lundi 30 mai 2011

O governo Dilma e o "kit-homofobia"

Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Entidades criticam "retrocesso" do governo
DE BRASÍLIA / DE SÃO PAULO
Entidades que defendem os direitos dos homossexuais reagiram com "perplexidade", "consternação" e "indignação" à decisão do governo de suspender a distribuição de vídeos contra a homofobia nas escolas.
Em nota, a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), que reúne 237 organizações, e as associações de lésbicas, transexuais e travestis dizem que a ação macula a imagem internacional do país sobre direitos humanos e fere o Estado laico. Em referência velada ao fato de a decisão do governo ser uma reação à possível convocação do ministro
Antonio Palocci (Casa Civil) para depor no Congresso sobre a evolução de seu patrimônio e negócios de sua empresa, o documento diz ainda que os direitos humanos não podem ser "moeda de troca" nas negociações políticas.


O texto também critica a ascendência da bancada religiosa sobre o governo. "Um princípio básico do Estado republicano está sendo ameaçado pela chantagem praticada hoje contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no Congresso Nacional", diz o texto. Para Julio 
Moreira, do Grupo Arco-Íris, a retirada deveria  ser precedida de maior debate. "É um tremendo retrocesso para as políticas públicas o projeto ser usado como moeda de troca com setores mais conservadores", diz. A entidade planeja um protesto para o fim de semana no posto 9, em Ipanema, no Rio. A socióloga Miriam Abramovay, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais também viu como um retrocesso o recuo do governo e afirma ser um erro pensar que vídeos podem incentivar jovens a se tornarem homossexuais. (ANGELA PINHO e RICARDO GALLO)
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> Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Bancada religiosa elogia suspensão de kit em escolas
DE BRASÍLIA
A decisão do governo de suspender a distribuição de material anti-homofobia a escolas públicas foi comemorada ontem por congressistas das bancadas católica e evangélica. Bispo da Igreja Universal e integrante da bancada evangélica do Senado, Marcelo Crivella (PRB-RJ) disse que a presidente Dilma tomou uma decisão "sábia" e admitiu que pressionou o Planalto a tomar a medida. Segundo seu relato, a presidente telefonou para ele ontem pela manhã para anunciar sua decisão. Crivella disse que cabe às famílias, e não ao governo, orientar crianças e jovens sobre questões sexuais. O deputado Eros Biondini (PTB-MG), que representou a bancada católica na reunião em que Gilberto Carvalho (Secretaria- Geral) comunicou o recuo do governo, disse que viu nos vídeos apologia a orientação sexual. Como exemplo, ele citou um dos vídeos que seria distribuído, intitulado "Probabilidade". Jair Bolsonaro (PP-RJ) elogiou Dilma. "Apenas lamento que ela tenha tomado essa decisão só depois de um momento difícil para um ministro dela."
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> Folha de São Paulo, 26/05/2011 - São Paulo SP
Dilma freia ações em temas polêmicos
Presidente decide submeter à consulta pública campanhas com material considerado sensível por grupos religiosos. Reação de católicos e evangélicos e temor pelo futuro político do ministro da Educação influíram na decisão
ANA FLOR DE BRASÍLIA
Após cancelar a produção e distribuição do kit anti-homofobia do Ministério da Educação, a presidente Dilma Rousseff determinou que todo o material do governo que se referir a costumes terá que passar, a partir de agora, pelo crivo do Palácio do Planalto e por processo de consulta à sociedade. A ordem da presidente ocorreu após uma reunião do ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência, com as bancadas evangélica e católica do Congresso e integrantes da frente parlamentar da família. O grupo ameaçou propor a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o Ministério da Educação caso o governo não cancelasse a produção dos materiais. O kit anti-homofobia é formado por uma cartilha e cinco vídeos que o governo planejava distribuir a alunos do ensino médio em escolas públicas. Três vídeos chegaram a ser exibidos à imprensa pelo ministério em janeiro e circularam na internet. Os vídeos desagradaram às bancadas evangélicas e católicas do Congresso, que alegam que os vídeos poderiam estimular o homossexualismo. O MEC diz que o material, produzido por ONGs, não estava pronto. Essas versões preliminares foram aprovadas pela Unesco (órgão da ONU para a educação).


ELEIÇÃO EM SP - Assessores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestaram preocupação com os efeitos que a controvérsia poderia ter sobre o futuro político do ministro da Educação, Fernando Haddad, que Lula gostaria de ver como candidato do PT a prefeito de São Paulo em 2012. Carvalho
afirmou que não houve toma lá, dá cá na decisão da presidente ontem. Segundo ele, Dilma considerou que o material do MEC era "inadequado" e o vídeo, "impróprio para seu objetivo". A decisão gerou críticas dentro do governo também. "Tempo das trevas!", escreveu a secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, Maria do Pilar Lacerda, numa mensagem enviada a seus seguidores no Twitter para comentar notícias do recuo do governo. Em outra mensagem mais tarde, ela afirmou que não tivera a intenção de criticar a decisão de Dilma, mas se referia à "onda conservadora levantada na campanha eleitoral pelo candidato [José] Serra [PSDB]". Na campanha presidencial, Serra e grupos religiosos atacaram Dilma por mudar sua posição sobre a legalização do aborto, que defendeu no passado.

