mercredi 28 juin 2017

A virtualidade evangélica

A virtualidade das religiosidades evangélicas e seus desafios

Uma conversa a partir de Marramao e Taylor
Jorge Pinheiro[1]

Resumo

Nesta conversa Jorge Pinheiro, a partir de Marramao e Taylor, apresenta a virtualidade enquanto pensamento evangélico. E analisa como a imagologia norteia ações políticas e interferências na sociedade civil. Confronta assim a laicidade e pensa uma República evangélica para o país. 

Abstract

In this conversation Jorge Pinheiro, from Marramao and Taylor, presents the virtuality as an evangelical thought. And from there it analyzes how the imagology guides political actions and interferences in the civil society. It confronts secularity and thinks an evangelical republic for the country.


"O PT flertou com os evangélicos ao longo dos mandatos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente afastada Dilma Rousseff. Não fosse o engajamento de pastores e bispos das igrejas pentecostais, provavelmente o partido não teria ganhado quatro eleições seguidas. E para garantir esse apoio, os petistas abriram mão de compromissos históricos, principalmente aqueles relacionados à luta pelos direitos das minorias (mulheres, homossexuais, negros e índios), concentrando esforços na melhoria das condições de vida da população pobre, também público-alvo dos pentecostais. De qualquer maneira, os governos Lula e Dilma, ainda que reféns dos evangélicos, mantiveram uma agenda propositiva no campo social". El País Brasil, on-line, Opinião, Temer inaugura a república evangélica, 8.6.2016.

Para início de conversa

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a academia encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se no século dezenove e primeiras décadas do século vinte É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos.

Conhecemos as dificuldades e limitações de Marx para entender o fenômeno religioso como criador e fundante de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora tenha caminhado no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formatou leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

Depois que o marxismo congelado pela burocracia estalinista entrou em crise, fato notório nas universidades europeias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reconhecido, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam como típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

Assim, o que poderia fazer a academia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E a explosão d a religiosidade evangélica passou a ser analisada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

Mas, com a débâcle daquele marxismo que desabou com o muro de Berlim, nos anos 1980, e com o boom neoliberal que varreu o mundo, a academia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a academia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

Por que lá podemos utilizar o conceito de conversão[2] trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Mas, nessa conversa queremos utilizar como referencial dois escritos, um de Giacomo Marramao, Potere e secolarizzazione, e outro de Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture. Desejamos, dessa maneira, conversar sobre a religiosidade evangélica a partir da virtualidade dos seus fundamentos, e do tempo e presença deste pensamento hoje no Brasil.

Caminhos da religiosidade

"No entanto, não bastasse a vexaminosa performance do presidente interino Michel Temer – dois ministros demitidos em apenas 19 dias, por envolvimento com denúncias de corrupção – é em seu governo que os religiosos vêm conquistando espaço inédito na história da República. Segundo registro na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Evangélica – que inclui católicos, protestantes e pentecostais - conta hoje com a participação de 199 membros (39% do total da Casa) e quatro senadores. O primeiro compromisso oficial de Michel Temer, como presidente interino, foi receber alguns membros da bancada evangélica, que o cumprimentaram e oraram por ele". El País Brasil, on-line, texto citado.

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e a crescente força da religiosidade evangélica é se, de fato, esta religiosidade outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, expoentes da teologia protestante como Paul Tillich, consideram que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade tende a se expressar de diferentes formas de religiosidades. E essas religiosidades nos grandes centros brasileiros ocupam um espaço privilegiado. Ora, se a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, na urbanidade brasileira essa busca, por várias razões, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo[3]. Basta ver que no Brasil urbano a comunidade evangélica cresceu 61,45% em dez anos (IBGE, 2012). Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade foi catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.[4]

A espiritualidade traduzida nas religiosidades das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na cultura, na educação, na ética e na política. Por isso, cada vez mais expoentes das comunidades se pronunciam publicamente sobre questões que antes pertenciam estritamente a esfera civil não-religiosa. 

De forma geral, numa leitura antropológica judaico-cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade tende a ser traduzida na religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã invisível, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes e evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano a religiosidade evangélica é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante a redemocratização brasileira, nos anos pós-ditadura militar, evangélicos e suas comunidades se dividiram enquanto forças reformistas de apoio aos governos dos Partidos dos Trabalhadores e forças reativas que ligaram ao governo de Michel Temer. Assim, as religiosidades evangélicas são desagregadoras quando se ligam à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agregam quando defendem a vida como valor incondicional humano. Com isso, constatamos que as religiosidades evangélicas podem ser uma coisa ou outra ou mesmo, enquanto comunidades, dialeticamente ambas. Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos. O certo é que evangélicos, em nome dos fundamentos e virtualidades das doutrinas de suas comunidades, confrontam a laicidade no Brasil.

No Brasil de hoje podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para cristãos e não-cristãos, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao[5] lançou Potere e secolarizzazione[6], em que trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas".[7] Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito igreja versus secularidade, já que a igreja assume um caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não uma interseccionalidade de valores? Vemos, então, que a religiosidade evangélica busca institucionalidade e a secularidade cria características religiosas.

É de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na alta modernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que se instaura entre secularização e aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar o pensamento político da religiosidade evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.”[8]

E para Carneiro, “no Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.”[9]

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame dos textos sagrados cristãos e o sacerdócio universal dos fiéis. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia reformada como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.

Assim, a academia quando se debruçou sobre o fundamentalismo do movimento evangélico, viu principalmente o seu lado integrista. É certo que a religiosidade evangélica é fundamentalista. Mas Mendonça explica o que isso significa:

“Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente".[10]

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para a religiosidade evangélica brasileira ou setores dela não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos. Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações. O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias. Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.

E a religiosidade evangélica montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe deem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são um fenômeno urbano. E tal processo nesta alta modernidade não ter definições precisas e sólidas, as religiosidades evangélicas urbanas necessitam de um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descontentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que em 1970 a população protestante / evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis, e que em 1980 passou a 7,9 milhões. Constatou que na década de 90, a velocidade de crescimento das comunidades protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Assim, em 1991 chegou a 13,7 milhões; em 2000 a 26 milhões. E em 2010, a 42,3 milhões, ou seja 22,2% dos brasileiros. Atualmente, o movimento como um todo caminha para ser um quarto da população.

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.

Como vimos, uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra a religiosidade evangélica em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. E é expressão profunda de sua virtualidade.

A virtualidade como razão de ser

"Para o Ministério do Trabalho, o presidente interino convidou o deputado federal pelo Rio Grande do Sul, Ronaldo Nogueira. Nogueira é pastor da Assembleia de Deus, igreja que possui a maior bancada entre os evangélicos - 19 membros da Câmara dos Deputados estão ligados a ela, além do senador Gladson Camelli (AC), que, embora não pertença aos quadros, elegeu-se com seu apoio. Os membros mais destacados da Assembleia de Deus são os deputados Marco Feliciano (PSC-SP), que em sua rápida passagem pela presidência da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, demonstrou toda a sua homofobia; e as deputadas Cantora Lauriete (PSC-ES), famosa por seu recente casamento com o também evangélico senador Magno Malta (PR-ES) – relação vista com maus olhos pelos seus pares já que ambos são divorciados - e Fátima Pelaes (PMDB-AP).



Fátima Pelaes foi nomeada por Michel Temer secretária de Políticas para as Mulheres, órgão subordinado ao Ministério da Justiça. Ela é investigada pela Justiça Federal por denúncias de envolvimento em um esquema que desviou 4 milhões de reais de verbas do Ministério do Turismo para capacitação de profissionais em seu estado. Além disso, ocupando uma pasta que tem como objetivo implementar políticas destinadas à mulher, Fátima já disse que, por conta de suas convicções religiosas, é contra o aborto (uma reivindicação antiga dos movimentos sociais), mesmo em casos de estupro, direito esse que já é garantido pela legislação." El País Brasil, on line, texto citado.

No protestantismo clássico, os teólogos magisteriais controlaram suas produções a partir de estruturas e procedimentos ordenados. Isso é tudo o que podemos fazer em um mundo complexo? Se for, a institucionalidade das confissões judaico-cristãs estão destinadas a seguir o caminho do Tyrannosaurus rex. A tentativa de estabilizar o sistema leva a torná-lo incapaz de interagir com o mundo e possibilitar a criação de alternativas futuras. Os intérpretes modernos enfatizaram que as culturas e os valores compartilhados são essenciais para fazer a leitura da religiosidade judaico-cristã. Em condições dinâmicas, onde fé e linguagem religiosas são formados por múltiplas e variadas possibilidades, onde hermenêuticas monolíticas falharão na geração da criatividade religiosa necessária para dotar as confissões de compreensões adequadas. Por isso, as diversidades de opiniões e abordagens são importantes. 

O pensamento único, que não comporta diferentes visões, pode ter sido um dos fatores cruciais para a crise de parte das confissões judaico-cristãs no mundo moderno e, em especial, nas últimas décadas do século vinte. Os hermeneutas modernos acreditaram que o sucesso da fé e linguagem religiosas poderia repousar exclusivamente na manutenção do equilíbrio interno da origem fundante, mas se isso fosse possível, a própria fundação teria deixado de apresentar novidade e a liberdade da religiosidade no século vinte deveria ter sido reduzida à escolha da adaptação certa ou errada.

Mas no mundo da complexidade hermenêutica os riscos são muito maiores. Primeiro porque equilíbrio exclusivo e permanente da internalidade religiosa significa morte, exatamente o contrário do que pensava a velha hermenêutica. Segundo porque em condições não-estáveis o ambiente humano também se fez presente na religiosidade, tanto quanto ele no ambiente humano. As implicações disto significam que as compreensões hermenêuticas não podem culpar o mundo por suas falhas: elas devem ser vertiginosamente livres para criar o próprio futuro religioso.

Há um verso de Nietzsche que pode nos servir de guia para uma hermenêutica da religiosidade evangélica na alta-modernidade:

“Agora celebramos, seguros da vitória comum, a festa das festas: O amigo Zaratustra chegou, o hóspede dos hóspedes! Agora o mundo ri, rasgou-se a horrível cortina, É hora do casamento entre a Luz e as Trevas...”[11]

Nietzsche pensava a ausência de horizontes. Em Além do Bem e do Mal, ele pensa contra a modernidade: faz um libelo contra os valores da modernidade, como o sentido histórico, a objetividade científica e, logicamente, a fé numa razão autônoma. Assim, é o caso de perguntar: é possível continuar existindo algum contato com a chamada realidade hermenêutica, quando a virtualidade, por exemplo, fica indistinguível e até mesmo mais autêntica que o original, quando podemos criar mundos sintéticos que são mais reais que o real, quando a tecnologia glosa a natureza? Quando a hermenêutica livre das dogmáticas confessionais faz caminhos como o filme Matrix?

Mark C. Taylor, hermeneuta estadunidense, percorre sob outras condições questionamentos idênticos aos levantados por Nietzsche. Ao trabalhar a questão da virtualidade na comunidade religiosa da alta-modernidade, utiliza um conceito que já vinha sendo usado na crítica literária, a idéia de imagologia. Antes, na teoria literária, e agora na hermenêutica de Taylor, a identidade do texto não pode ser encarada como uma forma de ser plena e apriorística, mas como realidade dinâmica ou relacional, onde se cruzam questões de identidade textual e comunitária, o que também se dá na virtualidade, que acaba sempre por revelar uma dimensão estrangeira, que é manifestação de um outro. Na medida em que há constante busca identitária, o confronto com este outro supõe sempre uma comparação, explícita ou implícita, e se integra naquilo que na terminologia de Taylor será a imagologia, estudo das representações do outro, que também pode ser entendido como virtualidade.

Nos últimos anos essa questão tem sido tema da simbologia da revelação dos textos sagrados, como da própria teologia. As mídias têm demonstrado a força das realidades artificiais. Essa questão, realidade e imagem na comunidade imagológica, já tinha sido analisada por psicólogos da escola piagetiana. Segundo eles, é difícil ensinar a pensar de modo lógico a um menino que está sob o bombardeio de imagens distantes da lógica, como acontece nos programas infantis. E onde até mesmo as entrevistas ao vivo fazem parte da criação de algum gênio da publicidade. A moda e os shows de rock, por exemplo, fazem parte desta realidade onde o que é apresentado pelo entrevistador não tem nada a ver com a realidade da audiência ou com o próprio intérprete/produto, já que suas imagens sofrem uma transformação mágica para poder ser popular, ou pelo menos este é o objetivo.

Para Taylor, a comunidade imagológica leva à ansiedade que circula acima e debaixo do chão, que tem crescido e emaranhou-se num complexo tecnológico e financeiro. 

“Com a informação e o dinheiro que correm ao redor do mundo à velocidade da luz, nenhum de nós está seguro, porque qualquer um está no controle. As redes de terroristas assombram a estrutura e através da Web atuam nas comunicações e sistemas financeiros globais. Eles foram mais efetivos utilizando as tecnologias contra nós do que nós em nossa capacidade de usar essas tecnologias contra eles. Nós não seremos capazes de enfrentar redes de terroristas até que melhoremos a compreensão da lógica e operação de nossas próprias redes. Nestas teias emaranhadas e nas redes, está o limite entre nós e eles, dentro e fora, para quem nada é fixo e imóvel, mas restos fluidos e móveis”.[12]

E essa é uma discussão sobre o sentido da hermenêutica, porque vivemos um momento de complexidade sem precedentes, onde as coisas mudam mais rapidamente que nossa habilidade de compreender. Por isso devemos resistir à tentação de procurar respostas simples, pois o que antes era força interpretativa da hermenêutica moderna agora é fraqueza que nos deixa abandonados à mercê da sorte.[13] Diante disso, será possível distinguir entre realidade e virtualidade na comunidade imagológica evangélica, se a tecnologia constrói a nova realidade? Bem, vivemos um mundo colocado em processo de equilíbrio instável, e para entendê-lo devemos ir às margens do sistema. 

A complexidade hermenêutica, na alta modernidade, é vista como marginal e fenômeno emergente. Não está fixa, porque a complexidade é móvel, momentânea e o momento marginal de seu aparecimento é inevitavelmente complexo. Longe de ser um estado, esse momento emergente da hermenêutica reconstitui o fluxo de tempo, enquanto impulso que mantém a religiosidade em movimento. É significante que a palavra momento derive da idéia de impulso em latim, mostrando movimento como sendo também impulso. Embora frequentemente representasse um ponto simples, o momento hermenêutico é inerentemente complexo. Seus limites não podem ser firmemente estabelecidos, porque sempre estão trocando de modos, que dão fluidez ao momento. Na hermenêutica da alta modernidade vivemos o domínio do intermediário, que a teoria da complexidade procura entender.[14]

A dinâmica do caos e da complexidade da hermenêutica parte de certas características que diferem em importância e modos. Um sistema complexo é um sistema único composto de partes compatíveis, que interagem entre si e que contribuem para sua função básica, sendo que a remoção de uma das partes faria com que o sistema deixasse de funcionar de forma eficiente. Um sistema de tal complexidade não pode ser produzido diretamente, isto é, pelo melhoramento contínuo da função inicial, que continua a atuar através do mesmo mecanismo, mediante modificações leves, sucessivas, de um sistema precursor. O exemplo mais popular de complexidade irredutível foi apresentado por Michael Behe (A caixa preta de Darwin): é a ratoeira. Ela tem uma função simples, pegar ratos, e possui várias partes: uma plataforma, uma trava, um martelo, uma mola e uma barra de retenção. Se qualquer uma dessas partes for removida, o aparelho não funciona. Portanto, é irredutivelmente complexo. Um automóvel, em contrapartida, pode funcionar com os faróis queimados, sem as portas, sem pára-choques, etc, embora chegará um momento em que haverá um mínimo de peças essenciais para seu funcionamento. 

Originariamente, a teoria do caos foi desenvolvida como um corretivo para os sistemas fechados e lineares de físicas de Newton, pois diante da ausência de ordem, caos é uma condição na qual a ordem não pode ser averiguada por causa da insuficiência de informação. Enquanto a física de Newton imagina um mundo abstrato governado por leis definidas, que determinavam completamente as coisas reais, a globalidade não é transparente porque não temos a informação adequada e necessária para estabelecer leis, assim toda operação é sempre inacessível. A partir dessa compreensão da teoria do caos e da complexidade, duas razões hermenêuticas podem ser destacadas na abordagem das religiosidades evangélicas.

Primeiro que os sistemas finitos, como é o caso dessas religiosidades, não estão fechados, mas são sistemas abertos. E segundo que os sistemas ou estruturas das religiosidades evangélicas envolvem relações que não podem ser entendidas apenas em termos de modelos lineares de causalidade. Nos sistemas religiosos evangélicos recorrentes é impossível medir as condições iniciais com precisão para determinar as relações causais num período limitado de tempo.[15] Então, a imprevisibilidade é inevitável. Ao contrário dos sistemas lineares, nos quais causas e efeitos são proporcionais, nos sistemas das religiosidades evangélicas recorrentes, a avaliação é complexa, porque esses sistemas se auto-alimentam da vida de seus fiéis e na recorrência geram causas que podem ter efeitos desproporcionados. Em contraste com a teoria do caos, a teoria da complexidade está menos interessada em estabelecer a fuga ou o caos determinado, pois oscila entre ordem e caos. Assim, o momento de complexidade é o ponto no qual ecossistemas organizados emergem para criar novos padrões de coerência e estruturas de relação.

