Ato de amor
No entanto, está chegando a
hora, e de fato já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em
espírito e em verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é
espírito e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em
verdade. João 4. 23-24.
É interessante que nenhuma das
análises do já antigo filme de Mel Gibson, “Paixão de Cristo”, tratou de um dos
temas centrais do cristianismo, que está presente no filme, mas que para
milhões de espectadores passa desapercebido: a questão da espiritualidade
cristã. E é esse tema que pretendo abordar, a partir de um texto clássico, o
diálogo entre Jesus e a samaritana.
A discussão central de todo o texto onde Jesus
conversa com a samaritana trata da espiritualidade cristã. Mas, agora, vamos
nos ater aos versículos 23 e 24. De forma abrangente podemos dizer que
espiritualidade é aquela relação do ser com a transcendência, que dá sentido à
vida. E exatamente por isso intercalo no artigo o belo poema de Ada Negri, Atto
d´amore, no idioma em que foi escrito.
Non
seppi dirti quant'io t'amo, Dio
nel quale credo, Dio che sei la vita
vivente, e quella già vissuta e quella
ch'è da viver più oltre: oltre i confini
dei mondi, e dove non esiste il tempo.
nel quale credo, Dio che sei la vita
vivente, e quella già vissuta e quella
ch'è da viver più oltre: oltre i confini
dei mondi, e dove non esiste il tempo.
O ser humano, unidade multiforme,
tem em seu espírito não uma dimensão parcial da vida, mas irredutível,
conforme afirma Vladimir Lossky [A l’image et la ressemblance de Dieu,
Paris, 1967, p. 118]. Nesse sentido, o espírito é a totalidade da vida. Nas
situações de perda, falta de sentido e de ameaça à vida há sempre experiência
com a transcendência, pois mesmo na negação dela há um sentido transcendente.
Na reconstrução da Europa, depois
da Segunda Guerra mundial, o teólogo teuto-americano Paul Tillich disse que a
desintegração espiritual da sociedade ocidental já tinha sido prevista por
teólogos e estudiosos, no século XIX, mas a necessidade de compreender este
fenômeno exigia que nos aprofundássemos em seu estudo. E afirmou Paul Tillich:
“Se não houver espírito, as construções
humanas não poderão produzi-lo. Ele, o espírito age ou não age nos indivíduos e
nos grupos. E quando age cria seu próprio meio de comunicação. Assim, o
espírito se manifesta por meio das palavras, das formas de vida, das
instituições sociais e dos símbolos religiosos”. [A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião,
1992, p. 275-276].
A idéia espírito, de que nos fala
Jesus, nos leva a uma compreensão abrangente de espiritualidade, que não pode
ser entendida apenas como sinônimo de piedade ou como conhecimento dos
princípios de que se compõe a piedade.
Partindo do senso comum da igreja brasileira, a
espiritualidade pode ser vista como uma interpretação particular do ideal
evangélico, mas se partimos do que Jesus nos transmite e da contextualização
realizada por Tillich podemos dizer que há uma espiritualidade comum à espécie
humana, que ela se expressa existencialmente por sermos todos imago Dei.
Quando multidões assistem a um
filme como A Paixão de Cristo e são despertadas, cada qual a sua
maneira, acerca da miserabilidade humana, constatamos que o ser humano tem
atributos potenciais para a espiritualidade. Esses atributos, presentes na
imagem de Deus que somos, e que chamo de tropismo à transcendência, nos leva à
questão do sagrado.
Non seppi; - ma a Te nulla occulto resta
di ciò che tace nel profondo. Ogni atto
di vita, in me, fu amore. Ed io credetti
fosse per l'uomo, o l'opera, o la patria
terrena, o i nati dal mio saldo ceppo,
o i fior, le piante, i frutti che dal sole
hanno sostanza, nutrimento e luce;
ma fu amore di Te, che in ogni cosa
e creatura sei presente. Ed ora
che ad uno ad uno caddero al mio fianco
i compagni di strada, e più sommesse
si fan le voci della terra, il tuo
Volto rifulge di splendor più forte
e la tua voce è cantico di gloria.
di ciò che tace nel profondo. Ogni atto
di vita, in me, fu amore. Ed io credetti
fosse per l'uomo, o l'opera, o la patria
terrena, o i nati dal mio saldo ceppo,
o i fior, le piante, i frutti che dal sole
hanno sostanza, nutrimento e luce;
ma fu amore di Te, che in ogni cosa
e creatura sei presente. Ed ora
che ad uno ad uno caddero al mio fianco
i compagni di strada, e più sommesse
si fan le voci della terra, il tuo
Volto rifulge di splendor più forte
e la tua voce è cantico di gloria.
