jeudi 1 avril 2021

A ressurreição, tempo do levantar-se !

Pede-se ser levantado   

Em memória de Alex Pinheiro



Queridos amigos/as, há um texto antigo que diz que Aquele que é criou todas as coisas para que sejam, para que tenham vida real, sólida, durável, e que o poder da morte não reine sobre a terra, porque a justiça é imortal. O livro da Sabedoria de Salomão, de onde citamos três versos (13-15) do capítulo um, pertence à tradição judaica e foi escrito no século anterior ao nascimento do Messias. O importante dos versos citados é que relaciona vida real com justiça e afirma que esta última reina sobre a morte.


Neste momento no Brasil vivemos profundamente a tristeza da separação. E por isso me lembrei desse filósofo judeu e resolvi escrever... Nada ajuda a aplacar saudades, mas quero dizer que sou solidário com aqueles que sofrem com esse momento de passagem violenta.


Um outro judeu, conhecido como Shaul entre os judeus, e como Paulo entre os cristãos, fez uma linda reflexão onde usa uma expressão grega anástase, na primeira carta aos coríntios (15), cujas traduções posteriores criaram imagens que dificultaram a compreensão do ir além. 

 

As leituras da anástase e egeiró, expressão grega sinônima da primeira, remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”. Mas é em Platão, que encontramos um debate fundamental, quando apresenta a psiquê enquanto semelhança do divino e o soma enquanto semelhança do que é físico e temporário. 


Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos, defendeu a idéia da imortalidade da psiquê. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a psiquê imortal. Para Platão, a psiquê possui semelhança com a forma, realidade eterna por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo/soma, em grego, morre, mas a psiquê não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/quente/frio, noite/dia/noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 


E dirá através de Sócrates em Fédon: “perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a psiquê e o soma? Morrer, então, consistirá em apartar-se da psiquê o soma, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do soma a psiquê e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 


Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. A preocupação judaica era existencial: mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes em alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/helênica da anástase.


É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que disse na comédia O Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Paulo gostava de teatro.


Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do sheol e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas calamidades? Onde está ó sheol a teu flagelo?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida na carta de Paulo. 


“Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no Ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir?”.


Paulo está preocupado com a vida real, sólida, durável.


“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Aquele que é dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos no firmamento e corpos na terra, uma é a dignidade dos corpos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se soma controlado pela psiquê, ressuscitará espírito-cheio-de-vida. Se há corpo controlado pela psiquê, também há corpo espiritual”. 


Anástase leva à uma compreensão da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material.


“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espírito-pleno-de-vida vem primeiro, é o natural, depois vem o espírito-pleno-de-vida. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é do céu. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o do céu, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 


Amigos/as, irmãos e irmãs, talvez tenham razão os povos antigos, com suas estórias e tradições. E caso voltemos à anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida um desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o sonho humano da anástase: “Pede-se ser levantado”. Por isso, direi aqueles que partiram, vítimas do Covid-19 e do descaso: “Até mais ver!”


Do amigo, companheiro e pastor, Jorge Pinheiro.


Notas

1. Platão, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.

2. Menandro, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com

3. As traduções do grego são minhas e visam romper com as traduções teológicas tradicionais, a fim de se aproximarem melhor do pensamento helênico. Assim, pneuma zoopoiun que muitas traduções optam por “espírito que dá a vida”, prefiro “espírito-pleno-de-vida” .

4. Betty Fuks, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133.