dimanche 11 septembre 2016

Desafio a um jovem pastor batista

[Este sermão foi apresentado por ocasião da ordenação ao ministério pastoral do querido amigo e colega André Sass Farias. JP.]

A graça e a paz de Jesus Cristo esteja em todos os corações. É uma alegria estar com os irmãos e irmãs neste momento de comunhão cristã e adoração ao nosso Criador, o Deus Eterno. E eu trago uma saudação calorosa da Igreja Batista em Perdizes, da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil e da Convenção Batista Brasileira a todos os presentes, mas, em especial, à Igreja Batista de Montpellier. 

Nossa palavra desta manhã recebeu um título:

A missão radical
Desafio a um jovem pastor batista
Pr. Jorge Pinheiro, PhD

Vamos abrir nossas bíblias em Lucas 4.16 a 21.

“Il se rendit à Nazareth, où il avait été élevé, et, selon sa coutume, il entra dans la synagogue le jour du sabbat. Il se leva pour faire la lecture, et on lui remit le livre du prophète Ésaïe. L'ayant déroulé, il trouva l'endroit où il était écrit: L'Esprit du Seigneur est sur moi, parce qu'il m'a oint pour annoncer une bonne nouvelle aux pauvres; il m'a envoyé pour guérir ceux qui ont le coeur brisé, pour proclamer aux captifs la délivrance, et aux aveugles le recouvrement de la vue, pour renvoyer libres les opprimés, pour publier une année de grâce du Seigneur. Ensuite, il roula le livre, le remit au serviteur, et s'assit. Tous ceux qui se trouvaient dans la synagogue avaient les regards fixés sur lui. Alors il commença à leur dire: Aujourd'hui cette parole de l'Écriture, que vous venez d'entendre, est accomplice”.

Estamos em Montpellier, na França, mas somos desafiados a olhar um país do hemisfério sul chamado Brasil. E nos fazemos duas perguntas:

Qual o papel de um jovem pastor batista brasileiro, depois de dois anos de imersão na cultura francesa, de volta a seu país, numa sociedade em desenvolvimento, mas em profunda crise ética e social?

Como Cristo, centralidade da ação e fé batista, pode ser a solução para os problemas brasileiros?

E diante dessas interrogações que acabamos de levantar, 

Três questões devem ser levadas em conta

• A primeira é que existe de fato uma revolta generalizada dos brasileiros das grandes cidades contra a atual situação em que vive grande parte da população. Por isso, somos exortados pensar uma reforma radical, no sentido protestante, batista, diante do grito de revolta de uma população que desperta para a consciência de que a exclusão de bens e possibilidades não pode ser uma situação irreversível e permanente. 

• A segunda questão, é que as manifestações e mobilizações apontam para aquilo que Tomás de Aquino afirmava: “há um mínimo de condições exigidas para a prática da virtude”. Assim, a existência de vidas em condições desumanas, injustas, inferiores, leva milhões de brasileiros à prática de atos contrários aos padrões morais.

• E a terceira questão é que o Brasil quer definir sua identidade enquanto nação: o que somos? Qual o papel que podemos ter no concerto das nações? 

Ora, como todos sabemos, há um choque hoje, no Brasil, entre o desejo de Reformas e uma forte resistência à mudança social. Mas é bom esclarecer que o Brasil não enfrenta um problema de subdesenvolvimento, mas outro, mais complexo, que é o do desenvolvimento desigual.

A resistência à mudança no Brasil localiza-se predominantemente na natureza patrimonialista do Brasil de pensamento arcaico. E tal pensar não está apenas nas zonas rurais tradicionais – do Nordeste e outras regiões --, mas dentro do próprio Brasil urbano.

Diante de tal situação, qual a missão de um jovem pastor batista? Será possível uma resposta coerente, que apresente saídas para os grandes dilemas brasileiros? 

A situação brasileira se insere num contexto mundial, que é fruto das transformações sociais e dos imperativos morais e religiosos decorrentes da ampla utilização da ciência aos meios de produção. Em última instância, a técnica é boa pois modifica as condições de vida das pessoas, mas, paradoxalmente, virou o mundo de ponta cabeça.

Somos exortados a viver a reforma radical, no sentido batista, em marcha, já que não é mais possível tolerar a exclusão de possibilidades de milhões de brasileiros. 

Os jovens pastores batistas não podem divorciar-se da luta pela justiça. E essa luta traduz ao nível do real, atributos do próprio Cristo, já que ele fez do brasileiro mordomo e não dono absoluto deste quase continente. Esse Cristo redentor lança sobre nós o desafio do Brasil, já que é impossível adotar a criança da manjedoura e esquecer a realidade, colocar-se sob a cruz e esquecer a sociedade em que vivemos.

