samedi 20 mai 2023

A paixão explode em chamas

A paixão explode em chamas 
Jorge Pinheiro 


Imaginei um pensar transverso entre Teresa de Ávila (1515-1582), Baruch de Spinoza (1632-1677) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. Assim, lemos Teresa em Versos nacidos al fuego del amor.

Vivo sin vivir en mí, 
y de tal manera espero, 
que muero porque no muero 

Spinoza considerava a teologia um pensar primevo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade, mas não na sua contemporaneidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima e olhou para si própria e ao seu redor pode pensar a física e as ciências possibilitaram a expansão do conhecimento. Gosto de Spinoza, mas acho que estava enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 

Vivo ya fuera de mí 
después que muero de amor; 
porque vivo en el Señor, 
que me quiso para sí; 
cuando el corazón le di 
puse en él este letrero: 
que muero porque no muero. 

Há algo no pensar de Spinoza que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí ia fundo, radicalizava: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo Spinoza? 

Esta divina prisión 
del amor con que yo vivo 
ha hecho a Dios mi cautivo, 
y libre mi corazón; 
y causa en mí tal pasión 
ver a Dios mi prisionero, 
que muero porque no muero. 

Gostaria que você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, no Livro de sua vida, onde contou um dos seus muitos momentos de êxtase:

Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo”. 

Vamos ouvir um pensador maldito, Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, da acentuação de uma teologia do pecado, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas. 

¡Ay, qué larga es esta vida! 
¡Qué duros estos destierros, 
esta cárcel, estos hierros 
en que el alma está metida! 
Sólo esperar la salida 
me causa dolor tan fiero, 
que muero porque no muero. 

É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, falava da liberdade do êxtase.

Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar”. 

E Bataille, em O Erotismo, ao falar sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.

¡Ay, qué vida tan amarga 
do no se goza el Señor! 
Porque si es dulce el amor, 
no lo es la esperanza larga. 
Quíteme Dios esta carga, 
más pesada que el acero, 
que muero porque no muero. 

Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille dá um show de bola, e completa Spinoza quando aquele criticava o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E foi do pecado que Baudelaire falou. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado, embora trabalhem com a idéia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 

Sólo con la confianza 
vivo de que he de morir, 
porque muriendo, el vivir 
me asegura mi esperanza. 
Muerte do el vivir se alcanza, 
no te tardes, que te espero, 
que muero porque no muero. 

O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu o poder religioso de evocar a pre­sença demoníaca: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base de qualquer perturbação fundamental. Hoje, os movimentos ligados ao neopentecostalismo estão fazendo o caminho inverso. Mas, o certo é que os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Já na experiência profana, somos chamados a dar atenção a Spinoza, o erotismo seria pura mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa e, mais exatamente, do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 

Mira que el amor es fuerte, 
vida, no me seas molesta; 
mira que sólo te resta, 
para ganarte, perderte. 
Venga ya la dulce muerte, 
el morir venga ligero, 
que muero porque no muero. 

E por quê? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a­ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos Versos nacidos al fuego del amor.

Vida, ¿qué puedo yo darle 
a mi Dios, que vive en mí, 
si no es el perderte a ti 
para mejor a Él gozarle? 
Quiero muriendo alcanzarle, 
pues tanto a mi Amado quiero, 
que muero porque no muero. 

Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o desejo é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 


Caminhar em meio à floresta