mercredi 3 avril 2013

Leituras libertárias da natureza humana

De Pelágio a Marx
na contramão do cristianismo autoritário
Jorge Pinheiro
Resumo

Ao final de seu livro O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (2005, p.545) diz que "somos povos novos na luta por fazermos a nós mesmos como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante". Em relação à teologia, muitas vezes recorremos à antropologia na busca da compreensão de quem é este homo sapiens. E nesse texto partiremos dessa afirmação antropológica, somos povo em construção, entendendo que sem a compreensão do que somos pouco podemos compreender sobre nossas possibilidades e destino.

Palavras-chave: natureza humana; destino; liberdade; bem; mal.

Esta análise do gênero humano parte da Carta à Demétria1 escrita por Pelágio a uma adolescente. As reflexões de Pelágio sobre a pessoa consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago Dei. Dirá que podemos avaliar a bondade humana pela referência ao Criador (2.2), já que Deus transmitira ao humano o atributo da vontade livre, que possibilita a escolha livre e o domínio próprio. E Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, afirmou que a alienação é um estado da existência. Nesse sentido, quando o ser humano exerce sua liberdade, sob o estado de alienação presente na existência, sempre tem diante de si a possibilidade do mal. A partir daí, num sobrevôo passamos por Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Para esses pensadores, cada um a sua maneira e em contextos diferentes, o humano se constrói historicamente, enquanto pessoa e comunidade, enquanto percepção de que a natureza humana tem potencialidades que podem se cumprir através da ação transformadora. Essas leituras realçam a responsabilidade moral das pessoas e das comunidades e, como conseqüência, exortam à construção de políticas educacionais formadoras de sociedades solidárias.

O debate teológico a respeito da natureza humana faz parte da própria história da teologia. Mas em nossa análise vamos partir de Justino Mártir quando afirmou que o humano, por ser racional e livre, é responsável por seus próprios atos.

Tal afirmação levou a discussão para a relação existente entre Adão e a alienação existencial. Dentro da tradição teológica da Igreja oriental, no primeiro humano estavam tipificadas as separações e o distanciamento do Criador. Já para a Igreja ocidental, que a partir do debate com os donatistas, precisava formular a questão dos sacramentos e o papel sacerdotal, Adão passou a ser visto como fonte do mal humano e não protótipo. A discussão foi, então, polarizada no debate de dois pensadores: o monge Pelágio e Agostinho de Hipona. Séculos mais tarde, a crítica da Reforma ao racionalismo tomista trará o debate de volta. Só que a discussão será feita sob novas abordagens, tais como: qual é o destino que Deus reservou aos seres humanos? Assim, a discussão da natureza humana levará ao tema do destino humano.

Pelágio e a liberdade 

Aqui vamos voltar no tempo e procurar reconstruir o pensamento do monge Pelágio (FERGUSON, 1989, p. 386) (354-418). Sabemos que saiu da Grã-Bretanha (FERGUSON, 1980, p. 115), onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo celta. Era monge e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus companheiros. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. O que para a época era simplesmente um pensamento revolucionário. Estas idéias de Pelágio não combinavam com o momento teológico vivido pela Igreja ocidental. Naquela época, a Igreja enfrentava o pensamento donatista na África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja cristã ocidental. Se ela concordasse com tal visão, quem garantiria o estado de santidade do clero que ministrava os sacramentos? E se não concordasse, por que então os sacramentos não poderiam ser ministrados também pelos leigos? Mas, se a declaração dos donatistas fosse falsa, então os sacramentos poderiam ser ministrados pelo clero, sem que se cogitasse seu estado espiritual diante de Deus. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive Agostinho, defendiam que ela era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Assim os sacramentos produziam santificação e não eram frutos da vida piedosa de homens santos. A igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Caelestius, a questão girava ao redor do livre arbítrio. Não concordavam com a idéia defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que contaminou a humanidade.

