dimanche 8 mars 2020

Algumas dicas do amigo Ben Sirac

“Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro. Ben Sirac 6.5-17.

Yeshua, filho de Sirac, por isso chamado Ben Sirac, escreveu reflexões que entraram para a cultura judaica como peças da sabedoria judaica helenizada, escritas entre os anos 190 e 124 antes da Era Comum. Aqui ele fala sobre a amizade e espero que você, como os cristãos dos primeiros séculos, possa fazer bom proveito dessas reflexões. Jorge Pinheiro.

Os textos de Jesus ben Sirac não fazem parte dos textos sagrados do judaísmo. Professor ligado aristocracia jovem de Jerusalém, fez viagens ao exterior em missões oficiosas, o que nos leva a crer que tenhq ocupado cargo de importância junto ao Sinédrio, organismo de governo sob a responsabilidade do sacerdote maior. Por ter vivido em Jerusalém entre os anos 200 e 180 antes da Era Comum, viveu os tempos de transição da dominação complacente dos ptolomeus do Egito em direção à dominação sangrenta dos selêucidas da Síria. Trabalhou com o sacerdote-maior Simão (50.1-24), que ocupava tal função quando Jerusalém foi conquistada por Antíoco III em 198. Viveu a tragédia da deposição e assassinato de Onias III, filho de Simão, em 174, e a perseguição de Antíoco Epífanes (175-163) contra a cultura e religião judaicas. Assim, viveu sob dominções estrangeiras que oscilaram entre a complacência e o terror, e assistiu e possivelmente apoiou a insurreição liderada pelos Macabeus, em 167.

Por isso, ao contrário de estarmos diante de um livro apenas religioso a obra de Jesus ben Sirac traduz uma sabedoria destinada a consolidar a segurança do Estado, frente a inimigos externos e internos. Nesse sentido, despido da linguagem religiosa que possibilitou sua leitura sem censura e perseguições, estamos diante de textos que nos falam sobre os procedimentos do Estado na construção de sua segurança.

Tomemos por exemplo esse bloco de pensamentos e o leiamos como dirigido a elite dos dirigentes Macabeus e a aristocracia jovem que sobe ao poder com eles.

Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro”. Ben Sirac 6.5-17.

O leitor apenas religioso, de ontem e de hoje, vê apenas um tratado sobre a amizade nas palavras de ben Sirac. Mas se levarmos em conta que as invasões de Alexandre levaram ao Oriente uma nova civilização, globalizada enquanto helenismo, era necessário pensar questões como choaue de culturas, religião e ecumenismo que pela força, diplomacia e comércio tendiam a abolir fronteiras e colocar em xeque o judaísmo. 
 
Ben Sirac, homem da inteligência judaica, acolhe aspectos importantes da cultura grega, como a filosofia estóica, mas sabe que a adoção não crítica do helenismo põe em risco a religião judaica (Sr 2.12-14) base da cultura palestina. E critica as concessões e entregas de membros do sacerdócio e da aristocracia, conforme denuncia o movimento dos Macabeus (cf. 1Mc 1-2).

Assim, ben Sirac trabalha com um paradoxo, a busca da liberdade e a presença do mal, traduzida na presença imperial. O ser humano foi criado livre (15.14), e o mal não se encontra na divindade, mas na ação humana (15.11-13). Aí está a fonte do mal (21.27; 25,24). Mas é possível enfrentar as forças da destruição (31.10).

Por isso, sua religião se aproxima de uma antropologia política, e aqui quero destacar alguns desses elementos. Faz uma apologia do nacionalismo judaico através do resgate da tradição dos antepassados (44.1-49,16). Opõe a Lei outorgada a Israel no Sinai (24.23), ou seja, a jurisprudência judaica, ao helenismo. E diante da nova racionalidade da filosofia grega reivindica a sabedoria judaica que fala do temor de Deus, enquanto aplicação da Torá escrita (1.26; 6.37). Dessa maneira, como professor e homem da inteligência chama ao estudo da Lei como tarefa para a sobrevivência nacional. E defende a fé tradicional: Deus é eterno e único (18.1; 36.4; 42.21); é o autor da criação (42.21.24), conhece todas as coisas (42.18-25).

E como homem da inteligência defende um futuro nacional, político, para a nação viável e soberano. Isso pode ser visto, em lingugem religiosa na oração que faz pela libertação e restauração de Israel (36,1-17), quando diz glorifica tua mão e teu braço direito. Excita o teu furor e derrama tua cólera. Suprime o adversário e aniquila o inimigo. Apressa o tempo, lembra-te do momento fixado e divulguem-se as tuas façanhas. Por um fogo vingador seja devorado o que sobreviver, e os que maltratam teu povo encontrem sua ruína. Esmaga as cabeças dos chefes inimigos que dizem: "Não há ninguém como nós!” 

A atitude do Sirácida em face de uma crença na ressurreição, o seu amor do culto, sua veneração pelo sacerdócio sadoquita (cf. 51,12 no hebraico) e, por outro lado, a falta de referência explícita às idéias messiânicas que se desenvolverão nos meios fariseus fizeram-no relacionar-se com uma espécie de pré-saduceísmo. De fato, pode-se situá-lo na linha desse movimento conservador, nacionalista, ligado à Lei escrita. Mas seria um erro assimilá-lo pura e simplesmente aos saduceus que conhecemos pelos evangelhos e por Flávio Josefo: ele ainda vive antes da diferenciação do judaísmo em seitas caracterizadas.

Em relação às nações pagãs, Ben Sirac manifesta uma atitude já tipicamente judaica. Após certa abertura universalista nos Profetas, as dificuldades do período pós-exílico levaram Israel a um particularismo pouco a pouco reforçado pela idéia da eleição bem como pelas exigências práticas da vida segundo a Lei: circuncisão, sábado, regras de pureza alimentar e ritual. A concepção helenista do homem cidadão do universo, então em voga, não arrefeceu a ufania do autor de pertencer à raça escolhida no meio da qual a própria Sabedoria estabeleceu sua residência privilegiada (24,7ss). Ele recomenda separar-se, principalmente dos ímpios (11,33; 12,14; 13,17), atitude levada ao extremo pelos essênios de Qumran e que provavelmente dará aos fariseus essa designação característica: "os separados". O mundo aparece, pois, dividido em duas categorias, a dos bons e a dos maus ou, equivalentemente, a dos sábios e a dos insensatos (21,11-28). Contudo, há traços reveladores de uma sensibilidade nova no judaísmo, e certos desenvolvimentos sobre o perdão (27,30-28,7) encontrarão paralelos no Evangelho. Talvez mesmo a concepção do "semelhante" que é "carne" como cada ser humano (28,4-5) anuncie já a idéia de que todos os homens são irmãos. Aliás, a exegese judaica antiga compreendeu às vezes Lv 19,18 da seguinte maneira: "Amarás o teu próximo como a outro tu mesmo".

Plano. Os comentadores não estão muito de acordo quanto ao plano da obra. Recordemos que o Sirácida é um semita e um mestre de sabedoria que compõe segundo critérios muito diferentes dos nossos. Reunindo suas notas, ele retomou a forma de um ensinamento oral por temas sucessivos, comportando numerosas digressões e formando assim largas unidades sem estrutura definida. Portanto, nenhum plano sistemático se impõe. Mas é possível reconhecer, ao menos, duas partes: 1-23 e 24-50, cada uma começando por um elogio da sabedoria. O capítulo 51 contém dois apêndices: um cântico de ação de graças e um poema sobre a busca da sabedoria.

Importância. A importância do Sirácida provém do seu papel de testemunha de uma época de transição onde começam a desenhar-se traços característicos do judaísmo, enquanto este representa uma forma evoluída da religião bíblica. Assinalamos acima alguns desses traços. Ben Sirac nos informa sobre aspectos essenciais desse judaísmo polimorfo no qual o cristianismo deitará raízes: é muito diferente do judaísmo rabínico, ao qual a preponderância farisaica (após o ano 70 de nossa era) vai dar um aspecto monolítico. Sob esse ponto de vista, sua obra deve ser estudada junto com a ampla literatura dos Apócrifos do Antigo Testamento e os escritos descobertos há um quarto de século no deserto de Judá. Do confronto judaísmo-helenismo, ela dá testemunho quer por seus empréstimos (nem sempre fáceis de identificar) quer por suas advertências ou mesmo invectivas apaixonadas.