Carta de despedida do Rev. Ricardo Gondim aos leitores da revista Ultimato

Despeço-me da Revista Ultimato
Ricardo Gondim

Após quase vinte anos, fui convidado a “des-continuar” minha coluna na revista Ultimato. Nesta semana, recebi a visita de Elben Lenz Cesar, Marcos Bomtempo e Klênia Fassoni em meu escritório, que me deram a notícia de que não mais escreverei para a Ultimato. Nessa tarde, encerrou-se um relacionamento que, ao longo de todos esses anos, me estimulou a dividir o coração com os leitores desta boa revista. Cada texto que redigi nasceu de minhas entranhas apaixonadas.
Fui devidamente alertado pelo rev. Elben de que meus posicionamentos expostos para a revista Carta Capital trariam ainda maior tensão para a Ultimato. Respeito o corpo editorial da Ultimato por não se sentir confortável com a minha posição sobre os direitos civis dos homossexuais. Todavia, reafirmo minhas palavras: em um estado laico, a lei não pode marginalizar, excluir ou distinguir como devassos, promíscuos ou pecadores, homens e mulheres que se declaram homoafetivos e buscam constituir relacionamentos estáveis. Minhas convicções teológicas ou pessoais não podem intervir no ordenamento das leis.
O reverendo Elben Lenz Cesar, por quem tenho a maior estima, profundo respeito e eterna gratidão, acrescentou que discordava também sobre minha afirmação ao jornalista de que “Deus não está no controle”. Ressalto, jamais escondi minha fé no Deus que é amor e nos corolários que faço: amor e controle se contradizem. De fato, nunca aceitei a doutrina da providência como explicitada pelo calvinismo e não consigo encaixar no decreto divino: Auschwitz, Ruanda ou Realengo. Não há espaço em minhas reflexões para uma “vontade permissiva” de Deus que torne necessário o orgasmo do pedófilo ou a crueldade genocida.
Por último, a Klênia Fassoni advertiu-me de que meus Tweets, somados a outros textos que postei em meu site, deixam a ideia de que sou tempestivo e inconsequente no que comunico. Falou que a minha resposta à Carta Capital sobre a condição das igrejas na Europa passa a sensação de que sou “humanista”. Sobre meu “humanismo”, sequer desejo reagir. Acolho, porém, a recomendação da Klênia sobre minha inconsequência. Peço perdão a todos os que me leram ao longo dos anos. Quaisquer desvarios e irresponsabilidades que tenham brotado de minha pena não foram intencionais. Meu único desejo ao escrever, repito, foi enriquecer, exortar e desafiar possíveis leitores.
Resta-me agradecer à revista Ultimato por todos os anos em que caminhamos juntos. Um pedaço de minha história está amputada. Mas a própria Bíblia avisa que há tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Meu amor e meu respeito pela família do rev. Elben, que compõe o corpo editorial da Ultimato, não diminuíram em nada.
Continuarei a escrever em outros veículos e a pastorear minha igreja com a mesma paixão que me motivou há 34 anos.

Ricardo Gondim
Soli Deo Gloria
20-05-11

Focolares para principiantes


Numa visita ao Brasi, em 1991, Chiara Lubich lançou uma proposta para o pensamento e a práxis econômica: a Economia de Comunhão na Liberdade (EdC). A sua raiz está na prática da comunhão de bens que caracterizou o Movimento dos Focolares desde a sua gênese. Esta comunhão gera uma nova mentalidade, uma nova cultura: a cultura da partilha.

Neste projeto se articulam princípios sociais e econômicos: economia, solidariedade e liberdade, capazes de influir na solução dos desequilíbrios econômicos. O lucro das empresas que aderem à EdC é dividido em três partes: para o reinvestimento na empresa; para ir ao encontro dos necessitados; para a formação de homens novos: pessoas com uma mentalidade aberta à cultura da partilha.

Mais de 800 empresas e atividades produtivas, no mundo inteiro, aderiram à EdC – cerca de cem encontram-se no Brasil.

A quatro km da Mariápolis Ginetta (Grande São Paulo) foi implantado o Pólo Empresarial Spartaco, protótipo da EdC, onde estão instaladas sete empresas. Nas cercanias de Recife e de Belém, dois outros pólos empresariais nos moldes da EdC entraram em atividade.

Como sugiram

Trento (Itália), 1943. Na Segunda Guerra Mundial, Chiara Lubich, uma jovem de 23 anos, descobre no Evangelho os valores que podem dar sentido à vida humana, em todas as situações. Comunica esta descoberta às suas primeiras companheiras. É a descoberta do amor como força capaz de desarmar os corações do ódio, do rancor e de preconceitos. É o início de um caminho de unidade que gera a paz e que suscita a fraternidade universal.

A palavra-chave é unidade: a oração que Jesus dirigiu ao Pai antes de morrer – “Que todos sejam um” (Jo 17.21) – torna-se o objetivo de suas vidas. As palavras do Evangelho revelam-se novas: a descoberta de Deus como Pai, o Mandamento Novo, a presença de Jesus “onde dois ou mais...”, em cada próximo (“Tudo o que fizerdes ao menor dos meus a mim o fareis”... Da experiência de Evangelho vivido no cotidiano, nasce a espiritualidade da unidade. Em poucos meses, mais de 500 pessoas aderiram a essa proposta. Aos poucos, ultrapassou as fronteiras da Itália e da Europa, penetrando nos cinco continentes.

