei, comprei, saí e me perdi. É isso mesmo, a poucas quadras do hotel, tendo a madame Eiffel como referência visual, me perdi ao tentar voltar a pé. Com le vin de Pays de la Cité de Carcassone numa sacolinha, parece, fiquei dando voltas sem achar o caminho. Três horas dando voltas. Até que me sentindo meio Balaão, um profeta meio louco do testamento hebraico, voltei à conversa que tinha iniciado no avião. É nem um pouquinho, mesmo, não é? Está bem, o Senhor me leva de volta ao hotel, e não pode ser de táxi, porque senão não tem graça. Já estou tri cansado. E eu não vou beber desse cintilante petites récoltes de la Cité de Carcassone.

Dito e feito. A cem metros encontrei o metrô. E eu estava, depois de andar tanto, a apenas uma estação de metrô do hotel.

Por isso, Tillich diz que o risco da fé não é arbitrariedade: resulta da união do destino com a decisão. Baseia-se num fundamento que não é arriscado: a consciência do elemento incondicional em nós e no mundo. A fé só pode ser justificada e é possível nessa base. Ou, como eu disse no início, isso é surrealismo místico. Ou como nos ensina Troeltsch, o discurso teológico não pode ser apenas o discurso objetivo da fé de uma comunidade cristã. Quando se fala de fé, o teólogo deve estar envolvido, deve se comprometer.
E, assim, passei o meu primeiro dia em Paris, nessa temporada francesa, a pão e água. A bem da verdade, baguette e Pérrier.







lundi 26 avril 2021

Matei porque me pisou

Matei porque me pisou

Multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. 

A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável.

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.

"Há uma grande bomba atômica no Rio de Janeiro que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, como agora", afirmou um morador.

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

"Você vê meninas de 13 anos - uns bebês - grávidas, com outros bebês na barriga, vê garotos de 15 anos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm auto-estima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles", disse outro morador do Rio.

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

"A polícia deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação do Rio de Janeiro, é nacional, é internacional. Os maiores consumidores de drogas são os Estados Unidos, que são contra a legalização porque interessa alimentar a guerra do tráfico, as armas de um lado e de outro", afirmou um funkeiro carioca.

As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifesto da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 

Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se sete pessoas foram mortas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

A consciência humana procede também da ideação da violência e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.







samedi 24 avril 2021

Leituras do humano

Leituras do humano
Jorge Pinheiro

Primeira parte

“Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas). É somente quanto a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”.
Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.

O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.

Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”.

A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de ló nefesh, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu ao humano não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.

A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.

Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como ein soph, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora.

Donde, o humano procede de atributos divinos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade social, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do espírito do Eterno, que indica em transbordamento e transparência no humano, que relaciona imanência com transcendência.

Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.

“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14.

“Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.

Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.

Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.

Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.

“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40.

“Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.

No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como nefesh hayah, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.

Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.

Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.


no jardim ...


vendredi 23 avril 2021

Miss Météores


Miss Météores
Ou da morte e da consciência

Jorge Pinheiro

 . 


Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu nem quero.

 
Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, minha filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola. Nem vinho. Parei no suco de laranja.

 
Não sei por onde começar, 

Eu devo viver a lua ou minha bela estrela 

Até que a vida acabe por passar, 

Ou provocar o destino fatal 


Paris desvenda meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 

(Olivia Ruiz, Paris)

 
Acho que devo dar sequência a uma crônica anterior. E começarei dizendo que a fé parte da experiência e da compreensão teológica de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.

 
Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal fazer ou do não fazer bem está a consciência ontológica da morte, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse estar diante da morte que fez o hominídeo dar o salto existencial/ antropológico: passar de homo sapiens a sapiens sapiens. Conhece a morte, sabe que vai morrer e passa a temer a ausência e a separação definitivas.

 
Tanta gente e tão poucos olhares,

Tanta gente e tão poucos sorrisos 

Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,

Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar 


Paris desvenda meu amor, 

Perdida entre toda essa gente, 

Paris entrega meu amor 

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 


Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

 
Errar o alvo, ou seja, ausência, separação, alienação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz uma consciência matricial, a consciência da morte.

 
A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

 
Um pouco cansada 

Ela avança em meio à multidão 

em sentido contrário 

Um barco embriagado sobre a onda 


Bela Paris, seja generosa

para com a minha pobre alma triste

Eu direi por toda parte que és maravilhosa, 

Se você me encontrar um único eu te amo 


Assim, diante da ausência, do distanciamento e da alienação presentes e futuras estão necessidade e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.