Embora tenha se desenvolvido fora das investigações hermenêuticas das religiosidades evangélicas, a percepção de teoria da complexidade pode ser usada para iluminar as questões da interpretação desta religiosidade hoje no Brasil. Aliás, poderíamos até nos perguntar o que há de comum entre as moléculas que se apressam em auto-reproduzir metabolismos, as células que coordenam esses comportamentos para formar organismos multicelulares e os sistemas das religiosidades evangélicas? E a resposta, complexa, é óbvia: a possibilidade da vida, que faz a travessia de um regime equilibrado de ordem e caos, é o que há de comum entre esses processos. Donde a hipótese hermenêutica maior é esta: a vida existe enquanto extremidade do caos. Partindo da metáfora da física, a vida existe ao lado de um tipo de transição de fase. A água existe em três estados, gelo sólido, água líquida e vapor gasoso. Começamos a ver que idéias semelhantes podem ser aplicadas aos sistemas hermenêuticos complexos. Sabemos que as redes de genomas que controlam o desenvolvimento do zigoto podem existir em três regimes: ordenado congelado, caótico gasoso e líquido aquoso, localizados na região entre ordem e caos. É uma hipótese impressionante que sistemas de genomas ordenem regimes de transição entre uma ordem e o caos. Em tais sistemas, o regime ordenado congelado também coordena as sucessões complexas das atividades genéticas necessárias. Mas, nessas redes, também o regime gasoso caótico, perto da extremidade de caos, pode coordenar atividades complexas e evoluir. A partir das redes, a análise pode ser estendida às comunidades e às dimensões culturais, ou seja, por extensão às leituras interpretativas. Assim, equilibrado entre uma pequena ou grande ordem, o momento de complexidade da hermenêutica na alta modernidade é o meio no qual emerge a cultura de rede.[16]

Taylor projeta a discussão da teoria da complexidade para a hermenêutica ao afirmar que a noção de que as fundações tenham desaparecido é ameaçadora para muitas pessoas, mas que esse assunto é um tema recorrente nas ciências da religião. Pensadores importantes na história de filosofia ocidental, como Nietzsche, colocaram tal discussão na ordem do dia e influenciaram pensadores da alta modernidade como Derrida. Uma das coisas que golpeia o pensamento moderno é a ênfase desses filósofos na importância de entender que a idéia de fim de fundamentos é uma metáfora, assim como a teoria da complexidade também é uma metáfora. Ou como afirma Derrida, a metáfora é determinada pela filosofia como perda provisória de sentido, economia sem prejuízo irreparável de propriedade, desvio inevitável, mas história com vista e no horizonte da reapropriação circular do sentido.[17] 

É por isso que a avaliação filosófica foi sempre ambígua: a metáfora é estranha ao olhar da intuição, do conceito e da consciência. E por isso Derrida dirá que a metafísica é a superação da metáfora, donde ao discutir a hermenêutica devemos levar em conta que há rastros da metafísica nas palavras que usamos: entender é um exemplo disso. Entender algo é não agarrar alguma coisa superficialmente.

O ato cognitivo envolve apreensão dentro de condições de superfície e relativos à profundidade. A distinção entre informação e entendimento é muito complexa. No domínio onde as pessoas pensam em informação devemos falar de sobrecarga de informação. Somos bombardeados com informação de todos os tipos. Entender é um modo de organizar e estruturar a informação. Na revolução da informação, dispositivos filtrantes estão começando a emergir. É crucial entender o poder das hermenêuticas que criam estas grades culturais. Este é um dos temas de Imagologies.[18] 

E essas grades culturais, por sua vez, desenvolvem-se e mudam para prover vigamentos interpretativos que criam possibilidades de construção da compreensão de informação na qual estamos imersos. Temos, então, dois mundos, um é o mundo tradicional, o mundo da religiosidade protestante histórica tal como o recebemos. É um mundo platônico, no qual o assunto percebido é colocado num nível agradável de fundação. Este mundo está presente, mas também está acima, é a transcendência. Esse modelo se torna um modo de saber. Quando começamos a conceber algo, concebemos figurando em termos de modelo. Através do contraste descrevemos um mundo no qual um modelo diferente predomina. Temos interações de planos, modelos e processos.

As religiosidades evangélicas, assim entendidas, podem ser chamadas de locais de consumo, e apontam para a utopia de uma República evangélica. Mas uma estrutura não é aquilo que alguém busca, pois as religiosidades enfatizam movimento e troca, troca de informação, etc. Os modelos hermenêuticos de que estamos falamos não são apenas conceituais, pois o conhecimento simbólico das religiosidades evangélicas emerge de uma interação entre entendimento e as formas de fé, que são filtros através dos quais foram processadas a informação. Se alguém pensa tais categorias como um vigamento historicamente emergente de interpretação, em constante processo de formação, deformação e reforma, estamos diante de um salto como o das tecnologias de produção e reprodução em uma comunidade determinada. Começamos então a ver os modos em que processamos a experiência, onde o conhecimento é constituído em fluxo constante. Não é apenas uma questão de como pensamos, é uma questão de como vemos, ouvimos e tememos. E aí entram cultura e política, e questões como aborto, feminismo e movimentos gays, entre outros. E neste ver, ouvir e temer, as mídias abrem uma percepção nova e capacidades de apercebimento. O ponto em que se faz a troca também é uma questão importante. Uma das coisas que o estruturalismo nos ensinou é que em lugar de ser um local de origem, a religiosidade deve ser entendida como constituída dentro e pelas redes de troca na qual está imbricada. É um tipo complexo de reversão. Pensando nessas estruturas como criadas por um tema original, temos que pensar no assunto como uma função das redes estruturais nas quais está situada. Essas redes estruturais levam a todos os tipos de formas. São culturais, políticas, sociais. Entender as religiosidades evangélicas como constituídas por redes de troca é muito importante.

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo, o que implica em ressignificar o estudo da literatura sagrada, a liturgia nas comunidades e até mesmo os currículos dos seminários de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta na alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a comunidade local contribua para a espiritualidade mundial. O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que a religiosidade evangélica local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os as religiosidades evangélicas urbanas pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de religiosidade urbana viável. 

O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas. A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformidade. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uniformidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização do evangelicalismo envolve simultaneamente globalidade e localidade.

É por isso que, quando falamos em religiosidade evangélica urbana, apontamos para a comunicação entre grupos, comunidades locais e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos. Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferença autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar religiosidade evangélica e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.

E deixamos a conversa

"Para líder da bancada governista na Câmara, Temer designou o deputado federal André Moura, que, embora católico, está filiado ao PSC, partido de maioria evangélica, presidido pelo pastor Everaldo Pereira, importante membro da Assembleia de Deus, e que abriga o pré-candidato à Presidência da República, o fascista deputado federal Jair Bolsonaro (RJ). Moura é autor da Proposta de Emenda Constitucional que diminui a idade penal de 18 para 16 anos – aprovada pela Câmara e em análise no Senado – e da proposta que criminaliza quem “induzir ou instigar a gestante” a praticar aborto e dificulta o aborto mesmo em casos de estupro. Moura é homem de total confiança do deputado afastado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara, réu no Supremo Tribunal Federal (STF) em processo por crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O líder do governo na Câmara também é réu em três ações penais no STF sob acusação de desvio de dinheiro público e é investigado em três outros inquéritos por suposta participação em uma tentativa de homicídio e no esquema de corrupção da Petrobras". El País Brasil, on-line, texto citado.

Michael Löwy trabalha o desafio do pensamento das religiosidades evangélicas a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.”[19]

Podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Temos que ver, a partir de Marramao, que a realidade se expressa de forma imagológica na política das religiosidades evangélicas, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”.[20] Assim, a bancada evangélica presente no Congresso, ou os ministros de Estado do governo Temer expressem produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global. Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, do fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls.[21] Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nosso politeísmo de valores. Globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade / identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

A síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa. Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Donde, o kairós, o tempo bom, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Ou seja, as religiosidades evangélicas por sua virtualidade colocam desafios culturais – éticos e políticos – à laicidade brasileira, isto porque o tempo privado deixou de ser humano e passou a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos que esmagam pessoas e comunidades.

E vale a pena lembrar ao deixar esta conversa que não estamos diante de uma teoria do colapso do protestantismo histórico, porém daquilo que ainda não foi examinado com suficiente atenção. Donde estamos desafiados à recolocação de diferentes e novas expressões teóricas. E o caráter desorientador que estudiosos e pesquisadores veem nas religiosidades evangélicas não devem se traduzir em demonização, mas buscar compreensões culturais e históricas que nos levem a uma atualização do pensar a religião no Brasil, reconhecendo que não estamos diante de nuvem passageira, mas de realidades que interagem profundamente com os problemas do estar brasileiro hoje.

Bibliografia

BARBOSA, Saulo, A secularização e seus problemas conceituais, webartigos.com. Acesso 03/10/2015.
CARNEIRO, Henrique, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015.
COWAN, Benjamin Arthur, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014.
DERRIDA, Jacques, Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1997.
LÖWY, Michael, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015.
MARRAMAO, Giacomo, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995.
MENDONÇA, Antonio Gouvêa. Protestantes, pentecostais & ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich, Além do Bem e do Mal, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
RAWLS, John, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999.
TAYLOR, Mark C., About Religion: Economies of Faith in Virtual Culture, University of Chicago Press, 1999.
________________, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture, Capítulo 1, “From Grid to Network”, University of Chicago, 2002.
________________, Awe and Anxiety, Los Angeles, Los Angeles Times, 28.09.2001.
TAYLOR, Mark C., e SAARINEN, Esa, Imagologies, Routledge, New York, 1994.
TILLICH, Paul, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.

Notas

[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). Atua na área das Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política. 
[2] É importante notar que o ensino faz parte da ação protestante. E essa ação de ensino potencializa a conversão, que é novo sentido de vida, e deve alcançar todas as pessoas. Assim, a arte do educador está em sua capacidade de transformar o literalismo dos símbolos cristãos em interpretações conceituais sem destruir seu poder simbólico. Mas, nem todos educadores acham que isso seja possível. Outros se recusam a ajudar os alunos no caminho dessa transformação, ou se recusam a transmitir esses símbolos aos jovens enquanto eles não tiverem condições de interpretá-los. Para Tillich, as duas atitudes estão erradas, pois se deixamos de transmitir os símbolos cristãos aos jovens, estes só experimentarão seu poder numa conversão tardia. Paul Tillich, Teologia da Cultura, São Paulo, Fonte Editorial, 2009, pp. 206-207. 
[3] Entendemos religiosidade evangélica ou evangelicalismo conforme situado por Mendonça, quando diz que “a vertente vitoriosa do protestantismo, seu lado conservador, cuja extensão vai do evangelicalismo ao fundamentalismo radical, com sua rigorosa racionalidade, negou-se a rever suas posições tradicionais em relação às mudanças e desafios das novas realidades. Mantendo firme seu perfil de Deus e a correspondente configuração do mundo, perdeu sua maneira de agir e, portanto, a ética dinâmica de que foi portadora. Sua ética ascética mundana cedeu lugar a uma ética monástica”. Antonio Gouvêa Mendonça, Protestantes, pentecostais & ecumênicos, o campo religioso e seus personagens, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2009, pp. 99. 
[4] O ensino e o evangelismo são funções dinâmicas das comunidades protestantes. Tillich explica que “a igreja tem a função de responder à questão implícita na existência humana, isto é, a questão a respeito do sentido da existência. O evangelismo é um dos meios que ela usa para esse fim. O princípio do evangelismo consiste em mostrar às pessoas fora da igreja que os símbolos que ela usa são respostas às questões implícitas em sua existência. Porque se trata de mensagem de salvação e porque significa cura, a mensagem é apropriada à nossa situação”. Paul Tillich, idem, op. cit., p. 91. 
[5] Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubro de 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização. 
[6] Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995. 
[7] In Saulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015. 
[8] Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014. 
[9] Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015. 
[10] Antonio Gouvêa Mendonça, op. cit., pp. 97-98. 
[11] Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 205. 
[12] Mark C. Taylor, Awe and Anxiety, Los Angeles, Los Angeles Times, 28.09.2001. 
[13] Mark C. Taylor, About Religion: Economies of Faith in Virtual Culture, University of Chicago Press, 1999. 
[14] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, Emerging Network Culture, Capítulo 1, “From Grid to Network”, University of Chicago, 2002, pp. 19-46. 
[15] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46. 
[16] Mark C. Taylor, The Moment of Complexity, op. cit., pp. 19-46. 
[17] Jacques Derrida, Margens da Filosofia, Campinas, Papirus, 1997, p.312. 
[18] Mark C. Taylor e Esa Saarinen, Imagologies, Routledge, New York, 1994. 
[19] Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015. 
[20] Salvador Giner in Marramao, op. cit., p. 13. 
[21] John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999.



Este meu novo livro 
foi lançado no início do mês de junho. 
Se está faltando na sua biblioteca, compre. 
É só entrar na Saraiva online, ou numa loja física, e comprar. 
Um forte abraço, JP.


samedi 24 juin 2017

O Versus socialista

2. O VERSUS SOCIALISTA


2.1. O Versus socialista como fonte


Segundo Bernardo Kucinski [1], o jornal Versus era um mensário de inspiração cultural-existencial, com uma proposta de ação através de uma cultura de resistência, mas foi reelaborado com uma linguagem mítica, adotando como referência toda a América Latina.

Marcou uma época, junto com outros jornais e revistas da imprensa alternativa, nos anos 70. Nele encontramos presente o pensamento latino-americano, as expressões das artes e da cultura enquanto resistência e a realidade política da época.

São informações diretas, que não passaram pelo crivo da censura, e por isso traduzem toda a riqueza do pensar cultural e da oposição da época.

Versus foi criado pelo jornalista gaúcho Marcos Faerman, que na época trabalhava no Jornal da Tarde. O primeiro número saiu em outubro de 1975. Tinha um original imaginário de esquerda, latino-americano, não doutrinário, e a cultura como forma de resistência ao arbítrio do regime militar.

...Versus nasceu de um delírio que eu tive em Cuiabá... eu havia ido ao Mato Grosso fazer uma matéria para o JT e conheci o Juruna... Cuiabá é o centro geodésico da América do Sul, o pôr-do-sol me encheu de emoção; me apaixonei pela idéia de um jornal que falasse de índios, da América Latina, que tivesse aquele pôr-do-sol. Sonhei com um jornal que contasse a história dos povos da América Latina... que fosse realidade e ficção, de grandes histórias, narradas como histórias, e havia o fascismo na América Latina, havia Chile, eu queria um jornal que contasse a história da resistência na América Latina... [2]

Com a linguagem da cultura, Versus viveu a política sob novas perspectivas. Passou, por exemplo, a editar um caderno dedicado à questão negra, Afro-Latino-América, que se tornou um espaço de aglutinação de militantes do movimento negro. Tornou-se também uma embaixada de exilados latino-americanos, que chegavam atraídos pela preocupação de resistência latino-americana do jornal. Além disso era grande o seu prestígio entre artistas e intelectuais. Nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque, MPB 4, Simone e o grupo Taracón participaram de um show de apoio ao jornal, com a presença de 15 mil pessoas, transmitido por sistemas de som para outras 20 mil no congresso alternativo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, no segundo semestre de 1977, em São Paulo.

Em janeiro de 1978, o jornalista Jorge Pinheiro, recém chegado de seu segundo exílio, depois de passar um ano na Europa observando e participando da organização dos partidos socialistas na Espanha e Portugal, entra para o jornal. Em março Versus assume o discurso político socialista.

Assim como os trotskistas (...) identificaram-se com Versus desde o início, Marcos Faerman havia se identificado com o trotskismo da Convergência Socialista, que remetia à figura de Trotsky, o revolucionário literato, culto, o grande escritor polemista e narrador, outro herói de seu universo mítico. [3]

Mais tarde, Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, vão explicar como se deu o surgimento do Versus socialista.

Nascia o ano de 1978 e, com ele, uma indagação para nossa equipe. Mais que isso, um desafio. Sabíamos que a hora não era apenas das denúncias, mas da discussão das perspectivas. Assim, abrimos a polêmica interna e externamente, e publicamos Chico Pinto, José Álvaro Moisés e Fernando Henrique Cardoso. Era a primeira edição do ano, e o tema da discussão era a questão dos novos partidos. Natural que voltássemos ao passado para rever criticamente o velho PTB e o fenômeno do populismo. E essa foi nossa conclusão:
Ao movimento popular de 1964 faltaram lideranças. Fragilmente organizado na base, recebendo grande parte de sua inspiração ideológica de cima. Eis que se vê abandonado, sem um esboço de reação de seus líderes. Entre as lideranças faltosas com os milhões de trabalhadores a quem tudo se prometera e que permaneceram na miséria, na doença...sobressai-se a figura esquálida do ex-presidente, exasperante nas suas pequenas astúcias, nas suas jogadas íntimas...
Versus mudou? Foi a pergunta que fizemos em fevereiro. A resposta foi positiva, e aí nasceram nossas principais transformações. Versus que inicialmente estava voltado quase completamente para o que chamávamos de cultura como forma de ação assumiu o discurso político. E passou não só a discutir profundamente a conjuntura nacional, como também a se identificar com as correntes que entendiam que a construção de uma democracia, no país, passava necessariamente pela legalização de todos os partidos operários. Partimos para a construção de um partido socialista. Foi uma decisão importante, no início de nosso terceiro ano de vida. A decisão, consagrada por ampla maioria de nossa equipe, foi reafirmada em nosso editorial:
Versus pensou dois anos as lutas dos índios, a questão da Universidade e do Poder. O movimento estudantil, a vida dos trabalhadores, imperialismo cultural... mas nós tínhamos clareza de que ao nível de nosso país, as tarefas de Versus eram frustrantes.[4]

Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho deixam claro que, de fato, o Versus se transformara. Continuava estampando em suas páginas o universo das lutas políticas e culturais da América Latina, mas
também a luta por uma alternativa política independente no Brasil. A luta pelo PS crescia. E buscamos as opiniões de Almiro Affonso, Edmundo Moniz, Plínio de Arruda Sampaio, a Tendência Socialista do MDB, no Rio Grande do Sul.
No ímpeto da busca de uma resposta prática, que materializasse nossa perspectiva política optamos por um caminho. No próprio mês de fevereiro, participamos de uma breve convenção, a que criava a Convergência Socialista. Juntamente com 25 entidades estudantis e de trabalhadores passávamos a refletir o ardor diário da construção de um futuro PS. Já não éramos mais espectadores e críticos da realidade social e política hostil que nos circundava, mas nos sentíamos parcela integrante de um movimento ativo no sentido de transformar. O corolário desta opção política foi o surgimento de críticas de companheiros com que, de uma forma ou de outra, marchamos juntos contra o regime militar, nosso opressor comum. O pretexto era que dividíamos a oposição.[5]

Essa crítica foi respondida por Omar de Barros Filho, um dos editores de Versus. Dizia ele na edição de março-abril de 1978:
Entre críticas pela direita e pela esquerda nós, socialistas, continuamos com a construção da Convergência Socialista, movimento amplo, pela unidade... Pensamos que o MDB, onde os “liberais” detêm a hegemonia, não esgota todas as correntes de oposição ao regime... mas não podemos esquecer que uma frente (opositora ao regime militar) é formada por contrários não antagônicos, e que é no debate e na ação que  a frente se dinamiza e avança em direção aos seus objetivos. [6]

Em agosto de 1978, depois de fortes discussões, quando o movimento de Convergência Socialista está preparando o congresso de criação do Partido Socialista, Marcos Faerman deixa o jornal [7]. No final de agosto a direção do jornal é presa e Jorge Pinheiro entra para a clandestinidade.

