mercredi 31 mai 2017

O princípio protestante

Em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, o teólogo alemão Paul Tillich fornece roteiro e bases teóricas para uma leitura teológica do socialismo.  E uma dessas bases teóricas é o conceito de princípio protestante, que explica desde um ponto de vista teológico fenômenos de transformação social, mesmo quando estes acontecem à margem das estruturas religiosas existentes.

Para Paul Tillich, “o protestantismo existe onde quer que se proclame o poder do novo ser, e onde prega a situação-limite, o seu ‘sim’ e o seu ‘não’. É aí que se encontra o protestantismo e em nenhum outro lugar. É possível que o protestantismo sobreviva nas religiões organizadas, mas não depende delas. Talvez, a maioria das pessoas experimente, hoje em dia, a situação-limite mais fora do que dentro das igrejas. O princípio religioso pode ser proclamado por movimentos pertencentes tanto ao domínio religioso como ao secular, mas sem qualquer filiação eclesiástica ou institucional, bem como por grupos ou indivíduos que, por meio de símbolos cristãos ou protestantes, ou sem eles, expressam a verdadeira situação humana em face do absoluto e do incondicional. Se nessas situações proclama-se e vive-se melhor e com mais autoridade o princípio protestante do que nas igrejas oficiais, então é aí e não nas igrejas que o protestantismo se torna vivo no mundo atual”.

Tomando-se por base tal conceito e outros que serão expostos no correr desta dissertação, fartamente documentados em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, temos instrumental metodológico em que nos basear para desenvolver o trabalho proposto. E mais do que isso, levando em conta a riqueza do momento histórico vivido por nosso país no final dos anos 70, tanto em relação à consolidação da democracia, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, aquele foi um momento especial, kairótico, de tempo bom, especial e favorável para a construção de proposta e alternativas sociais.

Tillich, ao analisar o princípio protestante enquantco clamor profético, leva em conta aspectos históricos, assim como os grandes movimentos ideológicos do século. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto no qual surge e se estrutura o princípio protestante.

A chamada para um posicionamento transcendente, capaz de julgar e transformar, considerando a direção vertical, transcendente, o “apesar de”, e a direção horizontal, da práxis, do “porque”, assim como a resistência ao impacto da catástrofe histórica deveria sempre levar a Igreja à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem que não seja ilusória, mas realista, não seja pessimista, mas consciente, não seja desesperada, nem utópica, mas de esperança.

Nesse contexto, Tillich define o homem moderno como autônomo, mas profundamente inseguro no interior da própria autonomia. Isto leva a ecclesia não protestante, no caso a Igreja Católica pré-Vaticano II à tentativa de emancipá-lo desta autonomia, através da submissão à antiga substância de vida: à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia já foi “experimentado algo”, e esta é uma experiência viva que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito tillichiano de situação-limite, que se traduz enquanto ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Essa expressão nasce em torno da justificação pela fé. A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Assim, Tillich vê a diferença entre qualquer cristianismo que profetize a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante no reconhecimento da existência da situação-limite, que deve traduzir-se em julgamento e transformação. A justificação pela fé é, então, melhor entendida a partir da situação-limite.

Em sua abordagem sobre o poder formativo do protestantismo, Tillich apresenta quatro princípios determinantes das formas protestantes: o religioso deve se relacionar com o secular; o elemento eterno deve ser expresso em relação a presente situação; a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; e, enfim, o poder formativo do protestantismo deve expressar o radicalismo da fé.

Nos anos 70, setores do socialismo democrático e pluralista levantaram o discurso e a práxis do princípio protestante colocando-se na situação-limite, correndo os riscos advindos de tal postura.

Levantando-se a favor da melhoria do nível de vida dos excluídos, fazendo o julgamento da ditadura e da opressão, propondo a democratização do país e a formação de um partido para os trabalhadores, o movimento de Convergência Socialista, conforme exposto no jornal Versus, proclamou a liberdade e o bem, julgou o arbítrio e propôs a transformação da realidade.

O cristianismo é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal.

Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo.  Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade.

Também não se pode dizer que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado à interpenetração de formas de consciência filosófica, à experiência estética e ao ideal ético de pessoalidade e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos.

É verdade, que o cristianismo tem mais afinidade com determinadas formas de organização social. A ética do amor, por exemplo, leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, nos anos 70, o cristianismo foi desafiado a fazer a crítica do capitalismo selvagem e do militarismo que grassou na América Latina.

O espírito do amor denuncia a ordem social que, conscientemente, está erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclama a necessidade de uma nova ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.

A ética do amor cristão denuncia o egoísmo da economia das grandes empresas privadas e dos governos que a elas servem, que levam à expropriação de muitos em benefícios de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho.

Denuncia também o egoísmo do princípio de classe, onde cada qual procura se enriquecer através da exploração de seu próximo e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas a ética do amor nega também a afirmação do princípio da luta de classes e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e a supressão da exploração de determinados setores profissionais por outros.

A ética do amor cristão denuncia também o egoísmo do princípio internacional da força e do comércio, que justifica o uso da violência e da guerra sobre continentes, nações e povos, e prega a submissão dos povos, ricos e pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre os povos e nacionalidades.

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico diminuirá o desenvolvimento, ao reduzir a produção. No entanto, ao partir do amor cristão, vemos que o homem não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que por isso o objetivo da ética da economia não é a fabricação da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, e sim a produção para o maior número de pessoas de bens necessários à vida.

É preciso entender que na história uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica. A alma da unidade espiritual é a religião. Assim, o fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica.

Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.

Seja qual for a opinião ética sobre a relação entre cristianismo, capitalismo e socialismo, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com o socialismo, já que a rejeição do princípio socialista em nome do cristianismo contradiz a universalidade do cristianismo.

E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o socialismo, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: pode e deve o socialismo ter um relacionamento construtivo com o cristianismo?

Para muitos, a concepção materialista da história nega a possibilidade dessa aproximação. Mas se entendemos que em Marx esta concepção de fato não é materialista, mas econômica, vemos que ela mostra somente uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá a todas as ciências do espírito uma possibilidade metodológica extremamente fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo.

Quanto às organizações socialistas, como é o caso da Convergência Socialista, é necessário ver a atitude que têm em relação ao cristianismo e uma outra em relação às estruturas hierárquicas da Igreja. A história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilita e potencializa a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Ao contrário, é uma herança da cultura burguesa, crítica e cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais justo e digno.

Assim, a crítica das organizações socialistas está sobretudo dirigida às igrejas confessionais, à religião que se tornou negócio. Mas, como o próprio socialismo busca uma inspiração ética e uma espiritualidade que tenha como ponto de partida as potencialidades da  universalidade humana, tende a equilibrar-se entre o princípio da tolerância religiosa e o princípio da separação entre a religião e o Estado. Esta é uma realidade vivida no Brasil, de forma crescente, nos últimos quarenta anos.

O protesto socialista se dá em relação às igrejas que estão intimamente ligadas à ordem social e econômica burguesa e capitalista. E que na maioria dos casos se posicionam como adversárias do socialismo, ao não compreenderem a existência de laços comuns entre o ideal socialista e a ética do amor.

Embora, haja razões históricas e atuais para a crítica à Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão, tal como pode ser claramente percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em amplos setores do socialismo uma hostilidade de princípio contra o cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética socialista, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos.

E quanto à revolução, é preciso dizer que não existe uma relação natural entre ideal socialista e tática revolucionária. Nem sempre se pode dizer que as táticas propostas pelos socialistas ferem o cristianismo. A Igreja protestante na Europa colocou-se diversas vezes a favor da revolução, quando a opressão de governos instituídos se tornou insuportável, fazendo deles autoridades ilegítimas.

Assim, se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com a Igreja que vive o princípio protestante, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação ao socialismo.

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio do amor cristão, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade.