jeudi 9 avril 2020

A existência e a justiça

A existência e a justiça
Yoffe ben Shemtov


Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabtai Zevi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Este querido ancestral não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabtai Zevi, em 1648, embora fosse seu amigo. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.


Aqui seguimos reflexões dos ancestrais que nos remetem à relação entre existência e justiça. Quando recorremos ao Sefer ha Neshamá, um tratado sobre a alma humana, vemos que a palavra hebraica para vida é חַיִּים. E se lê raiim, escrita no plural, porque somos pluralidade. Ou seja, uma unidade complexa, que acontece enquanto construção, mas também porque a vida não pode ser solitária, mas solidária, comunitária. Assim, tal complexidade precisa de equilíbrio e só pode ser plenamente construída associada à justiça, que é a qualidade de ser justo, mas também preciso.


Há outra simbologia, muito interessante, que parte da compreensão do Sefer Yetzirah, o livro da criação, um dos mais velhos tratados de cosmogonia judaica, que os primeiros ancestrais atribuíram a Abraham, mas que a partir da Idade Média passou a ser visto como obra do rabino Akiva. Nessa imagem, a primeira letra da palavra em hebraico חַיִּים, lê-se da direita para a esquerda, corresponde a uma mulher sentada num trono, com uma espada na mão direita e uma balança na esquerda. Ela tem os olhos bem abertos. Seu olhar encontra o nosso como espelho. A espada voltada para cima é a espada do espírito, a palavra de Adonai, porque não temos que lutar apenas na materialidade, mas também contra as hostes espirituais da maldade. A balança representa o equilíbrio necessário entre polos opostos, e está ligeiramente desequilibrada, porque a perfeição não existe no mundo manifesto, no qual tudo oscila em maior ou menor grau. A justiça, ou seja, o equilíbrio, não é permanecer estático, mas evitar a queda para um dos lados. A mão com a qual ela segura a balança destaca quatro dedos, a diversidade de nossa humanidade: espiritual, mental, física e emocional, que se encontram com o polegar. Tal simbologia traduz uma mensagem de diversidade na unidade. 


Assim, se no corpo existissem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligasse passado e presente, como explicar a associação de idéias, o hábito e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro, mental, e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.


Tomando como modelo a complexidade do mundo, e partindo da piedade e da sabedoria de Moshe Pinheiro, ancestral amado, prefiro dizer que devemos trabalhar algumas hipóteses -- a primeira é: só existe o corpo e o resto é extensão dele; e a segunda hipótese é: a existência vai além do corpo. E fica a questão: como combinar o arrependimento com uma indigestão?


Seguindo os ancestrais desse povo da estrela, digo que somos substância extensa, diversa, mas una, seguimos e vamos além da materialidade. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una apesar de complexa. Quando envelhecemos, o corpo muda, mas a identidade em expansão permanente, permanece. Nos tornamos um ao longo do espaço e do tempo e tal construção na existência me confere identidade. Mas continue a ler ... vamos ver isso melhor no correr destas reflexões.


Dos 20 livros que escrevi -- o vigésimo primeiro já está nas mãos do meu editor, Eduardo de Proença, e será lançado após a pan/demóns -- este é um dos que mais toca o meu coração: kadish, vida, morte e reino. Se você ainda não leu, compre! É isso mesmo, compre. Faça a sua encomenda na Fonte Editorial, com o próprio Eduardo. Abraços.