[Em vez de considerar os mandamentos de Deus como privilégio]... lamuriamos a Deus e dizemos: Isso é muito duro! Isso é difícil demais! Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos e, portanto, somos impedidos pela fraqueza da carne! Que loucura! Que ostensiva presunção! Ao agir assim, acusamos o Deus da sabedoria de dupla ignorância – ignorância de sua própria criação e de seus próprios mandamentos. Seria como se Deus, esquecendo-se da fragilidade da humanidade – a qual, afinal de contas, foi criada por ele mesmo! -- nos tivesse ordenado algo que não pudéssemos fazer. E, ao mesmo tempo (que Deus nos perdoe!), imputamos ao justo injustiça e crueldade Aquele que é santo, primeiro, ao reclamar que Deus nos ordenou o impossível e, segundo, por imaginar que alguns serão condenados por Deus pelo que não poderiam evitar; de outra forma, que – e essa é a blasfêmia suprema! -- concebe-se que Deus esteja buscando nossa punição, em vez de nossa salvação (McGRATH, 2005, p.508).

Como os trabalhos de Pelágio foram proibidos de circulação e posteriormente queimados, chegou até nós pouquíssimo de sua produção. Mas, ainda temos condições de examinar a Carta à Demétria (REES, 1991, p.35-70), escrita a uma adolescente e que nos possibilita estudar sua visão sobre a natureza humana.

“Sempre que eu tenho que falar no assunto da instrução moral e na conduta de uma vida santa [disse o monge], costumo demonstrar o poder e a qualidade da natureza humana e primeiramente o que ela é capaz de realização" (2.1).

Uma vida de pureza moral, para Pelágio, só podia ser conseguida a partir de dois componentes, aquilo que é bom na natureza humana e o dom da graça (9.1). Esse é o tema central dessa sua epístola.

As reflexões de Pelágio sobre o ser humano não estão distantes daquelas apresentadas pelos pais da Igreja oriental, que também consideravam existir bondade na natureza humana, fruto da imago Dei. Por isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do Criador (2.2). Assim, a divindade transmitiu à humanidade os atributos da liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Isto porque Deus desejava para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e para escolher entre vida e morte, entre bem e mal, e viver conforme lhe parecesse melhor (2.2). Pelágio, no entanto, sabia que boa parte dos cristãos acreditava que se o ser humano tinha sido criado com a possibilidade de realizar o mal, então não tinha sido criado perfeito. Ao contrário, o monge celta acreditava que o ser humano tinha sido criado para realizar o bem, mas não compulsoriamente. E a partir dessa compreensão afirmava que se não fosse assim não haveria humanidade real e nem virtude verdadeira (3.1). Aqui está o centro da espiritualidade pelagiana: a crença de que se negarmos a liberdade finita do ser humano negamos a possibilidade da vida moral.

Esta bondade da pessoa, para Pelágio, não foi destruída com a alienação existencial. O ser humano continua a carregar dentro de sua natureza a bondade da criação, uma graça, uma santidade natural (4.2). E isso pode ser visto na vida de pessoas que não são cristãs. Muitas delas são tolerantes, generosas e rejeitam os prazeres do mundo. São amantes da justiça e buscam o conhecimento (3.3). O que o levou a considerar que é impossível trilhar o caminho da virtude se não houver nos corações a esperança de alcançá-la. Não haveria virtude se em seu esforço as pessoas achassem que nunca haveriam de encontrá-la (2.1). Por isso, Pelágio abominava a covardia diante dos desafios da vida. Ao contrário, exatamente porque a carne é frágil, todos são exortados a vencê-la e isso é possível (16.2). A bondade e a capacidade de viver uma vida santa estava e está nos planos de Deus porque ele não criou o ser humano para a punição ou para a danação, mas para a liberdade. Negar a possibilidade da bondade humana e a capacidade de viver uma vida santa não é somente pessimismo moral, é uma blasfêmia: significa que Deus não sabe o que fez, ou que não levou em conta a fragilidade humana, ou que ordenou algo impossível e deseja não a salvação humana, mas a punição (16.2).

O monge celta não responsabilizava a natureza por aquilo que é a escolha de pessoas livres. Considerava que não se pode culpar a natureza, pois em ambos testamentos tanto o bem como o mal são apresentados como ações voluntárias (7). Isto é demonstrado na vida de Caim e Abel, e Esaú e Jacó, irmãos de sangue que fazem escolhas diferentes. O monge dizia que quando os méritos diferem na mesma natureza, a escolha é a causa da ação (8.1). Logo, a alienação existencial não poderia ter corrompido a natureza humana ao ponto de incapacitá-la de escolher entre fazer o bem ou fazer o mal. O efeito da alienação existencial deve ser entendido mais em seus efeitos ambientais do que éticos.

Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada pela alienação existencial dos primeiros seres humanos. Defendia que eram os atos e não a natureza que levavam o ser humano a realizar o mal. Por isso, discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da Igreja. Considerou a idéia de pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e, diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Cristo. Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a idéia da liberdade de escolha, e da natureza humana que tinha sido alienada, mas não degradada (FERGUSON, 1980, p. 115).

A compreensão da proposta pelagiana nos remete à importância da educação na construção da ética cristã. A partir daí, a ênfase não estará no conhecimento de Deus, mas na imitação de Cristo. Nesse sentido, a teologia de Pelágio é uma teologia do caminho, onde está presente a afirmação da vida, e como consequência, do amor, da justiça e da verdade. E se o ser humano é colocado entre as alternativas da vida e da morte, do bem e do mal, é porque pode escolher a vida e o bem. E o princípio da vida aponta para o amor, porque se o ser humano deve ser imitador de Cristo, a ênfase recairá sobre a justiça e a misericórdia. Ora, a justiça é inseparável da liberdade e, por isso, o caminho se faz ao andar: deve ser trilhado, porque aí estão os desafios da existência humana. E é esse sentido de realidade e sua prática no cotidiano que leva a teologia cristã à política. Aqui, o discurso contra-autoritário de Pelágio cobra força, pois o cristianismo deixa de ser religiosidade privada e de padrões de pensamentos para se articular com as demandas das comunidades.

Tillich e a liberdade

Para o teólogo teuto-americano Paul Tillich (2005, p.339), o estado da existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo. E essa alienação é fruto de sua ruptura com o mundo ideal da criação, da natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas, para Tillich, é importante entender a relação entre alienação e sociedade. Para ele, uma comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real, mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na comunidade não existe culpa coletiva, embora exista destino universal e, por isso, as pessoas participam deste destino. Para Tillich (2005, p.352), o destino se acha inseparavelmente unido à liberdade, que é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade (TILLICH, 2005, p.193).

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo da natureza humana, pois posiciona a liberdade em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus liberdade sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia escolher como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro. Ou, como diz La Boétie (1982, p.19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres (apud LA BOÉTIE, 1982, p.110,111) analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição da alienação existencial:

Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes, a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então, que trabalho pensar o impensável mau encontro!.

Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo da natureza humana, pois posiciona a liberdade em condições e momentos diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a relação origem versus liberdade sublinha o surgimento do ser humano como imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por isso, poderia escolher como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza, permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer, produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência. Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro. Ou, como diz La Boétie (1982, p.19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres (apud LA BOÉTIE, 1982, p.110,111) analisando o texto desse libertário do século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta uma definição da alienação existencial:
Para Clastres, antropologicamente, a alienação leva à possibilidade do mal, pois é corrupção da liberdade do ser humano por ele próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária. Teologicamente, podemos dizer que o mal é um fazer que se opõe ao amor, à justiça e à verdade. Assim, o entendimento do mau encontro enquanto alienação e abertura à perda de liberdade forma o pilar de uma teologia libertária, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade do ser humano.

Segundo Tillich (2005, p.353), a alienação humana tem como conseqüência descrença, hybris e concupiscência, expressões de um estado que se opõe ao ser essencial do humano, sua potencialidade para o bem. Essa compreensão está presente na tradição judaico-cristã. Assim, no Antigo Testamento temos uma tríade conceitual nas idéias de aliança, fidelidade e constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. E no Novo Testamento o vértice dessa discussão é o conceito de destino.

Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma leitura especial e trágica do conceito de destino, que traduzia a maneira de pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgata, mas vai além do conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, era uma tentativa de colocar-se acima dele. Para o ser humano helênico a luta com o destino era inevitável, porque se apresentava como poder sagrado, mas destrutivo. Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistérios, dessa forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o destino, excluíam dos seres humanos qualquer possibilidade de liberdade.

