mardi 13 décembre 2011

Teologia e Política (2)


Reflexões sobre a construção
histórica do Partido dos Trabalhadores (2)
Rubem Alves

Segunda parte
A presença cristã

Eu diria que tudo começou com a Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[1], em 1962, e com Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves[2], mas foi, sem dúvida, com o encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a teologia da práxis adquiriu direito de cidadania. Não nasceu naquela ocasião, mas foi a partir dela que se intensificou a reflexão da teologia enquanto ação para a libertação.[3]

E a partir das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín fez três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia: os países pobres estão submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vive num meio social em processo revolucionário; a igreja latino-americana deve buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça.[4]

A Cristologia dos documentos de Medellín teve um viés libertador. “É o próprio Deus que, na plenitude dos tempos, envia seu Filho para que, feito carne, libere todos os homens de todas as escravidões a que o pecado os mantêm subjugados: a ignorância, a fome, a miséria e a opressão, numa palavra a injustiça e o ódio que têm origem no egoísmo humano”.[5]

Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas como ação transformadora que deveria se estender ao ser humano enquanto totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, políticas e sociais.

E se as opressões do homem latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro lado, ela sofreu influência direta de teólogos europeus que procuravam interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann, negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais. Procuraram na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz Metz:

A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. (...) Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos”.[6]

Mas o exemplo cristão não chegou só de além-fronteiras. No Brasil ele foi contundente. E jornal Versus explicou porque.

“Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura”. [7]

E para entender os caminhos da catolicidade, o jornal entrevistou D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Mas, explicou Versus, “qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história”.

Nova Iguaçu era àquela altura, modelo brasileiro de cidade dos pobres e excluídos: “(...) oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escolas, hospitais, transportes, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região de  operários, funcionários mal remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções senão de si próprios”.

Diante da desconfiança de muitos socialistas ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica, Versus argumenta que “se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar”.

Assim, qual o espírito que orienta o atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil? E dom Adriano Hipólito respondeu:

“A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor”.[8]

Mas, Versus quer saber mais: o que são as CEBs, como funcionam, quem as integra? E Dom Hipólito explicou:

“Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica”.[9]

Como jornal socialista, envolvido com a organização dos trabalhadores ao nível sindical e político, Versus queria conhecer o pensamento de seu aliado cristão. E Dom Hipólito esclareceu sua posição.

“Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer”.

“Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder”. [10]

E já no final da entrevista, Versus fez uma pergunta que traduziu não apenas reflexão sociológica, mas também teológica, com profundas implicações políticas para o momento.

“Como o senhor vê o possível relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos trabalhadores?

-- Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são de fato cristãos”.[11]

Para dom Hipólito, assim como para o jornal socialista Versus, a história da Igreja era passível de críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilitou e potencializou a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, como explicou Tillich, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para ele, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo errou quando negou a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão. Versus evitou esse erro, quando esclareceu aos seus leitores de que “se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar”. [12]

Podemos fazer uma leitura deste cristianismo a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas. Lévinas reclama prioridade para a vítima na figura dos excluídos. O não matarás, princípio do humanismo de Lévinas, é uma marca constante nos escritos do teólogo Enrique Dussel. Lévinas é o judeu embebido no pensamento europeu. Mas a cultura européia não tem lugar para o outro, para o judeu oriental Lévinas. De maneira semelhante, Dussel é o excluído da América latina, que faz a critica teológica do pensamento europeu, que não consegue ver o outro.

Há aqui uma hermenêutica que se fundamenta na razão da libertação enquanto imperativo ético: quando se vive num mundo que não permite a produção e reprodução de nossas vidas latino-americanas, em que sentido nos relacionamos com esse mundo? Torna-se evidente que Dussel pretende uma teologia que parta de um retorno à realidade da América Latina. Para ele, a teologia na América Latina nasce da reflexão sobre a realidade econômica, cultural e política do continente. Dussel mostra a necessidade da ruptura com a tradição latino-americana que pensava a cultura, economia e política continental a partir da teologia européia. A situação latino-americana é diferente da situação européia. Os caminhos que devem ser percorridos divergem, segundo Dussel, dos caminhos dos países do centro.

Assim, Dussel construiu uma teologia que partiu da situação do excluído, e neste sentido o horizonte dos latino-americanos diverge da problemática européia, onde a centralidade do pensamento repousa sobre a dominação. Para ele, por exemplo, o Discurso do Método de Descartes é o manifesto do homem reduzido a ser um sujeito que pensa, e essa metafísica do sujeito, é a “expressão temática da experiência fática do domínio imperial europeu sobre as colônias”, que se concretiza não somente como vontade universal do domínio, mas historicamente como dialética de dominação versus dominado. Assim, afirma, “se existe vontade de poder, existirá alguém que deve sofrer o seu poderio”.

A teologia de Dussel tem por base uma nova história, pois, as histórias universais são européias, e os latino-americanos não podem se ver nessas histórias européias, porque o outro é invisível para elas. Para Dussel, os que se libertam conduzem a história para o seu futuro e constituem o momento essencial da história. Contraposto ao destino europeu e norte-americano, é reservado aos excluídos um destino que criar caminhos para a realização de uma humanização universal. Por isso, os excluídos encontram-se em posição privilegiada. São os excluídos que têm oportunidade de descobrir a situação de opressão, compreendendo quem é o dominador -- aquele que crê tudo compreender e que na realidade nada compreende.

Ora, quando a comissão nacional provisória do Partido dos Trabalhadores fez o lançamento público no 1º de Maio de 1979 de sua Carta de Princípios, afirmou que “os males profundos que se abatem sobre a sociedade brasileira não poderão ser superados senão por uma participação decisiva dos trabalhadores na vida da nação. O instrumento capaz de propiciar essa participação é o Partido dos Trabalhadores”. Podemos entender essa declaração a partir da análise de Dussel, quando diz que os excluídos ao descobrir a situação de opressão criam os caminhos para uma nova humanização.


Recado para os novos amigos leitores, se você tiver interesse por conhecimento mais profundo sobre o tema leia: Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006.



[1] Jorge Pinheiro dos Santos, Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, Uma releitura da Conferência do Nordeste, 1962, São Bernardo do Campo, UMESP, apostila, 2000.
[2] Rubem Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Título original em inglês: Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Tradução: João-Francisco Duarte Jr.
[3] R. Vidales, Acquisizioni e compiti della teologia latinoamericana, Concilium, 1974, nº 4, p. 154. In: Batista Mondin, Os teólogos da libertação, São Paulo, Edições Paulinas, 1980, p. 30.
[4] Mondin, op. cit., p. 31.
[5] Mondin, op. cit., p. 31.
[6] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.
[7] “A velha Igreja ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca junto às lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?” Renato Lemos e Marcos Magalhães, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.14-15.
[8] “É verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor”. Idem, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, p.15.
[9] “A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”. Idem, op. cit, p.15.
[10] “Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellin.” Idem, op. cit., p.15.
[11] “Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de Socialismos’. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno: ‘Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria história do Cristianismo”. Idem, op. cit., p.15.
[12] Idem, op.cit., p.15.