Ben Sirac é também testemunha importante da constituição quase acabada de um cânon das Escrituras. O prólogo menciona a divisão tripartida clássica ("a Lei, os Profetas e os outros escritores"; cf. também 39,1-3) e o livro cita ou menciona mais ou menos explicitamente o Pentateuco, Josué, Samuel, Reis, Crônicas, Jó (hebr.: 49,9), Isaías, Jeremias, Ezequiel, os doze Profetas menores (especialmente Malaquias e Ageu), Neemias. Os Salmos são atribuídos a David e os Provérbios a Salomão.

O Sirácida será um dos autores preferidos do judaísmo: muitas vezes citado no Talmud e até entre os autores da Idade Média, sua obra deve ser posta em paralelo com um tratado fundamental da literatura judaica, os Ensinamentos dos Pais (Pirqê Abôt). As referências aos clássicos da Sabedoria antiga do Oriente Próximo (como a História de Ahikar [Aicar], cf. Tobit: Introdução) e aos textos judaicos mais antigos, indicados nas notas, mostrarão concretamente este aspecto ao mesmo tempo tradicionalista e criador do Sirácida. De fato, como o escriba do Evangelho, ele soube "tirar do seu tesouro coisas novas e antigas" (Mt 13,52).

Reconheceu-se também a influência do Sirácida sobre textos importantes da liturgia judaica, como os da festa do Grande Perdão (Kippurim); e a oração das Dezoito Bênçãos apresenta paralelos notáveis com 36,1-17.

Quanto ao Novo Testamento, os paralelos numerosos (sobretudo com Tg) provam que Ben Sirac desfrutou de grande estima entre os primeiros cristãos, estima confirmada pelo nome de Eclesiástico que a tradição dará a seu livro e, após algumas hesitações, pela inserção da obra no cânon das Escrituras. Admitido na coleção dos livros religiosos em Alexandria, e apesar da estima de que acabamos de falar, a obra foi no entanto rejeitada pelas autoridades farisaicas por causa de sua origem tardia e, talvez, por causa de idéias que não estavam mais de pleno acordo com a ortodoxia que se estabeleceu após 70. Essa decisão explica as hesitações dos cristãos nos primeiros séculos e é responsável também pela história complicada da transmissão do texto.

Transmissão do texto. O original foi redigido em hebraico, e S. Jerônimo, no século IV, ainda conheceu uma cópia.

Mas a seguir desapareceu totalmente, se se excetuam as citações rabínicas, várias das quais remontam apenas a florilégios. Ora, no fim do século passado, numa dependência de uma sinagoga do Cairo, descobriram-se fragmentos hebraicos recobrindo cerca de dois terços do texto grego. Os mais importantes são os manuscritos A e B, publicados em 1910 por S. Schechter. Fragmentos menores, da mesma procedência, foram também identificados a seguir. Outros fragmentos hebraicos mais ou menos importantes foram recuperados em Qumran e na fortaleza de Massadá (tomada pelos romanos em 73), confirmando a autenticidade substancial dos manuscritos do Cairo.

Reconheceram-se dois estágios do texto no hebraico reencontrado: o mais antigo é o que serviu de base à versão grega feita no Egito, cerca de 130 a.C. pelo neto de Ben Sirac (Grego I), ao passo que uma edição revista no sentido das idéias farisaicas (entre 50 e 150 d.C.) foi utilizada para uma revisão do texto grego entre 130 e 215 de nossa era (Grego II), revisão atestada numa série de manuscritos gregos. A versão siríaca também parece remontar a esta revisão do hebraico.