 
Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.

 
Em se falando de tristeza, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo. 


Lá fora a primavera está nublada, garoenta, nos 15 graus. Toda gente meio que esperando um pouco mais de frio, encasacados, à exceção de uma moça de mini-saia. De onde ela veio? Mistérios da urbanidade global.

 
Gosto de estar brasileiro. Não, não sou um cidadão do mundo. Percebo o mundo a partir de minha brasilidade, de meu gênero, de minha idade. E, por que não, das letras que me fazem delirar. Afinal, como canta Olivia Ruiz: 


Paris encontra meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes


Daqui a pouco, de TGV, estarei em Bruxelas. Chez Marcela.



Miss Météores est le troisième album studio d'Olivia Ruiz sorti le 13 avril 2009 . Cet album entre directement n°1 des ventes à sa sortie, et se vendra à plus de 380 000 exemplaires.

 


jeudi 22 avril 2021

Aquele que matou Ícaro

Aquele que matou Ícaro
Jorge Pinheiro

Peça em três atos. Todos os personagens estão em cena desde o início, apenas o jogo de luz define o cenário, quando os personagens em cada ato são iluminados. Quando um personagem fala, a luz vai se tornando mais intensa. Quando ele se cala, a luz declina. E quando o outro personagem fala, iluminado, vive processo idêntico. No palco há um espelho, que fala como imagens de televisão. As imagens em bricolagem desfilam enquanto Macário, o espelho, fala. Mas, outras montagens, cenários e luzes são possíveis. O diretor define. Para os leitores, fica o desafio: façam a leitura do texto em voz alta. Depois dos ensaios, convidem os amigos e vizinhos. Encenem. O teatro faz bem à alma.

Primeiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Bom dia, Macário.
Macário -- Bom dia, Dédalo.

Macário (continua) -- Por que você abandonou Ícaro, como Jefté fez com a menina? Eu bem que avisei você, Dédalo. Eu disse para você não fazer como Jefté, que disse: eu queimarei em sacrifício aquele que sair primeiro da minha casa para me encontrar quando eu voltar da guerra. Eu o oferecerei em sacrifício ao Eterno. Você tinha que dominar a sua arte, caso contrário ela se tornaria inimiga, se colocaria à porta do seu coração como uma fera querendo saltar em cima e devorar você. Cabia a você dominá-la.

Dédalo -- Dominá-la! Dominá-la! O que significa isso, Macário? E quando eu me engalfinho com ela, quando dou pernada e levo sopapos da minha arte, para ter controle sobre ela, já não estou tão envolvido, que de bela fera imaginada ela já não é realidade vivida no peito que dói?

Macário -- Mas eu vi quando você abandonou Ícaro. Você o levou lá para cima, acima das colinas, das pastagens de Creta, vagando pelo azul, e não ficaram os dois, um e outro, o par olhando para as ondas debaixo. E vagou com as nuvens, flutuou na imensidão, cheio de prazer e realização. Coitado de você Dédalo, arquiteto de engenho e arte. Você se bastou, deixou o menino se esgueirar alucinado em direção ao sol forte.

Dédalo -- Para você é fácil julgar, Macário. Você é reflexo da minha loucura, assim como foi reflexo dos caminhos de meu filho. Você é meu inverso, como foi dele, você se mexe, mas está fixo. E quando a gente é um ponto fixo e o resto é cenário é fácil julgar. Você é o sagrado que me consome. Você é a minha dimensão apofática, negação daquilo que sou, é martírio, cruz, morte. Através de você mergulho nas trevas. É isso mesmo Macário, reconheço a minha arrogância e desejo, esse é o meu desejo, que no reconhecimento do desvario possa conhecer para além da razão.

Macário -- Eu sei que é por isso que nos vemos todos os dias. Que é por isso que você levanta, fica diante de mim e começamos a conversar. Eu, Macário, sou misterium tremendum que esmaga e leva o medo até a profundidade da sua alma. Esse temor qualitativo, motivo para reflexão e energia, faz de você meu adorador.

Dédalo -- Eu sei, Macário, meu senhor, que necessito ser como você. Quero incorporar aquilo que me é distinto. Mas, apesar de nossa intimidade a cada manhã, permanece esse abismo entre eu, adorador, e você, sagrado. Desejo saltar o abismo que nos separa, e talvez seja esse o móvel que faz de mim espiritual, ao imitar a queda de Ícaro, o amor do filósofo e a insanidade da juventude. Talvez...