Apesar da dificuldade do momento, já que parte de seus jornalistas estava presa ou clandestina, Versus informa aos seus leitores que pretende integrar três linguagens como forma de ação, a da cultura, a reflexão sociológica e a discussão da instância diretamente política.

Aos leitores, que nos acompanharam nesta trajetória, principalmente aos cinco mil novos que nos conheceram a partir do segundo semestre, deixamos registrado neste editorial a nossa transformação durante 78 e a relação dela com a dinâmica das lutas sociais e políticas.
Versus se dispõe a integrar estas três linguagens: a da cultura como forma de ação, a reflexão sociológica, e a discussão da instância diretamente política. Em São Paulo, Rio, Brasília e Porto Alegre, o dilema se coloca nos meios oposicionistas: qual a forma de construir uma oposição com um programa político, social, cultural novo? [8]

Essa presença na vida política e cultural de milhares de brasileiros, principalmente daqueles envolvidos com a democratização do país, fará do jornal um bastião avançado nas lutas pelas liberdades democráticas. E assim ele será reconhecido.

Sua produção jornalística remete o leitor ao pensamento da intelectualidade socialista da época, homens e mulheres de expressão na cultura brasileira, que sem participarem da Convergência Socialista ou mesmo serem filiados a ela, viam no jornal o espaço democrático e socialista para a expressão de suas idéias.

O debate aberto dessas idéias traduzia a força do jornal e formava um dos pólos da riqueza ideológica da Convergência Socialista: o ideal do convergir sem diluir-se em pesadas estruturas burocráticas. 

Entendido esse processo, consideramos Versus fonte imprescindível para a compreensão do pensamento socialista da época e da Convergência Socialista em particular.


2.2. O Versus e a Convergência Socialista


Em meados de 1978, após a saída de Marcos Faerman, muitos leitores do jornal desejaram saber qual era de fato a relação entre o Versus e a Convergência Socialista. Afinal, como contam Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho,
alguns boatos corriam nas mesas dos botequins de São Paulo. Entre um suspiro e outro se comentava: o pessoal do Versus recebeu dinheiro da social-democracia européia, há uma fita gravada que comprova tudo... [9].

Por isso, buscando esclarecer a opinião pública e, em particular os democratas, Júlio Tavares, da Coordenação Nacional de Convergência Socialista, informava que
dos 11 signatários da carta endereçada ao Versus, em que assinalam rompimento com a Convergência Socialista e o jornal, alguns nunca foram membros do nosso movimento. Outros já tinham se afastado anteriormente.[10]

E explica que
Versus não é e nunca foi uma publicação do nosso movimento, mas apenas um jornal, formado por companheiros socialistas e democratas que nos apóiam. Contudo, esse fato não significa que sempre haja concordância entre as posições da Convergência Socialista e as da redação do jornal. [11]

Segundo seu coordenador nacional, a proposta política da Convergência Socialista se expressava clara e abertamente em todas as suas publicações e objetivava
a construção de um amplo e democrático Partido Socialista no Brasil, usando, para isso, mesmo as leis vigentes no país, que consideramos restritivas, não democráticas e antipopulares. Lutamos para que esse partido seja construído através de uma ampla e livre discussão interna, que integre todos os que se reclamam socialistas, organizando núcleos de base por locais de trabalho. [12]

Nesse seu arrazoado público, Júlio Tavares explicava que a Convergência não estava lutando por mais um partido popular, como aqueles que tinham existido no passado, porque isso, segundo acreditava a Convergência Socialista, seria abrir as portas para a união com falsos socialistas e populistas.

E agregava que de fato não tinham conseguido unificar todos os setores que diziam querer a construção de um Partido Socialista.

A nossa proposta foi e continua sendo a da unidade. E, se não conseguimos unir todos os grupos, isso não invalida nossa proposta e nossos métodos. No entanto, não estamos isolados. Não está isolado um movimento que tem hoje o apoio de milhares de pessoas na maioria dos Estados do Brasil. [13]

Assim, para a Convergência Socialista, não podia estar isolado um movimento que congregava
operários, camponeses, bancários, professores, estudantes, donas de casa, padres, e as mais diversas categorias sindicais. Nossa dinâmica aponta para o crescimento da Convergência como um todo. Nossa proposta se amplia pelas mãos de negros e de brancos, de religiosos e de não-religiosos, de operários e de estudantes
--  e, numa agulhada àqueles que tinham deixado o Versus, afirmava -- e por poucas mãos de ‘intelectuais’.

E assim, convencida de que estava no caminho certo, a Convergência Socialista faz sua profissão de fé:
Ela se amplia pelas mãos dos nossos companheiros que foram presos em Brasília pela polícia política. Ela se renova pelas mãos dos companheiros que foram presos distribuindo convocatórias para a nossa convenção, no ABC. Talvez não tenhamos entre nós “grandes personalidades”, e sim, homens do povo, anônimos, que não tem nome em jornais, que não ganham grandes e confortáveis salários. São trabalhadores. E para nós, da Convergência Socialista, são os trabalhadores os únicos capazes de construir sua própria emancipação, uma alternativa socialista em liberdade.[14]



2.3. O Versus e os desafios do tempo presente


Em janeiro de 1979, Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, analisando o ano que chegara ao fim, afirmavam:
A cultura como forma de ação era insuficiente para acompanhar as transformações registradas na sociedade brasileira durante 1978. Versus assumiu o discurso político. Mais que isso, buscou encontrar os caminhos para a construção de um novo programa político, social e cultural. Divulgamos o pensamento de inúmeros líderes políticos, desde os remanescentes do PTB aos socialistas. Acompanhamos as lutas, os impasses e o desenvolvimento dos trabalhadores e suas lideranças, desde a Scania, no ABC, às eleições e a perspectiva da criação de seu Partido. (...) Estivemos na linha de frente na campanha pela Anistia e pelas liberdades democráticas, reclamadas pela população brasileira. Fomos duramente atingidos pelos vários organismos repressivos do regime, inclusive com as prisões de alguns companheiros da redação, administração e colaboradores. Fomos sufocados financeiramente, e houve momentos em que a sobrevivência material diária ficou em mãos de nossos amigos e companheiros. No entanto, permanecemos e nos transformamos, nesse terceiro ano de vida, o mais agitado, sem dúvida. Ousamos nos entranhar na realidade social e política, e nos definimos. Acreditamos na profundidade de nossos ideais e estamos convencidos de rumar no mesmo sentido da história, sendo uma de suas parcelas vivas e atuantes.[15]

Na verdade, bastaria uma rápida olhada nas manchetes dos jornais daquele ano para se ver que fora diferente. Em janeiro de 1978, quando o general Ernesto Geisel definiu que o general João Baptista Figueiredo iria sucedê-lo, o então chefe do Gabinete Militar, general Hugo Abreu manifestou publicamente seu desacordo e foi demitido. Acusou um grupo palaciano de ter tramado a candidatura do general Figueiredo e acabou preso.

A oposição permitida, representada pelo Movimento Democrático Brasileiro -- MDB, tentou uma candidatura alternativa com o general Euler Bentes Monteiro, mas não conseguiu nenhum apoio dentro das Forças Armadas.

Mas a novidade, de fato, foram as greves dos metalúrgicos do ABC paulista, que começaram em maio e rapidamente se espalharam. Assim, o Versus analisou essas mudanças na conjuntura do país.

As greves no ABC estouravam, quando ganhamos um novo colaborador. Seu nome: Santiago. Sua profissão: operário metalúrgico. Estávamos na rua com a edição de junho. Santiago entrava em campo. “A posição destacada, assumida pelas direções sindicais de São Bernardo, Santo André, Santos, na luta pela reposição salarial, dando exemplo para todas as categorias profissionais, recoloca nossa classe metalúrgica na vanguarda no operariado brasileiro, no que diz respeito à prática sindical, e marca profundamente níveis de comportamento que rompem com um passado de quase estagnação das lutas reivindicativas. Não será mais possível voltar atrás...”. Santiago tinha razão. As greves repercutiam intensamente no país inteiro. Trabalhávamos como doidos na redação (praticamente sem recursos, comendo pouco, e dormindo menos ainda) para acompanhar os acontecimentos no ABC paulista. Tiramos duas edições extras, dirigidas para os sindicatos e fábricas. Impactados pelos fatos, transformamos um pouco as feições de nossa publicação. Buscávamos um mergulho mais fundo. Jorge Pinheiro, edição de junho-julho, notava: “A greve no ABC começou a abrir os olhos dos trabalhadores para o que são o governo e suas leis. Os operários, é claro, quando iniciaram a greve, não entendiam nada de leis, mas quando as fábricas foram se enchendo de fiscais, inspetores, e até mesmo de policiais, então aprenderam muita coisa. Aprenderam que estavam violando a lei, que era ilegal pedir de forma unitária um aumento de 20 por cento. E, nesse momento, algumas abstrações como Governo Militar, AI-5, Anistia, etc... começaram a ficar mais claras...” No entanto outro fato de intensa significação política marcou o mês de agosto. Ainda que embrionário, detectamos sua importância e sua possível evolução: a oposição sindical surgida no V Congresso Nacional dos Trabalhadores industriários. Enio Bucchioni, nosso editor nacional, assinalava então que a oposição Sindical, surgida do movimento grevista, consolidada programaticamente numa Carta de Princípios, e estruturada nos principais sindicatos do país era o fenômeno superestrutural e político mais importante registrado desde 1964. “É ela uma alternativa? Ainda não, mas em processo de se transformar. Para isso terá de se estender horizontalmente junto às suas bases, e verticalmente, consolidando seu raio de ação com os demais sindicatos que a ela se incorporarem buscando a adesão de novos companheiros”. [16]

Assim, como diria Tillich, era necessário proferir um não ao tempo presente. Mas um não abstrato, amplo, que não criticasse o tempo presente em concreto, de forma particular, pelo simples fato de que não aceitar os símbolos das forças demoníacas daquele tempo. E nessa crítica, Marx e outros teóricos do socialismo poderiam ajudar pouco, pois o fundamental era envolver-se na situação histórica concreta, ter a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular.


2.4. O Versus socialista e os deserdados da terra


Maio de 1968 tinha ficado para trás. Os Estados Unidos perderam a guerra do Vietnã (27/01/1973). No lado comunista, no porto de Gdansk, na Polônia, um sindicalista católico, Lech Walesa, se levanta contra o establishment. Com ele e a partir da primeira central sindical independente do mundo comunista, o Solidariedade, jovens de todo o mundo começam a repensar a política.

Mas no Brasil o AI-5 tinha fraturado o ano de 1968, que no dizer do jornalista Zuenir Ventura foi o ano que não acabou. Tal situação de forte repressão, censura à imprensa e restrições das liberdades, fez com que o ano de 68 ressurgisse dez anos depois, quando o governo militar, já em declínio, vê-se obrigado a aceitar uma abertura política que ele pretendia lenta e gradual.

Assim, combinando os ventos novos da situação internacional com a ressurreição dos sonhos de 68, sindicalistas e jovens falam de um socialismo onde a liberdade da pessoa seja uma realidade.


2.4.1. A consciência afro-americana


O Versus olha o mundo com curiosidade. A luta dos afro-americanos sensibilizará os intelectuais negros que fazem parte do corpo editorial do jornal. E um revolucionário negro será citado e terá textos publicados no Versus: Malcolm X.

Estamos vivendo numa era de revolução, e a revolta do negro americano é parte da rebelião contra a opressão e o colonialismo que caracteriza esta era. Não é correto classificar a revolta do negro como simplesmente um conflito racial dos negros contra os brancos, ou como simplesmente num problema americano. Ao contrário, hoje estávamos vendo uma rebelião global do oprimido contra o opressor, do explorado contra o explorador. A revolução negra não é uma revolta racial. Estamos interessados em praticar a fraternidade com qualquer um que esteja realmente interessado em viver de acordo com isso. Porém, o homem branco pregou, por muito tempo,a doutrina vazia da fraternidade, que não significa mais do que o negro aceitar passivamente o seu destino...
As nações industriais do Oeste têm deliberadamente subjugado o negro por razões econômicas. Esses criminosos internacionais saquearam o continente africano para alimentar suas fábricas,  e são os verdadeiros responsáveis pelo baixo padrão de vida que prevalece por toda África.[17]

A empatia de Versus pela lutas dos irmãos afro-americanos traduzia sua compreensão de que devia apresentar a seus leitores uma mensagem de vida tanto ao nível da pessoa como particularidade, como da sociedade como um todo. Assim, essas reportagens não traduziam apenas solidariedade, no sentido de um movimento preocupado com a pessoalidade dos excluídos, mas a compreensão de conhecimento que deve nortear a luta daqueles que se encontram em situações semelhantes. Nesse sentido, solidariedade e clamor profético contra a exclusão eram entendidos como práxis socialista.  Ou, como disse o próprio jornal, em editorial:
Versus se dispõe a integrar estas três linguagens: a da cultura como forma de ação, a reflexão sociológica, e a discussão da instância diretamente política. [18]


2.4.2. A consciência dos povos indígenas


Mas, corações e mentes serão sensibilizados por uma outra luta, que uma década antes era praticamente desconhecida da esquerda brasileira, a luta dos povos indígenas por soberania e direitos civis. E é assim que Versus desembarca em Nova York e entrevista Waubun Niwi-Nini.

Sou membro da nação indígena Ojibwa. Os invasores colonialistas nos chamam de Chipawawas. Meu nome é Waubun Niwi-Nini, sou também conhecido pelos colonizadores pelo nome Vernon Bellcourt. Sou representante do American India Movement (AIM) e um dos representantes do Internacional Indiana Treaty (IIT) que é o nosso braço internacional trabalhando nas Nações Unidas e outros foros internacionais para levar ao conhecimento da população mundial a nossa luta pela sobrevivência dos indígenas “Das ilhas da Tartaruga Sagrada” conhecida pelos invasores como América do Norte.
Tanto na América do Norte quanto na do Sul não houve modificações na relação entre o índio e o branco. Sempre fomos vítimas da dominação colonial da exploração e da repressão. Somos vítimas da guerra colonial mais longa da história dos Estados Unidos. Pode ser que tivemos boas relações com os brancos enquanto pessoas, mas a política oficial do governo sempre foi para nos dominar e nos guardar em reserva. Aqui eles chamam esses lugares para confinamento de reservas, na África do Sul eles chamam Bantustan.[19]

A entrevista de Versus com o líder indígena norte-americano mostra que há cem anos a cavalaria era a grande responsável pelos massacres, mas que agora o arbítrio e a exclusão se faz através da sofisticação da CIA e do FBI, da Agência de Segurança Nacional e da Inteligência do Exército.

Nesses últimos cem anos os brancos roubaram as terras indígenas em 110 milhões de acres, que foram tomadas pelas companhias de minérios, petróleo, madeira e agropecuária. E o governo federal fechou os olhos para essa exploração sem limites. Nos 50 milhões de acres de terra que restaram, estão 85% das reservas de urânio dos EUA, e também 30% do carvão que o governo necessita para ser independente nesse setor de energia. Estão ainda 3% de todo o gás natural das reservas de petróleo. Eis um problema complicado, não resolvido, pois afirma a entrevista que nenhum tostão dessa riqueza foi para os índios.

Para Waubun Niwi-Nini, o movimento socialista está crescendo em todo o mundo e ele  não tem dúvidas de que a América do Norte e do Sul seguirão este caminho. Crê que o futuro será socialista e por isso seu desejo de formar alianças com os movimentos socialistas. Deixa claro, no entanto, que quer o respeito à integridade dos  territórios indígenas, às nossas diferenças culturais, nossa terra e nossos recursos.

 

2.4.3. A economia da fome



Mas outros temas, amplamente discutidos na Europa, chegam aos socialistas brasileiros a partir de Versus. Uma dessas discussões é colocada por Ernest Mandel, socialista belga e professor de Economia na Universidade de Gant, ao publicar em Versus um artigo analisando as causas da fome no mundo.


A fome de 1974 já foi esquecida. A colheita do ano passado no Hemisfério Norte – exceto na URSS – foi excelente. De 1972-73 a 1976-77, a produção mundial de todos os tipos de cereais em grão cresceram de 1270 para 1477 milhões de toneladas; em outras palavras, cresceu mais de 16%. A produção de trigo cresceu 23% indo de 337 para 416 milhões de toneladas.
Você pode pensar que, em face da péssima situação da economia mundial, haja no mínimo alguma razão para este brilhante lugar da economia internacional. Mas não deve ter levado em conta a obstinada lógica da economia de mercado. Porque para a economia de mercado, “superprodução” – até mesmo de gêneros alimentícios num mundo, onde a metade de sua população não ganha o suficiente para comer, é uma má notícia. É um desastre para os produtores de alimento, seja de larga ou pequena escala. Isso causa uma decaída nos preços.
Então, o negócio “lógico” acontece: a produção é destruída a fim de “proteger” preços. Em 12 de agosto de 1977, o diretor adjunto do U.S. Department of Agriculture disse numa conferência da Casa Branca que a administração de Carter havia decidido pedir aos produtores americanos de trigo para deixar 20% de suas terras produtivas descultivadas, se eles quisessem obter vantagens de medidas administrativas para manter os preços altos. Houve uma redução de 10% em terras utilizadas para forragem, e sementes foram dadas para animais domésticos.