Da mesma maneira, a filosofia helênica, através do conhecimento, procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser puro. Mas, nunca conseguiu tal objetivo, e o mundo helênico permaneceu um mundo de culpa objetiva, castigo trágico e profundo pessimismo, que atravessou a produção teórica de gênios como Anaximandro, Pitágoras, Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nas discussões do helenismo pós-platônico, possibilidade e necessidade foram conceitos chaves. Mas o medo de demônios continuou a obscurecer o espírito helênico. O epicurismo tentou, em vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua argumentação filosófica.

Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é esse paradoxo que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo -- superar o destino -- permaneceu inalterada em todo o helenismo.

A filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a presença do mal na existência humana se mostrava avassaladora. Ao mesmo tempo, as nações foram submetidas ao domínio romano, metáfora da personificação do mal. Diante desse destino trágico, o mundo helênico ansiava por um destino libertador.

E foi assim que o cristianismo se apresentou como vitória do humano sobre o medo trágico e sobre a matéria que resiste. Colocou-se como negação radical do caráter demoníaco da existência em si, dando a esta um valor essencialmente positivo e valorizando os acontecimentos da ordem temporal. Assim, para o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem do tempo não levava apenas ao transitório e perecível, mas também à possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno significado à vida humana.

Para esse jovem cristianismo, o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter irreversível do tempo bom, do kairós, substitui o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino traz libertação no tempo e na história. Antes, a filosofia buscava desesperadamente a libertação, agora a libertação apodera-se da filosofia dando origem à teologia. Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e se apropriou de suas formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da filosofia helenística perdeu importância na construção do pensamento cristão oriental, que se desenvolveu a partir da idéia da liberdade, que se constrói historicamente, e acontece num tempo bom.

Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão do apóstolo Paulo, que fez a correlação entre o pensamento cristão palestino e o helenismo, destino traduz a idéia de que os limites estão dados de antemão, ou seja, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de liberdade. Assim, destino implica numa tríade conceitual: (1) o destino está sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à lei, e aqui vamos entender lei como natureza; (3) destino significa que liberdade e lei ou natureza são interdependentes e complementares.

Analisando o conceito cristão exposto por São Paulo (Carta aos Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e natureza se encontram intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, e que se expressa pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma probabilidade que surge da dialética lei/natureza versus graça/liberdade, o julgamento, a decisão, é inerente ao ato humano. Ou, nas palavras de Tillich (2005, p.193,194): “destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas nossas decisões nossas decisões”.

A certeza de que o destino é a liberdade e não o mal e tem um significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino, que coloca o Cristo, aquele que possibilita a escolha certa, acima do destino. Mas, devido à alienação, em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco diante da realização da liberdade. Ainda assim, devemos correr este risco, sabedores de que este é o único meio através do qual a construção daquilo que é bom pode ser viabilizado. Por isso, o Novo Ser, aquele que pode ser buscado fora da história e pode ser entendido como alvo da história, que apresenta a universalidade da expectativa humana por uma nova realidade (TILLICH, 2005, p.380), deve se refletir no pensamento humano, embora não exista um ato do pensamento sem a premissa de sua verdade incondicional (Carta aos Romanos 12.2 e I Coríntios 2.16.).

Quando mantemos relação com o Novo Ser, que leva o finito à plenitude, deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que o nosso pensamento sempre desejou livrar-se dele. Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Novo Ser, a busca de um novo estado de realidade, e kairós, a plenitude do tempo. O Novo Ser deve alcançar o kairós, o tempo oportuno, tempo de agir (TILLICH, 2005, p.800). O Novo Ser deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o destino da existência. Para o cristianismo paulino, a separação entre Novo Ser e existência chegou ao fim. O Novo Ser alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.

É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino. Dessa maneira, para o jovem cristianismo, ao contrário do que pensavam os gregos, todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. E quanto maior a potencialidade do ser, que cresce à medida que é envolvido pelo Novo Ser, mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.

Destino passa a ser compreendido como serviço aquilo que liberta, ao Novo Ser, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido grego de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa comunidade, tanto mais livres seremos. Então, a ação humana será plena de força e verdade.

A vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como relação dialética entre lei/natureza e graça/liberdade. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que para Marx liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei/natureza diante da alienação existencial se traduz no conceito grego metanóia, ação transformadora.