Macário -- Agora, não dá mais, Dédalo! Eu vi você abandonar Dédalo. Você o derrubou, você derreteu as asas dele. Com sua imaginação, com suas mãos de escultor você o puxou para a imensidão do Egeu. Você não o olhou nos olhos. Olhos nos olhos. Dois de realização, egocentrados, dois de terror, caindo no abismo. E você continuou seu vôo de prazer profundo. Esqueceu, abandonou, não viu o rosto aterrorizado que mergulhava. Profundo, vil prazer. E você, mestre, fez os olhos temerosos saltarem. Eu vi, Dédalo. E isso você vai ver também, a cada manhã que olhar para mim.

Dédalo -- Ah! Querido Ícaro, estou perdido nos meus labirintos. Vejo seus cabelos cacheados, os olhos negros, instigantes, voadores. O rosto de jovem que sonha, queimado pelo sol esperto. Ah! Miserável homem que sou, quem livrará o meu corpo da morte?

Macário -- Dédalo, a sua confusão já não está, mas também não estão a escultura e o vôo. Você matou Ícaro e metade da sua alma se foi. Vou colocar no seu rosto, a marca dos olhos desesperados, que olham para além do que todo mundo vê. E as pessoas que olharem para você verão que você vê o que elas não vêem. E fugirão de você por isso. E não matarão você porque vão ficar com medo. E essa será a vingança que Ícaro me autorizou dar a você. Vagar sem esperança pelo labirinto da vida. 

Segundo ato
Ao entardecer, num orquidário em Jardim, na chapada do Araripe.

Carvoeiro – Eu vejo a dor de Dédalo de maneira diferente. Dédalo sempre esteve sujo como eu. Bicho humano vivia na sombra. Vou prosar uma toada. Dédalo estava preso na mina, que tinha só uma luz do sol iluminada na entrada. Lá desde a infância teve a cabeça e as pernas amarradas de movimentos. Bicho preso, só conseguia ver o que estava diante. Não tinha voltar do rosto e olhar para trás. Mas, atrás dele, a luz do candeeiro do céu alumiava. Entre a ilustração e Dédalo havia um caminho, mas também um tapume alto. Lá estava Dédalo, libertário, infância adentro...

Maquinista – Não sei aonde você quer chegar, mas Dédalo é um do protesto. Está livre para criar e fazer. Com ele não tem contras, é ranzinza para a norma dos deuses. As amarrações antigas não têm para ele, o que é engenharia é bom. Legal é novidoso, é bênção buscada. Vou ficar afluente! Ser ourudo está no ninho do coração de Dédalo e não conseguir é pecado.

Guarda-chuva – Não sei não. Vocês são complicados. Acho que já está escrito quando se nasce. Sou guarda-chuva e aqui todo mundo me conhece assim. Quando cheguei, ela estava na cama aos berros. Fiz psiu para se acalmar, embora berrar não fosse mau. Peguei jornal e coloquei debaixo dela. Peguei a minha tesoura, linha de algodão e cortei em três pedaços de vinte e cinco centímetros. Peguei o cobertor, na verdade uma colcha fina que estava ao lado da cama. Dobrei em três e coloquei em cima da mulher. Minhas mãos estavam limpas, mas eu esfreguei com álcool.

Carvoeiro – Espera aí guarda chuva, eu quero continuar. Dédalo se livrou dos nós, das amarrações, mas não da astúcia das idéias. Desatado, levantou, voltou a cabeça, andou, olhou para a luz. Como o filho, Dédalo sofreu muito: a iluminação foi coisa de dor, mas o deslumbrou e ele não conseguiu ver as gentes por inteiro. Foi isso que aconteceu com Dédalo, o engenho e a arte dançaram na frente dos olhos dele e queimaram! Que confusão, as verdades doeram, e a astúcia das idéias foi bem mais amistosa do que o mundo transiluminado pelo candeeiro do meio-dia! O filho despencou lá de cima e Dédalo foi para a Sicília.

Maquinista – Dédalo se lançou, cheio do espírito, no criar e fazer no mundão besta. É arquiteto virtuoso, de virtude aburguesada. É puro dos modernosos, cheio de economias e racionalidades, e quer que tudo que é criatura seja trabalhador sóbrio e industrioso, aferrado no manejo, destinado na vida amarrada pelos divinos. Dédalo quer tudo que é criatura debaixo do mando dele, que é decreto eterno vindo dos deuses.