Nossa tradução seguiu o texto grego conforme a edição crítica de J. Ziegler (Göttingen 1965), referindo em notas os acréscimos de Grego II, importantes por causa de sua antiguidade. O grego é uma testemunha privilegiada do original hebraico e é em grego que o Sirácida foi acolhido pela tradição judaica e a tradição cristã. Sob este ponto de vista, os progressos teológicos que oferece em relação ao hebraico (quando a comparação é possível) documentam a evolução das idéias religiosas em Israel. Certas adaptações a um contexto teológico, histórico, geográfico e social diferente explicam também variantes cujos motivos as notas procurarão explicitar. Essas adaptações resultam da tendência midráshica que consiste essencialmente em atualizar a Palavra de Deus para as necessidades de uma comunidade viva, evitando que a Escritura se torne uma múmia.

Os fragmentos hebraicos foram utilizados cada vez que permitiam interpretar as leituras obscuras do grego, e citamos em nota as leituras variantes relevantes por seu conteúdo religioso; da mesma forma procedemos com as variantes do siríaco e da versão latina. Propor uma versão a partir do hebraico, cujas testemunhas são de valor variável e, além disso, recobrem apenas uma parte do original, resultaria em oferecer um texto compósito, cujas opções seriam injustificáveis sem uma abundância de notas críticas. Notemos enfim que todos os manuscritos gregos comportam uma transposição de dois cadernos e remontam portanto a um mesmo arquétipo: a seção 33,16b-36,10a encontra-se após 30,24 e a seção 30,25-33,16a vem depois de 36,10a. Aqui, com os editores modernos do grego, restabelece-se a ordem primitiva conservada pelo siríaco e o latim e confirmada pelo hebraico. 



A mariologia herética dos jovens reformados

Huguenotes, tupinambás 
e a mariologia herética dos jovens reformados
Jorge Pinheiro, PhD

Um dos elementos da doutrina reformada em construção, que favoreceu a aceitação do cunhadismo por parte dos huguenotes, e sua conseqüente entrada na estrutura social tupinambá, foram as novas leituras da mariologia e a possibilidade, a partir daí, de compreensão de novas leituras para as estruturas de parentesco.

É muito possível que o texto básico para essa compreensão do papel de Maria, como desestabilizador da estrutura patriarcal monogâmica católica, estivesse no evangelho de Lucas 1.4243, quando este afirma: “Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?”.

É bom lembrar que outra afirmação, esta presente num dos mais importantes documentos da igreja cristã dizia que Maria era théotokos. Assim, o concílio de Calcedônia, 415, apresentou a moça de Belém, como théotokos. Nessa afirmação há uma desconstrução não intencional da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significava Maria mãe de Deus nesta revisão da questão de parentesco, para os jovens huguenotes? 

Embora a dogmática católica ao falar das duas naturezas do Filho de Deus e de Maria se referisse ao divino e ao humano, esses dois processos miticamente falam de duas gerações. Maria é filha gerada pelo pai, num primeiro momento, mas o pai é gerado pela filha numa universalidade posterior. É por isso que miticamente Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz Deus e, portanto, substituta do pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que ao venerar a imagem não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz Deus. Esse pensamento percorreu um caminho que levou a idéia de segunda Eva. Provavelmente a maior revolução em toda a história da linguagem acerca de Maria. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? Há três questões teológicas importantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz Deus; a segunda, a percepção da necessidade de identificar uma mulher como a geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo Deus criado e a mulher geradora da nova criação, o gênero feminino e não o gênero masculino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma delas.

Em primeiro lugar, nessa leitura a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Belém, ela se tornou mãe de seu pai e, por extensão, mãe de todos os pais. 

Em segundo lugar, ao acrescentar o anúncio do anjo Gabriel de que o que moça de Belém haveria de gerar seria fruto do “ruach hakadosh”, do vento santo, se dava a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade: o que dava à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Então, o pai não é mais pai, nem o filho é filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal descontrução não pára aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito/a permaneceu presente na cultura ocidental católica e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não ha exceção. Mas em théotokos houve a ruptura.