Para Mandel, a lógica da produção para a economia privada é inevitável. Pois, quando se pode ganhar muito mais dinheiro criando gado de corte para ser vendido à Europa, do que produzindo alimentos para a população local, então esta é a direção que a agricultura seguirá. E cita como exemplo Mali, quando dezenas de milhares de crianças morreram de fome durante a grande carestia que devastou o Sahel em 1974, mas a exportação de amendoim e óleo não deixaram de crescer.

A “revolução verde” produz muito menos resultados positivos em termos de plano nutricionais do que se deveria supor. Somando-se as desastrosas conseqüências ecológicas decorrentes do uso intensivo de fertilizantes químicos em terras irrigadas, existe até mesmo terríveis efeitos sociais.
A “revolução verde” tem acima de tudo o significado da introdução da agricultura capitalista em regiões já anteriormente oprimidas, dominadas pela lavoura de subsistência. A transformação deste tipo de lavoura em agricultura capitalista significa uma inevitável polarização social entre a população, um contínuo acréscimo no acesso a terra pelos lavradores pobres, um êxodo massivo das zonas rurais, e a progressiva substituição da força de trabalho humano pela maquinaria agrícola.
E desde que não haja uma expansão paralela na industria, todo este processo significa que uma crescente proporção de camponeses será empurrada para a periferia da sociedade, tanto nas zonas rurais como nas favelas das grandes cidades. E a maior parte dessa população miserável é impedida de ter acesso direto à terra, sofre a mais séria desnutrição, até mesmo se ganha um pouco de dinheiro (a princípio através de um trabalho ocasional num serviço de setor, forma escamoteada de desemprego).[20]

Assim, Versus afirma que seria melhor dar uma solução imediata ao problema da fome e da subnutrição através de uma racionalização da organização econômica e social do que concentrar numa explosão populacional imaginária as causas da falta de alimentos. Dessa maneira, posiciona-se por uma ética do amor, denunciando o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que a elas servem, que levam à fome e a morte para muitos em benefícios de poucos. E propõe em nome de ética do amor uma economia racional e solidária.


2.5. A busca de novos conteúdos


Mas, nem tudo estava claro. As questões pesquisadas neste bloco – a saída do jornalista Marcus Faerman do jornal, a busca de um modelo alternativo ao comunismo, as greves operárias, a consciência de latino-americanos e indígenas, a fome no mundo -- mostram que a Convergência e, por extensão, o Versus, passam a enfrentar uma séria discussão acerca da visão socialista de mundo e dos conceitos que deveriam utilizar para analisar a realidade. Assim, a própria realidade, internacional e brasileira, obrigava a Convergência Socialista a procurar novos conteúdos para velhos conceitos.

Aceitar novos conteúdos, dirá Tillich, não é repousar nos antigos, nem procurar as origens de onde um conceito pode nascer. Aceitar novos conteúdos é antes de tudo demonstrar a força de um conceito e através dessa força demonstrar que ele é capaz de lançar fora todas as ameaças de esclerose. [21]

Não existe conceito que não seja ameaçado pela esclerose, porque todo processo de vida tem tendência a envelhecer. Por isso, são as tensões que desafiam os processos a se superarem e manterem-se vivos. Estar vivo é isso, é superar-se, é ir além de si-mesmo. E isso se dá em todas as esferas da vida, do menor dos organismos às maiores figuras da história. Onde há vida, há a tensão entre ser-um-comigo e ser-separado-de-mim. 

Versus teve a sensibilidade de intuir o perigo da esclerose ao dizer não ao velho projeto do jornal, que temia encher de novos conteúdos velhos conceitos. A tensão era grande e acabou por fracionar o jornal.

Mas como explica Tillich, quem não conhece esta tensão, que é apenas um-consigo-mesmo, caminha para a morte. E um movimento histórico está morto se ele está apenas consigo-mesmo, quando não pode se separar de si-mesmo, nem ir além de si-mesmo. Qualquer movimento que deseje se exprimir através de novos conceitos, que deseje dar novos conteúdos a velhos conceitos e antigas formas de vida, enfrenta um momento de negação: deve superar-se a si mesmo. Deve negar seu direito de fazer parte do processo de vida, porque se tornou um ídolo, que rouba a vida, se opõe a ela, um ídolo que ninguém pode tocar.

Antes da ruptura, Versus era um ídolo. Satisfazia-se a si-mesmo, tinha prestígio entre a intelectualidade. E como alerta Tillich, a hierarquia sacerdotal fará de tudo para preservar o poder. Mas, quando seu poder interior está ferido, e qualquer um se toma de coragem para ousar tocá-lo, a impotência deste ídolo se tornou manifesta. O ídolo é uma abstração da vida original que se colocou acima da vida [22], que refreia e inibe a vida, que não traduz a vida presente.

Para Tillich, os domínios são a obra de tal movimento que se esclerosou, que traduz a morte, que quer transformar em ídolos as formas antes vivas do movimento socialista. Essa cúpula sacerdotal idólatra, estes domínios desejam conferir uma durabilidade atemporal à uma única imagem do socialismo, e considera sacrilégio quando a vida procura ela própria novas formas e novos conceitos.

E onde se localizavam os desafios que Versus enfrentava? Não somente na ortodoxia, entre os velhos jornalistas, que bravamente resistiram durante tantos anos à ditadura, mas também entre os jovens, que viam no combate frontal a melhor forma de enfrentar o governo militar.

De certa forma, como afirma Tillich, ambos se mostram velhos frente à realidade. Não é somente a ortodoxia que envelhece, também os grupos radicais que fazem a crítica idolátrica, para manter assim suas próprias posições de domínio pontifical. E no que se refere ao pensamento formal a escola marxista também segue esse caminho. [23]

Mas é por obra de velhos crentes que os homens querem o novo, apesar do risco, apesar da ameaça de que pode dar em nada. Os velhos crentes, essa cúpula sacerdotal, conduzem ao endurecimento e às idolatrias. Mas aquele que conhece esta crença compreende o que se trama por trás da ortodoxia. Esta questão deve ser levada em conta, tanto quanto as discussões ao redor dos planos para a economia, como para o político.

Assim, para Tillich, quem não obtém do real mais que uma imagem deformada pela propaganda está cometendo um erro perigoso. Compreender a ortodoxia, mesmo a ortodoxia socialista, nos leva a fazer julgamentos, isentos de um radicalismo irresponsável.

Para a ortodoxia não se pode aceitar o perigo, mesmo quando ele representa aquilo que é profundo. Mas, o medo ao perigo é a porta de entrada de todo endurecimento, de todas as violências e de toda caducidade. É certo que se deve superar o perigo e a perda, apesar dos riscos, sem esquecer, no entanto, que no socialismo o novo pressupõe risco. O risco nunca deixa de existir, porque viver é avançar no indeterminado.

Assim, foi o não à ortodoxia que possibilitou o surgimento do Versus socialista. E como muitos conheciam o que propunham os velhos, optaram pelo risco do novo.

O risco, explica Tillich, é o contrário da adaptação oportunista. Com efeito, a adaptação jamais quer colocar em jogo o que ela possui. Ela quer conservar, ela não quer o novo. Ela sente que necessita do novo, mas não tem a coragem de arriscar. E isso acontece porque deixou que o velho coagulasse em seu interior.[24]

Esta é a maneira mais comum e a mais terrível de não ir além de si-mesmo, porque  favorece a aparência, ilude a realidade. Isto jamais deveria acontecer na política, que deve lutar para realizar as possibilidades do momento, que concernem mais que nada à atitude interior.

No radicalismo o risco é bem diferente, declara Tillich. O radicalismo é uma idolatria de signo contrário. Nega a tradição e deseja arriscar porque acredita que no risco está a realização daquilo que espera. Esquecem que é também sob os impulsos das tensões e das dúvidas interiores provocados pelos conceitos transmitidos pela tradição que somos lançados aos novos conceitos, que levam às soluções e nos fazem avançar.[25]

Por isso Tillich diz que quem aceita os riscos do socialismo deve também colocar em risco os conceitos. A ortodoxia assim como a ciência e a política têm a aprender e a arriscar no que se refere aos conceitos. A ortodoxia se prende aos conceitos porque procura aquele lugar onde a mobilidade é menor. O marxismo vai contra esse endurecimento porque acredita estar o pensamento ligado às situações sociais de transformação. O espírito do marxismo vai à luta para conquistar novos conceitos e para tirar novos conteúdos de antigos conceitos.

Aqui dois perigos são inevitáveis: o ficar no si-mesmo e o separar-se de si-mesmo. O conceito, se ele é vivo, deve reunir nele as duas tendências. Toda mudança deve incluir o ficar em si-mesmo, pois esse em si-mesmo é a sua origem. Quem arrisca um conceito, quem tira proveito das tensões engendradas por uma certa forma de pensamento, deve se lançar às coisas novas sem esquecer o fundamento de seus conceitos. [26]

Isto não é socialismo, dirão alguns. Ou, dirão outros, isso é o velho socialismo, explica Tillich. Mas o certo é que aquele que aceita o risco do socialismo deve saber navegar entre essas duas acusações. Não se pode de antemão saber se essas acusações são corretas ou não. Se soubermos que elas são certas ou erradas, então não há risco. Em certos momentos não se pode decidir, definir uma hierarquia ou uma democracia espiritual ou mundana.

Pra Tillich, só se decide o poder que tem um conceito de estruturar e de reestruturar o real quando ele mesmo já é esta realidade. É a esta decisão que nós submetemos os conceitos do socialismo, quando anunciamos o risco e pedimos ajuda àqueles que conosco querem se lançar sobre aquilo que vem, sem tentar fugir da realidade presente.  

Porque falar de socialismo como risco, pergunta Tillich. E ele próprio responde:
Porque acreditamos que a despeito de todas as ameaças que podem pesar sobre a ortodoxia e sobre o radicalismo, o socialismo é algo vivo, que tem força para se projetar por ele próprio sem se perder. E também porque acreditamos que o socialismo tem a vitalidade suficiente para ser o fundamento, a força e o objeto de uma transformação do presente orientada para o futuro. [27]

E Tillich diz que acredita na força do socialismo, mas não sobre a base de uma opinião científica ou política concernente à situação presente, mas em razão do seqüestro incondicionado por parte daqueles que tem o socialismo como objetivo, em razão da indissolúvel aliança interior daqueles que colocam na fé socialista o sentido de sua existência, de uma existência espoliada de sentido.

Uma fé assim fundada, considera Tillich, tem suas raízes num conhecimento muito mais profundo do que aquele enraizado na ciência, mas que ao longo do tempo pode se transformar num ídolo. Esta fé unida à ação e à decisão (e essa é a novidade conforme entendia Marx) é ela própria um risco.

A fé na força do socialismo está enraizada no fato de ser percebida incondicionalmente naquilo que no socialismo é ultimate concern[28]. Esse ultimate concern é o que procuram exprimir todos os conceitos do socialismo e que, em última instância, não pode ser apreendido por nenhum deles.  

Eis porque, considera Tillich, todos os conceitos últimos nos quais o socialismo tem depositado seu sentido são símbolos – e não representações científicas, demonstráveis ou refutáveis. Apesar de Marx falar de uma sociedade sem classes ou da história do gênero humano a partir da pré-história, ou ainda na questão da justiça, da liberdade ou da comunidade futura, são símbolos daquilo que é ultimate concern e que não se pode exprimir diretamente.

Assim, alguns desses conceitos vão além daquilo que enunciam diretamente. O conteúdo de um conceito muda e deve mudar com a situação social e espiritual onde está sendo aplicado. Aquilo que é visto como um fim, inacessível, não muda nunca. E se não muda, esclerosa.

E Tillich conta como surgiu a idéia de “socialismo religioso”. Porque essa situação também acontece com os conceitos religiosos, originais e autênticos -- diz ele -- que são deformados ideológica ou racionalmente, alguns de nossos colaboradores, que trabalhavam com esses conceitos, reuniram-se, depois de alguns anos, sob o nome de “socialismo religioso”.[29]

Mas para ele, esse nome leva a um duplo mal-entendido, aparentemente insolúvel. Do lado religioso, tem de ser combatido porque traduz a idéia de uma tentativa de dissolver a religião no socialismo. E do lado socialista, se tem associado a palavra “religião” às igrejas, o que leva à recusa de ligar religião e socialismo.

Ora, socialismo religioso não significa nenhuma das duas coisas, explica Tillich. O que ele procura é compreender e estruturar o socialismo do ponto de vista daquilo é que ultimate concern, e assim, sobre essa base realizar a religião de maneira nova e concreta. Nós, quer dizer aqueles entre nós que se contam como socialistas religiosos, aceitamos a alcunha para não produzir outros mal-entendidos.[30]

Um movimento que não tem a profundidade suficiente para apresentar uma resposta à questão última e incondicional do sentido da vida não poderá obter o nosso Sim incondicional. Nós acreditamos, continua Tillich, que o socialismo pode apresentar uma tal resposta, e trabalhamos para que essa resposta não se torne prisioneira do provisório e do não-último, mais direcione ao que é ultimate concern, ao religioso no socialismo.

Em lugar de falar de justiça, de liberdade ou de comunidade, pode-se falar da exigência de uma sociedade onde será possível a cada indivíduo e a cada grupo satisfazer o sentido da vida, ou falar da exigência de que a sociedade se encha de sentido.

A questão do sentido da vida se faz mais presente em todas as esferas da sociedade atual, principalmente em relação ao proletariado. É a questão mais profunda e ao mesmo tempo a mais global: todos estão inseridos nela. E responde da mesma maneira a todas as questões particulares. Ela se refere também ao fundamento econômico, material, à vida psíquica e às formas de expressão do espírito. [31]

Quando se fala de liberdade, damos mais importância ao indivíduo, quando se fala de comunidade, damos mais importância ao grupo, mas o sentido da vida inclui o indivíduo e o grupo. Por isso, para Tillich, falar do sentido da vida não é ser utópico, porque fala somente da possibilidade do sentido que a vida deve ter. Da mesma maneira, não é uma postura ideológica, porque coloca a questão do sentido da vida sobre a base das tensões concretas do presente.

Também não pode ser uma postura reacionária, porque o sentido da vida jamais se completa, está sempre para se cumprir. E, portanto, não é um ideal vago, é a realidade viva, aquilo que faz a vida possível.

O socialismo que nós queremos é aquele que coloca na teoria e na prática a questão da possibilidade que a vida tenha sentido para todos os indivíduos da sociedade e que se esforce para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Um tal socialismo não é apenas um movimento político, é mais que um movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade.[32]

Assim, para Tillich, a busca do sentido da vida é um desejo universal, do qual ninguém está excluído. Quando percebemos a sua profundidade, percebemos também sua universalidade. Por isso, deve tornar-se o fundamento da ação de transformação espiritual e política socialista.

Sem conhecer o pensamento de Tillich, mas chegando a ele por vias transversas, como veremos mais à frente, Versus parte em busca do sentido da vida, levantando bandeiras que chocam ortodoxos e radicais no amplo espectro do socialismo brasileiro.










3. SOCIALISMO E CRISTIANISMO


3.1. Heróis cristãos para o socialismo


O Versus socialista tem uma clara e expressa empatia com o cristianismo. Vê como seus heróis e heróis dos excluídos aqueles homens e mulheres de fé que se posicionaram ao lado dos deserdados do capital.

E essa constatação é clara e definitiva ao lermos as matérias de estudiosos do cristianismo e entrevistas com líderes cristãos. Sem dúvida, Versus expressa essa empatia principalmente pela expressão maior do cristianismo latino-americano, o catolicismo da Teologia da Libertação, mas sem nenhum sectarismo encontra na vida do Dr. Martin Luther King Jr. um exemplo digno de ser seguido. 


3.1.1. Negro, pastor, batista


Em abril de 1979, o Versus afirmava que há 11 anos Martin Luther King foi assassinado. Sua morte deve ser lembrada pelos 270 milhões de negros espalhados pelo mundo como um marco de resistência e de força à dominação e exploração branca. E conta para seus leitores a história de Rosa Parks e de como liderados pelo jovem pastor batista Martin Luther King Jr. os negros de Montgomery se rebelaram.

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.
Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase á bancarrota, submeteu-se ás exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Treze anos mais tarde, continua o Versus, exatamente no dia 4 de abril de 1968, o pastor King preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, quando foi  atingido por tiros.

Martin Luther King, formado em Filosofia e Teologia em Boston, premiado com o Nobel da paz em 1964, reconhecido por todos os negros, inclusive pelo líder do Black Muslim, o inflexível Malcom X, estava morto. Ele que havia pregado e lutado pela não-violência, era uma de suas vítimas mais trágicas.
Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King! [33]

No dia 15 abril de 1955, Martin Luther King Jr. finalizou sua dissertação sobre A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman[34]. Luther King conhecia o pensamento de Tillich e, por isso, o pesquisador foi levado a aceitar que a ação desse combatente pelos direitos civis deve muito às suas leituras do teólogo em questão.

Tanto para Luther King[35] como para Tillich, o poder último, autêntico, é a verdade. Entretanto, esta verdade não é uma norma abstrata que se impõe à realidade e a modifica, mas é sobretudo a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só tem poder se ela é verdade real, se é uma tendência de vida, se é a verdade de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder. [36]

Tanto para Tillich como para Luther King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decide a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar, afirma Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garante a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruirá... mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele que era possível em épocas não desenvolvidas. [37]

Mas do que palavras, a ação política de Martin Luther King Jr. traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista.

Sem conhecer Tillich, Versus via o discurso de Luther King no Monumento a Lincoln, em Washington, a 28 de agosto de 1963, com um manifesto dos excluídos. E em nenhum momento considerou velho socialismo a bandeira da não-violência levantada pelo pastor batista.

 

Ao contrário, comentando os incêndios e pilhagens em muitas cidades norte-americanas após seu assassinato, afirmou que mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta.


3.1.2. In memoriam de Camilo Torres


O jornal Versus considerava a guerrilha latino-americana uma tática errada para o continente. Mas, apesar dessa posição, reconhecia no padre Camilo Torres um cristão que soube combinar cristianismo com seu ideal socialista.

Um dos editores do Versus, Ênio Bucchioni relata de forma generosa sua experiência de exilado e o significado de Camilo Torres para sua geração. E para que a posição de Versus diante da guerrilha fique clara, faz a defesa do papel das massas como agente transformador da história.

Camilo Torres foi um símbolo da minha geração, da nossa Latino-América, influenciada pelo êxito da revolução cubana. Camilo foi também um marco no desenvolvimento da Igreja dos oprimidos, a que nasce com Medellin. Recordo ainda dos meus dias no exílio em Santiago, vários anos após a morte de Camilo: sua lenda permanecia, e também ainda sobreviviam as idéias que o levaram até a militância num grupo armado guerrilheiro no  interior da Colômbia marginalizada. E recordo um pierrot le fou chileno, membro de uma organização militarista, que preso por um cinturão de bananas de dinamite, atirou-se contra uma delegacia de polícia. Explodiu como o personagem de Godard. Foi em Santiago que, naqueles anos, li o primeiro documento produzido por exilados brasileiros, que fazia uma profunda crítica dos métodos guerrilheiros no continente. O texto era claro, era uma volta ao marxismo clássico, uma análise que recolocava no seu verdadeiro lugar o papel das massas como agente transformador da história. Ao mesmo tempo, o documento negava toda uma teoria levada a prática pela esquerda tradicional em toda a América Latina, a mesma que levou a derrocada da revolução chinesa na década de vinte, ao massacre de Jacarta, e a débâcle de Allende. Além de tentar resolver sem as massas e pelas armas a questão do poder, a guerrilha nascia com a tarefa da negação da triste herança que recebemos nos últimos 50 anos. Foi incapaz disso. Não era um simples acaso: éramos milhares de exilados, de várias nacionalidades em busca de uma alternativa... [38]

E numa reportagem investigativa, Versus procurou reconstruir a história da morte do líder guerrilheiro.


Após mais de 10 anos de morte do padre e sociólogo Camilo Torres, membro ativo do grupo guerrilheiro ELN (Ejército de Liberación Nacional), o povo colombiano ainda duvida das versões oficiais que à época descreveram o encontro dos guerrilheiros com as tropas regulares, no lugar conhecido como Patio Cemento.[39]

Para Versus, o padre Camilo Torres mostrou que seu cristianismo não somente podia, mas devia manter um relacionamento frutífero com o socialismo. Mas, mostrou também que o contrário da premissa era verdadeiro: seu socialismo podia e devia ter um relacionamento construtivo com o cristianismo.

Muitos de seus contemporâneos não viram assim. Consideravam que a concepção materialista da história negava a possibilidade dessa aproximação. Tillich já havia afirmado que essas pessoas não entenderam Marx, sua concepção não era materialista, mas econômica, e que mostrava uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura.

E que, ao contrário, tal fundamento dá a todas as ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo.


3.1.3. Sacerdote, poeta, combatente


Mas, da experiência cristã militante, ninguém foi tão amado pelo Versus como Ernesto Cardenal. Integrante da Frente Sandinista de Libertação Nacional, teve poesias publicadas pelo jornal, e foi entrevistado mais de uma vez pelos jornalistas de Versus.

Fazia muito sol naquela manhã. Às oito e meia, e depois de uma curta e compreensiva espera, chegou a hora de conversar com Ernesto Cardenal. Ele e mais dois integrantes da Frente Sandinista de Libertação Nacional ocupavam a mesa em que se serviriam do último desjejum em Quito. Os diários informavam sobre as negociações entre a Frente Ampla de Oposição, os mediadores da OEA, e a ditadura somozista. Ernesto Cardenal chegou a Quito na qualidade de chanceler da Frente. Hoje, sua tarefa é a de buscar a solidariedade “moral e efetiva” que os povos do mundo tem para oferecer ao povo da Nicarágua. Eu sempre quis fazer a Cardenal duas perguntas. Isto porque dois dos assuntos mais debatidos na América Latina são a posição da igreja frente ao processo de libertação dos povos e o compromisso do intelectual com essa luta. Em Cardenal, sacerdote, poeta e combatente, estão as respostas. [40]

Mas como -- quer saber o jornal -- o sacerdote chegou à compreensão de que era necessário lutar pela libertação da Nicarágua?

Meu compromisso com Deus tinha que ser um compromisso com o povo, e eu nunca estive longe disso. Quando fundei a comunidade de Solentiname, estava sempre preocupado com os acontecimentos do país, e nossa principal tarefa era conscientizar os camponeses e prepará-los para a revolução. Já contei outras vezes como o que mais nos radicalizou foi o Evangelho que líamos e comentávamos com os camponeses na missa, todos os domingos. E esses comentários foram sempre de uma grande profundidade teológica.[41]

As palavras de Cardenal traduzem o pensamento de Tillich, naquele momento histórico, para a realidade nicaragüense. O cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. Assim, tal processo de desenvolvimento, que se realiza de forma desigual na história, combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais.

Cardenal tinha consciência dessa realidade e, por isso, Versus faz dele seu ícone cristão para o socialismo.


3.2. O pecado se chama capitalismo


Mas o exemplo cristão não chega só de além-fronteiras. No Brasil ele é contundente. E Versus explica porque.

Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: “...esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista”, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura. [42]

E para entender os caminhos da catolicidade, o jornal entrevistou D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu. Mas, explica Versus,
qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história.

Nova Iguaçu era àquela altura, modelo brasileiro de cidade dos pobres e excluídos:
(...) oitavo município mais populoso do país, ali faltam esgotos, escolas, hospitais, transportes, segurança pessoal (reina o esquadrão da morte). Região de  operários, funcionários mal remunerados, comerciários, subempregados, que já não podem esperar soluções senão de si próprios.

Diante da desconfiança de muitos socialistas ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica, Versus argumenta que
se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.

Assim, qual o espírito que orienta o atual trabalho comunitário da Igreja Católica no Brasil? E dom Adriano Hipólito responde:
A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor.[43]

Mas, Versus quer saber mais: o que são as CEBs, como funcionam, quem as integra? E Dom Hipólito responde:
Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica.[44]

Como jornal socialista, envolvido com a organização dos trabalhadores ao nível sindical e político, Versus quer conhecer o pensamento de seu aliado cristão. E Dom Hipólito esclarece sua posição.

Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer.
Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder. [45]

E já no final da entrevista, Versus faz uma pergunta que traduz não apenas reflexão sociológica, mas também teológica, com profundas implicações políticas para o momento.
Como o senhor vê o possível relacionamento entre Cristianismo e Socialismo diante das necessidades dos trabalhadores?

Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do Socialismo são de fato cristãos.[46]

Para dom Hipólito, assim como para Versus, a história da Igreja é passível de muitas críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilitou e potencializou a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, como explica Tillich, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para ele, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão. Versus evita esse erro, quando esclarece aos seus leitores de que se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar. [47]


3.3. As correntes contrárias


Ao comentar, numa de suas entrevistas, que o III CELAM, Conferência do Episcopado Latino-Americano, terminou sem levantar dúvidas sobre seu desfecho, Versus resgatou as análises que viam a Igreja católica num crescente comprometimento com os excluídos do continente, apesar das forças contrárias que  se organizavam.

(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l981, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterey, na sua chegada do continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da  Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes  dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”,  falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento  direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellin foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade. [48]

Para analisar tais variáveis, Versus entrevistou Paulo J. Krischke, exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, organismo que reunia alguns dos mais sérios intelectuais do Terceiro Mundo.

Uma das perguntas feitas na entrevista remete a um futuro possível, totalmente indesejado pelos socialistas e por aqueles que se colocavam sob a bandeira da teologia da libertação: existe a possibilidade dos setores centristas da hierarquia eclesiástica tentarem despolitizar as bases da igreja?

Sim, na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes, talvez, ao contrário, elas se reforcem mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar uma unidade monolítica, ou o controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja. [49]

A partir de tais informações, que não somente circulavam, mas eram analisadas e discutidas dentro do jornal, Jorge Pinheiro vai  expressar em análise de conjuntura, que até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida. [50]


3.4. O lugar do proletariado

Mas por que falar de socialismo e não falar de ação transformadora em geral, pergunta Tillich. Porque o movimento socialista é o lugar onde a experiência da falta de sentido da existência tem uma expressão decisiva para o presente. De fato, por trás do movimento socialista está o destino do proletariado. E no destino do proletariado se encontra o mais profundo dos destinos humanos.

Para Tillich, é na situação proletária que a questão do sentido está colocada concretamente, porque em cada um de seus momentos, a vida proletária típica se vê confrontada com a falta de sentido. Na maior parte das outras classes sociais, as possessões espirituais ou materiais, a execução de empreitadas providas de sentido ou ainda de propósitos atraentes dissimulam a ausência de sentido.

Mas o proletariado não tem nenhum meio de dissimular a falta de sentido da existência. Mesmo as realizações mais simples da alma, como o amor, a família, os prazeres, estão na maioria das vezes privadas de forma ou desfiguradas.

É uma tolice querer comparar o socialismo proletário com qualquer outro tipo de socialismo não proletário, afirma Tillich. O proletariado e o socialismo estão juntos e permanecem unidos, mesmo quando o movimento socialista não conta em suas fileiras com nenhum representante do proletariado, e também quando grupos não proletários adotam o socialismo.

Por impulsos concretos, a paixão e a abnegação natural a favor do socialismo nascem lá onde a existência está destituída de sentido, no proletariado.

O proletariado pode desarrolhar a situação presente, porque pode dar a sociedade uma estrutura com sentido. Lá onde é possível empreender uma transformação significativa no domínio do espírito e na política, é onde se encontra uma relação estreita com o proletariado.

Mas Tillich não idolatra o proletariado. Para ele, não necessariamente o proletariado é o mais apto para indicar o caminho da transformação, na verdade freqüentemente é o contrário que se produz. Mas seu papel está definido porque ele ocupa o lugar onde a estruturação espiritual e social tem uma exigência real.

Colocar os problemas a partir do lugar onde a ausência de sentido se faz maior, não é necessariamente procurar a resposta neste próprio lugar, não é fazer do proletariado o vencedor da falta de sentido e o portador do novo sentido. Não se pode erigir o proletariado em messias ou ainda fazer positivamente da situação proletária o lugar de onde sairá a solução para o problema do sentido.[51]

Aqui está a questão mais difícil do socialismo atual, explica Tillich. Não se pode afirmar que uma revolução proletária será bem sucedida na condução de uma sociedade plena de sentido. Pensar que uma reviravolta política pode transformar a ausência de sentido em sentido é acreditar em milagres. Não queremos dizer com isso que negamos a revolução proletária. Ela pode ser uma via para construir uma sociedade nova há tempos em gestação. Tudo depende daquilo que é realizado. E a situação proletária não diz o que realizar.[52]

Para Tillich, existe uma coisa que o proletariado deve aprender: ele deve estar integrado a uma sociedade provida de sentido. É o proletariado mesmo que deve procurar se integrar, porque é somente na luta que ele manifesta e ao mesmo tempo desenvolve o poder que brota, um poder que lhe é possível conquistar e conservar.

Se essa integração cair do céu, explica Tillich, ele a perderá logo em seguida, porque não será fundada interiormente. Assim, na medida em que não pode existir uma sociedade com sentido se o proletariado não está integrado nela e provido de direitos e responsabilidades, a luta proletária representa a condição necessária para que a questão do sentido tenha resposta.

Nessa medida, o proletariado é não somente o lugar da questão socialista, mas também o portador da resposta socialista. Sem a luta proletária não há socialismo, sem a vitória proletária não há resposta para a questão de uma sociedade plena de sentido.[53]

O socialismo que nós temos em mente, afirma Tillich, é um socialismo transformado. O primeiro período do socialismo, o período heróico, terminou. O segundo, aquele da ação transformadora, é exteriormente mais fácil, mas interiormente mais difícil. Ele deve colocar de lado coisas que convinham ao primeiro período e deve iniciar, elaborar e realizar um número infinito de coisas novas em cada domínio. Cuidar para que uma tal elaboração tenha por base o ultimate concern e que seja o mais universal possível.

E Tillich completa: o socialismo não deve ser um programa, mas um risco que autoriza o ultimate concern e que mantém aquilo que é humano em toda sua amplitude. Este é o socialismo que nós servimos, que é o fundamento, a força e o propósito da estruturação plena de sentido daquilo que vem.












4. DIANTE DA SITUAÇÃO-LIMITE


4.1. A defesa da vida


Mas é impossível buscar o sentido da vida sem fazer a defesa da vida. A denúncia permanente da ameaça à vida sempre foi considerada uma tarefa prioritária do Versus. Em abril de 1979, o jornal publicou uma longa matéria sobre a mortalidade infantil no Brasil. Dizia:

Em 1979, nascerão 4,5 milhões de crianças, mas 450 mil estão condenados à morte antes de fazerem o primeiro aniversário. Ou seja, de cada mil brasileiros que nascem, cem morrem antes de completar o primeiro ano de vida. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) morre no Brasil uma criança por minuto com idade abaixo de um ano. Os índices oficiais e oficiosos, embora conflitem em décimos percentuais, são os maiores e os mais exorbitantes do mundo. Segundo o professor João Yunes, do Centro de Estudos de Dinâmica Populacional a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em 1970, estima-se que morreram 108,6 por mil nascimentos. Relativamente a países com o mesmo nível de desenvolvimento do Brasil, de acordo com o Anuário Estatístico da Organização das Nações Unidas (ONU) morrem na Tailândia 21,8 crianças por mil nascimentos; Sri Lanka 45,1; Iraque 27,5; Grécia 24,1; Portugal 38,6; e Argentina 59 por mil. [54]

Ao lado da crítica social, que tem por base a ética do amor, Versus faz a defesa de uma atitude positiva que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude, conforme expõe Tillich, traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico, mas também de gerar ações para a construção de uma outra ordem social, que inclua periféricos e excluídos. Isto  porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. E para Versus, que traduzia um slogan do presidente chileno, o socialista Salvador Allende, as crianças devem ser os únicos privilegiados.


4.1.1.  A criança e a ética do amor


Versus conta que as crianças brasileiras, pobres, defrontam-se ainda com uma luta maior, pois aos sete anos ou menos dependem somente de suas forças.

Segundo a revista norte-americana Time, de 11 de setembro de 1978, existem no Brasil, 16 milhões de crianças abandonadas e carentes. Na matéria intitulada “Brazil’s World Generation” (A geração perdida do Brasil), o Governo gasta CR$ 760 milhões com o “bem estar do menor”, porém só 11,8 por cento das cidades brasileiras recebem alguma ajuda. No Nordeste brasileiro, estão 10 por cento dos estabelecimentos federais para amparo ao menor, devido ao alto índice de natalidade. Acrescenta ainda a “Weekly Magazine” que num orfanato em São Paulo, o QI (quociente de inteligência) oscila entre 50 e 70, o que seria diagnosticado nos Estados Unidos como “retardamento mental”. Mais ainda, segundo a Time existem para cada dez mil crianças um estabelecimento governamental, e que a verba destinada, por exemplo à Febem, de São Paulo, não ultrapassa Cr$ 58 milhões, sabendo-se que o custo mensal de uma criança é de Cr$ 2.800, e que são recolhidos por noite 25 menores. Apesar do mal estar dos órgãos responsáveis e a aplicação dos serviços de segurança para saber quem passou às informações à revista, Roberto Cavalcante, diretor da Funabem do Distrito  Federal, diz que Time fora até Brasília, e ele fornecera os dados requeridos. Confirmando os dados do semanário, Cavalcante lembrou a Comissão parlamentar de Inquérito do Menor de 1975, que registrava as infrações cometidas por menores: furto, 83 por cento; tentativas ou homicídios consumados, 29,02 por cento; delitos sexuais, 46,16 por cento, outros, 49,67 por cento. Numa entrevista ao jornal O Globo, o Juiz de Menores, Alírio Cavalieri, afirmou que a delinqüência juvenil entre 1970 e 1977 subiu 300 por cento, segundo o conhecimento policial, não levando em consideração a delinqüência real, que não chega aos livros de ocorrências policiais. Todos estes números confirmam uma única coisa: os menores brasileiros roubam e matam por uma única razão, muito bem sintetizada na CPI do Menor de 1975: a pobreza é a causa preponderante da marginalização menor em 90,26 por cento dos municípios brasileiros. [55]

A preocupação com a pobreza e o abandono de milhões de crianças pode ser entendida como uma preocupação apenas legalista, técnica, que visa responder aos princípios da lei natural presentes na Constituição brasileira.

Versus não via assim. Fazia parte de sua ética socialista a defesa da vida, e o amor não se colocava fora de suas perspectivas, mesmo quando recorria à legislação vigente para defender os direitos das crianças abandonadas pelo sistema.

Para Tillich, o amor está acima da lei, tanto da lei natural do estoicismo, como da lei natural de qualquer heteronomia. Para ele, a ética do amor tem um caráter ambíguo, porque se por um lado é um mandamento incondicional, por outro é o poder que está por detrás de todos os mandamentos.[56]

Para Tillich, é precisamente este caráter ambíguo do amor que possibilita a solução da ética num mundo em transformação. Assim, até mesmo os princípios da lei natural expressos em determinada Constituição se traduzem enquanto concretização do princípio do amor em dada situação, representam o amor ao estabelecer a liberdade e os direitos iguais para todos contra as arbitrariedades, repressões e a destruição da dignidade dos seres humanos.

Mas, em última instância, afirma Tillich, a resposta à necessidade de uma ética num mundo em transformação deverá ser determinada pelo kairós, mas somente o amor consegue aparecer nos momentos de kairós. O amor, ao realizar-se de um kairós a outro, cria uma ética além da alternativa entre ética absoluta e a relativa.[57]


4.1.2. Racismo, mortalidade infantil e justiça


O Brasil necessitava de uma ética, mas aparentemente estava longe dela. Na busca de soluções, Versus pergunta: quais as razões da mortalidade infantil e da criminalidade infanto-juvenil? Este é um problema muito discutido hoje, mas em 1979 Versus procurava respostas. E acaba por relacionar entre suas causas uma catastrófica distribuição de renda, miséria endêmica e racismo.

Em agosto de 1978, a assistente social Maria Benedita Salgado Arcas, já denunciava: “O problema não é o menor abandonado, mas as famílias abandonadas. O verdadeiro problema é a carência das famílias”. Funcionária lotada na Febem do Tatuapé, Maria Benedita tocara com profunda acuidade o cerne do problema, a má distribuição da renda regional e a péssima distribuição da renda individual.
Muitos juízes de menores, inclusive o ex-presidente da FEBEM, João Benedito de Azevedo Marques, acabaram afirmando então que era necessária uma “transformação da estrutura sócio-brasileira”. [58]

Versus analisa, então, até que ponto o racismo é um sério entrave para uma política social.

Mas ao colocar a questão racial na adoção das crianças, Paulo Rui deixou aberta a porta de um raciocínio mais abrangente. Voltemos a alguns dados acima. A população baiana tem um índice de mortalidade que triplica o índice de Angola, mesmo considerando a sua densidade demográfica. Os maiores índices de mortalidade infantil ocorrem nos estados de maioria negra, ao contrário dos estados do Sul e Sudeste. Todos os números apresentados, de desnutrição, doenças, retardamento mental dizem respeito muito mais aos negros destes estados que ao número de brancos, em sua maioria situados abaixo do Trópico de Capricórnio. As unidades de “bem estar social” são guetos estruturalmente construídos com um capricho superior ao das prisões, mas não lhes fica devendo nada em relação ao tratamento dispensado.
No Brasil vê-se a questão do racismo individual, quando este é uma versão cuja conseqüência brutal é institucional, gerando o desemprego, a criminalidade e a morte de milhões de negros. O sonho de “embranquecimento” do Brasil, vai, enquanto isto, à todo vapor, pois aliado a imperiosidade de miscigenação, vai se diluindo a população negra no Brasil. [59]

A análise da situação das crianças abandonadas levou o Versus a enfrentar-se com a realidade da discriminação racial no Brasil. Mais uma vez, tal questão poderia ter sido encarada apenas como mera questão técnica. Mas aqui o amor tem uma outra tradução: justiça.

Para Tillich, quando tomamos o conceito de justiça, concretamente, significa a lei e as instituições portadoras do amor em situações especiais. Para o socialismo, a justiça deve representar, na sociedade futura, plena de sentido de vida, o sistema de leis e formas capaz de manter e de desenvolver a segurança necessária para todas as pessoas[60]. Por ora, por não existir tal sociedade, a justiça, mesmo como princípio secundário, que traduz um momento do amor, deve ser buscada.

Fica, no entanto, uma constatação colocada por Tillich: o amor é a própria vida em sua unidade concreta. As formas e estruturas do amor são as formas e as estruturas que possibilitam a vida, nas quais as forças destrutivas são superadas. Este é o sentido da ética: expressar as diferentes maneiras da concretização do amor e da manutenção e salvação da vida.[61]


4.2. As greves – uma busca de sentido


A luta operária que acontecia nas fábricas e sindicatos traduzia essa busca de sentido. Uma vanguarda operária começava a surgir e novos nomes até então desconhecidos pela população passaram a ter destaque nos noticiários. O nome de Lula, líder sindical metalúrgico, começou a ser conhecido no país no dia 12 de maio de 1978, a partir da cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo. Mas o surgimento desse sindicalista traduzia um fenômeno maior, um quase levante dos trabalhadores do ABC paulista, que na seqüência dos dois anos seguintes vão destroçar a legislação antigreve do governo militar e abrir caminho para o fim do governo militar.

Versus de outubro de 1978 afirmava que depois de muito tempo, 14 anos, os trabalhadores conquistam um direito que sempre foi seu: a greve.

Para que isso acontecesse foi preciso muita coragem e operários decididos que iniciassem um movimento que toma caráter nacional. A explosão das greves por reivindicações salariais iniciadas no ABC se estende a novas categorias de trabalhadores, a novas cidades e estados. [62]

Os metalúrgicos da Belgo Mineira, em João Monlevade, iniciaram o mês de setembro em greve, reivindicando melhores condições de trabalho e de salários, afirma Versus.

Naquele número do jornal, quatro líderes sindicais mineiros falaram sobre as greves em São Paulo, seu significado, a repercussão que tiveram em Minas e as perspectivas do movimento. Na seqüência veremos o que pensavam e o que queriam, já que esses homens traduziam as aspirações de milhões de trabalhadores.

 

 

4.2.1. “A terra tem sede”



O ensinamento fundamental da greve do ABC, na sua significação social, de organização, é o marco histórico que ela assinala, o da divisão entre os trabalhadores e os grupos imperialistas que centraram sua atuação em São Paulo.
A política econômica exportadora, seguida do arrocho salarial e conjugada com a falta de representatividade dos sindicatos, já se tornou insuportável. O empobrecimento dos assalariados no Brasil é tal que hoje já não se pode nem mesmo falar em classe média. Daí que o movimento grevista, que prossegue, foi uma revolução contra a fome, uma rebelião contra a negação de um dos mais elementares direitos da pessoa humana, que é o de comer.[63]

O discurso de Dídimo a favor de um direito de greve pleno, que por extensão pode e deve ser entendido como pensamento político e sindical do jornal Versus e da Convergência Socialista, nos remete a Tillich, pois naquele momento os trabalhadores começavam a fazer história.

Para Tillich, história é quando nós determinamos em liberdade, mas é também onde somos determinados pelo destino em oposição à liberdade.[64] Mas, em determinadas épocas, o estabelecimento do poder de ditadores faz predominar as necessidades, como conseqüência da catastrófica destruição do sistema liberal de vida.

Nesses momentos, em que a vida humana perde seu valor e prevalece a falta de sentido, o socialismo é chamado a fazer história. É uma postura ética, um desafio à situação-limite, quando a vida humana se vê confrontada pela mais tremenda ameaça.

O relato de Dídimo, assim como de seus companheiros, traduz a aceitação desse desafio: o de colocar-se na brecha, a aceitação do risco da opção socialista.


4.2.2. “Somos pára-raios”

E por haver trabalhadores e socialistas, mesmo nos mais negros períodos do regime militar, sempre houve uma ação contra o regime, pois como Tillich explica, o ser humano está sempre agindo, mesmo que o conteúdo de sua ação seja a inatividade. É o que explica João Paulo Pires Vasconcelos:

O movimento sindical não morreu ao longo desses 14 anos da política salarial, de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, de administração coercitiva e autocrática. Ele estava em hibernação, e agora o problema salarial, as condições sociais do operário, chegaram a um ponto de saturação. A manifestação em São Paulo é o extravasamento de tudo que estava reprimido, por sufoco.
As lideranças sindicais surgidas lá no ABC, principalmente, foram fruto de uma conscientização de base. Realmente existia o espírito de classe, e uma identidade entre as direções e as bases. A espontaneidade do movimento existia dentro do sindicato, porque os homens que ocupam o sindicato saíram da fábrica com essa mentalidade.
Os frutos que se colheu disso, como muito bem disse o companheiro Lula, é que as reformas que o trabalhador pretender ele terá que fazê-las. Não se pode esperar, como nos tempos passados, que se faça gratuitamente as reformas para nós. Essa greve vem mostrar que é o momento do trabalhador se conscientizar da importância histórica da sua posição, de acabar com esse atrelamento das entidades sindicais ao Ministério do Trabalho, e de iniciar realmente a contratação coletiva de trabalho – aproveitando a experiência dos companheiros, de sucesso absoluto através da greve.[65]

Qual a importância dessas greves? Em que sentido apontavam para algo novo? Tanto para Tillich, como para os socialistas, o protesto operário nas suas várias manifestações está ligado à luta de classes. Para Tillich, tal luta está fundada nas leis naturais da economia liberal e todos os indivíduos se encontram metidos nela, sejam proletários ou não. [66]

E porque a luta de classes é uma realidade estrutural do capitalismo, os juízos morais sobre ela na maioria das vezes vêem-se transbordados por abordagens ideológicas. Mas para Tillich é impossível fechar os olhos diante de sua existência, porque a luta de classes é uma realidade, uma realidade sem dúvida demoníaca, uma tendência destrutiva do sistema.

Por isso, não é possível, afirma Tillich, exigir um socialismo sem luta de classes, pois significaria trair a situação real do proletariado. É, em última instância, favorecer à utopia, que pode até ser legitimada religiosamente, mas nem por isso será melhor. [67]

Para Versus, as greves eram parte da luta dos trabalhadores, que permitiam experiências de organização e solidariedade, que fortaleciam e preparavam esses mesmo trabalhadores para novos enfrentamentos. Daí o entusiasmo visível nas reportagens sobre as greves vitoriosas e as análises solidárias diante daquelas que foram derrotadas. 

 

 

4.2.3. “Rebelião da fome”



Para Tillich, cada luta particular do proletariado, seja ao nível político ou salarial, busca em última instância levar à plenitude do ser e ao sentido da vida. Assim, visa superar o demoníaco que se revela ao proletariado através de seu poder destrutivo. E através dessa luta, a vida do proletariado adquire sentido.

Vê-se isso no relato de Joaquim José de Oliveira: 

O significado da greve de São Paulo, para a gente aqui em Minas, foi grande sabendo-se que nossa condição é bem pior que a de São Paulo.
Infelizmente, as nossas autoridades alegam que o salário do trabalhador é fator inflação. Mas eu discordo das nossas autoridades. O salário do trabalhador não é fator inflação, mas sim desenvolvimento. Nenhum trabalhador tem dinheiro pra botar a juros ou fazer qualquer outro negócio: o dinheiro do trabalhador entra num bolso e sai no outro. (...)
Em Minas, parece que as autoridades que controlavam os preços das coisas abriram mão do setor açougue, e o operário não pode mais chegar em porta de açougue. A carne que eu comprava no ano passado a catorze cruzeiros, agora está custando quarenta e quatro... Os meus filhos não sabem o que é tomar leite. No dia em que levo, por acaso, um litro de leite, me perguntam se existe alguém doente – porque não é costume, o meu salário não dá. Mas eu apelo pra sardinha de quatro e quinhentos, essas coisas – ossos que são vendidos para tratar de cachorro... mas a gente é obrigada a comprar pra levar para casa. Então acontece que, na conjuntura que se está vivendo, a gente tem que pensar no que vai se fazer porque chegamos num ponto que não tem mais pra onde apelar. Como um trabalhador vai revigorar as energias se ele não tem condição de comprar aquelas matérias como ovos, leite e outras coisas que ele precisa para se alimentar?
Se todo mundo estiver sofrendo como eu a situação de custo de vida, será impossível continuar da maneira que estamos. Porque estamos fechados, encurralados de maneira que não tem mais pra onde escapulir.
Acho, então, que é preciso realmente nós olharmos para os companheiros de São Paulo, e ver que têm razão quando sentiram o problema e resolveram unir suas forças e mostrar que realmente as leis que nos rodeiam não são capazes de dominar as nossas necessidades. Que muitas vezes a fome suplanta qualquer lei.
É o que a gente tem que pensar: que o trabalhador, a única coisa que ele tem nas mãos é a sua união. Porque, se somos o pivô da riqueza do país, também somos o pára-raios: porque todo o custo de vida que se produz no país cai nas costas do trabalhador. Qualquer coisa que acontece dentro do Brasil, qualquer prejuízo, é descontado nas costas do trabalhador. O trabalhador unido, dentro dos princípios democráticos e cristãos, resolve os seus problemas. Como o pivô da riqueza tem que ser reconhecido como pessoa humana, que deve viver condignamente que deve se alimentar, e as autoridades devem olhar e pensar na justiça social porque nós somos aqueles que produzimos, nossa mão-de-obra e o capital pesam igual na balança porque o valor do dinheiro é o mesmo da mão-de-obra. [68]

É muito interessante ver que Joaquim José de Oliveira, socialista, considera que os trabalhadores devem estar unidos dentro dos princípios democráticos e cristãos. O que nos remete a Tillich, quando afirma que através da luta, o proletariado se sente um combatente do reino de Deus, se sente investido de uma condição messiânica, para ele e para a sociedade de conjunto.[69]

Na luta, o proletariado perde a insegurança e não considera a situação como sem saída. Em meio a ausência de sentido, passa a ver um sentido: ele é o instrumento da luta contra uma situação que rouba ao homem todo sentido humano.

 

 

4.2.4. “Romper os diques”



Para muita gente, as lutas salariais eram questões sindicais que não tinham relação com os problemas políticos que a sociedade brasileira enfrentava. Versus discordava disso. E Tillich, também vê assim. Para ele, a política é o real. Ela está no mundo. Por isso, quando o proletariado luta, combate politicamente. E realiza esta luta animado por uma fé na sociedade sem classes, no reinado da justiça, no reino de Deus.[70]

Por isso, é fácil entender porque Arlindo José Ramos em sua entrevista extrapola o meramente salarial e sindical e diz que os trabalhadores colocaram de lado os códigos impostos pelas classes políticas dominantes.

A greve representa a volta do sindicalismo ao seu leito normal. O sindicalismo que brotava no Brasil até a década de 20 foi colado dentro de uma represa; a Legislação da CLT que lhe deu os contornos que as classes dominantes vencedoras da revolução de 30 entenderam ser os limites permissíveis para a organização da classe operária.
Esse represamento foi repetido depois de 64, mas as águas da represa já estão transbordando. Os trabalhadores redescobriram que as soluções para os seus problemas sairão das suas próprias cabeças e mãos, da força da sua união. Resolveram romper esses diques e desconhecer a lei de greve, a legislação salarial, a decisão dos tribunais. Puseram de lado os códigos impostos pelas classes políticas dominantes, que são ao mesmo tempo as classes econômicas dominantes. E souberam se portar maduramente e com grandeza nesse episódio, captando o reconhecimento de toda a nação.
O movimento de São Paulo faz com que os trabalhadores voltem a confiar em si mesmos e se disponham a seguir o seu exemplo, que é uma lição para todo o movimento operário do país. Aqui em Minas Gerais, por ocasião das campanhas que encetarem, sindicatos e trabalhadores perceberão na prática a resposta que darão daqui para frente as suas reivindicações, tendo em vista os êxitos alcançados em São Paulo.
É hora dos trabalhadores ocuparem todo o espaço que se abrir dentro da sociedade brasileira, espaço que sempre lhes pertenceu, mas não era por eles ocupado. E não deixar sempre de dar um passo adiante, quando a hora seja de avançar. [71]

Assim para Versus, essa relação entre a questão salarial e a democrática permitiria entender a aquela vanguarda classista que surgiu com as mobilizações, a partir de maio de 1978. Esta vanguarda classista estava a surgir mais como necessidade do que como consciência.

É a passagem da questão democrática à política, só que fica no meio. Explicando: a necessidade de unificar as lutas, de dar respostas democráticas, de conseguir vitórias salariais, está levando um setor da vanguarda a tentar uma resposta política para o país, mas esta resposta não está surgindo da consciência de que o problema do país é político e de que só um partido dos trabalhadores é a solução. Para a maioria dos trabalhadores esta situação não está clara, nem mesmo para um setor de vanguarda. Eles entendem, empiricamente, que é necessário criar algo que permita o avançar das lutas, e que este algo não é o MDB. Assim, a vanguarda classista é de fato a mediação entre a questão salarial/democrática e a questão política. [72]

Aqui, Versus faz a ponte entre as lutas salariais e democráticas e a questão política, mostrando que os trabalhadores devem se organizar em partido para enfrentar politicamente o regime militar. É certo que apenas as lideranças sindicais classistas começavam a ter consciência dessa necessidade, mas a cada greve, a cada experiência nova diante da luta de classes, os trabalhadores brasileiros foram entendendo o papel que lhes cabia na democratização da sociedade.


4.3. O regime militar no banco dos réus


Mas o julgamento do regime militar não apareceu no Versus apenas pela boca de civis. Um dos mais conhecidos historiadores do país, Nélson Werneck Sodré, ex-militar, analisou no jornal o impasse que o conjunto das Forças Armadas vivia naquele momento.

O golpe de 64 foi de qualidade diferente, algo novo no terreno das intervenções militares brasileiras e o novo custou a aflorar. O próprio presidente Castelo Branco diria em seus pronunciamentos que aquilo era transitório: tratava-se de fazer uma nova Constituição, fazer um novo sucessor e estaria terminado o movimento. O regime tem três etapas ao meu ver. A primeira de 64 a 68. Em 68, o regime adquire sua fisionomia definitiva, e tem o seu apogeu no período 68 a 74. Em 74 começa a declinar. De 68 a 74 o regime tem um caráter completamente diferente de outros regimes presididos por militares nesse País, mais especificamente o chamado Estado Novo que foi uma ditadura militar exercida por um civil. De que decorre essa diferença? Justamente das contradições sociais apresentarem-se hoje no Brasil com muito mais força do que antes. Inclusive a classe operária, uma classe relativamente recente em nossa história, começa a aparecer no palco político, e pretende ocupar um certo espaço, disputar direitos, como o direito de se organizar, e chegar a esse tipo de organização centralizada que é o Comando Geral dos Trabalhadores, ou algo dessa natureza. Os militares vêm sendo doutrinados violentamente para encarar essa pretensão como uma arma contra a humanidade quanto é uma coisa perfeitamente normal. Mas a doutrinação no processo da luta ideológica consiste justamente em apresentar a indivíduos ou a instituições como uma verdadeira heresia aquilo que é normal. É o processo de lavagem cerebral. Este processo é exercido através do que se chama doutrina de Segurança Nacional. Esta doutrina é inoculada nos militares individualmente, e não só nos militares, porque hoje ela abrange o País todo, todas as atividades, todas as classes, todas as profissões, para que encarem como uma ameaça séria ao próprio País as formas de organização operária, estudantis e religiosas, mas, particularmente, as operárias. Então, o novo é que fez com que surgisse uma forma nova de intervenção militar, uma forma nova de regime militar. As contradições da sociedade brasileira se aprofundaram e não vão desaparecer por causa disso, nem vão deixar de se aprofundar, vão resistir, vão achar que a coisa é anormal por algum tempo. A própria realidade vai mostrar para eles que não é anormal, que é uma exigência da própria sociedade. Espero que algum dia se convençam disso.
O processo histórico se caracteriza por um fato que é muito pouco estudado que se chama ritmo. Às vezes o ritmo é lento, ás vezes é acelerado. Vive-se, em um período curto, mudanças significativas. Espero que esta mudança para uma visão mais justa do processo social resulte de um ritmo mais rápido. De qualquer forma, a realidade é mais forte do que qualquer organização militar. [73]

Assim, o regime militar, com suas deformações e promessas, foi julgado por parcelas  do movimento socialista e dos trabalhadores brasileiros. E desse julgamento nasceu uma ação transformadora, da qual o jornal Versus e a Convergência Socialista, assim como outros grupos, foram tradutores e partícipes.


4.4. Jovens na brecha


Dezenas de ativistas da Convergência Socialista eram operários, trabalhavam nas fábricas do ABC e atuavam nos sindicatos. Isso faz com que o jornal Versus sofra uma visível mudança com o surgimento das greves do ABC. Deixa de ser um jornal que reflete uma realidade distante para ser, também, um porta-voz de parcela da militância sindical.

Jovens sindicalistas, heróis dos sonhos socialistas, passam a freqüentar a redação do jornal, transformando-se em articulistas e correspondentes do Versus no front das greves operárias.


4.4.1. “Um arrepio na espinha”


Quando a repressão se fez sentir sobre a Convergência Socialista, muitos jovens foram presos. Justino Lemos Pinheiro conta sua experiência.

A trepidação do ônibus, monótona, a luz amarelada, fraca, aumentavam a  sonolência. Fechei o jornal. Fechei os olhos e soltei o pensamento. A Convenção – os punhos erguidos, as conversas sobre o PS, aqueles mortos marcados pela exploração capitalista, a bonita garçonete que me servia no restaurante da esquina, passavam e voltavam a mente.
Abri os olhos. Era perto de 23 horas de 22 de agosto. O ônibus Santo André via Prosperidade, contorna a praça da Riqueza e segue pela rua Eldorado. Passa o primeiro ponto, pego minha sacola e dou sinal. O ônibus pára na esquina da rua dos Mármores. Desço. Espero que se vá. A rua deserta. Apenas um Volks azul velho estacionado ao longo. Atravesso a rua pensando em tomar um banho e cair na cama.
Repentinamente ouço ronco forte de motor de automóvel. Viro-me e vejo o Volks velho vindo em minha direção a toda velocidade. Imagino um seqüestro. Esboço uma fuga. Sinto quatro mãos fortes e violentas me agarrarem. Começo a gritar por socorro, na esperança de que surjam testemunhas. Surgem pessoas nas janelas, assustadas, continuo a gritar. Mas quatro mãos juntam-se às anteriores e são suficientes para me dominar, imobilizando pernas, braços – o grito não passa mais pela pesada mão que comprime minha boca. Segurado pelo paletó – que se rompe – e pela calça – que se rasga – jogam-me no banco traseiro do Volks. Sou encapuzado e algemado. O carro arranca em grande velocidade.
- Grita agora seu filho-da-puta!
- Vamos descarregar esta máquina nele... tá cheinho de bala, neném.
- Não, agora não! Vamo levá ele prá Praia Grande beber um pouco de água salgada... depois...
As frases berradas eram entrecortadas por socos na cabeça e nas costas. Andamos por uns dois minutos.
Atenção base! Estamos estacionados em Avenida de mão dupla. Manda alguém para recolher ele.
O rádio do carro funcionava insistentemente. Algum tempo depois chega um outro carro.
- Tirem o capuz...
- Mas chefe...
- Podem tirar, não tem importância.
Retiraram o capuz e as algemas e me levam para outro carro, que se põe em marcha.
- O que houve meu filho? Foi assaltado
- Como? Fui seqüestrado!
- Ah! Estes policiais de hoje!
- Pra onde estão me levando?
- Para o DEOPS! LSN, meu filho!
Desci do carro. Olhei em toda a sua sinistra imponência, o Batalhão Tobias da Aguiar. Um arrepio percorreu minha espinha.
Entramos. Escadas  e mais escadas, sempre subindo.
Levaram-me para uma sala com algumas poltronas.
O ambiente apesar de fúnebre, era de uma atividade febril, homens correndo por todo o canto, berrando ordens, vez ou outra se dirigindo a mim com grosserias.
Não tardou para que percebesse logo o motivo de toda a agitação. Comecei a ver companheiros da Convergência Socialista por todo o lado. O ambiente era de uma opressão indescritível.
(...)
Quando desci à cela, soube que havia ocorrido uma assembléia na PUC, com dois mil estudantes que haviam deliberado um ato público para nossa libertação. Soubemos por entre as grades, espalhamos a notícia e os gritos de “Viva” encheram o corredor sombrio que dá acesso às celas.
O ânimo, a confiança no movimento de massas, a certeza da transitoriedade daqueles momentos nos davam forças para suportarmos com dignidade os intermináveis interrogatórios. A greve de fome, deflagrada na quinta-feira de manhã, reivindicando melhores condições carcerárias e quebra da incomunicabilidade para advogados e familiares, seguia com muita confiança.
(...)
No sábado o DEOPS não parecia o mesmo. Começaram a nos tratar com muita delicadeza, procurando nos oferecer o máximo conforto! Não tínhamos confirmação das manifestações, mas conosco, por apenas observar as atividades dos policias, estava a certeza que o movimento de massas havia dado um trabalho aos repressores e estava pressionando forte.
(...)
No domingo, às 10hs me levaram para o cartório, de lá saí às 16hs, voltando para a carceragem. Como não tinha nenhum objeto meu na cela, não permitiram que pra lá voltasse para me despedir dos companheiros. Na sala de identificação, enquanto colocava mais dados em dezenas de fichas, encontrei Bernardo, que fazia o mesmo e lhe avisei que estava saindo.
Dali para o DEIC, para exame de corpo de delito no IML. Lá o médico perguntou se havia sido torturado, ao que respondi que não, carimbou a ficha e me despachou. Voltamos ao DEOPS e lá o delegado de plantão disse que eu estava livre. As portas do Batalhão Tobias de Aguiar se fecharam ás minhas costas.
Olhei para cima. Olhei para as pessoas passando e que não sabiam de nada. Senti o cheiro de liberdade entrar forte em meu peito. Senti que a luta vale, que os objetivos são certos e honestos. E que o caminho é este mesmo: um grande Partido Socialista, que lute pela emancipação definitiva dos trabalhadores. [74]

Começaram a nos tratar com muita delicadeza, contou Justino. Depois da opressão e da tortura, delicadeza. Delicadeza, humanidade? O conceito de humanidade, afirma Tillich, que traduz a idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais do que uma realização acidental. Na verdade, essa consciência de humanidade foi neutralizada pela consciência de classe no poder, pela educação para uma elite e pela dependência nacional. Por isso, para Tillich, se o socialismo é uma herança da cultura universal, tem uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. E é através dessa experiência que a idéia de tolerância ainda se mantém viva. Justino estava vivendo a sua situação-limite.

 


4.4.2. “A certeza do pesadelo”

 



A presença das mulheres sempre foi forte e marcante no Versus e na Convergência Socialista. E seria um erro imaginar que a participação delas era secundária ou de menor importância. Ao contrário, em vários momentos foram líderes e direção do movimento. Hilda Machado conta sua prisão.


Aonde estão as armas? Onde vocês esconderam?
A princípio a impressão de irrealidade. Depois a certeza de que o pesadelo não estava no meu sono, mas fora dele. Estava sendo arrancada da cama, às 7:00 da manhã para ser jogada no meio de um delírio. Dois homens dentro do quarto. Um deles com uma arma encostada na minha cabeça. O outro me empurrava com o pé – Vamos levanta, levanta!
Levantei e vi a companheira que estava dormindo no outro quarto sendo trazida por outros dois. Nos levaram para a cozinha e nos fizeram sentar. A casa em alvoroço. Eram seis homens armados, falavam muito pelos rádios transmissores, reviravam a casa e nós escutávamos suas vozes irritadas. – Nessa casa não tem nada! Eles queimaram tudo!
Continuamos presas na cozinha até 13:30 quando fomos levadas para o DEOPS. Entro numa sala e o delegado falou gritando, de grupos clandestinos – Fala logo, já sabemos tudo. Seu marido está preso desde ontem! Palavrões, ofensas, simulações – Essas merda é simpatizante! E no meio de tudo, eu lembrava das palavras de um companheiro durante a I Convenção da Convergência Socialista – “Eles têm medo do povo!”
Não sei quantas vezes fui interrogada, não lembro. Só sei que eram sempre grosseiros e cada vez mais irritados por que não sabia responder ao que queriam. Perguntaram porque eu achava que estava sendo presa. Falei que sou socialista, quero um partido dos trabalhadores, participo do movimento Convergência Socialista e estou trabalhando no Comitê Eleitoral de Benedito Marcílio. Num dos interrogatórios contei doze homens gritando na minha frente. As palavras saíam sujas com provocações.
Apesar de ter sido presa da mesma maneira ilegal de sempre e estar nas mãos de quem torturou e matou tantos outros, não sentia medo. Saí do primeiro interrogatório para uma sala. Maura estava lá. Nos olhamos mas fomos proibidas de falar. Ficamos sendo vigiadas durante horas e só muito tarde desci para a cela. Encontrei sete pessoas ainda perplexas. Achávamos que aqueles homens eram loucos, mas em nenhum momento tivemos dúvidas quanto a repercussão das nossas prisões. A primeira noite na cela quase congelamos. A temperatura estava muito baixa e não havia cobertores. No outro dia enviamos uma carta ao diretor e entregamos em greve de fome, exigindo melhores condições carcerárias e quebra de incomunicabilidade. Sabíamos que não seríamos torturados. Sabíamos que as greves de maio no ABC, vêm mostrando o caminho para o movimento de massas e sentimos que o tratamento começava a melhorar com as mobilizações dos diversos setores. Apesar de tudo eles não desistiram das pressões e chantagem até o último momento. Minha mãe passou dois dias esperando por mim na sala do DEOPS. Enquanto isso colocavam um telefone na frente e diziam: Fala com tua mãe agora, só que antes escreve, escreve com tua letra tudo do PST. Diz tudo, ao negar você só está se comprometendo. Escreve e você sai daqui agora. E eram tomados por acesso de cólera e agrediam verbalmente.
Quando voltei para casa, aí sim, senti vontade de chorar. Estava tudo completamente revirado. No primeiro momento percebi que estavam faltando livros, bônus de venda dos jornais e marcas de pés sujos de lama em cima da minha cama. [75]

No depoimento desses dois jovens, uma palavra nos vem a mente: fé. Fé política e social, que os impulsionaram para frente, certos de que criariam um Brasil socialista. Para Paul Tillich, diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propõe criar uma nova vida cultural e social, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, a uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se incondicionalmente de todas as coisas.


Texto extraído de 


Universidade Metodista de São Paulo
Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião


ÉTICA SOCIALISTA E ESPÍRITO PROFÉTICO
Um estudo sobre o pensamento [Cultura e Sociedade]
do Movimento de Convergência Socialista,
segundo o jornal VERSUS,
a partir dos escritos socialistas de Paul Tillich

por
JORGE PINHEIRO DOS SANTOS



Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do
Curso de Pós-Graduação em Ciências da Religião
para obtenção do grau de Mestre.








São Bernardo do Campo, junho de 2001





[1] Jornalistas e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa, São Paulo, Scritta Editorial, 1991, pp. 77-78.
[2] Entrevista de Marcos Faerman, 16/08/90 in op. cit., p. 193.
[3] Bernardo Kucinski, op. cit., p. 200.
[4] Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9.
[5] Idem, op. cit., O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9.
[6] Ibidem, op. cit., pp.3-9.
[7] “Versus nasceu há três anos. Trazia uma proposta nova. Carregava uma perspectiva ampla. Viveu, pelo esforço de jornalistas, intelectuais e leitores. E afirmou-se como uma publicação respeitada. Teimosamente, Versus defendeu o continente contra a opressão. Divulgou culturas desconhecidas. Publicou autores que o circuito editorial dos “best sellers” e do academicismo universitário ignorava. Rompeu com a linguagem do jornalismo de encomenda. Lutou contra o que era burocrático e estéril. Desde o primeiro momento, entendemos que a cultura rebelde passava pelas veias do povo. Índios, negros, trabalhadores, personagens ignorados pela cultura oficial, o Versus que fizemos eram os protagonistas. Naturalmente, os espíritos colonizados, que têm um olho em Paris e outro em Nova York, atacaram nosso trabalho. Isto fazia parte da luta. Não era risco. Era a gratificação. E nesta luta também se inclua pressão do oficialismo, o boicote dos anunciantes, os telefonemas suspeitos, as ameaças frontais, os interrogatórios de praxe. Tudo fazia parte do jogo. E o cenário se transforma. Pela luta de tantos, pelas divisões do poder, a expectativa democrática se amplia. E é na busca de uma definição maior diante do drama do cotidiano, de uma nação sufocada, que chegamos a um “programa”, há cerca de meio ano, no qual, além das lutas gerais democráticas, vislumbramos a necessidade de um partido socialista, democrático, legal, que unisse amplos setores do nosso povo. Passaram-se meses. Nós entendemos que a luta pelo PS chegou a um impasse. Por que a Convergência não conseguiu ficar à altura de sua proposição? Por que outros setores não aceitaram liminarmente (e nisto estavam errados) a proposta de construção de um PS? Seja com for, o isolamento da Convergência é um dado concreto, que ninguém pode ignorar. Mas, se a Convergência não consegue ser um pólo de união dos que anseiam por um amplo partido popular, ela, por outro lado, começa a pesar cada vez mais dentro do Versus. A tal ponto que, não importa se de uma forma inconsciente, torna-se um fardo a ser carregado. Lutamos dentro de Versus para impedir que a definição por uma posição implicasse em um empobrecimento editorial, na diluição de nossa linguagem, na politização grosseira das questões, no grupismo, na exclusão de outros setores. Mas, apesar deste esforço, entendemos que a intervenção de Versus, ao nível principalmente da questão da construção do partido popular, tornou-se repetitiva, monocórdica. Como se todo o impasse em que está a Convergência (seu isolamento) pudesse ser compensado pelas páginas do jornal. Esta é uma autocrítica diante de nossos amigos, de nossos leitores, dos companheiros jornalistas. Ao mesmo tempo, entendemos que, ao nível de intervenção cultural e da proposta de latino-americanismo combativo, Versus manteve muito de sua riqueza editorial. Embora os que falam a suspeita linguagem da “cultura militante” tenham tentado reduzir a proposta cultural da publicação ao tom cansativo de muitos textos políticos. Enfim: quem pode duvidar, a não ser os “convergentes” mais dogmáticos, que a estreiteza das bases políticas, teóricas e culturais da Convergência deveria se tornar em uma camisa de força para uma publicação tão indagativa e de vanguarda quanto Versus? Em nome de tudo isto – e para assinalar uma ruptura com a proposta da Convergência – decidimos não lutar dentro de Versus, mas trabalhar com outros companheiros intelectuais, jornalistas, dirigentes políticos, religiosos (todos os que estejam empenhados em lutar contra a opressão instituída) pela criação de uma nova publicação. Não acreditamos em donos da verdade. Nem em propostas amplas que se transformam em propostas estreitas. Não é por aí que passa, de verdade, a construção de um “amplo partido socialista”. Nem de uma pátria justa. Estamos na luta pela criação de uma nova revista, que será lançada nos próximos três meses. E já temos o apoio de muitos jornalistas e outros companheiros que acreditam neste projeto. Através da imprensa, manteremos todos os nossos amigos informados sobre os passos que estamos dando. Entendemos que estamos agindo assim de uma forma inteiramente coerente com o espírito deste jornal chamando Versus, para o qual dedicamos tanto de nossos esforços. E do qual, hoje, decididamente, DIVERGIMOS. São Paulo, 13 de agosto de 1978. Assinam: Marcos Faerman, diretor responsável e editor chefe, Mario Augusto Jacobskind, chefe da sucursal Rio, Vitor Vieira, editor-assistente, Cecília Thompson, colaboradora, Cláudio Willer, sub-editor, Isabel Rodriguez, colaboradora, Reinaldo Cabral sucursal Rio, Evaldo Dinis – sucursal Rio”. E o nosso editor chefe se foi.., São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 2.
[8] Ibidem, op. cit., pp. 3-9.
[9] Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9.
[10] Júlio Tavares, Convergência Socialista explica, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 8.
[11] Idem, Convergência Socialista explica, São Paulo, Versus no 24, setembro de 1978, p. 8.
[12] Idem, op. cit., p. 8.
[13] Idem, op. cit., p. 8.
[14] Idem, op. cit., p. 8.
[15] Idem, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9.
[16] Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, jan. de 1979, pp.3-9.
[17] Malcolm X, Por minha própria boca, por minha própria mente, São Paulo, Versus no 32, maio de 1979, pp. 41-42.
[18] Ênio Bucchioni e Omar de Barros Filho, O editorial dos editoriais, 1978, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.3-9.
[19] Hélio Goldsztejn, Meu nome é Waubun Niwi Nini, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.36-37.
[20] Ernest Mandel, Os dólares da fome, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.26-27.
[21] Paul Tillich, Le Socialisme, Christianisme et  Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 341.
[22] Idem, op. cit., pp. 341-342.
[23] Idem, op. cit., p. 342.
[24] Idem, op. cit., p. 342.
[25] Idem, op. cit., p. 343.
[26] Idem, op. cit., p. 343.
[27] Idem, op. cit., p. 344.
[28] A expressão francesa é ultimement-visé, mas utilizaremos a expressão em inglês ultimate concern, mais conhecida e teologicamente aceita. “O ultimate concern é a tradução abstrata do grande mandamento do amor a Deus. Trata-se do interesse religioso, que é último (decisivo, definitivo, tornando todos os outros preliminares e provisórios), incondicionado, total e infinito. O concern remete ao caráter existencial da experiência religiosa. O objeto da religião só pode ser atingido por uma atitude radical, não objetivante, total, por ‘uma paixão e um interesse infinitos’ (Kierkegaard). A preocupação suprema é a única competência do teólogo enquanto tal. Os interesses preliminares, em todos os setores da cultura, não podem ser absolutizados e substituir o interesse absoluto, mas devem ser considerados portadores e veículos dele”.  Etienne Alfred Higuet, O método da Teologia Sistemática de Paul Tillich – A relação da razão e da revelação in Paul Tillich trinta anos depois, São Bernardo do Campo, Estudos de Religião, Ano X, no  10, julho de 1995, p. 43.
[29] Paul Tillich, Le Socialisme II. Le Socialisme comme fondament de l’action transformante (Gestaltung), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.345.
[30] Idem, op. cit., p. 345.
[31] Paul Tillich, Le Socialisme, Christianisme et  Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 345-346.
[32] Idem, op. cit., p. 346.
[33] John Hope Franklin, God bless you Mr. King, São Paulo, Versus no 31, abril de 1979, p. 42.
[34] MLK Papers Project, volume II: Rediscovering Precious Values, setembro de 1951 a novembro de 1955.
[35] “É chegado o momento para tornar reais as promessas da democracia. É o momento para sair do escuro e desolado vale da segregação para o caminho ensolarado da justiça racial. Este é o momento para elevar nossa nação das areias movediças da injustiça racial aos sólidos rochedos da fraternidade. Este é o momento de se fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação menosprezar a urgência deste momento. Este verão escaldante do legítimo descontentamento do negro não passará, até que chegue o revigorante outono da liberdade e da igualdade. Mil novecentos e sessenta e três não é o fim, mas o começo. Aqueles que esperavam que o negro perdesse o fôlego e agora se sentiam satisfeitos terão um tumultuado despertar se a nação voltar à rotina habitual. Não haverá descanso nem tranqüilidade na América até que o negro assegure seus direitos de cidadão. Os vendavais da revolta continuarão a sacudir as estruturas de nossa nação até o claro dia em que a justiça emergir. Mas há uma coisa que devo dizer ao meu povo postado no limiar que conduz ao palácio da justiça. No processo de conquista de nosso justo lugar, não poderemos ser acusados de atos errôneos. Não busquemos a satisfação de nossa sede de liberdade bebendo no cálice da amargura e do ódio. Devemos sempre conduzir nossa luta pelos elevados caminhos da dignidade e da disciplina. Não podemos permitir que nosso criativo protesto degenere para a violência física. Mais e mais precisamos nos elevar às altitudes majestosas e combater a força física com a força espiritual. A maravilhosa militância que tem contagiado a comunidade negra não pode levar ao descrédito de todos os homens brancos, porque muitos de nossos irmãos brancos, como é evidente pela presença deles aqui, já perceberam que o destino deles está ligado ao nosso destino. E eles perceberam também que a liberdade deles está ligada à nossa liberdade. Não podemos caminhar sozinhos. E enquanto caminhamos, precisamos reafirmar o compromisso de sempre e caminhar em frente. Não podemos voltar atrás. Existem aqueles que perguntam aos que lutam pela causa dos direitos civis: “Quando vocês vão se considerar satisfeitos?”. Nós nunca ficaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos indescritíveis horrores da brutalidade policial. Não ficaremos satisfeitos enquanto nossos corpos, cansados de viagem, não puderem encontrar pouso nos motéis de estrada e nos hotéis das cidades. Não ficaremos satisfeitos enquanto a mobilidade do negro for apenas de um pequeno gueto para um gueto maior. Não poderemos nunca estar satisfeitos enquanto nossos filhos forem espoliados em sua dignidade por avisos como “somente para brancos”. Não ficaremos satisfeitos enquanto um negro do Mississipi não puder votar e enquanto um negro de Nova York achar que não há nada em que valha a pena votar. Não, não estamos satisfeitos e não ficaremos satisfeitos até que a justiça jorre como água e o direito flua como um poderoso rio. Não desconheço o fato de que alguns de vocês têm passado grandes provações e atribulações. Alguns acabam de deixar alguma apertada cela de prisão. Alguns vêm de regiões onde a luta pela liberdade foi respondida com temporais de perseguições e reprimida com os ventos da brutalidade policial.  Vocês têm se tornado veteranos do sofrimento criativo. Continuem seu trabalho com a convicção de que o sofrimento imerecido redime. Voltem ao Mississipi, voltem ao Alabama, voltem à Carolina do Sul, voltem à Geórgia, voltem à Louisiana, voltem aos cortiços e aos guetos de suas cidade no norte, com a certeza de que esta situação pode e deve mudar. Não nos arrastemos pelo vale do desespero. Eu lhes digo hoje, meus amigos - mesmo encarando as dificuldades de hoje e de amanhã, que eu ainda tenho um sonho”. Trecho do discurso de Martin Luther King Jr. pronunciado no Monumento a Lincoln, em Washington D.C., EUA, a 28 de agosto de 1963, após a histórica marcha que reuniu 200 mil pessoas.
[36] Paul Tillich, Le problème du pouvoir in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 491.   
[37] Idem, op. cit., p. 493
[38] Ênio Bucchioni, O padre guerrilheiro, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.16.
[39] “Os comunicados governamentais informaram que o padre Camilo caíra em combate, a 15 de fevereiro de 1966, atingindo por balaços de carabina automática .30, disparados por um sargento da patrulha, emboscada pelo agrupamento guerrilheiro. Ele morrera de forma instantânea, não dizendo uma só palavra, não tentara render-se, nem pedira clemência. O povo colombiano, pelas carreras de Bogotá, ou pelos caminhos de Barrancabermeja e Bucaramanga atribui o assassinato, como dizem, a um plano organizado pelo general Alvaro Valencia Tovar, por ironia da sorte, amigo íntimo de Camilo Torres desde a infância. Tovar comandava a Quinta Brigada do Exército, responsável pelo combate ao ELN. Percorremos a Colômbia em busca da memória de Camilo Torres. Conversamos com o padre German Guzman Campos, companheiro de sacerdócio e grande amigo do padre guerrilheiro. O general Alvaro Valencia Tovar, hoje personalidade política em seu país, também deu sua versão. Do mesmo modo, falamos com o ex-padre Walter J. Broderick, australiano, que publicou um contundente livro a respeito dos acontecimentos cujo desfecho foi Patio Cemento. Ouvimos também intelectuais e jornalistas colombianos, que ainda hoje buscam a verdade do padre Camilo. Este é o resultado de nosso trabalho. Os depoimentos são emocionantes pela sua coragem. As falas do general Tovar são reveladoras. O depoimento de Isabel Restrepo Gaviria recolhemos de uma obra sobre Camilo. Bem, aos fatos...” Francisco Hardy, in memoriam de Camilo Torres, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.17-18.
[40] Ernesto Cardenal, Juramento e Revolução, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp.18-19.
[41] “Os jovens de minha comunidade entenderam que para serem fiéis ao Evangelho, deviam ser revolucionários. E sendo revolucionários deviam entrar para Frente Sandinista. Eles desejavam deixar a comunidade e ir lutar na montanha. Mas, a direção da Frente Sandinista comunicou que a comunidade devia manter-se como estava porque tinha uma grande importância política, tática, e estratégica. Devíamos manter-nos ali até nova ordem”. Idem, Juramento e Revolução, São Paulo, Versus no 29, fevereiro de 1979, pp.18-19.
[42] “A velha Igreja ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca junto às lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?” Renato Lemos e Marcos Magalhães, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, pp.14-15.
[43] “É verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor”. Idem, O mandamento da liberdade, São Paulo, Versus no 28, janeiro de 1979, p.15.
[44] “A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”. Idem, op. cit, p.15.
[45] “Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellin.” Idem, op. cit., p.15.
[46] “Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de Socialismos’. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno: ‘Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria história do Cristianismo”. Idem, op. cit., p.15.
[47] Idem, op.cit., p.15.
[48] Vanderlei José Maria, A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil, São Paulo, Versus no 30, março de 1979, p. 14.
[49] Paulo J. Krischke, A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil, São Paulo, Versus no 30, março de 1979, p. 15.
[50] Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979, pp. 28-32. 
[51] Le Socialisme, idem, op. cit., p.348.
[52] Idem, op. cit., p. 348.
[53] Idem, op. cit.,. 348-349.
[54] “Numa pesquisa editada pela Organização Pan-americana de Saúde, em que participaram os professores João Yunes, Eduardo Marques, Elza Berquó, e Rubens Murilo Marques da Universidade de Campinas, constatou-se neste trabalho, uma grande disparidade no índice nutricional entre um a família rica que gasta por média 111,7 por cento, equivalente ao salário mínimo por pessoa, e uma família pobre que gasta 9,6% por pessoa. Teriam, segundo a pesquisa, as seguintes diferenças de peso e altura quando alcançam a idade de 12 anos; a criança rica pesa 38,8 quilos e tem 1,44m de altura; a criança pobre tem 31,4 quilos e mede 1,38m de atura. Comparativamente, portanto, somente na Bahia, que por estimativa possui 8 milhões de habitantes, morrem 114,7 crianças por mil nascidas; em Angola, com 6 milhões de habitantes morrem 24,1 por mil nascimentos. Porém, a Bahia  não é o estado brasileiro que possui o maior índice de mortalidade infantil. Apesar dos dados estatísticos oficiais não constar pelo menos 10 capitais brasileiras, Natal possui 118,8 por mil nascimentos; João Pessoa e Belo Horizonte, 120; Fortaleza 123,5; Maceió 146,2 e Aracaju 149,7. Com o estado de Minas, estes estados juntos somam 51 por cento da população brasileira”. Vanderlei José Maria, O cadafalso e suas cordas, São Paulo, Versus no 31, abril de 1979, pp. 38-39.
[55] Idem, op.cit., p.39.
[56] Paul Tillich, A Era Protestante, São Paulo, Ciências da Religião, 1992, pp. 175-176.
[57] Idem, op. cit., p. 176.
[58] “Depois, como disse um menor no Rio de Janeiro, depois de fugir de uma das unidades da Funabem, para onde ir? Se for para a rua, disse ele, vou matar muito ou morrer rapidinho. Mas as unidades de amparo ao menor têm sido alvo das mais fantásticas fugas, tanto pela violência desencadeada, como pela audácia dos fugitivos e pela sua periodicidade. As fugas são resultado dos maus tratos físicos, das torturas, homossexualismo, e mau tratamento carcerário, como no Rio, onde havia uma solitária medindo aproximadamente 2,10 metros por 1,10 com um colchão no chão, e um vaso sanitário sem descarga. Procurou-se uma solução (paliativo?) lançando-se uma campanha, para a adoção de crianças. Mas como 65 por cento das crianças são negras segundo dados fornecidos por Gilcéria Oliveira, ex-presidente da Associação Cultural do Negro, ninguém apresentava-se disposto a fazer alguma adoção. Foi quando Paulo Rui de Oliveira, vereador pelo MDB, dizendo-se representante da comunidade negra, veio apelar a esta que ajudasse nossos irmãos da Febem. Isto acarretou uma discussão acalorada entre o vereador e os jornalistas Hamilton Bernardes Cardoso, editor de Versus, e Neusa Pereira, militante do Movimento Negro. Tudo isto tendo como veículo o Jornal da Tarde. Paulo Rui argumentava dizendo ser da responsabilidade da comunidade negra os negrinhos que estavam na Febem, e Hamilton Bernardes Cardoso e Neusa Pereira lembravam ao vereador a condição sócio-econômica do conjunto da comunidade negra. Enquanto isto, o Juiz Nilton Silveira nega que havia racismo na adoção das crianças, ao mesmo tempo em que se contradizia, afirmando que já havia 80 famílias negras esperando a adoção. Sem levar em conta a rigidez do protocolo para adoção, é bom lembrar as palavras do sociólogo Clóvis Moura: Existem em São Paulo 150 famílias negras que podem ser consideradas (sic) de classe média... Estas 80 realmente são intrigantes”.  Idem, op.cit., p.39.
[59] Idem, op.cit., p. 39.
[60] A Era Protestante, op. cit., p. 179.
[61] Idem, op. cit., p. 180.
[62] Na boca da chaminé, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 8.
[63] “Sua extensão aos demais estados e as demais categorias vai depender da grande atividade das lideranças sindicais e da preparação das bases para esse tipo de movimento. E essa extensão é um a conseqüência lógica da reconquista democrática. Quando o povo brasileiro tiver liberdade de expressão do pensamento, de reunião, de organização estudantil e sindical, e um mínimo de acesso aos meios de comunicação – rádios, jornais e televisão -, este povo terá condições de ele mesmo, pacificamente, liquidar com este processo de exploração dominante no Brasil através do apelo à greve fraterna e pacífica como sua única arma. E a greve é um direito legítimo do trabalhador, ela não pode ser regulada. Deve existir apenas como uma arma, como a última razão do trabalhador’, como disse o ministro Prado Kelly, autor da introdução do direito de greve na Constituição, na Constituinte de 46. E não existe direito de greve no Brasil de hoje, nem nunca existiu. O grande ensinamento que o sindicato do nosso grande amigo e líder Lula está dando ao Brasil é esse: nós vamos conquistar o direito de greve. Ainda que para essa conquista muitos morram nas prisões, muitos morram torturados”.   Dídimo Miranda de Paiva, jornalista profissional, iniciou sua participação na vida sindical em 1965, quando se elegeu suplente na diretoria do sindicato. Em 1975, atendendo a uma solicitação de quase trezentos jornalistas, encabeçou a chapa de oposição. Eleito, sua diretoria foi a primeira, desde 64, a “ignorar” as leis de exceção. Na sua opinião, os sindicalistas de 45 a 64 “eram piores que os atuais”, pois naqueles anos eles tinham relativa liberdade, mas preferiram entrar na linha populista de Getúlio, Jango, etc. Por isso, olha com desconfiança o “ressurgimento” de certos elementos que, tendo sido governo, nada fizeram para “quebrar” a estrutura corporativa-fascista da CLT. A terra tem sede, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9.
[64] A Era Protestante, op. cit., p. 204.
[65] “Mesmo nos grandes centros industriais, grande parte dos trabalhadores ignora ainda hoje a extensão do movimento operário lá em São Paulo, pois a censura no rádio e na televisão impediram a nação de tomar conhecimento dele. No interior, o desconhecimento é quase total, a não ser que os sindicatos cuidassem de divulgá-la, como em Monlevade, onde transcrevemos todas as notícias publicadas no jornal. Mas mesmo onde a notícia chegou sutilmente, os trabalhadores já estão dispostos a colocar fatos novos. Teremos uma noção da amplitude dessa repercussão no momento de se discutir com as empresas o novo contrato de trabalho, as campanhas salariais. Em Minas Gerais, o momento da atitude firme dos trabalhadores exigindo melhorias salariais e de condições de trabalho, vai ocorrer de agora em diante, quando as grandes categorias vão começar a negociar com as empresas as condições do novo acordo”. João Paulo Pires Vasconcelos já foi securitário, eletricista e desde 1960 e metalúrgico. ‘Em 1961 eu me sindicalizei, participe ativamente do movimento sindical em Monlevade tanto no período anterior a 64 como posteriormente’. Está a frente do Sindicato dos Metalúrgicos de Monlevade desde 1972. Atuando na linha de frente dos sindicatos de metalúrgicos do país, João Paulo, ao lado de Lula, Marcílio e outros, teve importante participação no 5º Congresso da CNTI”. “Somos pára-raios”, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9.
[66] Lutte des classes et socialisme religieux, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 379.
[67] Idem, op. cit., p. 379.
[68] “Joaquim José de Oliveira, o seu Joaquim da Chapa 2 de Oposição, a atual diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem, iniciou sua atuação sindical em 58. ‘Daí para frente eu prossegui nessa luta, sempre procurando orientar o trabalhador e fazer com que ele caminhasse para dentro do sindicato’. Membro da diretoria do Sindicato durante as greves de 68, seu Joaquim teve seu nome impugnado, juntamente com o de outro companheiro, como  membro da chapa de oposição às eleições. Seu protesto; ‘Trabalho desde os dez anos de idade, nunca parei de trabalhar, até agora aos 66 anos. Meu crime no movimento sindical foi em 68 sindicalizar dois mil e tantos trabalhadores...’” Rebelião da fome, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9.
[69] Lutte des classes et socialisme religieux, idem, op. cit., p. 380.
[70] Idem, op. cit., p. 382.
[71] “Arlindo José Ramos, foi reeleito para a presidência do Sindicato dos Bancários de Belo Horizonte. É bancário há 33 anos, dirigente sindical há 13. Segundo suas próprias palavras é uma pessoa que ‘sempre esteve dentro do sindicato, desde 46’ e que ‘depois que entramos não pudemos mais sair’”. Romper os diques, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p. 9.
[72] Jorge Pinheiro, O príncipe do rancho, São Paulo, Versus no 33, junho de 1979, pp. 28-32.
[73] Astrogildo Esteves e Renato Lemos entrevistam Nelson Werneck Sodré, Meia volta, volver!, São Paulo, Versus no 27, dezembro de 1978, pp.10-11.
[74] Justino Lemos Pinheiro, Testemunho I, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, pp.12-13.
[75] Hilda Machado, Testemunho II, São Paulo, Versus no 25, outubro de 1978, p.13.