Para a jovem Igreja cristã, o mal, ao contrário do que pensavam os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é uma possibilidade e no que se refere às sociedades é a construção de um domínio. Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é desafiada, quando meu julgamento tem a possibilidade de escolha entre aquilo que é bem e aquilo que é mal. Ou seja, o mal surge como feitura humana. Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral e nem pode acontecer fora da cultura. Toda vez que o ser humano realiza sua escolha, a lei/natureza está presente: assim o mal é um antítipo da liberdade.

Só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é feitura minha e de minha espécie. A partir daí, não podemos perguntar porque o mal existe, como se fosse um ser. Mas devemos nos perguntar, como fez Agostinho, o que me leva a fazer mal? O que nos exorta à ação libertária, já que o mal é o que não devia estar. É a partir daí que nasce um ética libertária, de combate a este fazer e domínio na vida de meu próximo e da comunidade.

Algumas considerações

Gostaríamos de acrescentar que as leituras libertárias da natureza humana atravessaram os séculos e desembocaram na modernidade. Em 1970, Ballestero (1970) ao analisar o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade, Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que “neles, em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e anterior ao próprio ato livre.”

Podemos dizer que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não era gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça. Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num nível superior o universo anteriormente negado.

Ou como dirá Lutero (1955, p.225), “o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo”. Livre e não submisso, mas servo e escravo do ideal da liberdade. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da graça/liberdade. A apropriação da liberdade é fruto da certeza que transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (LUTERO, 1955, p.259).

O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão. Para ele, embora a religião fosse a realização imaginária da essência do ser humano, essência essa que não tem realidade, assim como Cusa e Lutero, a liberdade é abolição da legalidade, coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo, responsabilidade suprema do ser humano. Esse ponto de vista marxiano está expresso na Introdução à Crítica da Economia Política (MARX, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky em 1903.

Conscientes da tensão alienação/natureza humana, temos a liberdade enquanto destino, uma dimensão de combate. Mas, se não existe vida pessoal sem o encontro com outras pessoas dentro de uma comunidade, e não existe comunidade sem a dimensão histórica de passado e futuro (TILLICH, 2005, p.423), é aí, na comunidade, que o ser humano constrói a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.

Podemos aqui levantar algumas considerações dessas leituras libertárias da natureza humana:
1. Se o mal é feitura humana e construção na cultura enquanto domínio – ele não é um ser com existência própria –, as pessoas e comunidades não precisam de sacramentos, nem de heteronomias para sua libertação;

2. A liberdade apresenta-se como graça que produz metanóia, ação transformadora da realidade, que surge enquanto irrupção, acontece dentro do humano e se expande;

3. As leituras libertárias da natureza humana foram combatidas pela Igreja, pois subvertia a idéia agostiniana de que "fora da Igreja não há salvação". A Reforma protestante deu um salto em direção à ruptura com a heteronomia católica, mas perdeu força na sua arrancada e reconstruiu os padrões que combateu. Ao dar existência ao mal, ao fazer dele ser, recolocou a necessidade de exterioridades para combatê-lo. Voltamos, dessa maneira, ao destino demoníaco do pensamento helenístico. E por ser assim, diante desse destino trágico, o mundo carece do Cristo, destino de liberdade.

Referências

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Ballestero, Manuel. La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madri, Siglo XXI, 1970.

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La Boétie, Etienne, Discurso da servidão voluntária, São Paulo, Brasiliense, 1982.

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Tillich, Paul. A Era Protestante, São Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992. Texto original: The Protestant Era, Chicago, Illinois, University of Chicago, 1948. Trad. pt. de Jaci Maraschin. “Die protestantische Ara”, Der Protestantismus als Kritik und Gestaltung, Gesammelte Werke VII, Evangelische Verlag Stuttgart, 1962, pp. 105-123. Trad. al. W. De Gruyter.

Tillich, Paul. “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. Artigo aparecido na obra coletiva Kairos. Zur Geisteslage und Geisteswendung, em 1926. “ Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart ”, Die widerstreit von raum und zeit, Gesammelte Werke, VI, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Tillich, Paul. La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990. Trad. fr., Nicole Grondin e Lucien Pelletier, 1992.

Tillich, Paul. Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.

Tillich, Paul. Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

1 Pelagius, “Letter to Demetrias” in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers, p.35-70.