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos perguntou à multidão quem ela desejava que fosse solto: Jesus ou Barrabás? Ora, Jesus significa o que é eterno liberta, e Barrabás, filho do pai. Assim, naquele momento demoníaco, a multidão pediu a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco patrilinear, do filho do pai. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirmou a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural e disse ao amigo João que Maria era sua mãe, e à Maria que João era seu filho. 

Assim, a Reforma que dava seus primeiros passos estava a construir leituras de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. E foi através do cunhadismo que os jovens huguenotes encontraram uma ponte de diálogo com essa mariologia herética e revolucionária, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo gozo, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também em posição, à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.

Mas há uma quarta questão, que extrapolava o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e apontava para o novo mundo a construir: a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Belém, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, poderia transformar a face do Novo Mundo. Mãe de seu pai, a mulher virgem gerará seu pai. E assim construiremos um novo parentesco. 

Quando falamos de matrifocalidade devemos esclarecer que não se trata de um subsistema do matriarcado, mas um sistema dependente do patriarcado, que por sua vez o reproduz. O patriarcado deve ser compreendido, então, como estrutura baseada na distinção dos gêneros, masculino/ feminino, apresentados como complementares, mas vividos em assimetria de poder e, em muitos casos, concordes na proibição da sexualidade homoerótica, embora esse não fosse o caso entre os tupinambás. O matriarcado propriamente dito não existe e usar tal expressão leva a desviar a atenção do patriarcado, criando falsa simetria. Assim esclarecido, aqui não falamos de matriarcado, mas trazemos da antropologia o conceito “matrifocalidade” que nos fornece sentidos para compreender teologicamente os laços de parentesco do cunhadismo tupinambá. 

Nessa construção teológica da matrifocalidade dos primeiros huguenotes, fenômeno também vivido pelos anabatistas na Alemanha, tomamos como modelo o papel da mulher na família mediterrânea, onde o espaço físico da casa era entendido como categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exercia um eixo estruturador, que produzia e reproduzia modos de ser do modelo familiar. 

A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não estava associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotavam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que muitos vêem como representantes de um tipo de matriarcado. Mas, como dissemos, referir-se à figura de mulheres fortes utilizando-se a expressão matriarcal/ matriarcado é um erro. O termo correto é matrifocalidade, que deve ser entendido, em seu sentido expandido, como gestão doméstica e/ou familiar por mulheres, que lhes confere um espaço de relativo poder. E no modelo matrifocal mediterrâneo, que interessa desde uma perspectiva teológica, as mulheres podiam ou não ser chefes da casa, assim como podiam ou não ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitavam a chefia feminina. Assim, é importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representava ausência do homem na família ou comunidade, e nem implicava em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 

Teologicamente, a matrifocalidade é compreendida aqui como construção e expansão da imagem de Maria, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, que é fruto do prestigio adquirido nas comunidades, já que recebe o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: no caso gerar o pai, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. 

Aqueles que procuram nas Escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moca de Belém surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Fora os relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos um e dois, só se menciona Maria em passagens de João dois e dezenove. Afora isso, há uma alusão a que o pai enviou ao mundo o seu filho, “nascido de mulher”, na carta de Paulo aos gálatas no capítulo 4.4. Da mesma maneira, os estudos das Escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu nenhuma importância à memória da moça de Belém: não se referiu a ela como virgem mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do espírito. Isso, no entanto, não diminuiu a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.

A raridade dos textos neotestamentários cristãos sobre a virgem mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos primeiros dezesseis séculos de história do cristianismo. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, o cristianismo foi desenvolvendo um imaginário matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-lo com culturas e sensibilidades dos povos. Assim, é possível de quatro aspectos na construção da matrifocalidade cristã.

O caráter cultural
  
A matrifocalidade cristã lembra afluentes que deságuam num rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem mãe, com a qual a comunidade cristã se identifica através do próprio canto da moça de Belém, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.

O cumprimento desse salmo de louvor veio aos poucos, dando seu salto formal com os primeiros concílios da igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao pai, pela graça dada à moça de Belém, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero que dedicou a ela seu Magnificat. O que a Reforma dos huguenotes não aceitava é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal. Ou seja, que Maria fosse colocada no mesmo nível do Cristo. 