Em 1959 Ginetta Calliari – uma das primeiras companheiras de Chiara Lubich – com Marco Tecilla, Enzo Morandi e outras jovens e rapazes, iniciaram os dois centros do Movimento no Brasil. Hoje o Movimento está presente nos Estados brasileiros, conta com cerca de 280 mil pessoas e 55 centros de difusão.

A proposta

Nestes 65 anos, o Movimento dos Focolares suscitou uma renovação espiritual e social em mais de 2 milhões de pessoas de todas as idades, condições sociais, raças e culturas. Presente em 182 países do mundo, realiza um diálogo a 360°, em todos os níveis sugeridos pelo Concílio Vaticano II: com pessoas dos mais variados credos e confissões, e também com quem, mesmo sem um referencial religioso, está disposto a contribuir para a promoção de valores universais, como a paz, a justiça, a dignidade humana.

Um pouco de história

Em 1956, pela primeira vez um brasileiro teve contato com essa espiritualidade, na Itália: o Pe. João Batista Zattera, do Rio Grande do Sul.

Em 1958, outros dois sacerdotes de Recife participam, também na Itália, de um Congresso anual do Movimento, denominado Mariápolis. Após esse contato, um focolarino e duas focolarinas – pessoas inteiramente doadas à causa dos Focolares, membros consagrados de comunidades femininas ou masculinas – fazem uma viagem ao Brasil, começando por Recife, onde surge a primeira comunidade. Marco Tecilla, Lia Brunet e Ada Ungaro percorrem vários Estados do Brasil e alguns países da América Latina. A semente foi plantada e o terreno preparado.

Em 1959, em resposta a uma carta de dom José Avelino Dantas, então arcebispo de Olinda e Recife, Chiara concorda com a abertura dos dois primeiros centros do Movimento fora da Europa.

Em 26 de novembro de 1959 partem para Recife quatro focolarinas (Ginetta Calliari, Fiore Ungaro, Marisa Cerini e Violetta Sartori) e quatro Focolarinos (Marco Tecilla, Enzo Morandi Rino Chiapperin e Gianni Buselatto). O Movimento se espalha pelos Estados do Nordeste e  por todo o país.

Chiara Lubich esteve no Brasil seis vezes, a primeira delas em 1961.

Em 1962 foi inaugurado o primeiro focolare masculino da região Sudeste, em São Paulo, através do qual teve início também a Editora Cidade Nova. Em 1964 tem início também o focolare feminino.

Em 1965, na terceira viagem de Chiara ao Brasil, foi adquirido o terreno para a construção do Centro Mariápolis (Centro de formação), próximo a Recife, em Benevides.

Em 1967 foi a vez de São Paulo, com a compra do terreno onde surgiria a Mariápolis Araceli, atualmente Mariápolis Ginetta.

Uma das viagens mais significativas de Chiara ao Brasil ocorreu em 1991, quando ela lançou o Projeto Economia de Comunhão (EdC). Já em 1998 ela viu realizado o Pólo empresarial Espartaco, no município de Cotia (SP), nos moldes da EdC e recebeu diversos reconhecimentos de instituições acadêmicas e políticas. No mesmo ano recebeu a comenda da Ordem do Cruzeiro do Sul.

Nos anos seguintes foram implantados no Brasil outros dois pólos empresariais da EdC: em Igarassu (PE) e em Benevides (PA).

Em 2001 foi fundado o Movimento Político pela Unidade também no Brasil, buscando tornar a fraternidade uma categoria política a ser atuada por cidadãos comuns, políticos e pessoas ligadas a esse âmbito.

Hoje o Movimento está presente em todos os Estados brasileiros, conta com cerca de 280 mil pessoas que aderem à sua espiritualidade em mais de 500 cidades, com 55 centros de difusão.


Fonte: 50 anos do Movimento dos Focaloares no Brasil
http://50anos.focolares.org.br/

A ética do solidarismo cristão


A alma da unidade espiritual na comunidade é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma base espiritual de unidade e solidariedade social e econômica.

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais.

Seja qual for a opinião ética sobre as relações entre cristianismo, capitalismo e movimentos politicamente divergentes, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais.

E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o pensamento político divergente, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: podem e devem os movimentos com propostas políticas divergentes ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

Quanto à parte das organizações que se opõem ao capitalismo financeiro é necessário ver a atitude que têm em relação ao evangelicalismo protestante e também em relação às igrejas de hierarquia estruturada. A história das igrejas, tanto no que se refere ao catolicismo, como em relação ao protestantismo, é passível de críticas. Suas opções e alianças, ao longo da história, fizeram com que se afastassem e dificultassem seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação potencializou a crítica da religião instituída. Mas, ao contrário do que parece, o ateísmo e o materialismo são heranças da cultura burguesa crítica e cética. Essas heranças foram adotadas como oposição ao caminho escolhido pelas igrejas européias nos séculos XVIII e XIX. A idéia era extirpar a cosmovisão cristã, medieval e autocrática, a fim de abrir o caminho para um novo mundo, justo e digno.