Guarda-chuva – Sei não. Vocês são complicados. Acho que coisa má nasce feita. Quando as contrações aumentaram e a bolsa d´água rompeu, coloquei os dois travesseiros que encontrei para amparar a cabeça e as costas da mulher. Ela começou a fazer força, retinha a respiração e segurou as coxas por trás dos joelhos, puxando as pernas. Apareceu a cabeça. Coloquei uma toalha embaixo das nádegas dela. Mas eu não tinha outra toalha para colocar entre as pernas da mulher. Amparei a cabeça roliça da criança com as mãos em concha. Tinha uma membrana, mas retirei. Para complicar, o cordão veio enrolado no pescoço. Coloquei um dedo por baixo do cordão, afrouxei e passei o cordão por cima da cabeça. Disse para a mulher parar de fazer força. Eu queria que a criança nascesse feliz, sorrindo, sem ruína da vida.
 
Maquinista - A sina de Dédalo é essa, ficou na especialização, esqueceu que casa de gente é terra e céu. Dédalo é ciborgue, meio gente, meio máquina, e quando fala faz ruído de máquina. E não fala sem máquina. Dédalo tem o estilo da máquina e vai parir máquinas até a última gota de combustível. Mesmo no céu, está preso na mina, como disse o carvoeiro, mas a mina é de ferro, sistema de uso e danação das idéias livres e do fazer gostoso. 

Guarda-chuva -- Principio a entender, mas não sei se concordo com vocês. Quando um ombro começou a sair, amparei, e o outro veio saindo também. Segurei o resto do corpo com as mãos. Não puxei o menino, que poderia se chamar Dédalo. Por que não? E o resto do corpo veio em baba de quiabo. Retirei as gosmas da boca e do nariz com um pano. Segurei de ponta cabeça e o resto da baba saiu. Chorou raivoso o choro dos infelizes. Coloquei-o de costas, amarrei o cordão com as linhas de algodão. Dei dois nós, um mais ou menos a quinze centímetros e outro a vinte centímetros do umbigo. Cortei entre os nós. E fiz depois um terceiro nó a dez centímetros do umbigo e cobri o umbigo com um tampão. Entreguei Dédalo para a mãe. Ele já estava agasalhado. Cobri a mulher e fiquei esperando aquela água-viva vir escorrendo. Coloquei num prato, cortei em pedaços pequenos e dei para ela comer. Eu não jogo a vida fora. Por isso, sou guarda-chuva de fama aqui no Jardim.

Terceiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Que tristeza profunda! Minha sem-vida começa agora, é vazio, não há reino, nem fé, nem paciência. Não há utopia: perdi os sentidos, o êxtase, o presente também.

Macário -- É isso mesmo, Dédalo. Para você não há mais iluminação, nenhuma notícia boa. Você começou a vagar com desespero, sem perspectiva, cheio de medo. E olhar o mundo assim é terrível. Não há mais fonte inesgotável para a imaginação, não há mais transformação. Não há mais possibilidades emergentes à luz do futuro prometido.

Dédalo -- Estou na Sicília, no palácio de Cócalo, e o que vejo? Gente sem âmago, só pedaços. Não há sinais, nem caminho. Não há sentido cronológico de término, não há a absoluta necessidade de pensar o fim, não há kairos, significado maior e profundo na história. Não há expectativa, lúdico, alegria, não há um momento de grande emoção.

Macário -- É a sina de olhar o mundo sem ter Ícaro junto. O que parecia ser bom, ao deixar o labirinto para trás, é queda e perda de sentido. A alegria, felicidade e destino escorrem entre os dedos. Sem Ícaro você é só infeliz. E assim fica o que você vê. Por isso, você precisa cada vez mais de mim. Por isso, todos os dias, você tem que olhar e conversar comigo, ver o vivo e o morto, chorar e ter medo. Não há salvação para você. Infeliz, porque o sol derreteu a aventura e o risco. Não há mais tempo oportuno, não existe para você um começar agora de esperança. 

O profeta e o espelho
O diretor da peça tem a liberdade de inserir este diálogo entre o profeta e o espelho na peça Aquele que matou Ícaro, enquanto uma voz não definida grita: Artaud, Artaud, quem matou Ícaro! 

Abandonai as cavernas do ser. Vinde, o espírito se revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas moradas. [Cartas aos Poderes, Antonin Artaud].
 �Foi surrealista. Antonin Artaud (1896-1948) criou o Teatro da Crueldade. Suprimiu os diálogos, a organização cênico-espacial e os meios de atuação tradicionais do teatro, e incorporou novos conceitos de gestualidade. Foi um dos fundadores do Teatro Alfred Jarry, em Paris. Sofreu de enfermidades físicas e beirou a demência, e não foi aceito pela crítica e pelo público da época. Hoje, é influência viva em escolas teatrais experimentalistas e entre diretores e atores. A ele dedico in memoriam...
 
