lundi 31 octobre 2016

A pensar a tragédia estalinista

A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes
A pensar a tragédia estalinista
Por Jorge Pinheiro


“Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4).

Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa.

Por isso, talvez seja melhor falar de filosofia e teologia. 

Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz,[1] por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 

Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi[2] ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 

É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicholas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong. 

E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer.

Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado..

Como preparar: comece saturando os cogumelos, depois de lavados e secados e fatiados, em água.

Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 

Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura , não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa.

Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”.[3] Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava um outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin.

Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Ela por exemplo está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado.[4] A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 

Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lenin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lenin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech,[5] que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 

Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis.[6] Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 

É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, uma outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída.

Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: [7]

”Veneno que me rouba a vida
veneno, uoohhoo! 
é o veneno que me está a matar
mesmo que queria não consigo escapar
cruel e fria perseguição
que só acaba com destruição
Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo”! 

Citações
[1] Airton Ortiz, O churrasco de um gaúcho viajante, Água na boca. Web: www.missd.com.br. 
[2] Shchi, Russian cabbage soup. Web:www.soupsong.com/bfaves. 
[3] León Trotsky, O cozinheiro de pratos picantes, citado por Ludo Martens, O testamento de Lênin, Centro de Mídia Independente. 
[4] Alexei Jankowski, Lénine en fauteuil roulant Taurus, film russe d’Alexandre Soukourov. Les Archives (do jornal) l´Humanité, L´Humanité. 
[5] Antoni Doménech, El eclipse de la fraternidad, Una revisión republicana de la tradición socialista, Barcelona, Ed. Crítica, 2004. Vide: Entrevista político-filosófica de Antoni Domènech, Salvador López Arnal. Web: 
www.nodo50.org/redrentabasica/descargas/Entrevista_TD_def.pdf.
[6] Julio Abramczyk, Estudo especula sobre morte de Lênin, Folha de S. Paulo, 01/08/2004. 
[7] «És capaz» da banda de punk rock k2o3, formada em 1994. Seu álbum de estréia foi lançado em 1996, pela El Tatu. O segundo álbum recebeu o título de “Grita!”. O grupo não existe mais. 



A refundação do mundo

A Refundação do Mundo
Por um novo Contrato Social
CEPAT (1) Informa – 10/10/2005


A Crise do Mundo Moderno

Jürgen Moltmann, alemão, luterano, é um dos mais importantes teólogos vivos no final deste século. Foi um dos inspiradores da teologia política nos anos sessenta e influenciou a Teologia da Libertação. O último livro dele se chama Das Kommen Gottes. Christliche Eschatologie (O Deus que Vem. Escatologia Cristã). O original alemão é de 1995. Aqui seguimos a tradução italiana: L’Avvento di Dio. Escatologia Cristiana, Queriniana, Brescia, 1998, p. 207-226. O tema central deste CEPAT Informa é a crise paradigmática que vivemos neste final de século e milênio. Esta crise é abordada, a seguir, além do teólogo J. Moltmann, pelo ensaísta social J.- C. Guillebaud, pelo filósofo H. G. Gadamer, pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos, pelo teólogo Hans Küng, pelo filósofo Jean Baudrillard. Aqui traduzimos e sintetizamos a análise crítica de J. Moltmann sobre a crise do mundo moderno. Os negritos e os subtítulos são nossos.

Para Jürgen Moltmann, "são dois os momentos mais significativos que assinalam os inícios europeus do mundo moderno:

1.- A descoberta e a ‘conquista’ da América é o momento no qual a Europa se abre à modernidade. A razão que levou à vitória é a razão moderna, como o mostrou Tzvetan Todorov no encontro entre Hernan Cortés e Montezuma na Cidade do México. Aqui a razão instrumental, interessada e orientada ao poder, se demonstrou superior à razão mitológica dos astecas, que podemos chamar de ‘razão ecológica’. De fato, a primeira se interessa somente no cálculo da consistência do adversário e não se preocupa em se mover em sintonia com as estrelas e com a terra. Com a conquista do continente americano o cristianismo europeu começa a converter o mundo, colonizando-o, enquanto a Europa, a partir de então, dispõe de recursos que alimentam um sistema econômico, em escala mundial, organizado mercantilisticamente e segundo princípios capitalísticos.

2.- O outro momento que vê a Europa se abrir ao mundo novo é assinalado pela tomada do poder sobre a natureza através da ciência e da técnica. No arco de tempo compreendido entre Copérnico e Newton, as novas ciências da natureza ‘desencantam’ o mundo, tiram-lhe o mistério divino, a sua alma, para ‘torná-lo escravo’, como Francis Bacon justificava a sua epistemologia, e transformam os seres humanos em "senhores e proprietários da natureza", como depois René Descartes escreverá no seu Tratado sobre o Método. Trata-se de duas grandes ilusões desde o início. Os homens podem, certamente, dominar os espaços, mas não o tempo".

Modernidade: Uma Fé Messiânica

"Esta dupla tomada de poder da civilização européia no mundo pode ser interpretada, em chave religiosa, como a de uma fé messiânica convicta de que por mil anos os santos reinarão com Cristo e julgarão todos os povos do mundo, e que este reino messiânico cristão (hebraico), ou "era cristã", será também a última da humanidade, aquela idade de ouro que precederá o fim do mundo.

Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido, agora poderá se realizar o que há muito tempo se esperava. Este é o pathos messiânico com que se acolhe e se batiza ‘a modernidade’. Agora se realizará o que Gioachino di Fiori predissera: a idade das luzes é a "terceira vinda do Espírito". Agora o homem se torna capaz de dominar a terra e por isso também de restabelecer aquela semelhança com Deus que havia se esmaecido por sua culpa. A glória reflete ainda uma vez a sua luz: esta é a idade das luzes (Aufklärung, enlightenment, ilustração, iluminismo), o momento do êxodo definitivo dos homens da sua ‘minoridade culpável’ para o "exercício livre e público da própria razão".

Não se trata de uma ‘escatologia secularizada’, como o supunham Karl Löwith e Jakob Taubes, mas antes de quiliasmo realizado, já que somente a esperança milenarística pode ser realizada de modo histórico, sendo somente esta esperança de futuro intra-histórico. Somente o milenarismo consegue compreender o reino de Deus de modo teleológico, não apocalíptico, e a prospetar não uma figura catastrófica do mundo, mas um ideal moral com o qual os seres humanos podem se aproximar usando as suas próprias capacidades e se empenhando no mundo. Somente o quiliasmo pode transmutar a escatologia em teleologia. Somente o quiliasmo é capaz de infundir no otimismo humanístico – ‘o ser humano é bom’ – a justificação teológica: "Satanás permanecerá preso por mil anos".

O bem pode difundir-se livremente e a história realizar-se-á completamente no Reino de Deus. "Um Cristo sem cruz conduz homens sem pecado num reino de Deus sem julgamento": é a crítica que Richard Niebuhr fazia ao cristianismo moderno do seu país (EUA), precisamente o cristianismo quiliástico da modernidade, contra o qual o fundamentalismo apocalíptico levantava os seus protestos".

O Progresso é o Reino de Deus na História

Para Moltmann, "a fé no progresso e o ideal de humanidade do iluminismo alemão constitui-se no novo quiliasmo teológico. Assim, por exemplo, para Kant era um dado adquirido que a história da evolução humana se direcionava para um fim escatológico e ele via na Revolução Francesa um ‘sinal da história’ que atesta a disponibilidade moral da humanidade a se desenvolver sempre para o melhor, um sinal escatológico. Ele se dava perfeitamente conta de que as idéias de fundo da filosofia da história – as idéias da evolução, progresso e fim – derivavam da teologia histórico-salvífica do quiliasmo e que não eram outra coisa que a tradução do "plano salvífico", "economia de salvação", "idade do mundo", "reino de Cristo" como fim da história. Para Kant o momento temporal que assinala o ingresso do "reino de Deus" na história é aquele da "passagem gradual da fé eclesiástica para uma fé racional com dimensão universal".

O Reino de Deus se realiza no âmbito da Razão

"O reino de Deus vem, não como fruto de uma revolução apocalíptica preparada por Deus, mas de uma evolução humana que se determina no âmbito da razão e da moralidade. Os efeitos não dizem respeito à vida natural, mas exclusivamente à vida dos homens. Aqui está a diferença entre o ‘quiliasmo filosófico’ e o teológico, mas onde as premissas para uma superação unitária e programada da história, do progresso e do fim último, sempre são as mesmas".

O Caráter Totalitário do Messianismo Moderno

"Para Fichte, Schelling e Hegel estas transferências de um quiliasmo teológico para sistemas de caráter histórico-universalístico são tão óbvias que não há necessidade de indicar as raízes. O pathos que acompanha este ‘atuar-se’ da religião e da filosofia em Ludwig Feuerbach e Karl Marx, como a sua fé na unidade de idéia e realização, assume um caráter tipicamente messiânico e quiliástico na vontade de realização de uma história ainda não realizada. É precisamente aqui que está a tendência ‘totalitária’. Todos estes personagens viviam na esperança de que a partir de agora se realizasse uma libertação possível e por isso também necessária, aquela de uma humanidade que agora se liberta das dependências da natureza para se tornar sujeito da própria história, na prospectiva de um futuro irradiante que será capaz de realizar plenamente o fim para o qual a história tende. O poder da modernidade européia deriva da revolução industrial, que fez da Inglaterra o centro imperial do mundo.

O Caráter Messiânico dos EUA

O pathos da ‘modernidade’ nasce do mesmo solo que animava a declaração da independência dos EUA e a revolução francesa. É um pathos dos últimos tempos. As utopias em termos dos direitos humanos e da socialidade, aqueles que encontramos nas declarações dos direitos humanos – "todos os homens nascem livres e iguais" – refletem as visões do milênio e da ‘idade de ouro’, do sábado da história universal e das leis do sábado que encontramos na torá. ‘Idade moderna’ aqui equivale a ‘últimos tempos’. E depois da modernidade não pode seguir outra era. A modernidade é a última era do gênero humano. Nem se dá um ‘fim da modernidade’ já que a era moderna representa ‘o fim’."

O Sonho da Modernidade:
Domínio e Poder sobre Tudo e Todas as Coisas

Enfim, afirma Moltmann, "o sonho quiliástico da ‘era moderna’ é o de dominar as nações, adquirir o poder sobre a natureza e projetar uma civilização que transforme os seres humanos em sujeitos da história. Este sonho depois se traduziu na civilização tecno-científica da ‘modernidade’, cujas contradições cabe a nós, hoje, experimentar e suportar com todas as conseqüências".

As aquisições mais importantes da modernidade são:
1.- as declarações universais dos direitos humanos;
2.- as explicações dos fenômenos naturais segundo a matemática;
3.- os EUA.

1.- As declarações dos Direitos Humanos
"As declarações dos direitos humanos, a partir de 1789, se abrem com o enunciado: "todos os seres humanos são criados livres e iguais". De tal modo que a própria Europa, que se afirma como potência mundial, agora assume os traços de uma realidade humana com dimensão universalística. E a partir daí, o direito indivisível e universal à liberdade motiva e legitima todos os movimentos de libertação das pessoas oprimidas e humilhadas: escravos negros, mulheres, povos.

A partir daí, o direito indivisível e universal à liberdade motivou e legitimou todas as revoluções sociais modernas. Se a democracia é a forma política na qual se exprime a liberdade, então a figura econômica que deverá assumir o socialismo/comunitarismo é aquela da igualdade. Se todas os seres humanos foram criados livres e iguais, as sociedades modernas terão a tarefa de articular os direitos individuais à liberdade com os direitos sociais à igualdade. Se não existirem as mesmas condições de vida e possibilidade, não pode funcionar nem mesmo a democracia. E se não se garante a realização da liberdade do indivíduo, não se pode esperar que funcione um sistema fundado sobre os princípios da justiça social.