O apóstolo Paulo afirmou em sua primeira carta a Timóteo (2.5), que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas o imaginário matrifocal teve tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da trindade fez água e o pai perdeu importância de forma crescente na tradição popular medieval.

Esta situação teve raízes históricas. Uma delas se deveu ao analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava cristão.

Assim, por exemplo, quando o cristianismo entrou no norte da Europa encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síntese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Essas percepções se deram cada vez que o cristianismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé cristã. 

Na Guanabara invadida pelos franceses, a matrifocalidade mais do que se expressar como culto religioso se traduziu como cunhadismo. Mas, matrifocalidade cristã e cunhadismo se apresentaram enquanto fenômeno correlacional para os huguenotes, porque afirmou novas leituras da fé a partir da estrutura de parentesco dos tupinambás. 

A moça no desamparo de seu gênero

O testamento cristão, e isso estava claro para os huguenotes (conforme A confissão de fé da Guanabara), deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo à moça de Belém e depois sua visita à prima Isabel (1.36+), estava a pensar em alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo três e o relato de 2Samuel capítulo seis. Se for assim, a idéia da matrifocalidade é clara, aquela moça simbolizava a figura da comunidade de fé. É símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova. Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos fiéis da nova aliança. Ela é em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo, conforme 2Reis 19.21; Isaías 52; Jeremias 31.4+ e Sofonias 3.12+. A matrifocalidade religiosa está sintetizada nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de Deus. É uma parábola da humanidade, que bem poderia traduzir a realidade tupinambá naquele momento de encontro com jovens reformados.

É interessante ver como a matrifocalidade cristã fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas Escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade cristã nascente ao dizer que pareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Esta imagem traduz a mitologia matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava o martírio e as perseguições. E não foi por acaso, então, que o cristianismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do Messias a figura de Maria mãe.

Mas ao discutir novas possibilidades para a estrutura de parentesco patriarcal como conseqüência da expansão da matrifocalidade, dogmas que, por centenas de anos repousaram no inconsciente cristão, trouxeram percepções importantes: ela é mãe do pai, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do pai, que é filho, e vai morrer, ela se faz símbolo perfeito da matrifocalidade. Assim, a matrifocalidade cristã significava para os huguenotes uma reforma radical: a moça de Belém era figura de um caminho novo, de uma nova estrutura de parentesco, matrifocal e não patriarcal nuclear.

O eixo fundamental das Escrituras hebraico-judaicas e cristãs para os católicos era a revelação de que o pai tinha um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebeu também os nomes de aliança ou reino de Deus supunha uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/ mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de Deus no catolicismo medieval era de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai era necessário um intermediário. Essa constatação, num primeiro momento inconsciente, mas que se conscientiza na construção católica, leva com a Reforma ao surgimento e à expansão de uma teologia da matrifocalidade. 

Para ouvir a palavra do pai, os católicos na Idade Média precisavam do “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o pai. Quando os israelitas acolheram e reverenciaram a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o pai presente através deles.

A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento paterno. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis civilizadores deixam de estar no passado e passam a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas novo parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como memória em todos os demais.


Essa matrifocalidade, presente no imaginário dos huguenotes em seus relacionamentos com as cunhãs, possibilitou a construção de pontes entre a cultura tupinambá, hegemônica, e o grupo de reformados, com uma tradição a construir, mas movidos pela utopia da França Antártica. Essa compreensão nos remete ao diálogo político-religioso de tupinambás e huguenotes, onde ao nível da teologia, o eixo mais importante aponta para uma teologia matrifocal, onde a universalidade da Reforma incipiente repousa em colo feminino, deslocando o pai. E porque uma virgem deu à luz Deus e é geradora da nova criação, o gênero feminino e não o masculino passa a ocupar a centralidade da estrutura de parentesco dessa nova criação.  Assim, a cunhã vai introduzir com gozo o jovem huguenote na cultura tupinambá.