jeudi 6 septembre 2018

Não somos meio termo ...

... somos complemento
Jorge Pinheiro

Théodore Monod[1]disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas cores do espectro. Na verdade, os escritos judaicos daEra Comum nos dizem que a eternidade construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse construir sualiberdade o seu lugar. Dessa forma, para este pensamento religioso o ser humano é potencialmente autônomo dentro dos limites da existência, constrói  livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 



Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que a eternidade aposta na construção permanente do ser humano. A construção do humano, vista dessa forma, não está completa, pois é o próprio ser humano, enquanto pessoa e comuna, quem continua a sua construção. Por isso, a construção da transcendência é a chave para o humano futuro. É o que leva à revolução permanente. Textos da sabedoria judaica, quando falam do acesso ao mundo da transcendência, perguntam: "Você se tornou o que você é?

O ser humano, enquanto pessoa e comuna, é construtor de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir qual é o seu destino". É a viagem da existência humana, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, numa comunhão que engloba o cosmo, e deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao transcendente.

E para pensar este caminhar humano, político e religioso, vamos partir de Paul Tillich e Enrique Dussel. Os textos socialistas e os conceitos da correlação entre cultura e religião em Tillich, assim como as abordagens sobre a religião infraestrutural e sobre o fator religioso no processo político-revolucionário desenvolvidas por Dussel norteram esta abordagem sobre o fazer política, hoje, na alta-modernidade. 

Tillich e Dussel fornecem os referenciais que utilizamos, iluminando questões teóricas e possibilitando a compreensão de realidades até agora mal observadas e mal compreendidas. Por isso, utilizamos como referenciais os textos socialistas e conceitos da cultura de Tillich, assim como as abordagens sobre a religião infraestrutural e sobre o fator religioso no processo revolucionário desenvolvidas por Dussel.

A teologia para Tillich relaciona polos, a mensagem religiosa e a interpretação dessa mensagem, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas artísticas e científicas, econômicas, éticas e políticas, através das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência.[2]Nesse sentido, a teologia, enquanto cosmovisão, dá respostas às perguntas implícitas na situação, não enquanto soluções definitivas, mas no sentido de procurar sínteses. Para isso, Tillich trabalha a partir da correlação, ou seja, da análise da situação humana, de forma que venham à tona perguntas; e a individuação das respostas nos fatos reveladores, possibilitando respostas correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.

A partir daí nos vemos diante da pergunta: que sentido tem a história? Tillich nega o negativismo que não vê sentido na história, mas também vai além do progressismo intra-histórico, quer iluminista, quer marxiano. Para ele, a religião propõe símbolos religiosos, que devem ser interpretados como dimensão histórica e dimensão transistórica. Dessa maneira, o sentido da história está na manifestação deste símbolos, quer enquanto reino de transcendência, em contraposição à história do mundo, quer enquanto diretrizes e movimento em direção à plenitude da história, que nesta dimensão transcendente e transistórica é a vida plena de sentido.[3]

Perguntas acerca das situações e respostas religiosas estão ligadas à existência. Por isso, ao analisar a questão do socialismo, Tillich faz uma ontologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, podemos dizer esta ontologia se faz fenomenologia política quando analisa questões como a origem do pensamento político enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. E é a partir da análise do pensamento político que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo. Mas, acredito que é necessário fazer a crítica do socialismo religioso e do sentido dialético do método da correlação tillichianos por serem modernos. E para realizar a crítica e o aggiornamento recorremos a Dussel, com o conceito de religião infraestrutural e seu método analético.

Dussel trabalha com duas abordagens construídas a partir de Lévinas e Marx -- nos leva ao outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e à religião enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente --, que nos ajudam a aterrissar Tillich na realidade pós-moderna.
  
Assim para Dussel, a fé é um ato da inteligência, é um modo de ver, que não pára em algo que não pode transcender, pois sabe que há algo mais. Ela, a fé, vai além do que se vê. É esperança de que há um outro que se revelará – o amor do outro enquanto outro.  Nesse sentido, para Dussel, o amor é o que vai além do rosto, e recorre à uma imagem bíblica e diz que a chama do arbusto não é um sinal de presença, assim como o rosto não é também sinal de presença. Afinal, todos os dias vemos rostos, mas o rosto que vemos não é. Devemos, então, nos abrir diante do rosto como sinal de um mistério da liberdade. Isto porque, todos aqueles que nos rodeiam e todos os grupos sociais não são de fato o outro, pois outro é sempre livre.[4]

Mas, para que a religião direcione é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico nos remete ao falar diante. Mas falar diante de quem? Diante das gentes. E assim fazemos profecia, falamos a homens e mulheres da fé cotidiana, falamos do sentido dos acontecimentos que estão diante de nós.[5]

Esta compreensão, a partir da leitura dos dois autores, mostra a importância da correlação política e religião para se agir e pensar teologia socialistas. A inclusão da religião na análise crítica da construção do pensamento socialista, amplia o horizonte de compreensão dos estudos sobre política. Assim, optamos pela abordagem comparativa[6]representada pela presença da religião na discussão da política e do socialismo. Desta maneira, o debate não se limita ao que já foi dito, mas terá novas perspectivas de discussão interdisciplinar. Esta maneira de fazer Teologia norteia o trabalho desenvolvido. 



[1]Théodore Monod, Le Chercheur d’absolu, Le Cherche midi, 1997. Foi naturalista, explorador, erudito e humanista francês.Nasceu em 1902 e morreu em 2000.
[2]Paul Tillich, “Systematic Theology I”, Chicago, University Chicago Press, XI, 1951, pp. 3-4. “Das System der Wissenschaften nach Gegenstanden und Methoden”, Fruhe Hauptwerke, Gesammelte Werke I, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1955, pp. 265-290. 
[3]Esse processo, que parte do eterno e desemboca no eterno, Tillich vai chamar de pan-enteísmo escatológico. In Systematic TheologyI (1951), p. 421.
[4]Enrique Dussel, “Interpretação histórico-teológica”, in Caminhos da libertação latino-americana, vol. I,  São Paulo, Paulinas, 1985, p. 13.
[5]Enrique Dussel, Caminhos da libertação latino-americana, op. cit., p. 15.
[6]Peter Berger, “A secularização e o problema da plausibilidade” in O dossel sagrado, Elementos para uma teoria sociológica da religião, São Paulo, Paulus, 1985, pp. 139-164.