O caráter universalístico destas declarações só podem se realizar numa comunidade mundial de estados que considerem os direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos. Certamente, trata-se de uma utopia, mas que se torna cada vez mais uma necessidade histórica tendo em vista a sobrevivência do gênero humano. Aquilo que iniciou como utopia do humanismo messiânico está se tornando cada vez mais uma necessidade ecológica: a unidade do gênero humano é postulada pela própria unidade do organismo ‘terra’.

2.- A Matematização das ciências: o Espírito de Geometria

"Perscrutar a natureza por meio do esprit de géométrie significou motivar e legitimar as ciências modernas da natureza. Mas a realidade da natureza pode ser perscrutável? A suposta inteligibilidade da natureza possibilitou a busca da "fórmula universal". Mas a natureza é "computável" somente na medida em que ela é capaz de ser dominada? Neste processo de matematização da natureza operada pelas ciências entra também o ‘esclarecimento’ do comportamento pelas ciências sociais e o seu empenho na burocratização das sociedades. Precisamente Wilhelm von Humboldt sustentava que a aspiração geral da razão humana tem como fim a anulação da causa. E isto significa o "fim da história", já que a eliminação da causalidade comporta a exclusão do futuro e torna o presente sem fim. Toda vez que se ‘concebe’ a história em tal sentido, se elimina a própria história, já que "o conceito cancela o tempo" (Hegel)".

3.- O Modo de Vida Americano
"Quem refundou a política sobre bases iluministas foram os EUA. A sua declaração da independência e a sua constituição foram construções humanas que não fazem apelo a tradições e nações, mas se desenvolvem exclusivamente a partir da ‘fé messiânica’ dos pais fundadores: um ‘mundo novo’ e pluribus unum, como está impresso no escudo dos EUA; com respeito ao mundo feudal, nacionalístico e classista da Europa das fraturas e dos conflitos, se projeta um novus ordo saeculorum (uma nova ordem dos séculos) messiânico aberto para a humanidade inteira, como podemos ler em cada dólar; o ‘sonho americano’ é o primeiro passo para a realização daquela humanidade unida que o mundo aspira. De fato, o ‘experimento americano’ é o experimento que a modernidade colocou em ato no mundo da política e da socialidade. Não o conseguiu plenamente ainda, mas não o podemos, contudo, considerar como falido. Mas devemos nos convencer que se os direitos humanos e a matemática podem ser universalizados, o "american way of live" não o pode. Neste momento basta lembrar o seguinte dado: "três Terras seriam necessárias se toda a população partilhasse do padrão de consumo da América do Norte.

Em que posso esperar?
O Ressuscitado é Aquele que foi Aniquilado. Na Cruz.

Para J. Moltmann, "o mundo moderno foi produzido pelo iluminismo e o iluminismo nasceu do espírito hebraico-cristão da esperança messiânica. Daqui surge a pergunta religiosa de Kant: "Em que coisa posso esperar?" É uma pergunta que soa como algo singular, sem precedentes na história das religiões. No passado o problema religioso dizia respeito sempre à origem sagrada do mundo. E o problema era resolvido apelando para os mitos das origens ou para aquilo que permanece eternamente na alternância dos tempos, aos símbolos relacionados com a vida que passa. Para uma vida que se vive na história, o futuro pode ser motivo de exaltação ou de ameaça. Somente um futuro que redime e apaga pode dar consolação e conferir um sentido para um sofrer e agir na história. Com a idade moderna, portanto, o futuro se torna o paradigma da transcendência. E o pensamento teológico se torna uma reflexão animada pela esperança: docta spes. A teologia cristã agora terá a tarefa de remover desta abertura moderna ao futuro a presunção messiânica e a subordinação apocalíptica, para responder à pergunta de Kant atualizando a ressurreição do Cristo Jesus aniquilado sobre a cruz".

A Refundação do Mundo
Jean-Claude Guillebaud - editor, doutor em direito e ensaísta – acabou de lançar o livro, La Refondation du Monde (A Refundação do Mundo), Ed. Seuil, Paris, 1999. Guillebaud é também autor de A Tirania do Prazer, lançado, em maio deste ano, no Brasil, pela editora Bertrand. Nesta entrevista, concedida à Gazeta Mercantil, 17-9-99, Guillebaud fala da necessidade de refundar o mundo. O sublinhado e os subtítulos são nossos.

Gazeta Mercantil: A democracia está em julgamento ou apenas a democracia como conhecemos hoje?
Jean-Claude Guillebaud: Não é uma crítica à democracia, mas à atual crise da democracia. Sem que nos déssemos conta, o modelo democrático se espalhou pelo mundo (e isto é uma boa coisa), como na América Latina. O continente hoje é mais democrático do que em minha juventude. O progresso no espaço da democracia é, algo óbvio, um dado positivo. Mas ao mesmo tempo, a democracia em sua essência, vai se enfraquecendo e entra em uma espécie de crise. Na França, nos Estados Unidos, em toda a parte ela está em crise. Isso porque está cada vez mais tomada, colonizada pelas leis de mercado. Ela é cada vez mais submetida à economia, que faz a lei. Este é então o paradoxo. A democracia está gravemente afetada, porque nós saímos de um século marcado por massacres, tirania, fracassos, grandes crises, e terminamos um pouco desencantados. O fim do comunismo, há dez anos, foi uma das boas coisas, porque foi o fim de uma barbárie, de uma tirania. Mas foi também o fim de uma esperança. Logo, trazemos também um luto. Vivemos em um universo perigoso, desencantado, onde há apenas um modelo econômico que triunfou. Como ele é sem concorrência, sem adversário, vai se tornando cada vez mais dogmático e brutal. Estamos em um delicado período, no qual a democracia está ameaçada. Penso ser este um bom momento para recuperar algumas coisas. Dizemos para uma criança: "Por que você acha isso?" Então é necessário perguntar por qual razão algumas crenças se justificam. Por que acreditamos não ter o direito de matar nosso vizinho? Por que acreditamos serem homens e mulheres iguais? É preciso reencontrar as raízes de nossas convicções por melhor defendê-las.

GM: Isso não seria pregar um retorno aos mesmos ideais que geraram, por exemplo, o marxismo, e assim reproduzir o mesmo cenário das disputas entre esquerda e direita?

Guillebaud: Eu não sou um nostálgico. Não acredito em uma restauração. Não acredito neste desejo de refazer valores antigos e reconstituir uma moral que desapareceu. Não sou partidário de um arcaísmo. A restauração não funciona, pois tem por conseqüência a ditadura, o totalitarismo, o clericalismo. Não acredito em restaurar as coisas, pois as soluções não estão nunca atrás de nós, mas sempre um pouco mais adiante. "Refundar" não significa restaurar.

Quando se trata de recuperar o princípio de igualdade entre os homens, não significa reinventar o "igualitarismo" marxista, onde todos seriam iguais e uniformes. Todos os valores nos quais estamos ligados estão sempre a ser reinventados, porque o mundo muda, todos os dias, cada vez mais rápido, e não podemos, em 1999, em meio a uma evolução tecnológica assustadora, sonhar em pensar o mundo como se estivéssemos no século XIX ou XVIII. Isso não faz sentido. Não é preciso restaurar valores, mas recriá-los e readaptá-los ao nosso tempo. Em meu livro A Tirania do Prazer falo da amoral sexual e da família, e lá disse haver duas atitudes falsas em relação à família. Há aqueles dizendo que a família acabou, não existe mais, não é necessária, e é preciso liberar o indivíduo dos laços, porque a família é um horror. Isso é idiota. Nenhuma sociedade pode viver sem família.

Mas há outros (mais à direita) dizendo ser necessário restaurar a autoridade paterna, a família de outros tempos; colocar a mulher de volta na cozinha. Outra bobagem. A forma familiar, ela muda com a história, jamais foi um organismo estável. Bem, é preciso então reinventar a família, e este exemplo serve para todos os valores fundadores da democracia: a fé no progresso, a igualdade, a razão. Não é possível restaurar nada, mas também não podemos ser vítimas do cinismo e dizer "não me importo com nada". Uma sociedade não pode viver sem um mínimo de valores compartilhados.

GM: Mas há além do modelo democrático, uma nova forma de organização social para o futuro?
Guillebaud: Eu acho que a democracia é alguma coisa em mudança. Algo difícil, que não é natural. A democracia não é o estado natural da sociedade. O estado natural é a selva. A democracia é um projeto. Um projeto magnífico, mas um projeto difícil e sempre em perigo, ameaçado. Está sempre necessitando de uma reinvenção, de uma defesa. Quando eu era estudante, nos anos 60, a democracia estava ameaçada pelo marxismo, pelo Exército Vermelho. Era necessário lutar contra isso. Hoje, nossa democracia é ameaçada pelo fanatismo religioso, pelo fundamentalismo e também pelo mercado, que toma decisões no lugar do poder político.

Como a ameaça muda, a democracia também muda. Penso também que em sua maneira de ser exercida, ela também se altera. Isso porque o nível de educação muda, e as mídias mudaram muita coisa em função da democracia. Hoje há muito da política que passa pelas mídias, e não mais pelas reuniões públicas. A democracia muda, e devemos acompanhar a revolução. O constante é a esperança democrática. A convicção de que cada um deve ser mestre da própria escolha. Esta liberdade democrática é fundamental, e é preciso defendê-la. Quando estamos em um sistema no qual o cidadão vota, elege governantes, e este poder, depois de eleito, se volta para o cidadão e diz: "Não posso fazer nada, porque são as leis do mercado", então significa não haver mais poder.

GM: Parece ainda haver outro problema. Uma "idéia de democracia" contra a mesma democracia, como na divisão da sociedade em vários grupos e subgrupos, cada um lutando por suas diferenças.
Guillebaud: Todas as idéias, mesmo a melhor delas, correm o risco de se tornar um dogma. E quando isso acontece, e se tornam arrogantes ou imperiais, elas são ameaçadoras. Um exemplo é o "politicamente correto" nos Estados Unidos. O conceito se tornou um dogma, algo que pode destruir a democracia. E há um outro exemplo: a razão científica. Ela é um valor formidável, nosso patrimônio. Mas quando a razão se torna tecnocientificista, quando há esta tirania do valor científico, ela se transforma em uma ameaça, e é preciso lutar contra essa situação. O mesmo se aplica ao mercado, ao liberalismo. A lei da oferta e da procura é algo positivo, a nação pode produzir a riqueza para depois distribui-la também. Mas, quando o mercado se torna a única lei e todos os outros valores, no espaço público, tornam-se secundários, ele, o liberalismo, se transforma em um perigoso dogma para a democracia.

GM: Este posicionamento não o coloca, automaticamente, próximo da esquerda?

Guillebaud: Quando se pensa livremente, sempre há a acusação de pertencer a este ou aquele grupo. Nos anos 60, quando eu era estudante de direito, o pensamento dominante era marxista. À época, eu já contestava o marxismo. Era, na verdade, antimarxista. Desconfiava muito de tudo aquilo. Lia mais Albert Camus do que Jean-Paul Sartre, por assim dizer. Mas meus amigos diziam: "Se você pensa assim, então você é de direita". Agora, ouço a mesma coisa, mas ao inverso. Isso porque o pensamento dominante é a direita liberal. Se você se opõe ao liberalismo, então você é marxista. Nunca fui. Não sou agora. Reivindico o direto de pensar livremente, e no meu livro me refiro a filósofos e outros pensadores que foram meus mestres e nunca estiveram na extrema-direita ou na esquerda, como Edgar Morin, Cornelius Castoriadis, Maurice Merleau-Ponty. Eles sempre procuraram ter o espírito livre.

GM: Em sua crítica ao poder do mercado, o sr. é antiamericano?

Guillebaud: Não estou de acordo com a condenação sistemática dos Estados Unidos. Claro, o país é uma potência econômica militar, e é preciso resistir a isso. Agora mesmo há uma disputa comercial entre a Europa e EUA. Isso é normal. Assim deve ser. Mas não concordo em satanizar a nação. Por uma razão simples. Os mecanismos que ameaçam a democracia, expostos no meu livro La Refondation du Monde, põem em perigo também a América. O delírio do mercado, ou a subcultura do McDonald's, ameaça tanto a cultura americana quanto a cultura européia. Os intelectuais de lá são os primeiros a lutarem contra isso. Face a essa mesma barbárie, nós estamos no mesmo campo, os americanos e nós. Em meu livro, quando critico a dogmatização liberal, a maior parte dos autores citados são dos Estados Unidos. Transformar a análise da democracia em uma espécie de duelo entre a Europa e os EUA é idiota. Há uma ridícula tradição antiamericana na França, mas há também o inverso. Há uma americanofilia. Se vem de lá, então é formidável. As duas tradições são imbecis.

GM: Mas os desacordos entre a Europa e os Estados Unidos muitas vezes são o sintoma de uma disputa de modelos econômicos e políticos. Os europeus podem oferecer uma alternativa?

Guillebaud: Eu penso que isso será muito difícil, mas também inevitável. Neste momento, em relação ao funcionamento da economia liberal, o modelo americano está triunfando em toda parte. E isso inclui até mesmo os países europeus mais aparelhados para resistir. Um exemplo, a Alemanha. Os alemães tinham um modelo econômico, chamado de economia social de mercado, que era muito diferente do sistema americano. Era mais igualitário, e o financiamento das empresas era assegurado pelos bancos, e não pela bolsa. Havia uma co-gestão entre empresários e trabalhadores. Hoje, esse modelo está sendo alterado em nome do modelo anglo-saxão, com a competição permanente e a necessidade de conseguir resultados a curto prazo.

De uma maneira dolorosa, a Europa está se aproximando da estratégia americana. Isso porque, no momento, e sobretudo quanto aos índices de desemprego, a América está em melhor situação. Sem falar do crescimento inacreditável nos últimos nove anos. Nos EUA, o índice de desemprego é de 4,5%, na França é de 11%. Isso se traduz em prestígio, um sentimento de sucesso e de força do modelo americano. Assim os europeus se deslocam na mesma direção. Isso é evidente. Mas talvez não seja durável. Nossos valores são muito diferentes. Estamos fascinados pelo modelo, e somos, no momento, incapazes de ver os inconvenientes. Mas nós os descobriremos. Na semana passada, um órgão oficial do governo dos Estados Unidos divulgou dados sobre o aumento das desigualdades sociais no país nos últimos 20 anos. Elas aumentaram em proporções inéditas na história da nação. Cerca de 20% dos mais pobres se tornaram ainda mais pobres. Estamos esquecendo de levar em conta esse lado do modelo. O que mais me espanta hoje é o fato de serem os próprios americanos (do partido democrata) os responsável em alertar os europeus. Eles dizem: "Calma, nem tudo é uma maravilha; há fracassos aqui também, e não sejam tolos em esquecer isso". Podem ser necessários 20, 30 anos, mas certamente a sociedade americana reagirá a isso.

GM: Para periféricos, toda a discussão ou teorização sobre modelos econômicos e políticos parece algo extremamente abstrato, porque há ainda problemas primários a serem resolvidos. Como um julgamento da democracia pode interferir na vida dessas nações?

Guillebaud: Você tem razão. Mas há algo importante. Eu sou de uma geração de pessoas que, quando eram militantes políticos "terceiro mundistas", tinham tendência a dizer que "a democracia e a liberdade não poderiam ser aplicadas em nações que não tivessem chegado a um determinado grau de riqueza". Esse argumento serviu para justificar um grande número de ditaduras e tiranias. Na América Latina havia muitos regimes ditatoriais, e isso seria porque "eram pobres demais". Isso se falava também sobre a China, sobre a África. Como aplicar a democracia nesses lugares? Primeiro, eles precisariam "se desenvolver". Isso é uma bobagem. Uma dupla bobagem. De um lado, é ofensivo aos homens.

Apenas os países ricos poderiam desfrutar da democracia, uma forma de colonização desprezível. Eu conheço bem a África. Há uma grande tradição de liberdade em certas culturas africanas. E há um outro lado, também. Para um país se desenvolver, precisa da liberdade. Mas a democracia não pode ser imposta, não pode se sobrepor às diferenças culturais. A democracia é uma aprendizagem que cada um deve fazer no interior de sua cultura. Os acontecimentos nos países do leste europeu nos últimos dez anos são uma lição para nós. Depois do fim do comunismo, eu morei quatro anos na Rússia; penso que nos enganamos muito sobre eles. Acreditávamos, de maneira um pouco arrogante, que os russos, depois da queda do muro, poderiam constituir uma democracia igual à da França, ou um mercado igual.

Tentamos aplicar nosso modelo, e me lembro que em Moscou, no período, havia um instituto russo tatcherista, para imitar a Inglaterra. Ridículo, porque na cultura russa há valores muito especiais sobre a coletividade, o espaço, a família, o tempo e a religião. A democracia, ela deve progredir, mas não deve ser apenas cópia de um modelo qualquer. Dizer que a democracia é um valor fundamental, e todos os povos do mundo têm direito a ela, é uma coisa. Mas dizer que ela será igual em todos os lugares, isso é um colonialismo cultural. No passado, minha geração cometeu um erro dramático. Éramos "terceiro mundistas", tínhamos um grande sentimento de culpa por sermos ocidentais; éramos "difererencialistas". O "diferencialismo" consistia em afirmar que todas as culturas eram respeitáveis e não tínhamos nenhuma lição a dar aos africanos, aos brasileiros ou aos chineses. Cada povo, uma cultura. Cada povo, seu valor. Com as melhores intenções do mundo, esse diferencialismo justificou a tirania chinesa (uma "noção de liberdade" deferente entre os povos).

Isso foi um erro trágico. Mas estamos nos recuperando dele. No final dos anos 70, com organismos como a Anistia Internacional ou Médicos Sem Fronteira, surge uma nova forma de militância, reafirmando o desejo de respeitar todas as culturas, mas também dizendo haver valores universais inegáveis, mesmo que sejam uma tradição cultural. Mas é preciso se manter na linha justa, para não cair outra vez na tentação da arrogância ocidental. Como dizia a filósofa Simone Weil: "É um dever para cada um de nós se desenraizar em relação à tradição, mas é sempre um crime desenraizar o outro".

A Refundação do Mundo – Uma recensão

Traduzimos a recensão do livro La Refondation du Monde (A Refundação do Mundo), Seuil, 1999, 366 p. feita pelo Le Monde Diplomatique outubro de 1999.

"Um título ambicioso, um conteúdo que não o desmente: o novo livro de Jean-Claude Guillebaud é uma síntese magistral dos seis "venenos" – o autor justifica a aparente arbitrariedade deste número – que se dissolvem no nosso mundo "desencantado", e uma corajosa tomada de posição a favor dos contra-venenos. Contra a recusa pós-moderna de toda idéia de projeto, contrapõe a esperança reencontrada; contra a resignação à lei do mais forte, contrapõe a crença na igualdade; face à submissão às forças do mercado, contrapõe a reabilitação da política; em resposta ao cientificismo assustador, contrapõe o retorno da razão crítica e modesta; contra o "eu", o "nós" e, enfim, desafiando o "mundial", a reivindicação, sem falsa modéstia, do universal. O autor não se ilude que pode ser acusado de "arrogância ocidental", de neocolonialismo etc. Jean-Claude Guillebaud faz apelo a um "humanismo paradoxal" que consiste em se abrir para a alteridade, mas dando provas de uma firmeza reencontrada no que se refere aos princípios que constituem a nossa herança histórica".

A crise do mundo moderno e o papel das religiões
Segundo H. G. Gadamer

"O respeito pelas outras religiões é um bem que pode salvar-nos da catástrofe, mas o caminho para a salvação tem os inimigos dentro e fora da Igreja, entre os cardeais como Ratzinger de uma parte e no poder dos Estados Unidos, da outra parte". Hans Georg Gadamer, que completará 100 anos de idade no próximo mês de fevereiro, há muito tempo volta a sua atenção para a religião. "Penso no respeito dos não religiosos para com as religiões, mas sobretudo no respeito das religiões entre si, como um meio para salvar o planeta da guerra e da ruína". H. G. Gadamer é o grande expoente da hermenêutica, autor do clássico Verdade e Método publicado no Brasil pela Editora Vozes. Papa Wojtyla é um admirador de Gadamer, luterano, a tal ponto que desde o início dos seminários de verão que são organizados em Castelgandolfo, onde o papa passa o verão europeu, o hermeneuta alemão é convidado. Aqui traduzimos e reproduzimos, na íntegra, a entrevista que concedeu para o jornal eletrônico Caffe Europa. Esta entrevista teve importante repercussão na Europa. O CEPAT Informa no. 54/1999, p. 55 publicou extratos de uma outra importante entrevista de Gadamer. O sublinhado é nosso.

Caffe Europa: Por que o senhor se preocupa com os cardeais e com Ratzinger?

H.G. Gadamer: Porque me dou conta que o Papa sustenta uma tendência potencialmente cooperativa entre as religiões. Ele quereria fazer mais do que faz, isto é certo, mas é preciso ver o que poder fazer verdadeiramente. Veja o que aconteceu com o "mea culpa" sobre os cismas, ortodoxo, protestante, anglicano. Os cardeais da doutrina se opuseram ao gesto do Pontífice, que era exatamente uma crítica das divisões doutrinárias. E o cardeal Ratzinger, sempre presente, muito presente, procurou segurá-lo. O Papa é um homem que tem um olhar extraordinariamente longínquo e, mesmo estando sempre muito atento, aqui foi além das suas possibilidades, ousando mais do que se poderia esperar dele. A tendência cooperativa entre as religiões tem inimigos muito fortes fora da Igreja, e aqui se destacam, acima de tudo, os americanos, e dentro da Igreja, os cardeais como Ratzinger, guardas severos da doutrina e da "unicidade" do cristianismo católico. Por isto temo que o Papa não será capaz de superar os obstáculo. Talvez outros líderes religiosos, como Dalai Lama, talvez um indiano, talvez outros. Espero que surja alguma liderança religiosa capaz de alertar a humanidade contra o risco de uma catástrofe.

Caffe Europa: Explique melhor a sua visão sobre os perigos deste momento e do possível papel das religiões.

H.G. Gadamer: A humanidade está exposta a perigos enormes por causa da ampla disponibilidade das armas atômicas e de outros venenos destrutivos que podem produzir danos irremediáveis. A novidade do perigo, comparando com os conflitos do passado, consiste no fato de que muitos países tem em mãos, como, talvez, o Iraque, de tecnologias capazes de destruir a vida sobre o planeta. Os americanos sabem muito bem quais são estes riscos, mas a sua preocupação principal é a de manter e expandir o seu poder. Não temos, portanto, muitos recursos para nos salvar. Por isto o meu olhar se volta, não somente para a política, mas também para as religiões.

Caffe Europa: Mas as religiões, para sermos francos, são muitas vezes mais causa de guerra do que de paz. Mesmo as guerras mais recentes implicam conflitos e atritos religiosos.

H.G. Gadamer: É claro que as confissões religiosas são diferentes, sei muito bem que é difícil encontrar uma língua comum até para as diferentes ramos do cristianismo, mas a exposição ao perigo é tão grande, a ameaça de autodestruição do globo tão forte que o diálogo entre as diferentes culturas me parece, e espero que parecerá a todos, indispensável. Vamos partir, então, daquilo que todas as culturas e as religiões têm em comum.

Caffe Europa: E o que elas têm em comum?

H.G. Gadamer: O tema que pode ser discutido entre as diversas culturas é aquele dos direitos humanos. Sobre os direitos humanos é possível encontrar um acordo. Deve-se encontrar um acordo pela simples razão que todas as religiões, grandes e pequenas, o confucionismo, o budismo, o islamismo, o cristianismo, mas também as seitas animistas da América do Sul ou da África, todas, têm em comum o culto dos mortos. Até a Revolução de Outubro produziu a idéia de conservar para a eternidade o corpo de Lenin. A própria múmia de Lenin mostra, de forma caricatural, a convicção que alguma coisa vai para além da morte.

Assim como os guerreiros vikings que tinham o costume de sepultar seus mortos com toda a sua enorme nave. O fato é que os seres humanos são as únicas entidades viventes que conhecem o sepulcro. E o sepulcro revela que crêem num além, que depois da morte permanece alguma coisa. A devoção pelos mortos, tão universal, exprime algo que em termos filosóficos chamamos de transcendência. Este elemento comum nos fornece a base para nos colocar um objetivo: que todas as religiões aceitem os direitos humanos. Sem a cooperação das grandes culturas, este caminho não é possível. O cristianismo sozinho não basta, ele não cobre o globo inteiro. E nem as outras religiões. Naturalmente cabe um papel maior à política e não tanto à filosofia. Nós filósofos podemos simplesmente nos empenhar para que o tema filosófico da transcendência seja capaz de valorizar o traço comum a todos os seres humanos e não as diferenças doutrinárias, das quais os Ratzinger de todas as religiões gostam tanto e os sofistas que exasperam as diferenças teológicas e as fixam em sistemas.

Caffe Europa: Os direitos humanos parecem ter mais inimigos que amigos nas religiões.

H.G. Gadamer: Certamente os direitos humanos sempre foram contestados porque percebidos como um ataque à autonomia das diversas culturas e à soberania dos Estados. Por isto a China, por exemplo, sempre negou os discursos sobre os direitos humanos. Devemos desintoxicar esta situação e atribuir esta tarefa a todas as grandes religiões, não com o fim sub-reptício de condenar a China pelo banho de sangue que houve em Pequim, mas em geral. Não se trata de negar as culturas particulares. O modo certo de fazê-lo não é o dos americanos, que não representam, certamente, a cultura mais amada pelos outros. A desintoxicação cabe às grandes religiões. Mas não basta o que o Papa está fazendo.

Caffe Europa: O Papa está organizando para a primavera do ano 2000 uma viagem que tem, precisamente, este significado, percorrer os lugares da "história da salvação" comuns às três grandes religiões: islã, cristianismo, hebraica.

H.G. Gadamer: Eu concordo com ele e me sinto pertencendo ao mundo cristão. Sei também que ele seria a pessoa nas melhores condições para operar a desintoxicação. Mas não sei se ele é capaz de fazê-lo pelas dificuldades que temos visto dentro da Igreja. No Vaticano não estão muito satisfeitos que ele seja tão "liberal". Entre ele e os cardeais não há uma paz celestial, especialmente com alguns deles, como já falei. Outros líderes religiosos podem ajudar, especialmente o Dalai Lama.

Caffe Europa: E se as religiões não se libertarem destes obstáculos internos à cooperação para os direitos humanos?

H.G. Gadamer: Então devemos pedir ajuda aos políticos e pedir aos americanos que contenham suas tendências expansionistas, que se assemelham aquilo que se chamava imperialismo. Os homens de governo, europeus, indianos, árabes deveriam intensificar o confronto com os direitos humanos para chegar a uma paz sólida antes da terceira guerra mundial, antes do crepúsculo do mundo. É indispensável que este diálogo seja mais rápido que a difusão dos armamentos nucleares. E que os diferentes pontos de vista não possam impedir que se encontre princípios comuns, como, por exemplo, o valor da vida, talvez o banimento da pena de morte, como orientação geral, do direito internacional. Provavelmente estou muito velho, e sou um velho cuja voz conta muito pouco, mas estou convencido com suficiente segurança que o mundo não sobreviverá ao próximo século se não nos encaminharmos nesta direção.

Caffe Europa: E o senhor quer que esta mensagem de alarme ajude para que as pessoas abram os olhos? Quer encorajar o Papa?

H.G. Gadamer: Creio que o Papa esteja bem consciente dos perigos, mas ele não tem uma plena autonomia de ação. Ele está sob pressões. Eu não sou católico, mas também se fosse católico não poderia, certamente, pedir que atendesse os meus desejos. Esta seria um vão exagero da minha função no mundo. Sempre busquei com a minha filosofia mostrar quão poucas coisas podemos controlar. Sempre insisti no fato que devemos aprender muito e não sabemos nada. Dediquei-me ao nosso grande "ignoramus". Ignoramos sobretudo o mistério da transcendência, não sabemos nada do além. Não mudarei agora, não abandonarei a minha modéstia. Escreva que um velho lhe contou algumas idéias que lhe passam pela cabeça, que ele lhe confidenciou alguns medos dos quais não consegue se libertar.

Por uma ética global

Hans Küng, teólogo alemão, defende o papel das religiões para a paz e uma ética global, em entrevista concedida ao jornal português Público, no dia 26 de setembro de 1999. Na longa entrevista, o jornal pergunta:

Público: No seu livro Projeto para uma Nova Ética Mundial, sugere o papel fundamental das religiões para a paz no mundo. Estamos perante uma teologia ecumênica para a paz?

Hans Küng: Pode ser chamada assim. Há uma longa história de vários livros e de muitos diálogos com pessoas de outras religiões. O que defendo não é uma utopia idealista, mas uma esperança realista, que resumo em quatro frases: não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões sem diálogo inter-religioso; não haverá diálogo eficaz entre as religiões sem posições éticas comuns para o nosso globo; não haverá sobrevivência do globo sem uma ética global. Esta é uma visão que está enraizada na minha fé católica, mas que pode ser partilhada por pessoas de diferentes religiões, e por crentes e descrentes.

Público: Há quem considere que o diálogo inter-religioso comporta o risco do sincretismo...

Hans Küng: Temos que evitar duas atitudes erradas: uma, à direita, é o fundamentalismo que defende cada verdade como absoluta; outra, à esquerda, é o sincretismo e o relativismo que aceita todas as religiões são iguais. É possível estar enraizado na sua fé e respeitar, não denegrir, os outros. Mas para evitar o sincretismo, é preciso conhecer alguma coisa das outras religiões. As pessoas que têm medo do sincretismo não sabem nada das outras religiões e, muitas vezes, nem sequer sabem nada da sua. Quando se estudam as diferentes religiões, descobre-se que as posições éticas básicas são muito similares, apesar das diferenças dogmáticas".

A Ética Feminista: A Ética do cuidado

A revista O que nos faz pensar, no. 13, abril de 1999, publica um artigo de Angelika Krebs, professora da Universidade de Frankfurt am Main, com o título: "Ética feminista: uma crítica à racionalidade do discurso". A revista é editada pelo Departamento de Filosofia da PUC-RJ. O tema central do artigo é sobre a contribuição do feminismo para a ética. A autora faz uma dura crítica à racionalidade do discurso. Uma das teses centrais do artigo é que "o olhar da ética do discurso sobre a moral é um olhar unilateral masculino, formado no mundo tradicionalmente masculino da reciprocidade pessoal.

Os fenômenos morais do cuidado unilateral no mundo tradicionalmente feminino são desapercebidos por este olhar, que os remete ao âmbito da natureza, da emotividade, da compaixão ou do amor". Assim ela conclui que "a ética do discurso não consegue apreender corretamente o âmbito tradicionalmente feminino do cuidado com seres humanos não-pessoais" Ela afirma que "Habermas herdou de Kant o entendimento da moralidade restrito à personalidade. Portanto, a crítica que aponta para uma tendência masculina em Habermas, vale igualmente para Kant". Ela se pergunta pela possibilidade de uma ética do cuidado feminina. Criticando "a definição de moral dada pela ética do discurso, que incorpora um olhar masculino unilateral que - formado na esfera masculina da comunicação simétrica - só é capaz de perceber a esfera feminina do cuidado assimétrico de forma deturpada". Para ela, "a concepção de moral ampliada no sentido feminino e que tem por conteúdo a proteção das necessidades corporais e pessoais, ou seja, o bem-viver de todos os seres carentes, pode ser denominada de uma ética kantiana do bem-viver ou de uma ética da necessidade". Daí vem a pergunta: "Não se poderia chamar esta concepção moral também de ética (feminina) do cuidado?"

Baudrillard:
O Mundo se converteu numa grande Disneylândia

O filósofo francês Jean Baudrillard, participando de um simpósio sobre o fim do milênio, em La Coruña, na Espanha, com mais de 500 especialistas, no final do mês de setembro, afirmou que a engenharia genética anuncia a iminente aparição do "homem artificial". O que são os seres humanos? São, por acaso, puros espectros? "Este é o grande problema: O que acontece com o real quando ele é substituído? O que ocorre com o corpo quando ele se torna inútil? Teremos um corpo de síntese? Como desfazer-se do real? A reação dos comportamentos humanos frente a tudo isto é um mistério" – segundo J. Baudrillard.

O mundo, assim, se converteu numa "gigantesca Disneylandia" onde o real foi substituído pelo virtual. Para ele, as transformações espetaculares dos últimos anos permitem que se possa prever que o novo milênio "mudará as regras do jogo", mas não sabemos em que direção. Baudrillard está seguro que se produzirão catástrofes, no sentido ambivalente que dá a este conceito. Pois para muitos, a catástrofe se apresenta como uma esperança para começar tudo de novo, do zero. Internet é, para Baudrillard, uma destas catástrofes. Benéfica como instrumento lúdico e de comunicação, mas que traz presságios obscuros. "A rede é, em certa medida, uma desmedida, produz uma saturação de informação e cria um mundo novo onde é possível estar em vários lugares ao mesmo tempo", opina Baudrillard, "mas não sei se poderemos suportar tudo isto. A Internet pode se converter num lugar inabitável, quase num suicídio".

CEPAT INFORMA é uma publicação do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores 
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(1) O Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – Cepat surge no início da década de 1990 com a preocupação de compreender melhor a profundidade, a amplitude e o impacto das transformações no mundo do trabalho. Nasceu da reflexão de jesuítas da Província do Brasil Meridional e de leigos especialmente ligados à Pastoral Operária sobre a ausência de uma atenção maior para o mundo urbano, mais especificamente para a realidade do mundo do trabalho. Por esta razão, mesmo sendo uma organização não governamental, o Cepat sempre se vinculou aos jesuítas e sempre se compreendeu como obra da Companhia de Jesus, entendendo-se como uma atualização das inspirações dos Centros de Investigação e Ação Social – CIAS. Desde 2008, passa a se constituir como Centro Jesuíta de Cidadania e Ação Social – CJ-Cias e integra a Rede Jesuíta de Cidadania e Ação Social – SJ-Cias.