Embora haja razões históricas para criticar as igrejas, os movimentos de pensamento divergente, à partir da revolução francesa, erraram ao negar a base solidária e comunitária do ideal cristão, tal como pode ser percebida nos Evangelhos. Tal herança errática ainda permanece em movimentos políticos divergentes e está presente em alguns agrupamentos que se mostram hostis ao cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética do solidarismo que, na verdade, sempre esteve próxima às propostas das comunidades cristãs dos primeiros séculos.

Assim, se movimentos de pensamento divergente não traduzem oposição essencial com o cristianismo e com as comunidades de fé que vivem o princípio protestante da justiça, os cristãos podem ter uma atitude positiva em relação a esses movimentos.

Aqui, atitude positiva  é a realização dos princípios da solidariedade e da ação cristã a favor da justiça, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico do capitalismo financeiro e de ações para a construção de uma ordem social que, sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque pensar na contra-corrente do que aí está não é só tarefa de trabalhadores fabris, mas necessidade ética que deve traduzir anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.

mardi 17 mai 2011

Franz Rosenzweig

Lições de judaísmo

 

Para um diálogo fraterno entre judeus e cristãos é necessário que cada lado conheça não somente o pensamento, mas em especial a cultura e a maneira de sentir do outro. É uma reflexão desse tipo que pretendo fazer aqui, quem sabe em alguns artigos. E hoje vou começar a partir de um filósofo que marcou época: Franz Rosenzweig (1886-1929).

 

Em primeiro lugar é importante olhar o judaísmo não como corpo doutrinário ou estrutura de rituais, mas como experiência que parte do reconhecimento de uma realidade que vai além da existência. Tal vivência para o judeu tem seu momento maior na eleição de Israel, que é visto como pai da experiência com o transcendente para povos e culturas. É claro que há momentos da história em que essa percepção aparentemente se perde, obscurecida pela realidade das nações onde o judeu vive. Mas, mesmo nessas situações, subsiste de forma misteriosa a bênção da presença do povo judeu, que mais tarde brotará abençoando povos e nações e assim cumprindo o mandato que Deus deu ao pai Abraão.

Disse que falaria sobre e a partir de Franz Rosenzweig porque, sem dúvida, temos muito a aprender com ele em matéria de diálogo e fraternidade. Foi um estudioso da teologia protestante liberal de Aldolf Harnack, mas permaneceu judeu porque esta era a religião de seus pais e porque gostava de observar os costumes judaicos e de refletir, à maneira judaica, sobre as histórias bíblicas.

Seu primo, Hans Ehrenberg, se converteu ao cristianismo e foi batizado em 1911. Diante disso, Rosenzweig refletiu sobre sua cultura alemã e escreveu a seus pais dizendo: “Nós somos cristãos em todas as coisas, nós vivemos em um estado cristão, freqüentamos as escolas cristãs, lemos livros cristãos, nossa cultura inteira tem por base uma fundação cristã”, mas isso não fez dele um cristão.

Mais tarde, em 1913, ao discutir a conversão de judeus com Eugen Rosenstock e seus primos Hans e Rudolf Ehrenberg, Rosenzweig disse que até poderia vir a batizar-se, mas colocou uma questão: gostaria de examinar o que significaria aceitar o batismo, o que tal ato representaria diante de seu judaísmo, já que não era um pagão, mas um judeu. Assim, pediu a seus parentes um tempo para reflexão, para pensar e celebrar os dez dias santos que vão do Rosh ha Chanah ao Yom Kippur.

Esses dez dias foram fundamentais para Rosenzweig, pois se transformaram nos dez dias de retorno as suas raízes judaicas. Mais tarde, ele escreveu a Rudolf que a conversão ao cristianismo “parece desnecessária e impossível agora. Eu sou um judeu”.

E fez uma leitura teológica judaica do evento Jesus. Concordou com a presença de Cristo e de sua igreja no mundo, mas afirmou que ninguém vem do Pai, mas através dele. (João 14.6). E que isso é assim em relação ao povo judeu, pois como povo não precisa ir ao Pai, porque já está com ele. Essa é a realidade do povo de Israel, do povo, e não do judeu individual. Assim, Rosenzweig fez uma distinção entre o mundo gentio que precisa conhecer a Deus, e o povo judeu que, em última instância, é a estrela da redenção. Ou como disse:

“Diante de Deus, judeus e cristãos são, por isso, trabalhadores de uma mesma obra. Não se pode prescindir de nenhum dos dois. Entre os dois sempre existiu inimizade, mas ainda assim estão juntos na mais estreita reciprocidade. Assim, a verdade, toda a verdade, pertence tão pouco a eles quanto a nós”. (A Estrela da Redenção, p. 489).

O caráter e a história da sinagoga, para Rosenzweig, são diferentes da igreja, mas não excludentes. Às vezes se chocam, embora estejam juntas na oposição ao paganismo que não tem a revelação por base. Para ele, a revelação é a garantia da vocação permanente, do comissionamento que sustenta e dá sentido tanto à igreja como à sinagoga. Assim, a revelação é a origem objetiva tanto da sinagoga como da igreja, e dá as duas uma orientação firme que, ao mesmo tempo, as diferencia, mas também as une.

