samedi 2 mars 2013

A ideologia de ficar rico com Jesus -- última parte

Última parte

A cegueira espiritual
Mas a cegueira frente ao não-estar é cegueira do mundo: leva a não enxergar o sentido existencial das vidas. Podem as comunidades evangélicas superar tal cegueira espiritual? Podem olhar, ver a realidade, e dar uma contribuição relevante para a libertação das pessoas? Os líderes das igrejas evangélicas que buscam poder, e oferecem a promessa do ficar rico com Jesus aprofundam a cegueira. Estão no vazio espiritual, imersos na cultura do dinheiro, do consumo e do mercado.

Diante de nós se abrem dois caminhos, um caminho de vida e um caminho de morte, um caminho de igualdade e um caminho de domi­nação, um caminho de justiça coletiva e um caminho de tirania disfarçada, um caminho de sustento global e um caminho de suicídio global. O caminho da morte é o sistema econômico predominante, construído sobre o cinismo e o desejo da destruição, satisfeito em desfrutar o poder e a afluência às custas do Terceiro Mundo e das gera­ções futuras. O caminho da vida exige conversão, mudança de dire­ção, escolha de novas opções, como ocorreu para aqueles que ouviram os pregadores deuteronomistas. Naquele tempo era o futuro de Israel que estava em jogo, agora é o futuro da humanidade e do planeta.
[1]

Como ouvir o clamor dos caídos à beira do caminho nessa gritaria neoliberal que reduziu tudo ao discurso do mercado transcendentalizado? Precisamos voltar ao discurso profético, bem ao estilo do homem de Nazaré, o discurso do pensamento divergente, criativo e dinâmico.

A teologia da vida, expressa no programa de Jesus, tem força e direção moral para a caminhada pastoral das comunidades de fé. Clama na perspectiva global da reforma radical.

E uma das constatações é que essa igreja evangélica rica, espelho de Laodicéia, carece ela própria ser libertada pelo Espírito da liberdade em Cristo Jesus, fonte de sentido. Aos olhos da fé cristã, que o sentido da vida se perca é dramático, mas resta uma esperança, ainda que extrema, a escatológica. Mas que a ação e proclamação de Jesus desapareçam é muito pior: é trágico. Quando não se responde à pergunta “para que sou evangélico?", o próprio viver cristão é posto em xeque e, faltando-lhe a esperança, perde sua força.

A igreja tem pela frente não só a questão da miséria material, mas também a da miséria existencial. Ela não é só chamada a ser profética, mas também kerigmática. As demandas que lhe são dirigidas não são apenas por pão, mas também por sentido. A isso a Jesus chama palavra e diz que disso também vivem os humanos!

Isso significa que a igreja é chamada não só a ser libertadora, mas a afirmar sua específica teologicidade. São suas bases que devem ser renovadas e de novo garantidas. A tradição da fé não acontece por vias da tradição cultural. O mundo não é apenas injusto, mas também sem-sentido. Em nome de que mudar as estruturas, se a vida não vale a pena? A fé cristã nunca foi totalmente funcional a qualquer cultura ou sociedade. A fé é essencialmente crítica já ao nível antropológico e existencial, justamente porque põe em xeque o destino do humano, confrontando-o com o mistério transcendente. Por isso será, em princípio, disfuncional ao sistema do mundo. Mas na sociedade secularizada, a criticidade intrínseca da fé se duplica em criticidade cultural e histórica. E o clamor se desloca da libertação cultural e social para o sentido espiritual da vida. E isso não apenas para as pessoas, mas para as próprias comunidades de fé.

Sob as asas do Espírito

A busca de sentido é a da fome e sede do Espírito. Partindo dessa perspectiva teológica, a questão do sentido da vida, colocada pelo sábio de Eclesiastes, não é típica das classes privilegiadas, nem exclusiva delas. Mas envolve a todos.

E aqui entra a dimensão existencial da questão. Os que estão à margem, caídos no não-estar, são gente. E é porque são gente que, mesmo quando pelo viés da resposta às necessidades imediatas, buscam as igrejas de milagres para a solução de seus problemas.

Mas, então, sob as asas do Espírito, fica superada a dimensão existencial da questão? Claro que não, pois a fé enfatiza com vigor a liberdade específica. Em relação aos novos desafios, o importante é discernir. Para isso, cumpre manter um pensamento forte frente às convicções, ao que se refere à identidade, consciente de que a tentação da igreja é capitular aos deuses do mercado.

Sem dúvida, vivemos num mundo de desolação, mas diante disso é o caso de perguntar: que desafios o programa de Jesus coloca. Os filósofos choram as dores do mundo, como Schopenhauer, porém a igreja é chamada a analisar a realidade e a viver o clamor profético. Por isso, o Espírito é vida na igreja herdeira do profetismo bíblico, que clama nos momentos de desolação e levanta a esperança escatológica.

E a esperança não é mero desejo, parte do conhecimento da realidade, da compreensão dos movimentos a favor da vida que, ainda minoritários num determinado momento, se levantam. A esperança coloca-se acima do momento presente.

Movido pelo Espírito da vida, Lucas destacou que o ano do Senhor teve início naquele kairós pronunciado na sinagoga de Nazaré. O kairós de Jesus significa o nascimento de uma nova época, um tempo que se caracteriza pelo anúncio de uma boa notícia. Mas como anunciar esta novidade quando, aparentemente, fazemos parte de uma geração alienada e apática?

Quando comparamos o texto analisado com dois outros de Lucas (At. 2.42-47 e 4.32-35), vemos que a comunidade de Jerusalém entendia que a ecclesia devia ser construída sob uma ordem de convivência que possibilitasse vida plena a todos.

É aqui que as águas se dividem: o culto a Mamon, príncipe do inferno, congela os corações e paralisa as ações, mas homens e mulheres têm a urgência de um recém-nascido, clamam por vida em abundância. Somos chamados a nos deixar despertar pelo choro e pelo grito dos que não-estão, excluídos e oprimidos pelo mundo, pela carne e pelo diabo.

É tempo de levar a boa notícia aos que existencialmente não-estão: Jesus integra os excluídos (Ef 1.3-14), liberta os subjugados (Gl 5.1), dá olhos aos cegos (8.12) e sentido aos angustiados (Mt 11.29-30; 1Pe 5.7).

Naquele sábado, na sinagoga de Nazaré, Jesus expôs o programa do seu estar entre nós. A graça do Senhor deve ser noticiada aos que não-estão. A ressurreição deu o imprimatur do Eterno àquele programa e à igreja cabe, sob as asas do Espírito, levá-lo às gentes.





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Citação

[1] Gorringe, Timothy J. O Capital e o Reino, ética teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997, Quarta Parte, Dois Caminhos, pp. 211-227.