A vida é o primeiro passo para a construção de uma centralidade do Cristo. Vamos pensar o texto de Lucas 4. 16-21. 

"Jesus foi para a cidade de Nazaré, onde havia crescido. No sábado, conforme o seu costume, foi até a sinagoga. Ali ele se levantou para ler as Escrituras Sagradas, e lhe deram o livro do profeta Isaias. Ele abriu o livro e encontrou o lugar onde está escrito assim: “O Senhor me deu o seu Espírito. Ele me escolheu para levar boas notícias aos pobres e me enviou para anunciar a liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os que estão sendo oprimidos e anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo.” Jesus fechou o livro, entregou-o para o ajudante da sinagoga e sentou-se. Todas as pessoas ali presentes olhavam para Jesus sem desviar os olhos. Então ele começou a falar. Ele disse: — Hoje se cumpriu o trecho das Escrituras Sagradas que vocês acabam de ouvir".

Estudos sobre a marginalidade social de Jesus, a partir das acusações feitas a ele pela hierarquia sacerdotal da época (conforme João 8.41, eles afirmam: “Ils lui dirent: Nous ne sommes pas des enfants illégitimes; nous avons un seul Père, Dieu”.), nos levam a algumas considerações interessantes. Ao não ter, por exemplo, pai reconhecido, Jesus não tinha direito a um sobrenome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado “de Nazaré” (Lucas 4.34, 18.37, 24.19; e João 8.48), oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, de mínima relevância, e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como alguém que pudesse jogar papel de importância na vida política e social da Palestina. Por isso, os senhores da lei o acusam dizendo: “N'avons-nous pas raison de dire que tu es un Samaritain, et que tu as un démon?”, conforme João 8.48.

A genealogia não reconhecida e geografia periférica faziam de Jesus um palestino socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. 

E sobre a leitura do rolo de Isaias, que marca sua entrada no seu ministério político e social, é bom lembrar que na época, não havia nas sinagogas uma leitura dos profetas regularmente prescrita. E o fato de essa passagem não estar presente nos lecionários conhecidos posteriormente, tende a indicar que Jesus a escolheu de propósito. Essa hipótese repousa sobre a afirmação de Lucas: “abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito”. Aqui dois detalhes merecem ser realçados: primeiro, é a única referência clara nos Evangelhos de que Jesus sabia ler. E, segundo, por que, ao ler Isaías 61.1-2, ele omitiu uma frase, curar os contritos de coração e acrescentou outra, libertar os oprimidos, que está em Isaías 58.6? Na verdade, utilizou os textos que considerou mais úteis à exposição de sua plataforma político social.

No curso de seu ministério, o uso que fez de termos políticos, como Evangelho e Reino, mostram que tal seletividade tinha uma finalidade: falar de uma promessa política de intervenção social alternativa àquelas dos poderes presentes na época. Assim, se lermos o texto apresentado por Jesus, numa perspectiva rabínica, estamos diante de uma recorrência às promessas do Jubileu, quando as injustiças acumuladas durante anos deveriam ser sanadas. A fala daquele homem de identidade questionada não afirmava que a Palestina seria resgatada na escala temporal, mas que deveria entrar na vida palestina o impacto solidário do ano sabático. 

Da mesma maneira, o Reino vindouro surgia enquanto compreensão profética do ano sabático. Nesse sentido, o shabat da semana ampliava-se no shabat dos anos, onde o sétimo deveria ser de descanso e reforma, já que restaurava o que tinha sido exaurido, a natureza e as pessoas. Essa coleção de regulamentos presente em Levítico 25.1 a 26.2 concernia ao direito de propriedade da posse da terra e de pessoas, que constituíam a base da riqueza. O propósito era fixar limites ao direito de posse, já que toda propriedade, natureza e pessoas, pertenceria a Deus. Assim, ninguém poderia possuir a natureza e as pessoas de forma permanente, pois tal direito pertencia a Deus. E o ciclo de sete anos sabáticos desaguava no quinquagésimo ano, o Jubileu messiânico (conforme Levítico 25.8-24), que só vai aparecer de novo em todo o Antigo Testamento apenas em Números 36.4. Mas, Jeremias, no capítulo 34.8-17 falou de uma reforma social na Jerusalém sitiada, quando Zedequias proclamou a liberdade dos escravos hebreus. Da mesma maneira, em Isaías 58.6-12 encontramos a reforma como parte da visão profética. Nesse sentido, a reforma do Jubileu apontava para a reestruturação econômica e sócio-política das relações entre os povos da Palestina.

É interessante que o historiador judeu Flávio Josefo tenha afirmado anos depois do ministério de Jesus em Nazaré, que “não existe um único hebreu que, mesmo hoje em dia, não obedeça à legislação referente ao ano sabático como se Moisés estivesse presente para puni-lo por infrações, e isso mesmo em casos que uma violação passaria despercebida”.

Apesar da afirmação de Flávio Josefo, sabemos que um enquadramento econômico e social a partir das disposições de Levítico 25, o que incluía inclusive a redistribuição da propriedade, nunca foi literalmente vivido entre os judeus. Por isso, coube a um “retirante sem-terra” levantar o discurso do ano da libertação. 

A proposta de reforma do Jesus marginal era a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E aquele homem de genealogia questionada e geografia periférica colocou a centralidade da reforma sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Messias prometido.

E assim o Messias, retirante sem nome, homem sem terra, apresentou aos judeus e palestinos um programa político-social de reforma radical. Esse programa é apresentado e justificado pelo evangelista Lucas (4.14-30) e tem o exercício da justiça como centralidade.

E nessa pregação pela justiça, todos, judeus e palestinos, deveriam gozar concretamente de liberdade e usufruir dos bens da natureza – dom de Deus para suprir às necessidades humanas. E ao recorrer às promessas do jubileu (Lucas 4.19), aquele “nazareno” – e isso era um xingamento – sem terra e sem nome disse que a natureza era de todos e para todos, e condenou o monopólio que impossibilitava este destino universal. Dessa maneira, a justiça, tão presente no texto referido de Lucas, nasce da mensagem profética presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer a gratuidade do amor de Deus na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da justiça, da ação justa que remete à paz.

Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à catolicidade da promessa messiânica: a restauração do mundo. Ou seja, tal discurso visto sob a ótica teológica do referido texto de Lucas fala do fim da discriminação e da violência.

A proposta de reforma do Jesus marginal foi a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.

E o Messias colocou a centralidade de uma reforma radical sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido. 

A partir da compreensão do texto de Lucas podemos dizer que se os três primeiros itens do programa se referem aos aspectos materiais da vida humana, o quarto – que nos chama a anunciar que chegou o tempo em que o Senhor salvará o seu povo -- trata do compromisso da centralidade do Cristo na vida cristã, a opção por estar na trincheira ao lado daqueles que lutam por dignidade e justiça. 

Aqui estão, à maneira protestante radical, as sementes da centralidade do Cristo em nossas vidas e na vida da nação.

E podemos tirar algumas conclusões desta abordagem profética. 

Alef. A fé deve interpretar a condição humana à luz do propósito de Cristo. E por isso somos porta-vozes de Cristo para as condições específicas da vida humana. 

Bet. Exercemos uma ação ética e social à luz da compreensão do destino do povo de Cristo. E o fundamento de nossa pregação social é a aliança no sangue do Cristo.

Guimel. A Justiça e o Juízo, o Amor e a Integridade são fundamentais para a construção da estrutura política e a organização das instituições econômicas de nosso país. 

Dalet. Por isso, podemos dizer, sem sombra de dúvida, que o compromisso é com Cristo. E que ele participa dos combates pela Justiça, e é a centralidade de todo clamor e ação. 

Ou seja, queridos irmãos e irmãs, Cristo é a centralidade da reforma radical

Assim, os jovens pastores batistas são chamados a se colocar na brecha social e a considerar fundamental a participação na vida real do país. Mas, de novo, voltamos à questão: em que sentido podemos falar da centralidade do Cristo numa reforma radical da sociedade brasileira?

E o que significa, em última instância, a centralidade do Cristo?

Teologicamente, fazemos a proclamação da soberania de Cristo, depositando sobre os ombros de nossa juventude a tarefa de aceitar o desafio do momento, a fim de demonstrar a evidência da ação do Cristo no mundo.

O perigo é, em meio às rápidas transformações sociais, ficar atrás em nosso pensamento social e pregar um evangelho que não seja compreensível e adequado às necessidades do sociedade em mudança.

O papel dos jovens pastores batistas numa sociedade em crise é seguir os passos de Cristo, amante apaixonado dos excluídos de bens e possibilidades.

E atenção André Sass Farias, querido pastor batista, brasileiro, amigo e colega, mas já também francês, e também todos os irmãos e irmãs aqui presentes:

Cristo é a centralidade para a solução dos problemas brasileiros, e por extensão de toda a globalidade, porque sob sua soberania está nossa ação ética, a favor da vida, na reforma permanente do reinar de Deus. E neste que fazer, o fazemos todos, juntos, a partir de nosso atuar transformador em Cristo Jesus, o Senhor.