Rosenzweig estudou medicina, história e filosofia. Partiu do idealismo alemão e construiu seu próprio pensar teológico. Bebeu em Goethe e Kant, mas seguiu seu próprio caminho. Professor, considerou que só no período do idealismo alemão o professor da filosofia e o filósofo eram um e o mesmo. E de certa forma procurou seguir esta tradição: procurou encontrar sua própria resposta filosófica para as questões da vida e da espiritualidade, sem abandonar suas funções de professor.

Estudou judaísmo com Hermann Cohen (1842-1918), que dava um curso de Filosofia da Religião Judaica na Universidade de Marburg. A partir de Cohen, Rosenzweig passou a utilizar o método da correlação, que mais tarde seria utilizado também por Paul Tillich. Para Rosenzweig a filosofia pecara por ser monista, já que a palavra “e” tinha sido descartada. Assim, a partir da correlação passou a fazer uma nova teologia: Deus e humanidade, humanidade e Deus, Deus e natureza, natureza e Deus.

Repensou seu judaísmo. Reconsiderou as relações em que as coisas se encontram, ampliou seu universo teológico, que antes estava imerso em idéias que se bastavam, presas aos conceitos e às essências. Lançou, assim, bases filosóficas para se olhar o outro como igual, pensamento que mais tarde norteou a ética de Emmanuel Lévinas.

Fontes
Rüdiger Lux, Franz Rosenzweig, 1986. WEB: www.jewishvirtuallibrary.org
N. H. Glatzer, Franz Rosenzweig, His Life and Thought, New York, 1961.
Franz Rosenzweig, The Star of Redemption, tradução William Hallo, University of Notre Dame Press: London, 1985.

lundi 16 mai 2011

Judeus estudam Jesus

Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Intelectuais e pensadores judeus nos últimos decênios iniciaram um caminho de aproximação e diálogo para entender o pensamento de um judeu chamado Jesus. Aqui vamos examinar brevemente o trabalho de três deles.

1. David Flusser

Entre esses intelectuais podemos citar David Flusser, que foi professor de Novo Testamento e Cristandade antiga na Universidade Hebraica de Jerusalém. Em 1968 foi publicado o seu texto "Jesus em Auto-Testemunhos e Documentos de Imagens", onde diz que Jesus nasceu em Nazaré, era primogênito, e teve quatro irmãos e irmãs. E que foi batizado nos anos 28/29 e morreu entre os anos de 30 e 33. É interessante que Flusser não nega a virgindade de Maria, ao menos explicitamente. Em sua biografia de Jesus, Flusser relata a formação dele, a tensão com a família, que só aceita sua pregação após a morte dele. Flusser refere-se ao batismo e a dotação do espírito como um evento histórico. Considera João, o batista, como o Elias escatológico e que, com Jesus, o reino de Deus teria começado.

Para Flusser, Jesus não foi teórico racionalista e, embora tivesse se voltado contra a teimosia dos piedosos radicais, ele enfatizou o lado moral dos mandamentos e não propôs a sua abolição. Assim, para Flusser, Jesus foi um judeu que se sentiu enviado aos judeus. Os fariseus aparecem em Flusser, outra vez, como referência simbólica, e não historicamente, e são absolvidos de qualquer culpa na morte de Jesus. Flusser coloca a mensagem Jesus como produto periférico ao pensamento dos essênios, mas sem afirmar que Jesus tenha sido essênio. A questão do reino de Deus foi um ponto central da proclamação de Jesus, na qual estavam embutidas uma constelação de valores e não somente aqueles de dimensão social. Por isso, considera que a escatologia se realiza através de Jesus.

Em seu o livro "A Cristandade, uma religião judaica", Flusser fala de Maria, das raízes judaicas da Cristandade, da expectativa messiânica de Jesus, de Paulo e da missão como chamado à fraternidade. Reafirma que Jesus teria visto João como Elias e que Jesus teria sido o único judeu antigo a pregar o início do reino de Deus. Ele teria se visto como Messias. Flusser nos últimos anos empregou força e diligência para mostrar, tanto em hebraico como em inglês, que Jesus se viu realmente como o Messias, o Filho de Homem por vir. Segundo ele, Jesus mudou a escatologia judaica, ao afirmar que primeiro se realiza o reino do Céu e só depois vem o juízo final. Flusser enfatiza a importância da atividade terrena de Jesus, faz a defesa da messianidade de Jesus como o Filho do Homem, mas descarta a morte expiatória. Apresenta Jesus como judeu, antes e depois da ressurreição. E, assim, apresenta o judeu Jesus como único Messias. Flusser, dessa maneira, cria a possibilidade de diálogo.
 
Bibliografia
David Flusser, Jesus, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002.
Nesse texto, o pesquisador utiliza moderna metodologia científica no campo da análise textual, filológica, documental e arqueológica na qual a leitura dos Evangelhos se faz à luz dos Manuscritos do Mar Morto, da literatura pseudo-epigráfica e apocalíptica em conjunto com a do primeiro Testamento, da tradição oral judaica, da cristologia e das fontes greco-latinas da historiografia clássica. O livro do historiador David Flusser apresenta um painel da reconstituição do semblante verossímil do judeu de Nazaré e a feição objetiva da realidade que lhe foi subjacente e o projetou na transcendência - a do judaísmo do século primeiro nas suas correntes conflitantes de pensamento religioso.

