lundi 26 novembre 2012

O punhal de Abraão

Por Jorge Pinheiro


“Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo". Gênesis 22.9-10.


Eis um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Neste artigo vamos fazer a leitura desse texto a partir de um ensaio teológico, "Temor e tremor", escrito por Sören Kierkegaard, em 1843.


O sacrifício de Isaac por Alonso Berruguete, 1526


Sören Kierkegaard (1813-1855), dinamarquês, é fundador da teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé.


Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amou a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão, construiu uma teologia da existência que teve o objetivo de confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo.


Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia da existência. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé.


Experiências da existência


A experiência estética é básica na realidade humana. Os valores estéticos estavam presentes no romantismo e influenciaram artistas e intelectuais do século XIX. É difícil definir essa experiência, porque é diversificada, embora sempre tenha uma característica comum: o desejo. O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico.


Mas, a experiência estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação.


Há uma outra experiência humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a experiência ética. Isto porque é marcada por uma vida governada por normas morais. O herói da experiência ética é o marido fiel.


Kierkegaard combina a teoria do amor romântico com a teoria do acordo matrimonial, na forma de amor cristão entre duas pessoas que reconheceram em Deus o responsável por esta união. O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal.


Assim, casamento é risco, mas, ao mesmo tempo, a mais profunda experiência para se atingir tal sentido de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral.


Mas o casamento não é a única e derradeira experiência humana. A fé é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e existência.


O cristianismo de Kierkegaard era composto por duas realidades marcantes: por um lado, o cristianismo com suas doutrinas e seus paradoxos, e, por outro, a tensão psicológica com que ele recebia essas doutrinas e paradoxos em meio aos problemas existenciais.


Nesse sentido, "Temor e Tremor" é uma introdução ao mundo cristão de Kierkegaard. O objetivo do livro é mostrar, através da história do patriarca Abraão, que a experiência ética não é absoluta, fica ofuscada diante das exigências da experiência da fé.


Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A experiência da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras experiências, estética e ética, não podem existir sem a experiência da fé. A fé deve estar presente tanto na experiência estética quanto na ética. A fé é uma experiência que desestrutura experiências e possibilita o encontro com a realidade da vida cristã.


Mas fé implica fazer escolha, já que é solitude e colocar-se sob o olhar atento de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva ao sentido da subjetividade e da existência. Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou em seu Diário: "A totalidade do meu ser está transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o esquece".


E, em 1850, escreveu em seu Diário: "A peculiaridade da raça humana é: justamente porque o indivíduo é criado à imagem de Deus, o 'indivíduo' está acima da raça. Isto pode ser entendido erroneamente (...) reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser travada".


Deus é subjetividade infinita. O cristianismo é uma fé histórica, mas como os resultados dos fatos históricos são incertos, o importante é a escolha. Crer em Deus é um salto de fé, um compromisso com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por aquele fato histórico porque significa tanto que arrisca a vida por ele. "Então vive; vive inteiramente cheio da idéia, e arrisca sua vida por ela; e sua vida é a prova de que crê".


Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver a fé. Sem riscos não há fé. Por isso, há no pensamento de Kierkegaard, uma palavra chave: o amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano.


"Deus encontra sua alegria em vestir ao lírio com mais esplendor que Salomão" (Fragmentos Filosóficos, p. 59).


O amor de Deus ensina, mas também leva a um novo nascimento, passando do não ser ao ser, pois "o fazer nascer pertence a Deus cujo amor é regenerador" (Fragmentos, p. 68).


Deus busca transformar o não ser do ser humano. Assim, "para obter a unidade, Deus deve se fazer igual ao seu discípulo", e para isto toma a forma de servo. Deus sofre a fome, o deserto, tudo experimenta por amor ao ser humano. Kierkegaard afirma que só Deus pode salvar o indivíduo do desespero.


O salto da fé


O sentido estético da existência nos é dado, também, pela busca da realização profissional e pelo consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus: "Ó Senhor! Ó Deus Eterno! De que vale a tua recompensa?" O sentido ético na vida do patriarca não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar (cf. Gênesis 12.13; 20.2), mas pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética, mas, ainda assim, faltava ao patriarca a experiência da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro.


Abraão não está na situação do herói que deve escolher entre valores subjetivos e objetivos. Deus não está testando a sabedoria de Abraão. A força de sua fé fez com que Abraão optasse por Deus. Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre.


No entanto, Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.


Por isso, o punhal de Abraão é o símbolo desse salto. É desespero e angústia. Mas o movimento da lâmina, que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um renascer, a um novo sentido de vida, ao encontro com o filho amado.

O sacrificio de Isaac por Marc Chagall, 1966


Tudo o que a existência envolve de afirmação da fé não pode ser explicado pelo pensamento enquanto representação e significação. O conceito jamais dá conta das tensões e contradições que marcam a vida pessoal. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não podemos apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade.


Essa virtude teologal traduz adesão pessoal a Deus e combina reflexão e êxtase. É procura infindável e visão instantânea da verdade. É paradoxo: a alienação é condição da perdição, mas Cristo veio ao mundo para resgatar o ser humano. Qualquer teologia que não leva em conta essas tensões, derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constitui fundamento adequado da vida.


O duplo movimento do infinito


Quando nos colocamos diante de nós próprios e de nosso destino, olhamos um fato que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O paradoxo de Deus feito ser humano e o absurdo das circunstâncias do advento de Cristo.


Cristo, Deus tornado ser humano, é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.


Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da representação e significação do objeto pelo pensamento. Ela foi vivida pelo Filho de Deus, que morreu na cruz como criminoso. O acesso à verdade depende da crença no absurdo, pois, como afirma o apóstolo Paulo, "Deus pega os sábios nas suas espertezas". É o absurdo que possibilita a verdade. Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do paradoxo e do absurdo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus.


Em seu Diário, Kierkegaard escreveu em maio de 1843, época em que trabalhava no texto de Temor e tremor: "A fé, portanto, tem esperança nessa vida igualmente, mas apenas em virtude do absurdo, não por causa da razão humana; do contrário, seria meramente sabedoria mundana e não fé".


Assim, estamos diante do "duplo movimento do infinito", que nos leva a romper com a finitude, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-la. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma relação negativa com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, agora construtiva.