A
espiritualidade e o sagrado
Rudolf Otto, um dos teóricos que
se debruçou sobre esta questão, diz que a experiência humana diante do sagrado
tem sempre algo intenso e profundo, que ele chama de mysterium tremendum, que traduz o numinoso, o que é transcendente
para a realidade do crente, que diante daquilo que o esmaga desenvolve senso de
temor [O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992, pp. 21-22]. Esse temor é um
medo qualitativo, motivo para reflexão e energia que transformado em poder faz
dele um adorador.
Tais experiências com o sagrado
encorajam e incorporam no adorador aquilo que lhe é distinto. Apesar dessa
relação de aparente intimidade de relacionamento, permanece o abismo entre
adorador e sagrado. Dessa maneira, este desejo de saltar sobre o abismo que
separa humano e sagrado é em última instância o móvel que dará origem à
espiritualidade.
Se por um lado a crise ocidental
pode ser traduzida como uma crise espiritual, por outro essa busca frenética de
bens materiais e de consumo aumenta o vazio humano e favorece a busca da
espiritualidade como experiência de vida coerente e recomendável. Assim,
vivemos numa sociedade em crise espiritual, que procura encontrar a
espiritualidade perdida.
A
espiritualidade cristã
A espiritualidade cristã foi
construída ao redor da cruz. A paixão de Cristo sempre foi entendida por
teólogos e crentes como o derramar do dom da vida de Deus sobre os seres
humanos. E porque a morte de Jesus Cristo não é derrota, mas sacrifício
livremente aceito, a espiritualidade cristã tem sempre dois movimentos:
1. Um movimento em relação ao
outro, ao próximo, ao desvalido, àquele que sofre, que é um chamado ao
compromisso. Este movimento da espiritualidade em relação ao próximo nós
chamamos de serviço.
A partir desse momento em que a
espiritualidade torna-se caminho para Deus através do serviço ao próximo, a
espiritualidade tem algo a dizer a todos os nossos relacionamentos, tanto
pessoais, como sociais e políticos.
Pode parecer desconcertante
relacionar espiritualidade e relacionamentos pessoais, sociais e políticos, mas
ao falar de espiritualidade estamos falando do exercício do amor e por
relacionamentos pessoais, sociais e políticos entendemos a transformação da
sociedade na direção do reino de Deus, para que se faça justiça aos excluídos
de tal forma que encontrem vida e salvação. Nesse sentido, a espiritualidade dá
sentido à vida pessoal, social e política e torna-se além de profética,
transformadora.
2. Mas a espiritualidade tem um
outro movimento, que se por um lado está ligado ao rigor da fé, como vemos na
oração e nos momentos de contrição, ela se realiza existencialmente, enquanto
encontro com Deus. Esse encontro, conforme no diz Jesus, é a adoração e está na
raiz da conversão e de todo processo de santificação. É um processo místico, no
sentido que mostra nossa miserabilidade diante do insondável mistério de Deus.
Por isso, a espiritualidade é
profética e transformadora no encontro com o outro, com o humano, e um ato
místico de adoração diante da majestade de Deus.
Or - Dio che
sempre amai - t'amo sapendo
d'amarti; e l'ineffabile certezza
che tutto fu giustizia, anche il dolore,
tutto fu bene, anche il mio male, tutto
per me Tu fosti e sei, mi fa tremante
d'una gioia più grande della morte.
Resta con me, poiché la sera scende
sulla mia casa, con misericordia
d'ombre e di stelle. Ch'io ti porga, al desco
umile, il poco pane e l'acqua pura
della mia povertà. Resta Tu solo
accanto a me tua serva; e nel silenzio
degli esseri, il mio cuore oda Te solo.
d'amarti; e l'ineffabile certezza
che tutto fu giustizia, anche il dolore,
tutto fu bene, anche il mio male, tutto
per me Tu fosti e sei, mi fa tremante
d'una gioia più grande della morte.
Resta con me, poiché la sera scende
sulla mia casa, con misericordia
d'ombre e di stelle. Ch'io ti porga, al desco
umile, il poco pane e l'acqua pura
della mia povertà. Resta Tu solo
accanto a me tua serva; e nel silenzio
degli esseri, il mio cuore oda Te solo.
Assim, conforme nos diz Segundo
Galilea, a contemplação de Jesus Cristo no irmão que sofre e a contemplação de
Deus no Cristo ressurreto são sempre frutos da ação do Espírito em nossas vidas
[Espiritualidade da Libertação, Petrópolis, Vozes, 1975, pp. 15-16].
Esses dois encontros são a base da espiritualidade cristã e fundamentam todo
ato de adoração daquele que crê.