David Flusser, Judaísmo e as origens do Cristianismo, vols. 1 e 2, São Paulo, Imago, 2001.
No primeiro volume, Flusser objetiva eliminar preconceitos inatos e promover uma melhor compreensão das antigas fontes das duas religiões universais: o judaísmo e o cristianismo. Dentro desta perspectiva, o autor fixa como objetivo tratar de alguns problemas relativos ao judaísmo antigo e ao cristianismo primitivo. E no segundo volume, mostra como o cristianismo surgiu entre os judeus e foi, um dia, parte do judaísmo. É esta busca por uma melhor compreensão das antigas fontes de duas religiões universais que encontramos nesse livro. O autor elimina os preconceitos analisando a influência das doutrinas de forma direta a partir de Jesus. O livro ainda traz alguns artigos que foram publicados em periódicos.

2. Geza Vermés

O judeu Geza Vermés, historiador britânico, estudou o Jesus histórico. Começou as suas exposições com dados sobre a pessoa de Jesus, e o apresentou como carpinteiro, mestre, curador taumaturgo e exorcista, que atuou na Galiléia. Analisou também os títulos de realeza de Jesus: profeta, Senhor, Filho de Homem, Filho de Deus. E acabou por entrar no debate sobre a pessoa do Cristo. E fez isso a partir da literatura do intertestamento e dos rabinos. Para Vermes, é difícil dizer se, de fato, Jesus aceitou os títulos messiânicos ou se essa apropriação se dá posteriormente com o surgimento da igreja cristã.

Para Vermes, em todo o caso, Jesus poderia ser enquadrado num amplo espectro das personagens judaicas de seu tempo. Vermés não faz conjecturas sobre a motivação dos cristãos de apresentarem Jesus como Messias, mas considera que esse seria um processo natural, já que o Evangelho era perfeito, mas a obstinação dos judeus em recusá-lo como Messias, a maior de todas as promessas divinas a Israel, foi o ponto alto de um erro, e este foi o motivo principal para que seus privilégios fossem transferidos aos não-judeus.

E quem foi o responsável por esta transição foi Paulo, pois a partir do momento em que foi reconhecido como apóstolo dos gentios (Rm 11.13; At 9.15), e sua missão dirigida aos não-judeus foi aprovada pela liderança da igreja em Jerusalém (At 15), a orientação original da atividade de Jesus foi radicalmente transformada. Não-judeus entraram na igreja em grande número, e ela fez, em conformidade com o modelo de conversão existente no Judaísmo daquela época, o seu melhor para satisfazer as novas exigências. Outra transformação decisiva, que tocava na substância em conseqüência do transplante do movimento cristão ao solo gentílico, atingia o status da Torá, que representava para Jesus a fonte da inspiração e o critério do seu modo de viver. Apesar de não ser esta a posição de Jesus, ela foi declarada não só facultativa, mas abolida. A Torá, que ele compreendia de maneira simples e profunda, e que transpunha com integridade, foi definida por Paulo como um instrumento de pecado e morte. E Paulo se possibilitou com nessa virada a construção de um abismo entre Judaísmo e Cristandade.

Assim, para Vermes, o cristocentrismo contra o teocentrismo de Jesus separaria os cristãos dos judeus, mas não os judeus de Jesus. Pois Jesus de carne e sangue, visto e ouvido na Galiléia e em Jerusalém, intransigente e persistente no seu amor a Deus e ao próximo, estava convencido de que poderia contagiar os seus semelhantes pelo exemplo e ensino, com seu apaixonado relacionamento com o Pai no Céu. E com o passar do tempo o judeu simples dos Evangelhos ocupou o segundo plano e cedeu lugar à majestosa figura do Cristo da igreja.

Bibliografia
Geza Vermes, Jesus e mundo do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996.
Os estudos contidos neste livro levam mais longe a investigação realizada nos livros de Geza Vermes, “Jesus, o judeu” e “Os Manuscritos do Mar Morto” e lançam luz sobre questões controversas do período. Os tópicos incluem a importância dos Manuscritos do Mar Morto para os estudos judaicos e os estudos do Novo Testamento; a necessidade dos estudos judaicos para a interpretação do Novo testamento; e a compreensão que Jesus tinha de si mesmo. Este volume contém em particular as Conferências Riddell Memorial, "O Evangelho de Jesus, o Judeu", que representam uma continuação de Jesus, o judeu.

Geza Vermes, As várias faces de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
Vermes reorienta o conhecimento comum sobre Jesus com essa pesquisa provocante. Sua obra propõe uma nova abordagem, conferindo o mesmo peso ao Novo Testamento e aos escritos judaicos não-bíblicos. O objetivo é explorar os diferentes perfis do personagem que definiu dois milênios da fé cristã para analisar como e por que aquele palestino carismático foi elevado à condição divina de Cristo. O autor nos remete aos primórdios do cristianismo, permitindo a compreensão das condições históricas ocultas nos textos dos evangelhos mais antigos ao privilegiar o evangelho mais recente, o de João.

O autor de As Várias Faces de Jesus considera Cristo, a Igreja primitiva e o Novo Testamento como parte de uma interpretação do judaísmo. Ao despir as interpretações teológicas do contexto dos evangelhos, ele procura revelar a verdadeira identidade, a figura humana de Jesus, e esclarece como os seus ensinamentos foram passados da versão original à nossa civilização.

Geza Vermés, O autêntico Evangelho de Jesus, São Paulo, Editora Record, 2006.
O autor relaciona, compara, classifica e examina diferenças entre os ditos atribuídos a Jesus nos Evangelhos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) ao longo de nove capítulos. Assim, analisa temas essenciais do cristianismo como a oração, a Última Ceia, os momentos próximos à morte e a ressurreição de Cristo, as maldições, o exorcismo e as bem-aventuranças preservadas em formas distintas pelos evangelistas.

3. David H. Stern

O rabino David H. Stern publicou nos Estados Unidos uma tradução do Novo Testamento introduzindo anotações a partir das raízes judaicas presentes nos textos. Em seu trabalho, o conceito “promessa e cumprimento” tem importância central. Jesus cumpriu as promessas do Antigo Testamento. Textos como os de Gn 3.15; 12.3; 17.19; 21.12; 28.14 ou Nm 24.17-19 e ainda muitos outros, remetem a Jesus. O Novo Testamento é visto, então, como a nova Torá. O fim desta Torá é o Messias, que oferece justiça a cada um que confia nele.

Bibliografia
David H. Stern, O Novo Testamento Judaico, São Paulo, Editora Vida, 2007.
Porque essa versão do Novo Testamento difere das demais? Porque este Novo Testamento deixa transparecer sua judaicidade originária e essencial. Todas as outras versões do Novo Testamento em português — há literalmente dezenas — apresentam sua mensagem na abordagem lingüística, cultural e teológica dos não-judeus.

E o que há de errado com isso? Nada! Ainda que o Evangelho seja de origem judaica, ele não existe só para os judeus, mas também para os não-judeus. O próprio Novo Testamento deixa isso claro, portanto, é apropriado que sua mensagem seja comunicada aos não-judeus de forma a lhes impor o mínimo possível de outra bagagem cultural. E esta abordagem tem sido bem-sucedida: milhões de não-judeus depositaram sua confiança no Deus de Avraham, Yitz’chak e Ya‘akov e no Messias judeu, Yeshua.

O Novo Testamento é um livro judeu. Entretanto, chegou o tempo de restaurar a judaicidade do Novo Testamento. Pois o Novo Testamento é de fato um livro judeu — escrito por judeus, que trata majoritariamente de judeus e que tem por público judeus e não-judeus. É correto adaptar um livro judeu para a melhor apreciação dos não-judeus, mas não ao preço de suprimir sua judaicidade inerente. O Novo Testamento Judaico evidencia suas características judaicas a partir do título. A figura central do Novo Testamento, Yeshua o Messias, era um judeu filho de judeus, nascido em Beit-Lechem, que foi criado entre judeus em Natzeret, ministrou aos judeus na Galil, morreu e – segundo os Evangelhos -- ressuscitou na capital judia, Yerushalayim — tudo isto em EretzYisra’el, a terra dada por Deus ao povo judeu.

Além disso, Yeshua ainda é judeu, porque -- ainda segundo os Evangelhos -- está vivo, e em nenhum lugar a Escritura afirma ou sugere que ele tenha cessado de ser judeu. Seus doze seguidores mais íntimos eram judeus. Durante anos todos os seus talmidim eram judeus, alcançando o número de “dezenas de milhares” só em Yerushalayim. O Novo Testamento foi escrito inteiramente por judeus (Lucas era, ao que tudo indica, um prosélito do judaísmo); e sua mensagem é dirigida “especialmente ao judeu, mas também ao não-judeu”. Os judeus levaram o Evangelho aos não-judeus, e não o inverso. Sha’ul, o principal emissário aos não-judeus, foi durante toda a sua vida um judeu praticante, como evidencia o livro de Atos. De fato, a principal questão no início da comunidade messiânica (“igreja”) não era se um judeu poderia crer em Yeshua, mas se um não-judeu poderia se tornar cristão sem se converter ao judaísmo. A expiação vicária do Messias tem sua raiz no sistema sacrificial judaico. A ceia do Senhor origina-se da Páscoa judaica. A imersão (“batismo”) é uma prática judaica. Yeshua disse: “A salvação vem dos judeus”.

A própria nova Aliança foi prometida pelo profeta judeu Jeremias. O conceito de Messias é exclusivamente judeu. A bem da verdade, para Stern, o Novo Testamento completa o Tanakh, as Escrituras hebraicas outorgadas por Deus ao povo judeu; de forma que o novo Testamento sem o antigo é tão impossível quanto o segundo pavimento de uma casa sem o primeiro, e o antigo sem o novo é como uma casa sem teto. Além do mais, muito do que está escrito no Novo Testamento é incompreensível à parte do contexto judaico. Eis aqui um exemplo, extraído de muitos outros. Yeshua disse literalmente no Sermão do Monte: “Se o seu olho for mau, todo o seu corpo estará em trevas”. O que é um “olho mau”? Alguém que desconheça o pano de fundo judeu poderia supor que Yeshua estivesse falando sobre algum tipo de encantamento. Todavia, em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser sovina; ao passo que ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Yeshua está simplesmente incentivando a generosidade e desestimulando a avareza. E esse entendimento combina muito bem com os versículos do contexto: “Onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro”.

Contudo, a melhor demonstração do caráter judaico do Novo Testamento é também a prova mais convincente de sua veracidade, ou seja, o número de profecias do Tanakh — todas séculos mais velhas que os acontecimentos registrados no Novo Testamento — cumpridas na pessoa de Yeshua de Natzeret. A probabilidade de que qualquer pessoa pudesse se encaixar em dezenas de condições proféticas por mero acaso é infinitesimal. Nenhum candidato farsante ao messiado, como Shim‘on Bar-Kokhva ou Shabtai Tzvi, cumpriu mais que umas poucas. Yeshua cumpriu todas as 52 profecias referentes à sua vinda. As restantes serão cumpridas quando ele retornar em glória. Dessa forma, o Novo Testamento Judaico considera normal pensar no Novo Testamento como algo judeu.

Há três áreas adicionais nas quais o Novo Testamento Judaico pode ajudar em relação ao tikkun-ha‘olam (“conserto do mundo”): o anti-semitismo cristão, a recusa judaica de avaliar o Evangelho e a separação entre a igreja e o povo judeu.

1. O anti-semitismo cristão. Inicialmente, um círculo vicioso de anti-semitismo cristão se alimenta do Novo Testamento. O Novo Testamento não contém nenhuma forma de anti-semitismo, mas desde os primeiros dias da igreja, os promotores desse conceito têm distorcido o Novo Testamento para justificar-se e se infiltrar na teologia cristã. Alguns tradutores do Novo Testamento, ainda que não tenham sido anti-semitas, absorveram a teologia anti-semita e produziram traduções antijudaicas. Os leitores dessas traduções acabaram assumindo posturas anti-semitas e hostis ao judaísmo. Alguns desses leitores se tornaram teólogos que refinaram e desenvolveram o caráter anti-semita da teologia cristã (eles poderiam até mesmo não ter consciência desse sentimento); ainda outros se tornaram ativistas em prol do anti-semitismo e perseguiram os judeus, pensando agradar a Deus enquanto procediam assim. Este círculo vicioso precisa ser quebrado. O Novo Testamento Judaico é uma tentativa de remover erros teológicos anti-semitas multisseculares e destacar positivamente sua judaicidade.

2. A desconfiança judaica em relação ao Evangelho. Em segundo lugar, apesar de milhares de judeus reconhecerem a messianidade de Jeus, principalmente em países de língua inglesa, é óbvio que a maior parte do povo judeu não aceita Yeshua como Messias. Ainda que as razões possam incluir a perseguição cristã aos judeus, as cosmovisões seculares que cedem pouco espaço para Deus ou um messias, e a dificuldade de se pensar em arrependimento dos pecados — o motivo principal é o sentimento de que o Evangelho é irrelevante. Este sentimento se origina no modo como o cristianismo representa a si mesmo, mas também da alienação induzida pela maior parte das versões do Novo Testamento. A ornamentação cultural cristã gentílica e suas justificativas teológicas antijudaicas fizeram com que os judeus pensassem ser o Novo Testamento um livro não-judeu sobre uma divindade dos não-judeus.

O Jesus apresentado pelo Novo Testamento cristianizado diz pouco a respeito da vida judaica. Torna-se difícil para o judeu entender Yeshua como ele realmente é — amigo de todo judeu. Ainda que o Novo Testamento Judaico não consiga eliminar todas as barreiras entre os judeus e a confiança no Messias, remove alguns obstáculos lingüísticos, culturais e teológicos. O judeu que ler o Novo Testamento Judaico poderá experimentar Yeshua como o Messias prometido pelo Tanakh ao povo judeu; e poderá perceber que o Novo Testamento é importante para judeus e não-judeus; e será confrontado com a mensagem integral da Bíblia -- os dois Testamentos juntos, como dignos de aceitação, a chave para a libertação pessoal e do povo judeu.

3. A separação entre a comunidade messiânica e o povo judeu. Em último lugar, séculos de rejeição judaica a Yeshua e de rejeição cristã em relação aos judeus produziu a situação na qual nos encontramos: cristianismo é cristianismo, e judaísmo é judaísmo e os dois jamais se encontrarão. Além disso, muitos judeus e cristãos estão satisfeitos com essa situação. Entretanto, a existência de confronto entre os dois povos de Deus é um paradoxo. Os cristãos não-judeus que reconhecem sua união a Yisra’el, e não sua substituição, e os judeus messiânicos plenamente identificados com o povo e o Messias judeu, Yeshua, devem trabalhar conjuntamente para acabar com esse cisma na história, a divisão existente entre a comunidade cristã e o povo judeu. O Novo Testamento Judaico tem um papel a desempenhar na tarefa de levar os dois grupos ao diálogo e preservar a identidade judaica na comunidade messiânica, na qual judeus e não-judeus honram a Deus e seu Messias de acordo com o Tanakh e o Novo Testamento.

São Paulo, inverno 2007.