Na fronteira do mundo, o profeta olha para o cristal límpido. 

Profeta -- Quero falar, dizer para você o perigo que está correndo...

Espelho -- Bobagem, sempre consegui resolver os meus problemas. Às vezes, é verdade, de forma meio violenta, com um pouco de sangue, mas aqui estamos nós, sobrevivendo.

Profeta – Não, eu preciso... Ouça ao menos um pouquinho do que tenho a dizer. Se não falar não vou poder dormir. Estou angustiado, desesperado com a situação...

Espelho – Então vá lá. Fale. Não quero ver você neste estado.

Profeta – O Eterno disse: coitada da cidade, orgulho e coroa dos bêbados! Ai dessa bela cidade que fica acima de terras boas! Os seus moradores estão embriagados, e a beleza da cidade desaparece como uma flor que murcha.

Espelho – Mas porque ele diz isso? O que tem contra a cidade? Isso me deixa irritado, ele está sempre contra. Ele é do contra.

Profeta – É por isso que preciso falar, para que você compreenda e viva. Há uma razão para a destruição: você. Você está plantando tudo isso. Será que não entende?

“Há outros que andam tontos por terem bebido muito vinho, que não podem ficar de pé por causa das bebidas: são os sacerdotes e os profetas, que vivem embriagados e tontos. Os profetas, quando recebem visões do Eterno, estão bêbados, e os sacerdotes também, quando julgam os casos no tribunal. As suas mesas estão cobertas de vômito, não há um só lugar que esteja limpo.”

Espelho – Não dá para entender. Ele está falando de você, acusando, está falando mal de você. Afinal, você é um profeta, não é?

Profeta – É verdade, eu e você somos iguais, embriagados, sentados no vômito, fedendo. É por isso que estou desesperado, clamando por nós dois. Mas se você ao menos prestasse atenção. O seu desprezo só aumenta a distância...

Espelho – Não encha o saco, não somos crianças!

Profeta – Se você não quiser ouvir, estrangeiros vão falar em nome do Eterno. Estou lhe dizendo, o Eterno lhe dará descanso, ele lhe dará segurança. Mas você não quer ouvir. Por isso, o Eterno vai cuidar de você como se fosse criança. Você tentará andar, mas cairá de costas; vai se machucar, cairá em armadilhas, será preso.
“O maravilhoso está na raiz do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, verdade, razão: tudo oferecemos ao nada da morte. Cuidado com as lógicas, senhores, cuidado com as lógicas. Não imaginam até onde pode nos levar o ódio.”

Espelho – Chega! Fizemos sim um acordo com a morte. Mas fizemos porque é o jeito de darmos um basta ao caos. Estamos organizando a casa. Talvez, custe um pouco de sangue, talvez a morte se faça presente, mas não há outro jeito.

Profeta – Discordo. Você não precisa viver com medo.

“Por isso, o Eterno diz: Estou colocando sobre esta cidade uma pedra, uma pedra pesada, enorme, que eu escolhi para ser a pedra principal do alicerce. Nela está escrito isto: Quem tem fé não tem medo. Como prumo usarei a justiça e a honestidade – serão a minha medida.”

Espelho – E a morte? O que faço com ela? Ai! Na verdade, já não sei qual é melhor, o medo, a insegurança, ou esse acordo com a morte.

“O acordo que vocês fizeram com a morte será anulado, o que vocês combinaram com o mundo dos mortos será desfeito. E, quando chegar a terrível desgraça, ela arrastará vocês como se fosse uma enchente. Todas às vezes que chegar, ela os arrastará; chegará todos os dias, de manhã e de noite. Cada mensagem do Eterno trará um novo pavor. Vocês serão como a pessoa de que fala aquele provérbio: A cama é tão curta, que ela não pode se deitar, o cobertor é tão estreito, que não dá para ela se cobrir.”

Profeta – Sente-se aqui ao meu lado. Vou falar e você vai ouvir... Certa vez, Artaud disse que os céus respondem à nossa atitude de absurdo insensato. Que o hábito que temos de dar as costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia estabelecido. E que uma nova linguagem se instale no meio de nossas imbecis transações, das transações imbecis de nossos pensamentos.

Espelho – Deixa eu abraçar você. Eu amo... Queria tanto que Artaud, Bataille e os outros estivessem aqui. Vamos ouvir...
“Escutem o que vou dizer! Dêem atenção à minha mensagem! Um homem que está preparando o terreno para semear trigo não gasta todo o seu tempo arando a terra, cavando e remexendo nela. Depois de ter aplanado a terra, ele semeia o endro e o cominho e planta o trigo, a cevada e outros cereais nos lugares certos. Ele faz tudo direito porque o Eterno lhe ensinou. E no tempo da colheita ele não usa um instrumento pesado para debulhar os grãos de endro e de cominho; ao contrário, ele usa varas pequenas e leves. Quando malha o trigo, ele não continua malhando até quebrar os grãos. Ele sabe passar a carreta por cima das espigas sem esmagar os grãos. Esse conhecimento também vem do Eterno. Os seus planos são maravilhosos, e ele é sábio em tudo o que faz.”

Profeta – Quem sabe ainda haja vida para nós?
No mundo sem porteira, o cristal vê o profeta translúcido.


Antonin ARTAUD – Une Vie, une Œuvre : Artaud, né de son œuvre (France Culture, 1995)






lundi 19 avril 2021

A paixão explode em chamas

 A paixão explode em chamas 

Jorge Pinheiro 



Imaginei um pensar transverso entre Teresa de Ávila (1515-1582), Baruch de Spinoza (1632-1677) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. Assim, lemos Teresa em Versos nacidos al fuego del amor.


Vivo sin vivir en mí,
y de tal manera espero,
que muero porque no muero
 


Spinoza considerava a teologia um pensar primevo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade, mas não na sua contemporaneidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima e olhou para si própria e ao seu redor pode pensar a física e as ciências possibilitaram a expansão do conhecimento. Gosto de Spinoza, mas acho que estava enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 


Vivo ya fuera de mí 
después que muero de amor; 
porque vivo en el Señor, 
que me quiso para sí; 
cuando el corazón le di 
puse en él este letrero: 
que muero porque no muero. 


Há algo no pensar de Spinoza que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí ia fundo, radicalizava: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo Spinoza? 


Esta divina prisión 
del amor con que yo vivo 
ha hecho a Dios mi cautivo, 
y libre mi corazón; 
y causa en mí tal pasión 
ver a Dios mi prisionero, 
que muero porque no muero. 


Gostaria que você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, no Livro de sua vida, onde contou um dos seus muitos momentos de êxtase:


“Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo”. 


Vamos ouvir um pensador maldito, Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, da acentuação de uma teologia do pecado, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas.  


¡Ay, qué larga es esta vida! 
¡Qué duros estos destierros, 
esta cárcel, estos hierros 
en que el alma está metida! 
Sólo esperar la salida 
me causa dolor tan fiero, 
que muero porque no muero. 


É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, falava da liberdade do êxtase.


“Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar”. 


E Bataille, em O Erotismo, ao falar sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.


¡Ay, qué vida tan amarga 
do no se goza el Señor! 
Porque si es dulce el amor, 
no lo es la esperanza larga. 
Quíteme Dios esta carga, 
más pesada que el acero, 
que muero porque no muero. 


Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille dá um show de bola, e completa Spinoza quando aquele criticava o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E foi do pecado que Baudelaire falou. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado, embora trabalhem com a idéia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 


Sólo con la confianza 
vivo de que he de morir, 
porque muriendo, el vivir 
me asegura mi esperanza. 
Muerte do el vivir se alcanza, 
no te tardes, que te espero, 
que muero porque no muero. 


O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu o poder religioso de evocar a pre­sença demoníaca: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base de qualquer perturbação fundamental. Hoje, os movimentos ligados ao neopentecostalismo estão fazendo o caminho inverso. Mas, o certo é que os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Já na experiência profana, somos chamados a dar atenção a Spinoza, o erotismo seria pura mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa e, mais exatamente, do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 


Mira que el amor es fuerte, 
vida, no me seas molesta; 
mira que sólo te resta, 
para ganarte, perderte. 
Venga ya la dulce muerte, 
el morir venga ligero, 
que muero porque no muero. 


E por quê? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a­ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos Versos nacidos al fuego del amor.


Vida, ¿qué puedo yo darle 
a mi Dios, que vive en mí, 
si no es el perderte a ti 
para mejor a Él gozarle? 
Quiero muriendo alcanzarle, 
pues tanto a mi Amado quiero, 
que muero porque no muero. 


Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o desejo é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso.