lundi 14 novembre 2022

Teologia da vida, texto completo

Jorge Pinheiro 


Teologia da vida 
Uma paixão radical 



Índice 

A vida, uma leitura radical 

Sessenta anos em branco 

As lágrimas negadas 

Duas mulheres e o milagre do perdão 

Afinal, onde mora o pecado? 

Paul Tillich e Karl Marx 

Amar e ser amado 

Sou negra e bela! 

Principados e potestades 

Memórias de Toulouse 

La Rochelle, belle et rebelle 

As artes de Frida Kahlo 

O assassinato como obra de arte? 

A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes 

O corpo e o baile 

O sermão do fogo 

O menino e o rifle 

De heróis, marinheiros e fazendeiros 

Dolls, três histórias de bonecos 

Feto pisca e sorri 

Em que Deus estava pensando? 

Os olhos azuis de Jussara 

O punhal de Abraão 

Esqueceram de mim 

Uma triste herança 

Armínio e Spielberg falam de escolha 

As fronteiras da igualdade e da liberdade 

Quanto pesa a sua alma? 

Lições de apocalíptica 

A assembléia do deserto 

Entre o céu e a terra 

Soltem o refém! 

Lições de judaísmo 

A esperança e o desespero 

Adélia e Bataille num diálogo pertinente 

O desafio de ser benigno 

O mistério da Trindade 

Meu Jesus salvador 

As boas obras do amor 

A teologia nossa de cada dia 

O tempo das cerejas 

Quando a dor é grande 

A vida, uma leitura radical 


https://www.youtube.com/watch?v=3A3YjxZsJdc

Um dos temas centrais da mídia, hoje, é a violência. Tal fato nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. E em nome de doutrinas, políticas e religiões, gentes são transformadas em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. Nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que a primeira teologia das Escrituras hebraicas, e poster
iormente cristãs, construída para o ser humano no bojo da teologia da criação, é a teologia da vida. 




Deus fez o humano como semelhante, cheio de parecença, para ser como Ele e com Ele, para curtir o mundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. E Deus contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em Bereshit, o livro primeiro das Escrituras. E é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que Deus curtiu a beça tudo aquilo. Achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar. 




As histórias se multiplicam. Há histórias que falam da importância da vida nas Escrituras hebraicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. Na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão a Deus, mas o Eterno não permitiu e disse: Eu criei o ser humano, cada um deles é minha criação, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da vida: fomos criados por Deus, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia entende isso: a vida é direito universal porque Deus ama a pessoa, todas as pessoas -- foram feitas por Ele e têm o jeitão dele. 




Nesse sentido, a partir da teologia da vida podemos dizer que não há diferença entre judeu e grego, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração de Deus, para Ele é como se todos fôssemos únicos. 




O respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência: direcionam a teologia da vida. Criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. E quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. Cuidar e salvar pessoas é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai. 




Voltando ao primeiro livro das Escrituras hebraicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. E é interessante o que esse livro fala da criação e da história do primeiro casal: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Hadam e Hawah. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o valor que têm para Deus: são menores, aparentemente pequenos, mas valem muito, pesam tanto quanto todo o universo. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 




E será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. Ou, em outras palavras, posso explorá-la? Não, não posso. Será que posso fazer dos meus pais, escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. Será que posso fazer de meus filhos escravos. Ou, em outras palavras, posso explorá-los? Não, não posso. E por quê? Porque devo amar o humano como semelhante, como igual. Esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. Este princípio é fundamental na teologia da vida. As relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: Da-terra e A-vida estão por trás de toda a humanidade. 




As Escrituras hebraicas nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece totalmente diferente. Esse é o princípio da paz entre os povos. Por isso, a teologia da vida propõe que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. Este é o sentido maior da justiça. 




Assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? Sabemos que a resposta é não. E de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? Muitos acharão que sim. Mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. Ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é. 




O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser, por sua terra e vida, é teologia radical, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com Deus. A imagem está em um, em dois, em todas as pessoas. 






























Sessenta anos em branco 







“Vocês sairão alegres da Babilônia, serão guiados em paz para a sua terra. As montanhas e os morros cantarão de alegria; todas as árvores baterão palmas. Onde agora só há espinheiros crescerão pinheiros, murtas aparecerão onde agora só cresce o mato. Isso será para vocês uma testemunha daquilo que eu fiz, será um sinal eterno, que nunca desaparecerá.” (Isaías 55. 12-12). 




O carro era um Renault Modus, 2005, placa 420AMW60, e o patrocinador o Toninho, nosso padrinho de casamento, meu e da Naira, pelo meu aniversário de 60 anos, completados no sábado dia 5 de março. Obrigadão, padrinho! 


Partimos de Montpellier, no litoral do Mediterrâneo francês em direção ao Parque Nacional de Cèvennes, às 8 da manhã de sábado, chegamos em Anduze, cidade que dá entrada à região de Cèvennes, por volta das 10 da manhã. Depois de dois cafezinhos para nós e um chá para a Paloma, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, zigzagueando o vale e margeando o rio Gard. 


Cenário do campo da região de Languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas. 

Arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. Estradas secundárias, mas em ótimas condições. Uma delas com um aviso, «chaussées deformées», para dizer que a pista não era muito boa. Fiquei esperando buracos e desvíneis, mas nada... Apenas não era lisa como as anteriores. 


Quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à direita, Paloma teve sua primeira grande experiência deste inverno, nevava levemente. Mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. Não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. Foi a glória. Naira e Paloma pareciam duas crianças. A maior farra. Preocupado com a possibilidade das meninas se resfriarem, fiz as duas voltarem ao carro. Estávamos na maior alegria. 


Seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas... E logicamente os pinheiros verdes, cobertos... Como nos cartões postais de Natal. Chegamos a Florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. Entramos num restaurante muito simpático, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época, afinal estamos em 2005. Tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. Estacionei numa pequena praça e dentro do carro almoçamos. Naira tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. Amamos «les baguettes». 


Depois do almoço, ainda em Florac, fomos visitar um castelo que no século XVII fez parte da resistência protestante. Atenção, toda a região de Cèvennes no século XVII foi um pólo das lutas pela liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, com a presença dos primeiros huguenotes. 


Nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem mediação ou armistício. Naira, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. E em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. Reagiu à altura, sem complacência. Por fim, voltamos ao carro e seguimos viagem para Barre de Cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu «camisards» e profetas. 


Mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevada muito forte. Em poucos minutos a neve cobriu o carro. Descemos e fomos visitar uma igreja protestante do século XVII. Eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com o passado heróico da fé protestante, mas também, como Naira e Paloma, inebriado pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes. 


Assim como a neve... 


A cidade inteira estava branca. Tudo branco. Guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. Lembrei-me de Isaías 55, quando Deus diz que assim como desce a neve dos céus e para lá não volta, mas rega a terra, a faz produzir, brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra Dele, que não volta, mas faz o que Ele quer e prospera no objetivo para a qual foi enviada. Agradeci a Deus pela vida, por meu ministério e pela eternidade com meu Senhor e Deus. 


Um grupo de rapazes passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. Foi difícil deixar Barre de Cèvennes. Mas tivemos que fazê-lo. Eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve. 


No caminho, Naira viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. Paramos mais uma vez. 


Desta vez, Paloma fez o anjo. Para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitada fazer movimentos com os braços para marcar a neve. Depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. E fez outro anjo... e por fim num gesto solidário, juntos, fizemos nosso primeiro boneco de neve. Na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da Paloma. Não era uma boneca enorme, mas muito simpática. 


E lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. Retornamos ao vale, passamos de novo por Anduze, e seguimos para Nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu, onde ainda se realizam corridas de touro. Quando chegamos estava acontecendo uma. Mas levei as meninas a Nîmes só para uma rápida olhada. Voltamos, já à noite para Montpellier. 


Chegamos às 20h30. E como li a placa do Renault que aluguei, ao bater os olhos nela, como «60 Attends à Merveilleux Week-end 60», agradeci a Deus pelo gostoso sábado branco de meus sessenta anos, que, tocado pelo anjo nevado da Paloma, Toninho nos proporcionou. E a Deus toda a glória, pois diz: quem espera nele renova a sua força, sobe com asas como águias, corre e não se cansa, caminha e não se fatiga. 








As lágrimas negadas 





Os dois rapazes, armados, trombaram a velhinha. Arrancaram a bolsa e começaram a tirar tudo que tinha lá dentro. Tiraram a Bíblia, revolveram tudo, mas não acharam o que queriam: dinheiro. 


-- Diz velha, onde está o dinheiro? Diz logo, senão a gente te apaga. 


-- Meninos, por que vocês fazem isso? Vocês são tão bonitos... 


A velhinha -- tinha mais de 70 anos -- pegou a Bíblia que estava nas mãos de um deles e encostou-a no peito. 


-- Jesus muda tudo, faz tudo novo... Qualquer vida... 


-- Deixa essa velha pra lá. Vamos embora, ela parece minha mãe. 


Maria chegou em casa e contou a história como se fosse a coisa mais normal do mundo. Depois disse: 


-- Vou orar por eles. Deus pode mudar a vida daqueles meninos. 


O pai era atacadista de café nos ricos anos 20 nas Minas Gerais. Mas cedo foi morar no Rio de Janeiro, em Copacabana. Estudou no Sacré Coeur de Marie. O grande amor de sua vida foi meu pai, jornalista e socialista. 


Mas o mundo dá voltas e Maria ficou viúva com dois filhos, Jorge e Alex. E aos poucos a herança foi virando fumaça. E aquela mulher, educada para ser dondoca, de fina cultura, lutou, batalhou para criar os dois meninos. Enfrentou momentos difíceis, sofreu um forte stress e tentou o suicídio, cortando os pulsos. Foi internada. E, no meio do desespero, uma voz suave falou ao seu coração. 


Dez anos depois na morte de meu pai, Maria conheceu o Salvador, aquele que dá sentido à vida. Maria me lembra outra mulher, Mônica, mãe de Agostinho. 


"É verdade que minha mãe, vivificada em Cristo, antes mesmo de ser livre dos laços da carne, viveu de tal modo, que Teu nome era louvado em sua fé e em seus costumes". 


Foi com Maria que aprendi o doce dom do amor. Eu, com minha cabeça materialista, ficava chocado, quando ela alimentava famintos ou cuidava de mendigos. Eu, adolescente, brigava com ela, dizia que era piegas, que isso não adiantava nada e outras tantas coisas. E Maria, com paciência, me respondia: 


-- Um dia você vai entender. 


Não, de forma nenhuma foi perfeita. De novo, me lembro das palavras de Agostinho sobre Mônica. 


"Não me atrevo a dizer que desde que a regeneraste (...) não saiu de sua boca nenhuma palavra contrária a sua lei. Porque a Verdade, que é teu Filho, disse: Quem chamar a seu irmão de louco será réu do fogo da Geena. Ai da vida dos homens, por mais louvável que seja, se tu a julgares sem a tua misericórdia!". 


Minha mãe, Maria, morreu aos 87 anos, na quinta-feira, dia 27 de novembro de 2003. Pode parecer estranho, mas apesar do profundo amor que sempre nutri por ela e de toda a saudade que ficou, não chorei. Ao menos até agora, doze horas depois do sepultamento. Mais uma vez recorro a Agostinho. 


"De fato, não julgávamos correto celebrar aquele funeral com lágrimas e choros, pois tais demonstrações deploravam geralmente o triste fim dos que morrem, ou sua total extinção. A morte de minha mãe não era uma desgraça, e ela não morria para sempre, e disto estávamos certos pelo testemunho de seus costumes. Por sua fé sincera e outras razões inequívocas". 


Há promessas... 


Então vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar sumiu. E vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu. Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada, vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo. Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse: 


-- Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles. Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram. 


Aquele que estava sentado no trono disse: 


-- Agora faço novas todas as coisas! 


E também me disse: 


-- Escreva isto, pois estas palavras são verdadeiras e merecem confiança.

E continuou: 


-- Tudo está feito! Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tem sede darei água para beber, de graça, da fonte da água da vida. Aqueles que conseguirem a vitória receberão de mim este presente: eu serei o Deus deles, e eles serão meus filhos. 




Eu creio nestas promessas! Até mais ver, querida mãe! 






Duas mulheres e o milagre do perdão 




As situações-limite exemplificam as maravilhas do perdão. Vemos isso, por exemplo, na expressão de Jesus "onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado". 


Aminal Lawal, uma mulher nigeriana, foi condenada por adultério por ter um filho dois anos depois de separar-se de seu marido. Ela seria apedrejada até a morte, conforme ordena a lei islâmica, a Sharia. 


Há mais de três mil anos, uma jovem chamada Raabe, na Palestina, também correu o risco de ser assassinada. 


E para entender o milagre do perdão vamos fazer uma rápida viagem pela história de Aminal e pelo ofício de Raabe. Mas antes vejamos duas palavras fundamentais para nossa viagem... 


O Novo Aurélio, o dicionário da Língua Portuguesa, assim nos apresenta a palavra prostituição (u-i). [Do lat. tard. prostitutione.] S.f. 1. Ato ou efeito de prostituir(-se). 2. Comércio habitual ou profissional do amor sexual. 3. O conjunto das prostitutas. 4. A vida das prostitutas. 5. P. ext. Vida desregrada. 6. Profanação, aviltamento. 


E a palavra perdão. [Dev. do arc. perdõar.] S. m. 1. Remissão de pena; desculpa; indulto. 2. Ét. Renúncia de pessoa ou instituição à adesão às conseqüências punitivas que seriam justificáveis em face de uma ação que, em níveis diversos, transgride preceitos jurídicos, religiosos, morais ou afetivos vigentes. 


A Sharia é a aplicação do Alcorão na prática cotidiana, e em alguns países é aplicado como lei. Assim, a morte por apedrejamento é um costume no Oriente Médio, e essa norma também faz parte da Torá judaica. 


Aminal teve um filho fora do casamento. E por isso devia ser apedrejada. Mas o mundo ocidental se manifestou pela revogação da sentença. Então, os juízes islâmicos, pressionados pela opinião pública, usaram um subterfúgio para salvar Aminal. Alegaram que segundo a tradição islâmica um bebê pode estar em gestação por um período de até cinco anos. Ou seja, Aminal poderia estar grávida do marido. 


Raabe foi mulher de Salmon, possivelmente filho de Calebe, e mãe de Boaz. É bom lembrar que as prostitutas na Antigüidade, cultuais ou não, começavam seu ofício ainda na puberdade. 


Na vida escura e duvidosa dessa jovem, prostituta e mentirosa, deve ter brilhado a centelha de que com os hebreus havia um Deus superior a todos os deuses que ela conhecera. A cidade de Jericó estava em pânico, temendo um ataque dos hebreus, e entre o povo se comentava o que o Deus dos hebreus fizera na saída do Egito e durante a caminhada no deserto: 


"Soubemos que o Senhor secou o mar Vermelho diante de vocês quando saíram do Egito. Também ficamos sabendo como, a leste do rio Jordão, vocês mataram Seom e Ogue, os reis dos amorreus, e destruíram os seus exércitos". Josué 2.10. 


Zaná é uma palavra hebraica que pode ser traduzida por praticar prostituição, mas seu sentido literal quer dizer manter relações sexuais ilícitas. É a palavra que designa a atividade de Raabe, jovem que escondeu os espiões enviados por Josué. 


A palavra normalmente se refere a mulheres e apenas duas vezes diz respeito a homens. A forma feminina do particípio é usada regularmente para indicar a prostituta. Tais pessoas recebiam pagamento, tinham marcas características que as indicavam, trabalhavam em suas próprias casas e deviam ser evitadas. Poucas vezes a mulher com quem o ato é cometido é identificada como mulher casada, mas também nunca se afirma que é solteira.

Ambas as mulheres, Aminal e Raabe, foram consideradas prostitutas, conforme o costume palestino. A primeira adulterou e a segunda, segundo estudiosos, era uma sacerdotisa da religião Cananéia, ou seja, uma prostituta cultual. 


As duas mereciam a morte, mas foram salvas pelo perdão. E perdão implica em esquecimento, por isso não importa mais se Aminal adulterou ou se Raabe era prostituta cultual...

Mas há uma diferença, não sabemos se no caso de Aminal houve arrependimento e mudança de vida. Não sabemos se Aminal depositou sua vida, pela fé, nas mãos do Deus criador dos céus e de terra. 


Já, Raabe, pela fé, confiou na misericórdia e no poder de Deus e obteve salvação para si e sua família. Veja a confissão que ela faz no final do verso 11, ao reconhecer que o Eterno estava acima dos deuses da religião cananéia: "O Deus de vocês, o Senhor, é Deus lá em cima no céu e aqui em baixo na terra". Estas palavras, proferidas por Raabe, são uma declaração de contrição, de arrependimento. 


Centenas de anos mais tarde, Jesus, o ungido de Deus, descendente da prostituta Raabe, disse de outra jovem, quando essa lavou seus pés com óleo e os enxugou com os cabelos: 


"Você está vendo esta mulher? Quando entrei, você não me ofereceu água para lavar os pés, porém ela os lavou com as suas lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Você não me beijou quando cheguei; ela, porém, não pára de beijar os meus pés desde que entrei. Você não pôs azeite perfumado na minha cabeça, porém ela derramou perfume nos meus pés. Eu afirmo a você, então, que o grande amor que ela mostrou prova que os seus muitos pecados já foram perdoados. Mas onde pouco é perdoado, pouco amor é mostrado". Lucas 7.44-47. 


Eis o milagre do perdão. Milagre que cobriu Raabe e, em nome de Jesus, clamamos para que cubra também a vida de Aminal Lawal. 









Afinal, onde mora o pecado? 





"Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; se desejo explicar a quem o pergunta, não o sei", afirmou Agostinho, um homem entre um tempo romano que desmoronava e o tempo medieval em formação. O jeito romano de olhar o mundo dava lugar a um novo olhar. E para olhar o mundo e entendê-lo era necessário saber de onde vinha o mal e a existência do pecado. 


De Pelágio (c. 360-420) sabemos pouco. Saiu da Grã-Bretanha, onde tinha jogado um papel importante na formação do cristianismo céltico. Como Agostinho também era monge, e muito respeitado na Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos. Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de seus colegas. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. 


Em 410, Roma, fragilizada, foi saqueada pelos godos. Os pagãos, nome com que a Igreja designava os não-cristãos, atribuíram a invasão ao fato de os romanos terem abandonado os deuses antigos. De acordo com eles, enquanto fora adorado, Júpiter protegera a cidade; ao ser trocado pelo cristianismo, deixara de fazê-lo. 


Assim entre 412 e 427, Agostinho escreveu A Cidade de Deus, um livro cuja base era o pensamento neoplatônico e que exerceria forte influência nos tempos medievais. Nele respondeu a tais acusações, argumentando que coisas piores haviam ocorrido em tempos pré-cristãos. Que os deuses pagãos eram perversos. Ele não negava a existência de entidades como Baco, Netuno e Júpiter, mas os considerava demônios. 


Demônios que ordenavam aos homens, por exemplo, que criassem peças teatrais, definidas por Agostinho como "espetáculos da imundície". Em razão desses deuses, Roma sempre fora perversa e pecaminosa. 


Com o cristianismo, Roma se salvaria. E, se a cidade dos homens fora invadida, pouco importava, já que o objetivo maior era a salvação por meio do amor para atingir a cidade de Deus, a sociedade dos eleitos. A busca central não era a cidadania na sociedade dos homens, mas a salvação no reino de Deus. 


E assim questões do dia-a-dia, políticas, levarão Agostinho a discutir a questão do mal. Nas suas Confissões conta a história de sua descoberta de Deus, ainda na infância. Para ele, o mal habitava a natureza de todos os seres humanos. Fazia parte da essência do ser, depois do pecado de Adão. E, se os bebês são inocentes, não é porque lhes falte o desejo de fazerem o mal, mas por carecerem de força. 


Agostinho, como sua geração, estava preocupado com o problema do mal. E vai procurar a solução para esta questão na construção de uma teologia que combinaria os textos da revelação bíblica com uma leitura hermenêutica neoplatônica. Assim, a partir da questão da essência em Platão, rompe com o pensamento cristão oriental, que norteava entre outros o monge britânico Pelágio e a igreja cristã celta. 


As idéias de Pelágio e da igreja oriental não combinavam com o determinismo essencialista da nascente igreja romana. Nessa época Roma combatia teologicamente os donatistas da África do Norte. Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a Igreja. Se ela concordasse com tal visão, poria abaixo o edifício cerimonial e litúrgico da Igreja. E se não concordasse significaria que o edifício cerimonial da Igreja dependia do caráter moral dos clérigos e ninguém poderia ter a certeza se as ordenanças e os rituais teriam eficácia espiritual. 

Mas, se a declaração dos donatistas fosse declarada falsa, então os sacramentos poderiam ser administrados eficazmente mesmo por um herético ou pecador. A acusação de heresia conservaria, desta forma, a estrutura da igreja. Naquela época, muitos homens da igreja, inclusive Agostinho, defendiam que a igreja era uma instituição cuja santidade vinha dos sacramentos e não da fé das pessoas. Para Agostinho e para a igreja de Roma os sacramentos produziam santificação e não era a vida pia que produzia homens santos. 


Tal discussão levou Agostinho a negar a realidade metafísica do mal. O mal não é um ser, uma pessoa, mas privação de ser, como a escuridão é a ausência de luz. Tal falta estaria presente em todo ser que não seja Deus, enquanto criado e limitado. 


Quanto ao mal físico, que atinge os seres humanos, Agostinho justificou-o através de um argumento estético: o contraste dos seres contribui para a harmonia do conjunto. 


E em relação ao mal moral, Agostinho disse que existe a vontade má que livremente faz o mal. Ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. 


Assim Agostinho, através do neoplatonismo, explica que o mal moral entrou no mundo humano pelo pecado original. Por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além perder dos dons que Deus havia dado a Adão. 


Como se vê, para Agostinho, o mal físico teria origem na culpa do próprio ser humano. Mas este mal foi remediado pela redenção em Cristo, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral. Mas deixou o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. 


E a explicação última de tudo isso estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Assim, a teologia agostiniana considera que o mal é a privação do bem e não o contrário. E que essa privação do bem não tem origem no mal metafísico ou no mal moral e físico. O bem nunca é conseqüência, porque se fosse conseqüência nasceria do mal. Então, para Agostinho, a solução do problema para o mal -- físico e moral (pecado original versus redenção) -- é estético: o contraste entre os seres leva a harmonia do conjunto. Por isso, para ele, na Igreja está a salvação. 


A Igreja celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo Celestino, a questão girava ao redor da teologia do livre arbítrio. Não concordava, com a idéia essencialista defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de um pecado original que degenerou a natureza da humanidade. Numa leitura existencial-fenomenológica do problema do mal, simplesmente revolucionária para sua época, defendeu que eram os atos e as ações que levavam o ser humano a herdar o inferno. E discordou de Agostinho, quando este afirmou que o ser humano só poderia ganhar a salvação através da igreja. 


Considerou a doutrina do pecado original sem base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem o mal moral e que diante dos delitos e pecados são salvos pela graça de Deus, que não merecemos, que nos é entregue através de Jesus Cristo. 


Até aquele momento, a visão de Pelágio e seus seguidores traduziam a doutrina histórica do livre arbítrio humano e a da maldade socialmente presente no mundo. Tal visão levou Pelágio a entrar em choque com seu maior opositor, Agostinho de Tagasta. 


Mas, as posições de Pelágio não eram a única fonte de seus problemas com a igreja. Quando ela visitou Roma, em torno de 380, o que viu e ouviu estava em oposição com o rigoroso asceticismo praticado por ele e pelos monges britânicos. Ficou chocado com a pompa e o luxo da hierarquia da igreja romana. Responsabilizou a lassidão moral do Papado, mas obteve como resposta a partir de citação das Confissões de Agostinho, que Deus em sua vontade determina uns para o luxo e outros para a abstinência. Pelágio atacou este ensino, afirmando que a lei moral impera sobre toda a terra. 


Pelágio manteve sua vida de asceta. Pregou a natureza moral boa do ser humano e sua responsabilidade para escolher o asceticismo cristão como forma de avançar espiritualmente. Apesar de viver na Irlanda, ganhou inimigos e ficou sob os ataques de Agostinho.

Ao redor de 412, Pelágio foi para a Palestina, onde em 415 compareceu diante do Sínodo de Jerusalém acusado de heresia. Para defender-se dos ataques de Agostinho e de Jerônimo, escreveu Arbitrio de libero (Na vontade livre), em 416, que ao invés de melhorar a situação, levou-o a ser condenado em dois conselhos africanos. 


Ele e Celestino foram propostos à condenação e excomunhão pelo papa Inocente. Mas o sucessor de Inocente, Zózimo declarou Pelágio inocente em sua Fidei de libellus (Indicação breve da fé), mas depois reconsiderou, quando nova investigação foi proposta pelo concílio de Cartago (397-419). Zózimo confirmou as acusações e Pelágio foi condenado. A partir dessa data, mas nada se sabe dele. 


No entanto, Pelágio é lembrado como aquele que teologicamente tentou livrar a humanidade da culpa de Adão. Seus seguidores fazem questão de mostrar que ele foi um dos primeiros dissidentes da igreja católica romana em construção. 


O individualismo áspero do monge celta, sua convicção de que cada pessoa está livre para escolher entre o bem e o mal, e sua insistência de que a fé deve ser prática (ora et labora), marcaram a imaginação teológica do final do século 20. E não somente a imaginação da teologia, mas também da pedagogia e da psicologia. 









Paul Tillich e Karl Marx 





As doutrinas de Marx e dos marxistas sempre foram discutidas com profundidade como parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. Na maioria dos casos, como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas de Marx. Terá mudado esta situação? Teria aumentado a distancia entre o marxismo e o cristianismo? 


Para Paul Tillich é importante que o olhar lançado nas profundezas do humano não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo, para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida. 


Ao buscar as raízes antropológicas do socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal socialista religioso co-editado por Tillich. 


Assim, Tillich descobre o Marx humanista e profeta, que contrasta com o Marx da maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade. Tillich, porém, resiste à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento. 


Mas, há uma razão para se fazer a crítica teológica do marxismo, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação profética e a interpretação marxiana da história. 


Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Assim, o espírito da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. A situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não. Em A Era Protestante diz que devemos nos perguntar se o socialismo não é um tipo especial de religiosidade, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma nova terra simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz. 


O princípio profético e o marxismo partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos. 


E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante marxista. Assim, para o profetismo e para o marxismo, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal. 


As forças do mal são identificadas como a injustiça, mas podem ser derrotadas. Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico. 


Ora, há um desafio ético, apaixonado, contra as formas concretas de injustiça, como afirma Tillich, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e o marxismo colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos. 


Tanto o profetismo como o marxismo acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça. Dessa maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. 


A analogia estrutural entre o espírito profético e o marxismo não se limita à interpretação histórica, mas se estendem à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do homem, que se apresenta como doutrina cristã do ser humano. 


O ser humano, para o marxismo, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial. Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve que quanto mais produz o operário produz com seu trabalho, mais o mundo objetivo se torna estranho a ele, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu. Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que a miséria do operário está na razão inversa do poder e da grandeza de sua produção. Quanto mais produz, maior é a sua miséria. 


Assim, a produção não faz apenas do homem mercadoria, a mercadoria humana, o homem sob forma de mercadoria, mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado. O desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que aumenta as possibilidades humanas reproduz a desumanidade. Evidenciam-se, então, os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos de deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano. 


A idéia da alienação está presente no marxismo. Caso não tenha caído de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho. Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder. O cristianismo e o marxismo concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia. 


Mas a analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Ambos vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social. As pessoas não escapam dessa situação. Fazem parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Mas, têm a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica. Dessa maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade. 


Sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só a pessoa espiritual consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser. 


Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida. 

O auto-engano e a produção de ideologias surgem como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados. Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso cristianismo e marxismo estão juntos em oposição ao idealismo progressivo ou de harmonia em relação à natureza humana. 


Segundo Tillich, não podemos ver o marxismo como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos. O socialismo religioso se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual. 


Mas até que ponto a metodologia marxista e uma hipotética conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado. 


"O socialismo religioso sempre entendeu que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica (...).O socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. Estão encravadas nas profundezas do coração humano." 


“Como Kierkegaard, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”. 


Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. Assim, para o socialismo religioso, proposto por Tillich, o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação divina. 


Em artigo publicado no “Die Tat, Monatsschrift für die Zukunft deutscher Kultur”, em 1922, Tillich diz: "Sob todos os aspectos, o socialismo religioso quer aprofundar a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas; ele se faz mais radical e mais revolucionário que o socialismo, porque vê a krisis do ponto de vista do incondicionado". Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira - pensa o teólogo -- impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxiana da história e do ser humano no cristianismo profético. 


Tillich afirmou, em junho de 1949, não duvidar de que as concepções básicas do socialismo religioso fossem válidas, pois apontavam para o modo político e cultural de vida pela qual a Europa poderia ser reconstruída. Mas não estava seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso fosse de fato uma possibilidade num futuro próximo. 


Para ele, em vez de um kairós criativo, via um vazio que só poderia ser feito criativo se rejeitasse todos os tipos de soluções prematuras, e não se afundasse na esperança nula do sagrado. Esta visão levou a uma diminuição de sua participação em atividades políticas. Na verdade, sua frustração se deveu à impossibilidade de influenciar no pós-guerra na tentativa de produzir uma abertura entre Leste e Oeste, que possibilitasse a unificação da Alemanha. Além disso, o repúdio às liberdades civis e aos direitos humanos nos países comunistas desiludiu quase todos seus companheiros que sonharam com a possibilidade do socialismo religioso. 


"O movimento marxista não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que chamamos agora de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. Em nosso século vinte temos tido a ocasião de melhor perceber a trágica realidade da alienação humana no campo social". 


E tal política comunista fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade, pressagiando uma era de escuridão. Alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que os socialistas religiosos defendiam. 


Por isso, só podemos falar de socialismo religioso quando entendemos que para Paul Tillich socialismo religioso é aquele em que a religião traduz a defesa do significado profundo das raízes do ser humano. 









Amar e ser amado 




“Ai flores, ai, flores do verde pio, 

se sabedes novas do meu amigo? 

ai, Deus, e u é?” 


”Ai flores, ai flores do verde ramo, 

aquel que mentiu do que pôs comigo? 

ai, Deus, e u é?” 

[Julião Bolseiro, Cantiga de amigo, do cancioneiro de Dom Diniz]. 





O Cântico dos Cânticos é o único livro da Bíblia que tem o amor erótico como tema. Seu título poderia ser traduzido como A mais bela das canções, o que faz juz a esta que é uma das mais bem escritas estórias de amor de toda a literatura universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental, o texto fala de amada e amante, interligando os quadros com coros e falas de grupos de personagens, como as filhas de Jerusalém e os guardas. 


O texto tem forte conteúdo sensual, parte da realidade vivida por uma jovem camponesa, mostrando que estamos diante de um exemplar da dramaturgia do período áureo da literatura poética hebraica. Várias interpretações têm sido apresentadas para O Cântico dos Cânticos. 

Aqui, faremos a leitura do Cântico dos Cânticos partindo de um conselho do intelectual inglês Daniel de Morley em suas memórias de viagens, no século 12, conforme citado por Le Goff. 


Morley conta que seguiu "as Artes, que esclarecem as Escrituras, em vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos. Então, como nos dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste, quase exclusivamente nas artes do quadrivium, é dispensado às multidões, apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos mais sábios filósofos do mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e tendo sido convidado a deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros". 


"Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo, eu invoco o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, porque, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras, desde que sejam cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que também fomos misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que despojássemos os Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus. Despojemos, pois, conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos da sua sabedoria e da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a enriquecermo-nos com os seus despojos na fidelidade". 


Assim, queremos aprender com as cantigas de amigo, do medieval ibérico, por terem semelhanças que podem nos ajudar a entender a poesia de Cantares. As cantigas de amigo eram de autoria masculina, assim como Cantares e, também, apresentavam um eu lírico feminino. 


Para entender esta questão do eu lírico feminino, é bom ler Frettloeh, que diz ser necessário ler Cântico dos Cânticos em perspectiva de gênero, pois neste livro canta-se o amor espontâneo entre uma mulher e um homem, um amor que é forte como a morte. E que nos poemas do início e do final do livro há um protagonismo feminino: "no decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa herança; hoje importa redescobri-la". 


Assim, encontramos tanto no Cântico dos Cânticos como nas Cantigas de Amigo a questão do amante ausente: a amada estava a espera dele ou tinha sido abandonada. Ambas poéticas traduzem a força do Eros humano. Outra característica marcada das cantigas de amigo era o fato de estar dirigida às amigas, a mãe ou irmãs, ou as forças da natureza e, em alguns casos, a Deus. A ambientação, rural ou urbana, estava sempre distante do castelo do senhor feudal. 


Um dos maiores cancioneiros do medieval ibérico foi Julião Bolseiro e um de seus poemas, que intercala este artigo, expressa esse eu lírico feminino, que se lamenta porque o amante desapareceu e ela não sabe onde se encontra. 


O amor entre os dois, diferentemente do amor cortês, vigiado, expressa a força do natural e espontâneo no amor humano, pois a cantiga parece insinuar que houve um relacionamento físico entre os amantes. 


Nesta cantiga de amigo, a ambientação é rural, e não somente distante do castelo do senhor feudal, mas com presença marcante da natureza. 


”Se sabedes novas do meu amado 

aquel que mentiu do que mi á jurado? 

ai, Deus, e u é? 

Vós me preguntades polo voss' amigo? 

E eu ben vos digo que é são e vivo: 

ai, Deus, e u é?” 


Uma interpretação, quase unânime entre antigos rabinos e os pais da Igreja, considera o rei Salomão o herói da estória. Dentro desta perspectiva, o roteiro seria mais ou menos assim: o rei possuía um vinhedo na região de Efraim, oitenta quilômetros ao norte de Jerusalém (8.11). Essas terras estavam arrendadas (8.11) a uma viúva e seus quatro filhos (dois rapazes e duas moças -- cf. 6.13, 1.5-6). A Sulamita, a mais bonita das filhas, era responsável pela casa e também cuidava dos rebanhos (1.8). 


Certo dia, o rei, disfarçado para não ser reconhecido, visitou o vinhedo e ficou impressionado com a beleza da moça. Ela tomou Salomão por um pastor de ovelhas e este lhe dirigiu palavras de amor, prometendo voltar no futuro e lhe trazer presentes (1.8-11). À noite, a moça sonhava com a volta do amado, chegando mesmo, em determinado momento a pensar que ele estava chegando (3.1). Mais tarde, ele volta. Mas, agora, não como camponês e sim como rei de Israel (3.6-7). Segue-se, então, o casamento e seus desdobramentos.

A partir desse roteiro temos blocos de poemas: 


Título e prólogo - Capítulo 1.1 a 1.4 
O desejo e a satisfação da jovem camponesa - Caps. 1.5 a 2.7 
A visita do amado e o sonho da moça - Caps. 2.8 a 3.5 
A festa de casamento e as canções do rei - Caps. 3.6 a 5.1 
A tardia recepção da amada e sua busca prolongada - Caps. 5.2 a 6.3 
Sulamita e seu amado conversam - Caps. 6.4 a 8.4. 
Epílogo e últimas adições - Cap. 8.5 a 8.14. 




Para Eysaguirre, a leitura literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída: "Una lectura meramente literal del Cantar de los Cantares presentaba graves dificultades a la sensibilidad religiosa de la antigüedad. El libro exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor humano y abunda, como pocos textos bíblicos, en descripciones de los miembros del cuerpo”. 


”Y por otra parte, el Cantar no menciona explícitamente a Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar moralmente a sus lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras un libro que no habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su lectura literal, sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una interpretación de tipo simbólica, interpretación que se impuso tanto en el ámbito judío como cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a algunos rabinos a dudar de la canonicidad del Cantar...".

”Vós me preguntades polo voss' amado? 

E eu ben vos digo que é viv' e são: 

ai, Deus, e u é?” 


”E eu ben vos digo que é são e vivo 

e seerá vosc' ant' o prazo saido: 

ai, Deus, e u é?” 


”E eu ben vos digo que é viv' e são 

e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado: 

ai, Deus, e u é?” 


Outra interpretação, formulada por Heinrich Ewald, no século dezenove, vê no amante um pastor de quem a jovem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o harém de Salomão, por um de seus servos. Depois de ter resistido com sucesso a todas as tentativas do rei para conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu amado, com quem aparece na cena final. 


A jovem relembra o amado (1.2 e 3). Pede que ele a leve de volta logo, pois o rei a introduziu nas seduções da corte (1.4). Suas recordações do amado a perturbam (1:7). O rei tenta seduzi-la com jóias (1.11) e perfumes (1.12), mas ela prefere o cheiro do campo que lembra o corpo do amado (1.13 e 14). A moça se recorda de uma visita feita por ele e de um sonho que se seguiu (2.8-3.5). Depois disso, ela é novamente visitada e louvada por Salomão (3.6-4.7). Diante da persistente ofensiva do rei, antecipa seu casamento com o jovem camponês (4.8-5.1). Sua vida e seus sonhos estão impregnados com as lembranças do amado (5.2-6.3). Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita (6.4-7.9). Ela, no entanto, mantém sua fidelidade ao pastor e resiste às tentativas do rei (7.10-8.3). Diante disso, Salomão a liberta, verificando que é impossível conquistar a moça. 


Dentro desta perspectiva, é interessante ler “Cântico dos Cânticos, O fogo e a ternura”, onde Pereira e Andiñach trabalham com a hipótese de que os poemas foram redigidos, em sua redação final, por uma mulher. Seria, portanto, o único livro bíblico de uma autora. Isso dá ao comentário um cunho especial, uma vez que se assume que ela, a autora, tenha deixado nos poemas sua marca feminina e seu modo peculiar de viver a sexualidade e a vida. Ao mesmo tempo, a autora teria feito uma crítica sutil, mas firme, ao modelo salomônico de sexualidade, marcado pela frivolidade e a poligamia. 


A partir dessa interpretação temos outro roteiro: 



No palácio, a moça relembra o amado e é assediada por Salomão - Caps. 1.1 a 2.7 
Lembra-se de uma visita do jovem e de um sonho - Caps. 2.8 a 3.5 
Sulamita mais uma vez é visitada e elogiada por Salomão - Caps. 3.6 a 4.7 
Resiste às investidas do rei e antecipa seu casamento - Caps. 4.8 a 5.1 
A moça relata outro sonho e descreve seu amado - Caps. 5.2 a 6.3 
Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita - Caps. 6.4 a 7.9 
Saudosa e fiel, a moça anseia a companhia do amado - Caps. 7.10 a 8.3 
Enfim, recebe alforria, e retorna para casa com seu esposo - Cap. 8.4 a 8.14. 


Em meio às várias interpretações, é bom relembrar, como diz Mazzarolo, que "o livro dos Cânticos está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao propor uma visão do ser humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas no universo e dotadas de liberdade e dignidade". 


Assim, a mensagem de amor permanece. E talvez possamos dizer, como as Cantigas de Amigo nos lembram, que esta é a grande mensagem do livro. 






Sou negra e bela! 







“Mulheres de Jerusalém, eu sou negra e bela. Sou negra como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão”. Cantares de Salomão 1.5. 




Os leitores certamente se lembrarão das imagens de amor deste que é considerado um dos mais belos poemas da humanidade. Mas, a moça em torno da qual gira a narrativa é motivo de acirrada polêmica, principalmente para as teólogas e teólogos negros. Segundo a ensaísta norte-americana Peggy Ochoa, o livro de Cantares traz à tona os detalhes dolorosos da animosidade entre grupos étnicos no reinado de Salomão. 




Aqui estamos diante de uma constatação fundamental: a Sulamita, mulher inspiradora dos poemas de amor do livro de Cantares era uma bela negra. E quando as filhas de Jerusalém, que faziam parte da casta dominante ligada à corte, protestaram ao descobrir a paixão do rei, a Sulamita respondeu ao clamor preconceituoso com a famosa afirmação: "Eu sou negra e formosa, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão" (Cantares 1.5). 




Na versão inglesa King James a Sulamita diz nos versículos 5-6 (ênfase minha): “I am black, BUT comely, O ye daughters of Jerusalem, as the tents of Kedar, as the curtains of Solomon. Look not upon me, because I am black; because the sun hath looked upon me...”. 




Na Bíblia hebraica lemos assim o mesmo texto, em representação fonética e ênfase minha: “shekhorah ani VE na'vah benot yerushala'im ke ahalei kedar kiri'ot shlomo: al-tir'uni she'ani shekharkhoret sheshezafatni hashemesh”. 




Em hebraico não há distinção entre "porém" e "e". A conjunção hebraica “ve” pode ser traduzida por "porém" e "e". O tradutor decidirá por um ou por outro com base no contexto. Mas, tanto no inglês, como no português, a escolha pode fazer uma diferença enorme. 



Mas, por que o tradutor da versão King James, assim como os nossos tradutores optaram pelo “porém”? Talvez porque essas traduções tenham sido feitas através do filtro cultural branco e ocidental, já a partir da versão latina da Bíblia, a Vulgata, que introduziu o “porém”: “Nigra sum sed formosa”. Eu sou negra, “porém” formosa. Não negra e bela, mas bela apesar de negra. 




Segundo a teóloga Susan Durber, da St. Columba United Reformed Church, Oxford, no ensaio “A Rainha do Sul se fará presente no Julgamento quando esta geração estiver sendo julgada”, uma mulher pode nos ajudar a entender este enigma. Em 1Reis 10 encontramos a história da rainha do Sul ou rainha de Sabá. Uma mulher inteligente, que fez perguntas duras a Salomão. Queria saber se ele era tão sábio quanto se comentava. Assim, a Bíblia está interessada nela por causa de sua inteligência. 




Mas um fato significante sobre Sabá é que ela era negra. Não se sabe exatamente de que região. Poderia ser do Iêmen ou do Norte da África, possivelmente a Etiópia. Os falashas, judeus etíopes, e os rastafares reivindicam ser descendentes de Menelik, o filho de Salomão e Sabá. 




E também para os cristãos negros de todo o mundo, Sabá surge como ícone racial e é vista como a musa de Cantares de Salomão. 




O poeta W. B. Yeats, por exemplo, releu o versículo “sou negra e bela” e poemou assim: “Salomão cantou a Sabá, e beijou a face negra dela”. 



Ainda segundo Durber, onde os cristãos africanos celebraram a cor negra de Sabá, o cristianismo europeu marginalizou sua história. Na rainha de Sabá viu a história de uma mulher pagã, uma mulher estrangeira que tinha se rendido à verdadeira fé. Em sua rendição, aparentemente, Sabá perdeu também a cor negra de sua pele. 




A história de uma mulher sábia não combina com a história de uma negra, e tal leitura produziu uma terrível alienação na igreja cristã européia e norte-americana, que levou o terror e o medo ao “outro de cor negra”. Dessa maneira, o “outro de cor negra” foi seduzido, subjugado e domesticado. E a leitura do texto é que Sabá capitula a Salomão e torna-se culturalmente “branca”. 




Na verdade, Sabá foi companheira de Salomão e o texto pode ser lido assim. Mas a tradição, a partir da Vulgata, fez dele um conquistador e dela uma conquista, gerando ideologias como a da vitória da Europa sobre Oriente, do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro e da “verdade” sobre o erro. 




Mas a Bíblia hebraica fala de negros e de nações africanas como Cuxe, Mizraim e Pute, que hoje são Etiópia, Egito e Líbia. E até a construção do canal de Suez, em 1859, não se fazia distinção entre as terras bíblicas. O cenário da atuação divina cobria também a península do Sinai, o Egito, que está na África. E Israel era visto como parte do continente africano. Só com a construção do canal de Suez, a África passou a ser olhada como continente separado do Oriente Médio. 



Assim, na Bíblia hebraica, Israel é uma nação africana e semita, e a mensagem que leva ao mundo teve início nesse continente negro. E, embora muitos afrobrasileiros vejam a Igreja como de origem européia, a análise da história bíblica demonstra que teve origem multirracial e que a Bíblia começou a ser escrita na África. 




Por isso, nossas irmãs afrobrasileiras podem, conscientes de sua raça e cor, dizer junto com a Sulamita: somos negras e belas, como as barracas do deserto, como as cortinas do palácio de Salomão. 









Principados e potestades 







Tenho ouvido empresários e políticos falarem com temor da crise mundial e dos difíceis caminhos da vida nacional. Há insegurança e temor no ar. Mas a pergunta que devemos nos fazer é: o que nos pode separar do amor de Deus? Para pensar os momentos que vivemos proponho que caminhemos com Paul Tillich através de um dos textos mais lindos de todas as Sagradas Escrituras: 


”Porque eu estou seguro de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem coisas do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra coisa em toda a criação poderá nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor”. Romanos 8.38-39. 


Em Toulouse, quando terminamos o Colóquio Internacional da Associação Paul Tillich em Língua Francesa, realizamos um culto. O ponto alto foi a leitura do sermão Principados e Potestades, originariamente pregado por Paul Tillich em Nova York. 


Estas palavras de Romanos que acabamos de ler, segundo Tillich, estão entre as mais poderosas já escritas, e podem ser compreendidas nas situações mais desesperadoras. Aliás, na própria experiência dele, que foi capelão do exército alemão na Primeira Guerra Mundial, "se mostraram mais poderosas que a explosão das bombas, que o choro ao lado dos túmulos, que o gemido dos feridos e o grito dos moribundos". São mais fortes que a autocrítica dos desesperados e prevalecem sobre a angústia na profundidade de nosso ser. 


Mas o que fazem delas palavras tão poderosas? 


Ao analisar a riqueza do texto, Tillich constrói sua hermenêutica a partir da cosmovisão que o mundo helênico herdou de babilônicos e persas. A idéia de que o destino humano é governado pelo zodíaco, pelas constelações e estrelas. Assim, no mundo helênico, mensageiros e soberanos celestiais, altura e profundidade, vida e morte representam as estrelas do zodíaco, que se acreditava determinar o destino dos seres humanos e da história. Para os romanos, a quem Paulo escreve, os seres humanos estavam sob tais poderes. Por isso, várias vezes em suas cartas ele declara que Cristo conquistou estes poderes, mas em nenhuma parte ele afirma isto de maneira tão triunfal, como na Carta aos Romanos. 


Mas para que as palavras de Paulo tenham poder sobre nossas vidas, elas têm que dizer algo de verdade sobre o que sentimos, a nós que não partilhamos a fé nas estrelas. Por isso, é importante entender que as palavras de Paulo nomeiam, em última instância, os poderes que têm escravizado todos nós, em todos os períodos de história. E mostram que estes poderes não têm força contra nós, porque foram conquistados por Cristo. 


Quem, nos anos recentes, pergunta Tillich, não sentiu as forças irresistíveis que parecem determinar nosso destino histórico e pessoal? Tais forças dirigem nações e pessoas em conflitos insolúveis, internos e externos, em arrogância e loucura, em revolta e desespero, em desumanidade e autodestruição. Cada um de nós é envolvido nestes conflitos, dirigido por estas forças num maior ou menor grau. A vida pessoal de cada um de nós está de algum modo determinado por elas. 


Nenhuma segurança esta garantida: nem casa, trabalho, amigo, familiar, nem no campo ou em qualquer lugar do mundo se está seguro. Nenhum projeto tem cumprimento certo, todas as esperanças estão ameaçadas. Esta não é uma novidade na história humana. 


Dirigido pelas forças de destino, fazemos a pergunta que a espécie humana sempre se fez: que verdades e que mentiras estão atrás de tudo isso? 


Tillich explica que antes de os cristãos falarem de Providência divina, os antigos já buscavam à sua maneira as origens das forças motrizes da vida e da história. No cristianismo, as palavras de Jesus, para não estarmos ansiosos pelo dia de amanhã, fortaleceu a fé na Providência. E assim a Providência tornou-se convicção comum entre os cristãos. E lhes deu coragem diante do perigo, consolação na tristeza, esperança... Mas, diante das circunstâncias da vida, a fé perdeu profundidade. Foi privatizada e distanciou-se do caráter vitorioso que apresenta nas palavras de Paulo. 


A crença na providência pessoal e histórica, como é apresentada hoje, não tem profundidade ou fundamento real. É produto de nossas ilusões. Não é fruto da fé. A fé na Providência não é a parte mais bem compreendida da fé cristã. Um velho pastor do interior, conta Tillich, uma vez disse: as pessoas acreditam firmemente na Providência divina, mas os conteúdos mais profundos da fé cristã, como pecado e salvação, Cristo e a Igreja são estranhos a elas. Se isto é assim, então o significado da Providência também deve ser estranho a elas e a fé delas facilmente se quebra diante das tempestades do século presente. Fé na Providência é fé. É a coragem para dizer sim à vida, apesar das forças do destino, da insegurança da existência diária, das catástrofes e da aparente perda de significado da própria vida. 


É de tal coragem que Paulo fala no texto de Romanos. Mas primeiro ele fala dos poderes que tentam fazer esta coragem impossível. O que fazem estes poderes? Eles nos separam do amor de Deus. A oração de Paulo é surpreendente, pois nomeia os perigos da dor e da morte que ameaçam nossa vida diariamente. E Paulo conhece cada um deles. Ele os enumera: tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada. Mas Paulo se sente vitorioso sobre cada um deles. 


E então enumera novamente os poderes que ameaçam nos separar do amor de Deus. Há algo misterioso sobre estes poderes. Eles não têm nomes maléficos como os que Paulo listou antes. A maioria tem nomes gloriosos: anjos, principados, vida e altura. Por que então estão entre os mais ameaçadores? Porque estão presentes em todos os momentos de nossas vidas e porque sempre têm dois lados. 


São os poderes que regem o mundo e regem para o bem e para o mal. Eles seduzem pelo bem, envolvem e destroem pelo mal que contêm. Esta é a razão porque são mais perigosos do aquilo que é obviamente mau. Esta é a razão porque o triunfo sobre eles é o último teste que prova em nossas vidas que Jesus é o Cristo, aquele que traz um novo estado de coisas. 


Tillich nos recomenda considerar com cuidado a natureza de cada um deles, não como se fossem estranhos a nós, mas como as forças motrizes de nosso próprio ser. Anjos e principados são os nomes de alguns deles. Essas duas palavras apontam à mesma realidade, uma realidade que tem pouco em comum com querubins agradáveis, presentes nos quadros populares de anjos. Apontam às realidades que são simultaneamente gloriosas e terríveis; realidades plenas de beleza e de destrutibilidade. 


Elas estão em cada um de nós, em nossas próprias famílias, em nossa própria nação, em nosso mundo. Por quais sinais as reconhecemos? Por mistura de fascinação irresistível e ansiedade inconquistável que produz em cada um de nós. 


O nome de um destes poderes, com sua face angelical, é amor. A poesia de todos os idiomas abunda no elogio deste soberano que rege a vida de todos os homens. Sua face angelical aparece em quadros e estátuas, sua beleza angelical soa por música, sua fascinação está expressa nas figuras de deuses e deusas pagãs. E, ao mesmo tempo, todas as obras de arte e todos os mitos estão cheios da presença trágica e mortal do mensageiro do amor. Fascinação e medo, alegria e culpa, criação e destruição estão unidas em nossas vidas. E a alegria e a angústia do amor tendem a separar-nos do amor de Deus. Atrai-nos para longe de Deus, nos lança na escuridão do desespero dentro do qual não podemos ver Deus.

Outro soberano, angelical e demoníaco, é o poder. Tem a beleza severa e viril que vemos nos quadros que representam os arcanjos. O poder é um grande anjo, bom e mau. O poder é construtor e destruidor de cidades e nações. É força criativa do empreendimento humano, da comunidade humana, da realização humana. É responsável pela conquista da natureza, a organização de Estados, a execução da justiça. Seu aliado poderoso é outra figura angelical, boa e má, o conhecimento. Somos dependentes deles. 


A história mundial é o domínio no qual o reinado do anjo de poder é manifesto em toda sua glória e tragédia. Nossos contemporâneos sabem disso, afirma Tillich. Todas as manhãs nos trazem notícias sobre esta realidade de nosso mundo. E somos tomados pela fascinação angelical de seu poder criador e pelo terror demoníaco de sua destrutibilidade em nossas vidas pessoais como também nas vidas de nossas nações. E quando o poder se associa ao conhecimento, seu fascínio e terror aumentam infinitamente. Ambos nos separam do amor de Deus, nos dirige à adoração do poder e do conhecimento, nos levam ao cinismo e desespero. 


Paulo menciona dois outros pares de realidades que podem nos separar do amor de Deus: altura e profundidade, e coisas presentes e coisas porvir. Todo mundo entende o significado delas. Para os antigos eram os momentos de maior e menor influência das estrelas sobre os humanos, para o bem e para o mal. 


Se traduzirmos isso para nossa realidade, altura e profundidade são os momentos em que a vida alcança sua realização, em vitalidade, sucesso e poder, mas também alcança sua realização mais fraca, talvez seu fim. Altura e profundidade são os momentos de vitória e derrota, de cumprimento e vacuidade, de elevação e depressão, de fascinação e ansiedade. Ambos os momentos, altura e profundidade tentam nos separar do amor de Deus, por sua luz, por sua escuridão. 

Coisas presentes é ponto de partida para entender o impacto do poder sedutor do presente: de nossa recusa a olhar para o passado ou para o futuro, quando somos agarrados pelo abraço do prazer agudo ou pela dor aguda do momento presente. E coisas porvir traduzem a tensão ante a expectativa do novo, a alegria do inesperado, a coragem do risco. Mas também significam o que é incalculável, contingente, traduzem nossa ansiedade diante do estranho e desconhecido. 


Quase no final de seu sermão, Tillich alerta: devemos terminar esta lista com o par mais ameaçador, com o qual Paulo começa seu texto: morte e vida. Estes dois estão associados. A morte está presente em toda vida. Ela trabalha em nosso corpo e alma a partir do momento da concepção até o momento de nosso desaparecimento. No momento de nosso nascimento começamos a morrer e continuamos assim diariamente, ao longo da vida. Crescimento é morte, porque debilita as condições da vida até mesmo quando a vida se faz crescente. Mas não crescer é morte imediata. 


Estamos entre a fascinação da vida e a angústia da morte e, às vezes, entre a angústia da vida e a fascinação de morte. Morte e vida são os poderes maiores, que procuram nos separar do amor de Deus. 


Consideramos os poderes que regem o mundo e sobre os quais a fé na Providência deve triunfar. O que é esta fé? Não é certamente a crença de que tudo acabará bem como desejamos ou racionalizamos. 


A vida, pessoal e histórica, é um processo criativo e destrutivo no qual liberdade e destino, possibilidade e necessidade, responsabilidade e tragédia estão misturadas entre si, sempre, e em todos os momentos. Estas tensões, ambiguidades e conflitos fazem com que a vida seja o que é. Elas criam a fascinação e o horror da vida. Elas nos dirigem à pergunta sobre uma coragem que pode aceitar a vida sem ser vencida por ela. E esta é a pergunta sobre a Providência. 


Abandonemos a palavra Providência com todas suas falsas conotações e vejamos o que realmente significa. Significa a coragem para aceitar a vida através do poder daquilo que é maior que vida. Paulo chama isto de o amor de Deus. Este amor, certamente, está acima da figura angelical-demoníaca do amor de que falamos. Este amor é o poder último da união com Deus, a vitória última sobre a separação entre nós e nosso Criador. Estar unido a este poder nos permite dominar a vida e estar perfeitamente inseridos nela. Este amor nos permite reinar sobre esses soberanos de duas faces, sua fascinação e sua angústia, sua glória e seu terror. Dá-nos a certeza que nenhum momento nos impede de alcançar o cumprimento para o qual toda vida se dirige. É a coragem para aceitar a vida no poder em que está enraizada e onde é sobrepujada. 


Mas como isso é possível? Paulo nos apresenta duas respostas. Ele conclui a listagem dos poderes governantes com as palavras: nem qualquer outra coisa em toda a criação. A primeira resposta de Paulo é: os poderes deste mundo são criaturas como nós somos. Eles não são mais que nós, eles estão limitados. Nós estamos unidos Aquele que não é criatura e que nenhuma criatura pode destruir. 


É por isso que sabemos que os poderes deste mundo não podem destruir o sentido de nossas vidas, mesmo que possam destruir nossas vidas. E isto nos dá a certeza que nenhuma criatura pode destruir o significado da vida, na natureza e história, da qual somos parte, mesmo que o universo inteiro seja destruído amanhã. Nenhuma criatura pode nos separar desta coragem última. 


Nenhuma? Talvez uma: nós próprios. A coragem para manter a unidade com Deus, contra os poderes e principados, inclusive vida e morte, pode estar firme, mas é quebrada quando a culpa nos separa do amor de Deus. 


Então não podemos enfrentar a morte, porque a picada da morte é o pecado. Não podemos enfrentar a vida porque a culpa conduz a autodestruição. Não podemos enfrentar o amor porque o amor é corrompido pela concupiscência. Não podemos enfrentar o poder porque é corrompido pela crueldade. 


Fugimos para o passado porque estamos corrompidos pela culpa, fugimos do futuro porque ele carrega os frutos das culpas passadas, e não podemos descansar no presente porque ele nos condena e nos expulsa. Não podemos estar de pé porque diante da altura temos medo de cair. E não podemos estar de pé porque diante da profundidade nos sentimos responsáveis por nossa queda. Assim, uma consciência culpada acaba por obter aquilo que os soberanos deste mundo não podem conquistar: o debilitamento de nossa coragem para aceitar a vida. 


Mas, para Paulo, nem mesmo uma consciência culpada pode nos separar do amor de Deus. Amor de Deus significa que Deus aceita aquele que sabe que é inaceitável. Este é o sentido das últimas palavras de Paulo: "em Cristo Jesus nosso Senhor". 


Cristo é o vencedor sobre os soberanos do mundo porque Ele é vitorioso em nossos corações. Ele nos dá a certeza de que o julgamento que fazemos de nós próprios e nosso desespero não podem nos separar do amor de Deus, a fonte e o fundamento da coragem que nos permite encarar a vida e sermos vitoriosos. 












Memórias de Toulouse 



Estou hospedado no Hotel de France, dividindo um apartamento com Jean Richard, professor e diretor da Faculdade de Ciências da Religião na Universidade Laval, em Quebec, no Canadá. O hotel é confortável, mas sem luxo. Fica na Rue d´Austerlitz, ao lado da Praça Wilson, florida e cheia de restaurantes com mesas nas calçadas. Ótimo lugar para ler despreocupado, comer devagar e ver o movimento. 


Tirei esses dias da viagem para estudar mais uma vez a carta de Paulo aos Romanos. Estou usando o texto francês da Bíblia de Jerusalém e o comentário do professor Guy Lafon, professor de teologia do Instituto Católico do Paris. 


Na abertura do Colóquio Internacional da Associação Paul Tillich em Língua Francesa, Jean Richard falou sobre "Doutrina social, teologia da libertação e socialismo religioso". Ele é um especialista em Tillich. É também um dos responsáveis pela tradução para o francês das obras do período alemão de Tillich. Dessas, três devem ser citadas por sua importância para a Teologia da Cultura: "Christianisme et socialisme", "Écrits contre les nazis", e "La dimension religieuse de la culture". 


Para Richard, conforme expôs em sua Comunicação, o horizonte teológico de Tillich, nos anos 1920, tem uma amplidão surpreendente. Desde 1919, ele dirigiu seus estudos sobre a questão do socialismo religioso, a partir da idéia de uma teologia da cultura e do princípio protestante. 


Segundo a interpretação que Tillich faz, explica Jean Richard, é o princípio protestante que permite superar a dicotomia do profano e do sagrado, do natural e do sobrenatural. Isto porque a justificação pela graça significa que a graça da salvação opera independentemente das condições religiosas: tanto na ordem do profano como na ordem do religioso. 


"É neste sentido que Tillich vai interpretar a expressão socialismo religioso. O socialismo religioso não é o socialismo da Igreja; nem um socialismo consagrado pela religião, um socialismo absolutizado. É um movimento plenamente profano, mas que na sua profanidade se abre para a transcendência do Incondicionado". 


"Tal conceito aparece junto com a elaboração filosófica e teológica do socialismo religioso que Tillich situa no quadro de uma teologia da cultura. Fica evidente que Tillich, desde o início de seus estudos, sobrepõe a oposição entre libertação sociopolítica e salvação cristã, oposição que não é, no fundo, mais que uma figura da dicotomia entre natural e sobrenatural, profano e sagrado", afirma o professor canadense. 


Gosto de ver o Garonne, rio limpo e azulado que banha a cidade. Ao lado de sua margem direita, perto dos jardins da praça Saint Pierre, há um bar agradável com internet. Dele escrevo e-mails de amor para Naira. Nos dias ensolarados que estou tendo a bênção de viver aqui, o azul suave do rio se confunde com o céu e faz contraste com o rosa da cidade. 


Eu e Jean Richard temos trocado umas quantas idéias sobre o socialismo religioso de Tillich, que entendemos como uma crítica a toda forma de socialismo, ou de política, que quer se absolutizar, que se coloca acima do Incondicionado. 


O socialismo que queremos, disse Tillich, é aquele que coloca na teoria e na prática a questão da possibilidade de que a vida tenha sentido para todos os indivíduos da sociedade. E que se esforce para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Tal socialismo não é apenas um movimento político, é mais que um movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade. Mas toda estrutura política pressupõe poder e, conseqüentemente, um grupo que o assume. E como todo grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses, sempre necessita correção. 


Assim, quando no poder, todo grupo, seja socialista ou não, necessita de correção. É o que justifica a democracia e a faz necessária enquanto sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política. 


Toulouse é um centro intelectual da ordem dominicana. E nós, a convite, estamos usando para nossas palestras e debates as dependências da Faculdade de Teologia do Instituto Católico. A universidade católica de Toulouse nasceu em 1229. É gostoso estar aqui. Esse antigo convento medieval, cheio de histórias, convida ao silêncio e à reflexão. 


Entro numa velha igreja dominicana, de arquitetura normanda, com linhas curvas e elegantes, sem imagens, apenas com uma cruz limpa ao fundo. Uma jovem toca música renascentista no órgão de tubos. A igreja, vazia, parece que vai levantar vôo. 


Oro em Romanos, "quem poderá nos separar do amor de Cristo...", e deixo que o Espírito fale ao meu espírito. 












La Rochelle, belle et rebelle 



Desde o começo do século 16, La Rochelle era uma cidade próspera que lucrava com o comércio. Era um centro huguenote extremamente ativo. 


Amanhã volto para o Brasil. Estou na França há quinze dias. Vim apresentar comunicação sobre Socialismo e Religião no Colóquio Internacional da Associação Paul Tillich em Língua Francesa, que se reuniu em Toulouse. Depois do Colóquio vim para Paris. Estou hospedado na Faculdade Evangélica Livre de Vaux-sur-Seine. 


Estou vivendo momentos de descanso e reflexão, aqui à margem do rio Sena, onde num ambiente pleno de espiritualidade cristã, posso meditar sobre a heróica história dos evangélicos na França. E é sobre eles, os huguenotes, que escreverei nesta crônica. 


Os huguenotes eram protestantes franceses que surgiram durante a Reforma do século XVI. Não eram camponeses, mas cidadãos nobres e burgueses. Fundaram em 1559 uma igreja reformada que cresceu de forma impressionante. 


Em 1571, houve um sínodo huguenote que elaborou, sob a inspiração do líder reformado Théodore de Bèze, a Confissão de La Rochelle. Em 1573, Henrique III, ainda como duque de Anjou, cercou a cidade por mais de seis meses. Os huguenotes formavam então um formidável grupo de pressão econômica, política e militar, apoiados pelos ingleses, alemães, holandeses e pelos protestantes de Genebra. 


Assim, na segunda metade do século XVI, os ataques católicos aos huguenotes fizeram-se cada vez mais virulentos, culminando com o massacre de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, no qual foram mortas mais de 30 mil pessoas. 


Estou sentado num banco de madeira, rodeado de verde. Atrás, fica a biblioteca da faculdade, lá na frente, uma árvore seca se inclina sobre o rio. Um irmão seminarista, do Haiti, caminha de um lado a outro do campo verde. Ele ora. Está entardecendo. São quase dez da noite, mas ainda está claro. Eu também oro, olhando para o rio Sena e agradecendo a Deus por aqueles que vieram antes de mim, que mantiveram ao preço de sangue, desfraldada, a bandeira do Evangelho. 


Os católicos franceses, agrupados no partido da Santa Liga, entre 1576 e 1584, passaram a pressionar huguenotes e os reis considerados hesitantes. Na esperança de legalizar a existência de uma igreja reformada e de apaziguar os ânimos, o rei Henrique IV (1553-1610), soberano huguenote que se converteu sob pressão ao catolicismo uma semana antes do massacre de São Bartolomeu, assinou em 13 de abril o Edito de Nantes. Em 1576, retornou ao protestantismo. 


O Edito de Nantes fez importantes concessões aos huguenotes. Entre elas, as liberdades de consciência e de culto nas residências senhoriais, em todas as cidades onde existisse a fé reformada. Concedeu anistia para todos os "crimes" cometidos no passado e criou 150 locais de refúgio para os huguenotes: 66 cidades e castelos onde guarnições eram mantidas pelo rei. 


La Rochelle que pertencia aos huguenotes desde a primeira guerra de 1562 foi uma dessas cidades de refúgio. E mais: tornou-se a mais forte praça de guerra cedida aos protestantes pelo Edito de Nantes. Na verdade, era a capital huguenote na França. 


O Edito de Nantes foi, de fato, uma constituição político-religiosa que procurou criar mecanismos de defesa para os huguenotes. Mas não durou muito. Em 1627, o cardeal Richelieu, a propósito de um pacto firmado entre La Rochelle e a Inglaterra, que já declarara guerra à França, iniciou a destruição de La Rochelle. 


O cardeal conduziu pessoalmente o cerco à cidade rebelde, construindo em terra firme, 12 km de linhas contínuas de fortificações e, no mar, a construção de um dique destinado a impedir a chegada de suprimentos pela frota inglesa. 


Os huguenotes, comandados pelo almirante Jean Guiton, prefeito da cidade, resistiram durante quinze meses até que a fome forçou-os à rendição em 28 de outubro de 1628. As fortificações da cidade foram arrasadas e as franquias municipais suprimidas. A partir de então, La Rochelle entrou em declínio. 


Luiz XIV, convencido de que os huguenotes haviam desaparecido do solo francês, seja pela fuga, pela conversão forçada ao catolicismo ou pelo massacre, aboliu, em 18 de outubro de 1685, o Edito de Nantes. 


A partir desse momento, os huguenotes perderam toda liberdade de culto e toda garantia de segurança. Tornaram-se marginais: suas propriedades foram confiscadas e privados de todos os seus direitos pessoais. 


A guerra civil irrompeu como guerra clandestina, com a fuga para os países protestantes de centenas de pastores. Suas igrejas foram destruídas. Abandonaram bens e filhos, que eram proibidos de deixar o país. O catolicismo exigia que fossem reeducados na fé romana. 


Mais de 400 mil huguenotes se refugiaram principalmente na Holanda e na Prússia, países que lucraram com isso por receber recursos humanos estratégicos: comerciantes, empresários e intelectuais. A América inglesa também recebeu um número grande dessa elite huguenote em diáspora. 


Poucos irmãos brasileiros sabem que a saga huguenote aportou em nossas terras. Poucos, infelizmente, têm conhecimento dos mártires que testemunharam e foram sacrificados aqui por amor ao Evangelho. 


Em 1557, chegou ao Rio de Janeiro um grupo de huguenotes com o objetivo de fundar aqui uma colônia chamada França Antártica, que deveria se caracterizar pela tolerância religiosa. Eram os primeiros protestantes a pisar em terras brasileiras. 


Três pastores lideravam o grupo huguenote. Ao aportarem no Rio, depois de brigas e discordâncias com os católicos que integravam a França Antártica, Villegaignon, comandante da frota francesa, entregou os pastores e suas ovelhas às autoridades portuguesas. Alguns conseguiram escapar, mas quatro deles, Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon foram presos e condenados à morte. 


Foram condenados não somente por aportarem na terra, que era colônia portuguesa, mas por difundirem o evangelho da graça, que contrariava as doutrinas católicas de salvação por fé e obras. 


Antes de serem executados, os huguenotes tiveram a oportunidade de confessar sua crença. Era um direito. E o governador português exigiu dos rebeldes uma confissão de fé. Era uma última chance de renegar suas heresias protestantes. Foi-lhes dado um prazo de 12 horas para que escrevessem num documento tudo quanto criam. 


Em doze horas aqueles quatro homens, com ajuda apenas de suas Bíblias escreveram a primeira confissão de fé das Américas, mostrando aos jesuítas aquilo no que criam. Foi um Credo. E sabiam que estavam assinando suas sentenças de morte. 


No momento da execução o carrasco, por conhecer a vida piedosa daqueles homens, recusou-se a executá-los. Impaciente, José de Anchieta, o padre que os acompanhava, afastou o carrasco e ele mesmo pôs fim à vida dos huguenotes. Era uma manhã de sexta-feira, 9 de fevereiro de 1558. 


Pai querido, em nome de Jesus, agradeço por teus mártires. São dez e meia da noite. O Sena agora é apenas uma mancha escura que desliza. No meu coração, porém, brilha mais forte o evangelho da graça, que irmãos de outros tempos me entregaram. Devo honrar este evangelho e passá-lo às gerações futuras. Vaux-sur-Seine, 2 de junho de 2003. 






As artes de Frida Kahlo 



”Vai e goza a vida com a mulher que tu amas, pois isso é tudo o que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que Deus lhe deu”. Palavras do pregador. 


Diego Rivera e Frida Kahlo foram pintores, comunistas e apaixonados. "O pensamento está na ponta de suas mãos, nos olhares. Eles vivem em seus corpos, como numa dança, num ato sexual, e se projetam em seus quadros". É assim que Le Clézio descreve os amantes no livro "Diego y Frida, una gran historia de amor en tiempos de la revolución", edição espanhola de maio de 1994. 


A pintora mexicana e sua arte viraram cinema na produção estrelada e produzida pela atriz mexicana Salma Hayek. O papel de Diego Rivera ficou a cargo de Alfred Molina. A direção é de Julie Taymor e do elenco participaram ainda Geoffrey Rush, Antonio Banderas, Ashley Judd e Edward Norton. O filme ganhou dois Oscars. A canção dos créditos finais, "Burn It Blue" é executada por Caetano Veloso e pela cantora mexicana Lila Downs. 


Atípica para a sua época, Frida foi não apenas pintora, mas uma das mais incríveis personalidades do século passado. Nascida em 6 de junho de 1907, viveu de forma intensa até 13 de julho de 1954, quando morreu deixando não apenas os seus quadros de trágica beleza, mas idéias avançadas para a época. 


Frida nasceu em 1907 no México, mas filha da revolução, dizia que nascera junto com a revolução mexicana, em 1910. Teve uma vida marcada por tragédias. Aos seis anos contraiu pólio, o que a deixou coxa e a levou a ter um apelido que muito a magoava: Frida perna de pau... 


Anos mais tarde, quando já havia superado a doença, o ônibus em que viajava chocou-se contra um bonde. Sofreu múltiplas fraturas e uma barra de ferro atravessou-a, entrando pela bacia e saindo pela vagina. Por causa do acidente fez várias cirurgias e ficou muito tempo presa à cama. Começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe pendurou um espelho no teto. 


"Pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor". 


Pintou os medos e o amor por Diego, o marido. Produziu uma arte íntegra e, em toda a vida, não aceitou nada que limitasse sua liberdade. Pintar significou declarar amor por Diego, o sofrimento desse amor, o limite terrestre e a crença na eternidade do amor. Escreveu em seu diário: 


Diego-principio 

Diego-constructor 

Diego-mi niño 

Diego-pintor 

Diego-mi padre 

Diego-mi hijo 

Diego-mi amante 

Diego-mi esposo 

Diego-mi amigo 

Diego-mi madre 

Diego-yo 

Diego-universo 

Diversidad en 

la unidad 

Por qué 

le llamo 

mi Diego? 

Nunca fue 

ni será mío 

Es de El 

mismo. 


Frida se tornou membro do Partido Comunista Mexicano em 1928. Alguns de seus quadros, como o auto-retrato com Stálin, revelam a fé no comunismo. Foi nessa época que conheceu Diego Rivera. 


Apaixonaram-se e se casaram no ano seguinte. Há quem afirme que foi um casamento meio por amor, meio por ser Diego alguém que a compreendia. Diego tinha muitas amantes e Frida, por mágoa ou opção, teve alguns. Um desses amantes de Frida foi o revolucionário russo León Trotsky, quando do exílio no México. 


Frida pintou, em 1926, o auto-retrato com vestido de veludo, o primeiro trabalho sério de sua vida e que deixava entrever o interesse pela pintura renascentista italiana. Nele, ela retratou o seu pescoço de forma alongada, ao estilo de Amedeo Modigliani, numa pose aristocrática e algo melancólica. A partir desse momento, seus trabalhos passaram a evidenciar não apenas anseios profundos, como sentimentos ambíguos e a realidade de suas crenças. 


"Pensaram que eu era um surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintei a minha própria realidade". 


Ao final da vida, como na juventude, a revolução voltou a ter força para o marido Diego. Ele retomou o caminho da sua arte, imperioso, sensual, que escapa a trivialidade e inventa a lógica do extraordinário. Diego morreu em 25 de junho de 1957. Três anos após a morte de Frida, em 13 de julho de 1954, de embolia pulmonar. 


Na última página do diário de Frida, diante do anjo da morte, palavras cheias de beleza expressam sua postura diante da vida: 


"Espero alegremente a saída -- e espero nunca mais voltar. Frida". 


Os comunistas vão para o céu? Ir para o céu é hipérbole de vida abundante. Para aqueles que consideram a vida universal, conforme acreditavam Clemente de Alexandria, Orígenes, Gregório de Nissa, João Escoto, anabatistas da Reforma Radical e, posteriormente, o pietismo alemão e os revivalistas ingleses, na plenitude do tempo todas as vidas serão restauradas, como o são as obras de arte, para Deus. 


Um teólogo batista, Hosea Ballou, que escreveu o Tratado sobre a Expiação, em 1805, considerou que o sacrifício de Cristo ao invés de ser uma posição jurídica declaratória tem base moral. Para ele, Cristo sofreu pela humanidade, mas não em seu lugar. Com base neste argumento, Ballou entendeu que a vida será universalmente eterna, porque diante do não-ser a vida gerada é regenerada pelo arrependimento e perdão em Cristo, mesmo para aqueles que historicamente não o conheceram. 


Gostaria, no entanto, de acrescentar alguns elementos à leitura de Ballou que, sem dúvida, é desafiadora. Seu argumento é consolador em relação àqueles queridos que morreram, mas ao falarmos de vida devemos olhar para o passado e ver de que fomos arrancados: da alienação, culpa, morte, pecado. O que inclui a ignorância da verdade, escravidão aos hábitos e vícios, libertação dos medos. 


Mas, vida também inclui o presente, aquilo que está sendo entregue graciosamente: amizade com Deus, vida nova, perdão. É crescente emancipação do mal e enriquecimento em todo o bem. E, em terceiro lugar, vida é aquilo que ainda está para ser alcançado: a semelhança com Cristo, a redenção do corpo e a glória final. 


Talvez por isso os argumentos de Ballou nos parecem incompletos, pois a vida é fruto do arrependimento particular e consciente diante da miserabilidade humana, fato que só pode acontecer no tempo presente. Universalidade e particularidade são correlações da vida abundante. Donde, como provocação, volto a perguntar: os comunistas vão para o céu? 









O assassinato como obra de arte? 







"O pecado está à porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, mas você precisa vencê-lo." Deus alerta Caim. 


Há pessoas que fazem a apologia do roubo, do assassinato e da destruição. Há pessoas que consideram o pecado uma arte e vêem muita utilidade nele. Estamos diante da cultura da guerra e da morte. Talvez por isso a Palavra afirme que este mundo jaz no maligno. 


Não sei se você já ouviu falar da Sociedade para a Promoção do Vício ou do Clube do Fogo do Inferno, fundados por Sir Francis Dashwood. Ou se leu alguma coisa sobre a Sociedade para a Supressão da Virtude. 


O certo é que essas associações existiram na Inglaterra do século 19, mas, sem dúvida, a mais estranha era a Sociedade para o Encorajamento do Assassinato, formada por aficionados em carnificinas e especialistas em assassinatos. 


Bem, não sei se você já parou para pensar no assassinato. É quase certo que não, mas um escritor inglês, Thomas De Quincey (1785-1859), um sujeito estranho, que morava em lugares imundos, só saia à noite, e durante cinquenta anos foi um "comedor de ópio", parou para pensar no assunto e escreveu um livro chamado "Do Assassinato como uma das Belas Artes". 


De Quincey tinha uma coluna diária na Westmorland Gazette, onde só tratava de crimes terríveis. E justificava sua morbidez dizendo que tais artigos levavam os leitores a uma profunda reflexão moral. 


Não sei se ele tinha razão, mas hoje vou conversar com você sobre o assassinato. "Portanto -- como disse De Quincey -- que nos seja permitido tirar o melhor partido de um mau assunto; que o tratemos esteticamente, e verifiquemos se o podemos aproveitar dessa maneira. Secamos nossas lágrimas e gozamos a sensação de descobrir uma transação que, considerada moralmente chocante, se for julgada pelos critérios do gosto, revela-se uma obra muito meritória". 


"Segundo este princípio, cavalheiros, proponho-me a guiar-vos os estudos desde Caim... Através desta grande galeria do assassinato, que nos seja permitido vagar de mãos dadas, juntos, em admiração deliciada. O primeiro assassinato é conhecido de todos. Como inventor do assassinato e pai da arte, Caim deve ter sido um gênio de primeira grandeza. Todos os Caim(s) foram homens de gênio...". 


"Assassinei um homem porque me feriu, assassinei um moço porque me machucou. Se sete pessoas são mortas para pagar pela morte de Caim, então se alguém me matar serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”. Lameque fala às suas mulheres. 


Bem, se você não está chocado, vamos seguir. De Quincey faz algumas propostas para a realização de um assassinato. "Quanto à pessoa, suponho evidente que deve tratar-se de um homem bom; porque, se não for esse o caso, ele poderá estar, ao mesmo tempo, contemplando a possibilidade de cometer assassinato". 


Ainda quanto à pessoa, "a vítima escolhida deve também possuir uma família de crianças inteiramente dependentes de seus esforços, de modo a aprofundar o pathos”. 


Quanto à oportunidade e ao lugar, "o bom senso do praticante o tem geralmente guiado para a escolha da noite e da intimidade. Contudo, não tem havido falta de casos que esta regra foi abandonada com excelentes efeitos”. 


De Quincey, segundo especialistas, escreveu trechos inteiros de seu livro sob o efeito do ópio, mas paradoxalmente ele nos leva a pensar sobre que razões, motivos ou deleites levariam um ser humano a assassinar outro. 


Por ser tal ato tão terrível, nossa vida é protegida por leis e é por isso que as guerras são execradas. Mas, muita gente tenta justificar o injustificável. De Quincey se baseia na possibilidade do prazer e da beleza do ato, outros numa possível necessidade de prevenção contra um mal futuro. Mas, cuidado, como canta Lameque, quando não há arrependimento, o pecado -- pessoal ou social -- sempre se multiplica. 


"Vocês são filhos do Diabo, e querem fazer o que o pai de vocês quer. Desde a criação do mundo ele foi assassino e nunca esteve do lado da verdade”. Palavras de Jesus. 


E já no final deste texto, eu me lembrei de "Inscrição para uma lareira" de Mário Quintana, quando o poeta afirma que "a vida é um incêndio: nela/ dançamos salamandras mágicas/ Que importa restarem cinzas/ se a chama foi bela e alta?/ Em meio aos toros que desabam/ cantemos a canção das chamas! Cantemos a canção da vida,/ na própria luz consumida”. 




Não, a vida não precisa ser um inferno. Que o poeta me perdoe, mas não necessitamos cantar a vida na própria luz consumida! Por que cantar a destruição se Jesus veio para que tenhamos vida e vida plena? 


Diga não à apologia do roubo, do assassinato e da destruição. Jesus é a canção da vida! 






A sopa de repolho e o cozinheiro de pratos picantes 







“Porque as vossas mãos estão contaminadas de sangue, e os vossos dedos, de iniqüidade; os vossos lábios falam mentiras, e a vossa língua profere maldade. Ninguém há que clame pela justiça, ninguém que compareça em juízo pela verdade; confiam no que é nulo e andam falando mentiras; concebem o mal e dão à luz a iniqüidade”. (Isaías 59. 3-4). 




Quando falamos de assassinatos por envenenamento nos lembramos imediatamente de uma jovem chamada Lucrecia, que nasceu em Roma em 1480. E que teve por pai o cardeal Rodrigo Borgia, que mais tarde se tornaria o Papa Alexandre VI, e por mãe Vanozza Cattanei. Embora filha ilegítima, Rodrigo a reconheceu, lhe deu seu sobrenome, e a usou nas mais diferentes intrigas palacianas. Mas, ao contrário do que conta a lenda, seus contemporâneos não viam em Lucrecia Borgia nada mais que uma princesa usada por seu pai e por seu irmão Cesare Borgia, Il Valentino, em lutas políticas, por ser bela, culta, amante das artes e mulher caridosa. 


Por isso, talvez seja melhor falar de comida e política. 


Definir prato picante pode variar, conforme a culinária ou o gosto de cada um. Mas uma coisa permanece nesta idéia: é um prato que chama a atenção por condimentos que excitam o paladar e deixam um gosto marcado na boca. Assim, o escritor Airton Ortiz, por exemplo, tem uma receita de churrasco, onde recomenda que coloquemos «no primeiro espeto um pedaço de lingüiça calabresa, a mais picante que encontrar». Segundo ele, «aprendi a comer pratos picantes na Índia, fiquei contaminado e agora não abro mão da pimenta. Asso-a rapidamente, na labareda mesmo. Ela fica torradinha. Para torrar mais rápido, furo a tripa com um palito, para escorrer a água. Servida no início do churrasco, na hora dos aperitivos, serve especialmente para despertar nos meus convidados o gosto pela cerveja. Mesmo os que não são adeptos do álcool partem imediatamente para um copo estupidamente gelado». 


Mas, talvez, um dos pratos picantes mais conhecidos e citados na historiografia da culinária seja a Shchi ou sopa de repolho russa, conforme receita usada e divulgada por Josef Stálin (1929-1953), ex-ditador da União Soviética. A shchi pode ser feita com carne ou sem ela, mas é indispensável o chucrute ou o repolho, ou ambos. Uma recomendação fundamental é que deve sentar e curar no mínimo por um ou dois dias, antes de ser comida. Esta receita que fazia parte do cardápio de Stálin, e era, segundo alguns, seu prato preferido, por causa da presença do chucrute e do repolho, é cheia de sabores e texturas e deve ser comida quente, com pumpernickel ou pão de centeio e manteiga. 


É importante dizer que não foi Stálin quem inventou a shchi, pois há evidências de que já era conhecido na Rússia desde antes do ano 988, quando o cristianismo foi aceito. Shchi originariamente significava "comida líquida" e só depois ficou conhecida como "sopa de repolho", quando o legume passou a ser cultivado na região. Foi a sopa favorita de mongóis, de Ivã, o terrível, Nicolas II, de Lênin, de Stalin, e de Mao Zedong. 


E Alexandre Dumas gostou tanto da shchi que a colocou no seu livro de receitas. E Lewis Carroll a achou bebível, mas um pouco azeda, condizente com o paladar russo. Isso é tão verdadeiro que ainda hoje na Rússia se alguém for chamado de “professor de shchi azedo” significa que é uma fraude, ou seja, incapaz de preparar algo que todo mundo sabe fazer. 


Por isso, fugindo ao apodo de “professor de shchi azedo” segue aqui uma versão unânime da sopa de repolho russa. Ingredientes: quatro xícaras de repolho, duas ou três xícaras de chucrute não enlatado. Duas colheres de massa de tomate, doze xícaras de carne de boi, ou, se você não come carne, de legumes variados, em especial cogumelos. Três colheres de sopa de manteiga, uma cenoura descascada e cortada em Julienne, uma xícara e meia de cebola cortada, um talo de aipo bem cortadinho, um nabo grande descascado e também bem cortadinho. E ainda tomates cortados, sal e pimenta. E, por fim, cravo da Índia picado. 


Como preparar: comece saturando os cogumelos em água, depois de lavados e fatiados. 


Em uma frigideira grande derreta a manteiga em calor médio, refogue a cenoura, cebolas, aipo, nabos, e cogumelos até tudo ficar ligeiramente marrom (aproximadamente quinze minutos). Numa caçarola, coloque o repolho e o chucrute e refogue durante 15 minutos, mexendo sempre. Depois coloque os ingredientes da frigideira na caçarola, e os temperos. Mexa tudo, cubra e deixe cozinhar em fogo brando por vinte minutos. Por fim, acrescente o alho e cozinhe por mais cinco minutos. 


Deixe então sentar e curar por um ou dois dias. Se for inverno aqueça antes de servir. Se for no verão, como recomenda Edouard Limonov, sirva frio. Com guarnição sirva endro fresco cortado e misturado com nata azeda. Por ser um prato azedo e picante combina com vinho branco, mas os russos, logicamente, preferem acompanhar com vodca. Assim, presente tanto na historiografia da culinária, como na literatura, não seria de estranhar que também se fizesse presente na política russa. 


Vladimir Illich Lênin, pai da revolução bolchevique, apelidou Stálin de “o cozinheiro de pratos picantes”. Esse apelido partia do viés culinário de Stálin, mas guardava outro sentido: a acusação velada de que Stálin envenenava seus desafetos. O apelido foi mais tarde utilizado por Trotsky contra Stálin e acabou se generalizando na Oposição de Esquerda.

Trotsky acreditava ou ao menos fez questão de publicitar que Stálin tinha envenenado Lênin.


Apesar de, durante todo o período stalinista, esta acusação ter ficado marginalizada da historiografia soviética, ela reapareceu com força com o fim da União Soviética. Está presente em “Touro”, filme do cineasta russo Alexander Sokourov que evoca os últimos dias de Lênin em 1922, depois que sofreu um primeiro derrame. Prematuramente velho, caminha com dificuldade e tem surtos de depressão e delírios. Só Krupskaya, sua mulher, o trata com carinho. Rodeado por guardas e criados, alguns dos quais informantes da polícia política, aqui o retrato de Lênin é o do Minotauro, monstro e vítima, possuidor de poder, mas cada vez mais solitário e isolado. A cena em que Lênin descobre que o telefone da datcha foi cortado mostra isso. E a visita de Stálin, discutida várias vezes, mas em especial num jantar, onde o prato servido é a shchi, traz à tona o medo de Lênin de ser envenenado pelo novo secretário-geral do Partido. E quando Stálin chega e entra na casa, Sokourov traduz em sombras e meia-luz esta presença maligna do anjo da morte. 


Trotsky décadas antes de Sukourov já havia apresentado sua versão: “Eu imagino que as coisas se passaram quase dessa forma. Lênin pede veneno ao final de fevereiro de 1923. No inverno, o estado de Lênin começou a melhorar lentamente. O uso da voz retornara. Stálin queria o poder. O objetivo estava próximo, mas o perigo emanado de Lênin estava mais próximo ainda. Stálin devia tomar a resolução que lhe era imperativa, de agir sem demora. Se Stálin enviou o veneno a Lênin depois que os médicos tinham deixado entender por meias palavras que ele não tinha mais esperança ou se recorreu a outros meios mais diretos, eu ignoro”. Essa leitura de Trotsky também é a de historiadores contemporâneos, como Domènech, que afirma ter sido Lênin assassinado por Stálin. 


Certamente é difícil dar uma palavra final sobre a morte de Lênin. Em 1991, documentos foram divulgados, entre eles a autópsia de Lênin, assim como as memórias daqueles que acompanharam sua morte. Um trabalho publicado no "European Journal of Neurology" de junho de 2004 sugere que Lênin, aos 54 anos, morreu de neurossífilis. Os autores, V. Lerner, Y. Finkelstein e E. Witztum, de Israel, com base em cinco anos de pesquisas em arquivos liberados da antiga União Soviética, relatórios de necropsia e livros de memória de antigos médicos, concluíram que Lênin sofreu de sífilis terciária, que no correr dos anos afeta o cérebro. A causa oficial da morte de Lênin foi uma arteriosclerose cerebral, mas apenas oito dos 27 médicos que trataram dele assinaram esse diagnóstico. Os dois médicos pessoais do revolucionário recusaram-se a assinar o atestado de óbito oficial. Segundo os médicos israelenses, a sífilis produziu lesões cerebrais e demência nos dois últimos anos de vida do líder. 


É verdade que a sífilis na época era incurável, mas é interessante que sua mulher Krupskaya viveu até 1939 e nunca apresentou nenhum sintoma da doença. Assim, a sífilis de Lênin pode ser mais uma especulação, principalmente quando nos lembramos que ele sofreu uma tentativa de assassinato em 1918 e que a bala nunca foi removida. Daí, outra hipótese, o do envenenamento lento causado pela bala não extraída. 


Diante dessa comida que mata, dessa bebida que fulmina, talvez o jeito seja cantar o rock punk do k2o3: 


Veneno que me rouba a vida 

veneno, uoohhoo! 

é o veneno que me está a matar 

mesmo que queria não consigo escapar 

cruel e fria perseguição 

que só acaba com destruição 

Veneno que me rouba a vida veneno, uoohhoo! 









O corpo e o baile 




"Ce qu'il y a de plus profond chez l'homme, c'est la peau". Paul Valéry. 


Um outdoor está presente na cidade de São Paulo nestes dias de Carnevale. Nele uma jovem diz: "Mostre que você já cresceu e sabe o que quer, use camisinha". Por incrível que pareça tal slogan tem várias leituras. Uma delas é: você que é mocinha, dona do seu próprio nariz, faça sexo. 


Tal slogan nos remete a uma questão teológica, que envolve os conceitos carne e corpo. E começaremos tal discussão a partir de texto clássico da literatura brasileira: 


"Invadiu-a um desalento imenso, um nojo invencível de si própria. Robustecer o intelecto desde o desabrochar da razão, perscrutar com paciência, aturadamente, de dia, de noite, a todas as horas, quase todos departamentos do saber humano, habituar o cérebro a demorar-se sem fadiga na análise sutil dos mais abstrusos problemas da matemática transcendental, e cair de repente, com os arcanjos de Milton, do alto do céu no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne, espolinhar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer... era a suprema humilhação." 


”A Carne” de Júlio Ribeiro é um romance naturalista publicado em 1888, que fala de divórcio, sexo e aponta para a liberdade sócio-cultural feminina. Mas, apresenta também os preconceitos da sociedade escravocrata no Império. A Carne é a história de Lenita, uma jovem órfã de mãe, cujo pai lhe deu uma educação sofisticada e fora do comum para a época. 


Aos 22 anos, após a morte de seu pai, Lenita teve a saúde abalada e foi viver no interior de São Paulo. Lá, conheceu Manuel, um intelectual que vivia trancado com seus livros e que de vez em quando fazia longas caçadas. Lenita e Manuel tornam-se amantes e o romance de Júlio Ribeiro narra a trajetória desse amor, marcado por desejo e violência, por luta entre a razão e a carne. 


"As pessoas que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a natureza humana, junto com todas as paixões e desejos dessa natureza". 


O texto de Paulo (Gálatas 5.24) fala de paixões e desejos. Paixão, paté, aqui, indica deficiência que domina a natureza humana (“sarks” em grego, carne). O texto discorre sobre a possibilidade de controle de uma disfunção quando afirma que aqueles que pertencem a Cristo crucificaram todas as paixões e desejos da natureza humana. 


Durante a Idade Média, grupos de cristãos interpretaram a exortação à crucifixão da carne como apelo ao sofrimento e suplício, ao encarceramento e solidão, procurando causar dor e desprazer ao próprio corpo. 


Mas Paulo faz diferença entre carne e corpo. Carne nos remete às disfunções que envolvem desejos e paixões como aluguel do corpo, sensualidade exagerada, lubricidade. E corpo traduz a materialidade do ser, a base para a realização da existência. 


O domínio e o exercício do corpo advêm como expressividade quando há integração lingüístico-cultural. O corpo resiste ao sentido, não é resto, despojado de vida, como entendido pelos gregos, na sua configuração de soma, cadáver. Trata-se de singularidade no mundo, face ao outro, interpelado, atravessado por afeições e sentimentos. Orgânico, natural, alia indeterminação entre a dimensão lingüístico-cultural que o atravessa e constitui e a dimensão emotiva que o movimenta. 


Por isso o corpo -- e com ele as emoções, sentimentos e a própria razão -- é dimensão profunda do ser. É o corpo que projeta as forças que vão moldar o ser aos desejos e paixões. Nesse sentido não há pecado da carne, sem que antes tenha passado pelo próprio corpo.

No romance “A Carne”, Lenita encontra cartas de outras mulheres guardadas por Manuel, sente-se traída e o abandona. Mesmo grávida, casa-se com outro homem. Manuel, diante da perda da amante, suicida-se por envenenamento lento. 


"A placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteu-se em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a linguagem humana." 


"Morto e vivo!" 


"Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura... Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala? A paralisia invadiu os últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda." 


Assim, Júlio Ribeiro finaliza o resultado da batalha perdida entre a razão e a carne. Para ele, os triunfos dos desejos e paixões da carne levam, ao final, à morte do corpo. É isso que Paulo nos fala. Por isso, quer no Carnevale, ou em qualquer outra atividade humana, a liberdade deve levar à vida e não à morte, já que a liberdade se realiza no tropismo do corpo à vida. 






O sermão do fogo 





O príncipe dos pregadores do século 19, Charles Haddon Spurgeon, fez um sermão que ficou conhecido como Apressando a Ló, com base no texto de Gênesis 19.15. O centro dessa mensagem de Spurgeon é que diante de uma cidade que vai arder, justos e pecadores devem ser apressados. 


O justo deve ser apressado em relação ao que é melhor para sua família, a sair do mundo e à obediência ao Senhor. E o pecador deve ouvir do perigo iminente e da necessidade de tomar uma decisão imediata. 


O pano de fundo do sermão é a cidade que vai arder. 


Décadas mais tarde, um poeta norte-americano, de ascendência inglesa, escreveu sobre um mundo que já ardeu. Seus poemas traduzem a angústia profética diante da guerra e do drama humano. 


”Terra Desolada” é um dos mais impressionantes poemas de Thomas Stearns Eliot. É um gemido diante de um mundo árido, onde sobreviventes se arrastam e agonizam. Escrito entre 1921 e 1922, é considerado o mais terrível poema da literatura ocidental no século 20. 


Mas, em meio ao desespero, podemos ver o sentido de transcendência que brota na “Terra Desolada” desse cristão agoniado diante do destino humano. No final da terceira parte do poema, chamado “O Sermão do Fogo”, terror e êxtase se complementam: 


A Cartago então eu vim 

ardendo ardendo ardendo ardendo 

Ó Senhor Tu que me arrebatas 

Ó Senhor tu que me arrebatas 

ardendo 


Eliot em suas notas conta que o primeiro verso acima foi tirado das Confissões de Agostinho, quando o teólogo diz: "A Cartago então eu vim, onde todos os amores ímpios, como num caldeirão, cantavam em meus ouvidos". 


E o verso seguinte faz parte do “Sermão do Fogo”, de Buda, que segundo Eliot é tão importante para o mundo oriental quanto o Sermão da Montanha para nós cristãos. E volta às Confissões de Agostinho, com o verso: "Ó Senhor Tu que me arrebatas". 


Eliot afirma que "a inserção destes dois representantes do ascetismo oriental e ocidental no ponto culminante desta parte do poema não é fortuita", já que através de uma leitura cheia de universalidade transmite ao leitor toda a angústia diante de um mundo que arde. 


Três anos mais tarde, Eliot lançou Os Homens Ocos onde, ainda em meio ao mundo desolado, fala de homens vazios, empalhados. E é aqui, neste poema, que a transcendência transborda, apontando para um sentido profundo de conversão. 


Entre o desejo 

E o espanto, 

Entre a potência 

E a existência 

Entre a essência 

E a descendência 

Tomba a Sombra 


Porque Teu é o Reino 

Porque Teu é 

A vida é 

Porque Teu é o 


E numa estrofe sublime, genial, completa: 


”Assim expira o mundo 

Assim expira o mundo 

Assim expira o mundo 

Não com uma explosão 

Mas com um suspiro. 


Diante de uma cidade que vai arder, de um mundo que já ardeu, ficam a urgência e a esperança... "e como ele estava demorando, os anjos pegaram pela mão Ló, a sua mulher e as suas filhas e os levaram para fora da cidade..." 



O menino e o rifle 





Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um dos gênios do cinema italiano, filmou Gaviões e passarinhos, história que vi como metáfora sobre liberdade e consciência política. Numa estrada vazia, um senhor (Totó) e seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo que fala. O corvo os transforma em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e passarinhos. O próprio Pasolini diria: 


"Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas". 


O filme é uma parábola sobre a crise do socialismo, representada pelo corvo, na Itália dos anos 1950. "Totó e Ninetto representam os italianos inocentes, que não se envolvem na história, que conquistam a primeira noção de consciência ao encontrar o marxismo no semblante do corvo", afirmou Pasolini. 


Ter vivido parte da infância em fazenda, no sul de Minas, foi um privilégio que marcou minha vida, não somente fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a liberdade. 


Talvez seja essa compreensão telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade, um reformado radical, e me permitiu construir uma ponte entre o pensamento de anabatistas e o socialismo religioso de Paul Tillich. 


Voltemos à minha infância. Meu tio Ary tinha uma Winchester 44 na casa da fazenda. E eu olhava para aquela arma com respeito e paixão. Eu e milhares de pessoas mundo afora. Os rifles Winchester 44, conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior do Brasil e nos Estados Unidos: símbolo de uma época, como a pistola Colt e os cavalos quarto de milha. 


Conta-se que Lampião, quando começou sua vida guerrilheira, usava uma Winchester 44, que os sertanejos chamavam de cruzeta. Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Mello: 


”Lampião tinha uma paixão pelo rifle cruzeta, não somente por ser arma de estréia, mas também por ter permitido criar um processo de aceleração de tiros. Ele conseguiu transformar a arma em um modelo automático. A transformação permitia que o rifle, quando usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um lampião”. 


A Winchester era mágica e eu amava ver meu tio usando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. Mas, certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. O gavião, accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e vôo certeiro. Pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos pássaros e pintos soltos na pastagem. E era isso mesmo que aquele gavião estava planejando: atacar os pintinhos que, juntos com a galinha, corriam de um lado para o outro, em pânico. 


Meu tio pegou a Winchester, que reinava numa das paredes da sala, e me chamou. Fomos para a varanda e ele começou a seguir os círculos do gavião. Esperou. Quando o gavião mergulhou em direção aos pintos ele atirou. 


E eu vi o gavião explodir em penas. 


Onde nos leva a liberdade quando não temos consciência do que ela significa? A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer justiça. 


Ao reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à existência, devemos entender que: 


(1) não podemos virar as costas ao mundo; (2) aquilo que é eterno deve ser expresso em relação à situação presente; (3) a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e o poder transformador do Evangelho deve expressar uma fé não superficial, que vai à raiz. 


Por isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver o desafio incondicional de realizar a verdade e fazer justiça. 






De heróis, marinheiros e fazendeiros 





Um ano novo deveria surgir sempre carregado de esperanças. Mas, à vezes, vem carregado de inseguranças, de receios indefinidos. Mas, o que é um ano novo? Há um mês e meio sonhamos e vibramos, e aquele anseio de fim de ano parecia tão ao alcance das mãos. Mas... E agora? Agora, olhamos e nos sentimos tão velhos, como se a vida já tivesse sido vivida por inteiro, escoada nos dedos do tempo. 


Cada um de nós deveria viver intensamente os dias que temos. Agir no presente! Arregimentar forças para construir o futuro. Colocar mãos à obra! Transformar a vontade interior, exteriorizar pensamentos, criar palavras, produzir ações, já que o pensamento, as palavras e as ações são os tijolos com que construímos o futuro. 


Mas estamos cansados: seres velhos num ano novo! Será isso possível? 


Sim, infelizmente, é possível. Por isso, um seguidor de Cristo, Paulo, o apóstolo, nos dá um conselho: abandone a velha natureza, que faz com que você viva uma vida de alvos errados, vida que está sendo destruída por desejos enganosos. 


Vida traduz uma realidade, a realidade das necessidades fundamentais e imprescindíveis da condição humana, que ao não serem preenchidas por Deus produz antivida: alienação, descrença, idolatria, ignorância, individualismo. 


Não sei por que tio Ary sempre me lembrou Gregório Fuentes, o pescador que inspirou Ernest Hemingway, quando escreveu “O Velho e o Mar”. Gregório foi capitão do barco de Hemingway durante os 1930 anos em que o escritor viveu em Cuba. 


Seriam os olhos, a sabedoria, a tenacidade? Ou seriam as rugas? Para Hemingway "tudo nele era velho exceto os seus olhos, e estes eram da mesma cor do mar e eram alegres e invencíveis". 


Não sei a razão, talvez porque Ary fosse tio herói. Não era marinheiro, era fazendeiro, não era capitão de barco, era mineiro de Perdões. Sabia fazer pernas de pau, estilingue de forquilha de jabuticabeira, caçar e pescar. Sabia quando ia chover e olhando para o céu dizia onde estavam o norte e o sul. 


Com o passar dos anos virou o patriarca da família. Cuidava de todos: tinha ouvidos para os que atravessavam momentos difíceis e sabia dar conselhos. Posso traduzir tio Ary em três palavras: alegre, sábio, tenaz. 


Quando estava para morrer, com 85 anos e já com metástase, passei junto com ele sua última tarde. Estava em casa, na cama. Os olhos, para variar, continuavam alegres e invencíveis. Sentei ao lado dele, perguntei como estava e orei. Depois ele me perguntou como ia o Alex, meu irmão. Contei que estava bem, que tinha uma pequena empresa e estava sendo bem sucedido. Perguntou por Maria, minha mãe. E assim foi perguntando por todos os membros da família que fazia tempo não via. Depois de ouvir sobre todos, disse: 


-- Estou feliz. 


E eu fiquei impressionado com aquele homem, que sabia estar vivendo suas últimas horas, mas estava ocupado com os outros. E que podia ser feliz porque outros estavam bem. 


À noite, voltei para São Paulo. No dia seguinte, de manhã, minha prima Raquel ligou e disse que tio Ary tinha morrido de madrugada. E contou como foram os seus últimos minutos.

Ele disse: 


-- O quarto está cheio de gente. Estão todos de branco... 


Parou um pouco, sorriu, e continuou: 


-- Vieram me levar. 


Olhos alegres e invencíveis, um sorriso para anjos. A cabeça pendeu. 


Nosso destino, enquanto processo de crescimento e amadurecimento daquilo que é humano, consiste em termos nossas vidas saciadas pelo Criador e a partir daí corações e mentes renovados. 


Uma vida saciada por Deus produz equilíbrio com Ele, com o universo, com as pessoas e com a gente mesmo. Uma vida em equilíbrio, plena do Espírito, se traduz em integridade holística, pluralidade social, sabedoria, conhecimento e abertura à transcendência. A ruptura dessa integridade produz desencontro. 


Esse desencontro, que Etienne de la Boétie, um cristão do século 16, chamou de mau encontro, conceito que mais tarde seria utilizado pelo antropólogo francês Pierre Clastres, deve ser visto como categoria que traduz as disfunções da espiritualidade na natureza humana: alienação religiosa, alienação psicossomática, alienação social e alienação antropo-ecológica. 


O nosso amigo são Paulo, cheio de otimismo, diz que é possível ter uma vida nova. Diz que nossa vida velha e nossos alvos errados podem morrer na cruz de Cristo e deixarmos de ser escravos de projetos caducos. 


E faz um apelo: não vivam como velhos, deixem que Deus os transformem por meio de uma completa mudança da mente de vocês. E, assim, conhecerão a vontade de Deus e tudo aquilo que é bom, perfeito e agradável. 


A natureza humana dispõe de liberdade para seu desenvolvimento. E é por meio dessa liberdade que podemos escolher caminhos, ficando, porém, sujeitos às conseqüências das escolhas. Por isso, somos, por escolha ou omissão, construtores de nosso destino. Desistir da vida velha, da antivida, com projetos caducos, não é simples resolução de ano novo, mas decisão que abrange a existência. Vida plena, saciada por Deus, está em nossas mãos. 


Um ano novo será sempre o fim da vida velha, pois o presente que Deus nos deu é a vida plena, nova, através da união com Cristo, nosso senhor. 












Dolls, três histórias de bonecos 







Em Dolls, o amor, o poder e a honra são como a névoa que se esfuma pela manhã. São histórias tristes que se transformaram em reflexão lírica sobre o amor e as escolhas egoístas. Dolls traduziu para a tela do cinema a beleza trágica do tradicional teatro japonês de fantoches, o bunraku. 


O filme começa com uma encenação no Teatro Nacional de Tóquio de "O Mensageiro do Inferno", do autor do século 17 Monzaemon Chikamatsu, sobre amores malfadados. Os fantoches de madeira usam figurinos cerimoniais e, em determinado momento, a música e a narrativa cantadas dão lugar a sucessores de carne e osso: um casal conhecido como "os mendigos amarrados". 


A tristeza pode ser mais forte e mortal do que a violência física. E Dolls, filme do diretor japonês Takeshi Kitano, conta histórias onde o amor é confrontado pelas pressões da sociedade na alta modernidade. Para nós, cristãos ocidentais, o filme de Kitano parece seguir as linhas mestras do humanismo existencial do Eclesiastes, lido a partir da reflexão de Chikamatsu.

Dolls foi destaque no 59º Festival de Cinema de Veneza. Conta três histórias de amor que se entrelaçam. Na primeira delas, um jovem casal está amarrado por uma corda vermelha. Em outra, a história é de um chefe da máfia japonesa e de sua namorada que ele abandonou. A última história fala do relacionamento entre um fã e seu objeto de idolatria, uma estrela pop que fica cega de um olho. 


Kitano é conhecido por seus filmes de violência explícita, mas muda de rumo em Dolls, onde mostra aspectos psicológicos do sofrimento humano. 


"É de longe meu filme mais violento. A violência não é física ou visual, como em meus outros trabalhos. Mas é pior, porque é repentina e inesperada", disse Kitano quando o filme foi lançado. 


As histórias 


Matsumoto e Sawako eram um casal feliz que pareciam destinados ao casamento. Mas a pressão dos pais forçou o rapaz a fazer uma trágica escolha, e agora, Sawako vaga sem rumo, amarrada a Matsumoto por uma corda vermelha. Mas Matsumoto e Sawako estão numa jornada a procura de algo que haviam esquecido. Uma viagem que cobrirá as quatro estações...

Hiro é um veterano chefe da máfia. Embora rodeado por respeito e riqueza, Hiro se encontra sozinho e sua saúde está debilitada. Trinta anos antes, ele era um trabalhador fabril que tinha uma namorada que levava seu almoço no parque. Mas ele a abandonou para procurar seus sonhos de poder e riqueza. Agora, trinta anos depois, ele está de volta ao parque onde se conheceram. 


Haruna Yamaguchi perde muito tempo em uma praia isolada, olhando para o mar. Seu olho esquerdo está encoberta por uma bandagem. Há pouco tempo, antes do acidente, Haruna era uma pop star, que vivia em um glamuroso mundo de shows de TV e sessões de autógrafo. Milhões a adoravam. Nukui é provavelmente seu maior fã e hoje ele vai provar isto.

Os temas de devoção, sacrifício e amor como atos extremos, insensatos e irracionais, são constantes nas três tramas que o roteiro entremeia com precisão. O clima triste se prolonga além dos créditos finais, permitindo que os temas continuem a ressoar na cabeça dos espectadores. Diante isso, ficam as palavras do pregador: 


Lembra-te... Antes que se rompa a corrente de prata e se despedace o copo de ouro, e se quebra o cântaro junto à fonte e se desfaça a roda junto ao poço e o pó volte à terra, como era, e o espírito volte a Deus que o deu. 






Feto pisca e sorri 





As maravilhas da natureza são maravilhas do Deus todo poderoso. Quanto mais a ciência mergulha no desconhecido, mais descobre que algo maravilhoso está por trás de cada detalhe da vida humana. E esse algo maravilhoso é sabedoria de Deus, que construiu o ser humano com amor, para a honra de sua glória. 


Podemos ver um pequeno exemplo dessa sabedoria e amor nas imagens captadas por um ultra-som 4D, que mostram que os bebês sorriem, choram e piscam dentro da barriga da mãe, meses antes de nascer. 


O professor e obstetra britânico Stuart Campbell, da clínica médica Create para Reprodução e Tecnologia Avançada, captou as imagens usando um ultra-som de tecnologia desenvolvida a partir de 2001. O ultra-som 4D, que produz imagens detalhadas em três dimensões exibidas em tempo real, mostrou que os bebês começam a fazer movimentos com os dedos com 15 semanas, a bocejar com 18 semanas e a piscar os olhos e chorar com 26 semanas de idade. 


Segundo ele, pensava-se até agora que os bebês aprendiam a sorrir depois do nascimento, copiando suas mães. "A descoberta pode demonstrar a vida calma que o bebê leva na barriga da mãe e as relativamente traumáticas primeiras semanas após o nascimento, quando ele reage a um ambiente novo e estranho", disse. Os bebês normalmente não sorriem até a sexta semana de vida. 


"Com o ultra-som 2D, você podia ver a rotação do globo ocular, mas agora, com o ultra-som 4D, fica claro que eles estão abrindo os olhos", afirmou Campbell. "Eles fazem movimentos de respiração dentro do útero, mas não existe ar lá. E eles também piscam, mesmo sem luz. Parece que eles estão se preparando para nascer." 


O sorriso, no entanto, pode não ser uma preparação para o nascimento, mas, segundo Campbell, um reflexo. "O que há por trás do sorriso, claro, não posso dizer. Mas o canto da boca sobe e as bochechas se destacam. Eu acho que isso pode ser uma indicação de contentamento em um ambiente livre de estresse", afirmou o cientista. 


Campbell afirma que o equipamento, que hoje em dia é utilizado por poucas clínicas no Reino Unido, ajuda os médicos a detectarem anormalidades como fendas no palato, além de facilitar o diagnóstico de falhas no coração. Ele também pode ajudar em pesquisas sobre problemas genéticos, como a síndrome de Down. 


Ou como disse o salmista (139.13-16): Tu criaste cada parte do meu corpo, tu me formaste na barriga da minha mãe. Eu te louvo porque deves ser temido. Tudo o que fazes é maravilhoso e eu sei disso muito bem. Tu viste quando os meus ossos estavam sendo feitos, quando eu estava sendo formado na barriga da minha mãe, crescendo ali em segredo, tu me viste antes de eu ter nascido. Os dias que me deste para viver foram todos escritos no teu livro quando ainda nenhum deles existia. 









Em que Deus estava pensando? 







Quando eu e Naira, minha esposa, não éramos cristãos, nossos natais eram famosos. Eu era jornalista e ela executiva na área financeira de um banco. Tínhamos algumas dezenas de amigos, pensadores de todos os tipos: livres, presos à corvéia do mercado, revolucionários, muitos singulares na imensidão de São Paulo. 




Por isso, todos os anos fazíamos do Natal a mais bonita festa de nossa casa. E lá pela tarde do dia 24 começavam a chegar os amigos e a festa rolava até o dia seguinte. 


Os preparativos davam um trabalho gigantesco. 


O pinheiro tinha um metro e oitenta, a gente fazia questão do tamanho, e era comprado ali nas barracas de flores e plantas ornamentais da avenida Dr. Arnaldo, ao lado do cemitério, em São Paulo. Dava trabalho escolher o pinheiro: tinha que estar todo verde, não ter galhos tortos e, logicamente, um bom preço. 


Em casa vinha o trabalho de montar a árvore. Além dos enfeites normais, pendurávamos bombons, que as crianças surrupiavam nos dias seguintes, tendo o cuidado de deixar os papéis dos bombons perfeitos, pensando que não íamos notar a falta. Era uma farra. 


Uma coisa que ninguém esquece era o cheiro do pinheiro. Aliás, esse é um segredo, que faz parte da tradição de Natal que herdei do Walter, meu tio austríaco. A árvore tem que estar verde, viva, para exalar o odor do pinheiro. 


Naira tinha ainda que preparar as comidas: peru recheado, figos recheados com chocolate e castanhas, panetone, bolo de nozes. Comprar frutas frescas, cerejas, ameixas, uvas, mangas, pêssegos e figos, frutas secas, damascos, tâmaras, ameixas, e castanhas, nozes, amêndoas, avelãs, lá no mercado municipal. As bebidas eram os refrigerantes, os vinhos, em especial beaujolais nouveau, e os champanhes, moet chandon, freixenet, cordoníu e os chandons nacionais. 


E havia presentes para todo mundo, para todas as pessoas que aparecessem em casa. Era uma festa bonita... Marcou a vida de muitos de nossos amigos. 


Mas um dia a ficha caiu depois de duas pequenas perguntas, a primeira foi: em que Deus pensava quando criou o universo? É isso mesmo: no que Deus estava pensando antes de criar o Universo? Em que Deus estaria pensando no silêncio e na escuridão da eternidade? A pergunta pode parecer estranha e metafísica para você, mas para mim não era. 


E fui respondendo com a ajuda da Bíblia. Descobri que o apóstolo João diz na introdução de seu Evangelho, que Deus era a Palavra. E que desta Palavra primeira e original vieram todas as coisas. Ora, então, a Palavra nos leva a tudo o que Ele disse ou fez, a tudo que fez ou permitiu acontecer. 


Assim, permanecendo na introdução do Evangelho de João vi que o pensar de Deus, partindo de si próprio, ilumina a criação e a humanidade. 


E de novo voltei ao apóstolo João, que disse: "Por meio da Palavra, Deus fez todas as coisas, e nada do que existe foi feito sem ela. A Palavra era a fonte da vida e essa vida trouxe a luz para todas as pessoas". (João 1.3-4). 


Heureca! Somos frutos do amor deste pensamento de Deus, desta Palavra primeira e original. Lá na eternidade, Deus estava pensando em mim, na Naira, nas minhas filhas, em meus amigos. Fomos pensados por Deus, ainda antes da eternidade. Isso é chocante, revolucionário. Mas havia outra pergunta ainda não respondida: se Deus não tem começo nem fim, por que Ele quis nascer? Não poderia ter simplesmente aparecido entre homens e mulheres? Não seria mais apropriado para um ser divino uma aparição espetacular? 


Além do mais, ninguém nasce adulto, conhecendo todas as coisas, sabendo de tudo, na plenitude da capacidade física, emocional e mental. Todos nascemos bebês. E precisamos ser cuidados. E aí eu comecei a pensar: Deus pequeno, Deus sendo cuidado! De que um recém-nascido precisa? Calor, carinho, leite materno... 


Deus bebê, Deus menino, Deus adolescente. Deus que precisava de pessoas, da mãe, dos irmãos, dos amigos. Deus que brincava, discutia, discordava, participava. 


Acho que comecei a entender porque Deus quis nascer. Arrisquei uma resposta: para ser pequeno, para depender, para ser igual a mim, à Naira, às minhas filhas, aos meus amigos. 


Um Deus igual a mim, parado na rua, ouvindo músicas de Natal numa esquina. Um Deus que enfrentava problemas, que conheceu os desafios de ser mortal e viver num mundo cruel.

E voltei ao apóstolo João: "A Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e verdade". João 1.14. 


Bem, a partir daí o Natal de casa mudou. E para falar dessa fase nova, pedi à minha filha Paloma para escrever o final do texto. E ela traduziu muito bem o novo espírito natalino aqui em casa. 


Diz Paloma: 


Quando ouvimos falar em Natal, logo pensamos em presentes, árvore de Natal e Papai Noel. Nessa época do ano, ninguém se esquece de arrumar enfeites, montar a árvore, comprar presentes e reunir a família. Mas poucas pessoas se lembram do verdadeiro sentido do Natal, do motivo desta comemoração. 


Há mais ou menos 2002 anos atrás, Jesus deixou seu trono, deixou a glória de lado para que assim pudesse concretizar sua promessa de amor. Isto é, passar por tudo o que nós passamos, sentir tudo o que nós sentimos e, por fim, dar a sua própria vida. 


Ele foi humilhado, torturado e morto, tudo para que nós tivéssemos vida, e vida em abundância! E tudo que Ele quer em troca é que nós reconheçamos isso. 


O Natal deveria ser uma comemoração de gratidão a Deus por tudo o que fez por nós, mas muitas vezes acabamos trocando esse Rei da Glória por um velhinho gorducho de barba branca que existe apenas na nossa imaginação. 


Ainda bem que o amor desse Deus não acaba, e sabemos que da mesma forma que ele nos amou quando cumpriu sua promessa, Ele ainda nos ama, apesar da nossa ingratidão. 


Portanto, não passe mais um Natal longe dEle. Ele já deixou claro que quer estar perto de você, mas isso só acontece se você permitir! 


E aqui termina o comentário da Paloma. 


E eu pergunto a você: Qual é o Natal pobre? Qual é o Natal rico? Qual é o seu Natal? 









Os olhos azuis de Jussara 




"Já que não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus". Lutero, reformador do século 16. 




O sol está de derreter asfalto. Dá para fritar ovos na Avenida Atlântica. Tio Walter joga peteca com os amigos. E Lolita, minha jovem tia, de maiô cavado nas costas, lembra a personagem de Nabukov, ao menos na minha cabeça de adolescente. 


-- Jorge, passa Dagelle nas minhas costas. 


Obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia. Cumpro à risca, devagar, a ordem recebida. Meus primos Marcus e Júlio, à beira d'água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia. 


Maria, minha mãe, fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem. E minha turma, uma gangue atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha namorada, Jussara, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela. 


Jussara tem 14 anos, faz balé e mora na Rua Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do professor Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Mas, certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos: 


-- Você não é digno de sair pela porta. 


Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho: 


-- Não viva de tal maneira, que possam dizer para você: Puxa, nunca imaginei que você pudesse fazer isso. 


Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo. 


Jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. A gangue brinca de boto furando as ondas... 


Morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. Minha vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles ali na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. 


Os anos 1960 começam a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopram. Tio Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo. 


Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos gosto. 


Alguns anos depois da morte de meu pai, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde. 


Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã aqui no Posto 4, em Copacabana. 


-- No que você está pensando? Está tão calado - pergunta Jussara. 


-- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.  


-- Bobo! 


-- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá. 


-- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem... 




-- É, mais o teu eu posso levar comigo. 




-- Só se eu deixar... 


-- E você deixa? 


-- Depende... 


-- De que? 


-- Ué, para onde?... 


-- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar... 


-- Puxa, então eu deixo. 


E veio à memória, também, um velho texto: isso ficou como lembrança, como alguma coisa amarrada nas mãos ou na testa. (Êxodo 13.16). 


















O punhal de Abraão 







“Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo”. Gênesis 22.9-10. 




Eis um dos textos mais desnorteadores do Primeiro Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para matar seu filho. Bem, vamos ler esse texto a partir de um ensaio teológico, “Temor e tremor”, escrito por Sören Kierkegaard, em 1843. Talvez, ele nos ajude. 




Sören Kierkegaard, dinamarquês (1813–1855) fundou a teologia da existência. Ele recusou o ideal de um saber intelectual e universal, defendido por Hegel, e mostrou o caráter voluntário e singular da vida cristã, que se consubstancia no ato de fé. 




Kierkegaard foi conhecedor dos clássicos. Amava a música e a literatura, a filosofia clássica e moderna. Fruto dessa paixão construiu uma teologia que teve como objetivo confrontar idéias e experiências à luz do cristianismo. 




Sua teologia baseou-se em conhecimento e experiências sentimentais. A partir de problemas pessoais procurou explicação para a existência. Não se contentou em analisar o conteúdo da consciência e daí construir uma teologia. Relacionou conhecimento e experiências e estabeleceu entre elas uma dialética. É através da dialética que percebe as experiências da existência: estética, ética e experiência da fé. 




A experiência estética é básica na realidade humana. Os valores estéticos estavam presentes no romantismo e influenciaram artistas e intelectuais do século 19. É difícil definir essa experiência, porque é diversificada, embora sempre tenha uma característica comum: o desejo. O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico. Mas, a experiência estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação. 




Há outra experiência humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a experiência ética. Isto porque é marcada por uma vida governada por normas morais. O herói da experiência ética é o marido fiel. 




Kierkegaard combina a teoria do amor romântico com a teoria do acordo matrimonial, na forma de amor cristão entre duas pessoas que reconheceram em Deus o responsável por esta união. O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal. 




Casamento é risco, mas, ao mesmo tempo, a mais profunda experiência para se atingir tal sentido de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral. Mas o casamento não é a única e derradeira experiência humana. A fé é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e existência. 




O cristianismo de Kierkegaard era composto por duas realidades marcantes: por um lado, o cristianismo com suas doutrinas e seus paradoxos, e, por outro, a tensão psicológica com que ele recebia essas doutrinas e paradoxos em meio aos problemas existenciais. 




Nesse sentido, “Temor e Tremor” é uma introdução ao mundo cristão de Kierkegaard. O objetivo do livro é mostrar, através da história do patriarca Abraão, que a experiência ética não é absoluta, fica ofuscada diante das exigências da experiência da fé. 




Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A experiência da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras experiências, estética e ética, não podem existir sem a experiência da fé. A fé deve estar presente tanto na experiência estética quanto na ética. A fé é uma experiência que desestrutura experiências e possibilita o encontro com a realidade da vida cristã. 




Mas fé implica em fazer escolha, já que é solitude e colocar-se sob o olhar atento de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva ao sentido da subjetividade e da existência. Em 1848, Kierkegaard passou pela experiência de conversão e registrou em seu Diário: 




“A totalidade do meu ser está transformada... Mas a crença no perdão dos pecados significa crer que aqui no tempo o pecado é esquecido por Deus, que é realmente verdade que Deus o esquece”. 




E em 1850 escreveu em seu Diário: 




“A peculiaridade da raça humana é: justamente porque o indivíduo é criado à imagem de Deus, o ‘indivíduo’ está acima da raça. Isto pode ser entendido erroneamente (...) reconheço. Mas isso é o cristianismo. E é aí que a batalha deve ser travada”. 




Deus é subjetividade infinita. O cristianismo é uma fé histórica, mas como os resultados dos fatos históricos são incertos, o importante é a escolha. Crer em Deus é um salto de fé, um compromisso com o absurdo. A pessoa faz uma escolha por aquele fato histórico porque significa tanto que arrisca a vida por ele. 




“Então vive; vive inteiramente cheio da idéia, e arrisca sua vida por ela; e sua vida é a prova de que crê”. 




Não precisa haver provas para a pessoa crer e viver a fé. Sem riscos não há fé. Por isso, há no pensamento de Kierkegaard, uma palavra chave: o amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano. 




“Deus encontra sua alegria em vestir ao lírio com mais esplendor que Salomão” (Fragmentos Filosóficos, p. 59). 




O amor de Deus ensina, mas também leva a um novo nascimento, passando do não ser ao ser, pois “o fazer nascer pertence a Deus cujo amor é regenerador” (Fragmentos, p. 68). 




Deus busca transformar o não-ser do humano. Assim, “para obter a unidade, Deus deve se fazer igual ao seu discípulo”, e para isto toma a forma de servo. Deus sofre a fome, o deserto, tudo experimenta por amor ao ser humano. Kierkegaard afirma que só Deus pode salvar o indivíduo do desespero. 




O sentido estético da existência nos é dado, também, pela busca da realização profissional e pelo consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus: “Ó Senhor! Ó Deus Eterno! De que vale a tua recompensa?” O sentido ético na vida do patriarca não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar (cf. Gn 12.13; 20.2), mas pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética, mas, ainda assim, faltava ao patriarca a experiência da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro. 




Abraão não está na situação do herói que deve escolher entre valores subjetivos e objetivos. Deus não está testando a sabedoria de Abraão. A força de sua fé fez com que Abraão optasse por Deus. 




Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre. No entanto, Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor. 




Por isso, o punhal de Abraão é o símbolo desse salto. É desespero e angústia. Mas o movimento da lâmina, que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um renascer, a um novo sentido de vida, ao encontro com o filho amado. 




Tudo o que a existência envolve de afirmação da fé não pode ser explicado pelo pensamento enquanto representação e significação. O conceito jamais dá conta das tensões e contradições que marcam a vida pessoal. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não podemos apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. 




Essa virtude teologal traduz adesão pessoal a Deus e combina reflexão e êxtase. É procura infindável e visão instantânea da verdade. É paradoxo: o pecado é condição da perdição, mas Cristo veio ao mundo para arrancar o ser humano de suas garras. Qualquer teologia que não leva em conta essas tensões, derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constitui fundamento adequado da vida. 




Quando nos colocamos diante de nós próprios e de nosso destino, olhamos um fato que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O paradoxo de Deus feito ser humano e o absurdo das circunstâncias do advento de Cristo. 




Cristo, Deus tornado ser humano, é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. 




Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da representação e significação do objeto pelo pensamento. Ela foi vivida pelo Filho de Deus, que morreu na cruz como criminoso. O acesso à verdade depende da crença no absurdo, pois, como afirma o apóstolo Paulo, “Deus pega os sábios nas suas espertezas”. É o absurdo que possibilita a verdade. Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do paradoxo e do absurdo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus. 




Em seu Diário, Kierkegaard escreveu em maio de 1843, época em que trabalhava no texto de Temor e tremor: 




“A fé, portanto, tem esperança nessa vida igualmente, mas apenas em virtude do absurdo, não por causa da razão humana; do contrário, seria meramente sabedoria mundana e não fé”. 




Assim, estamos diante do “duplo movimento do infinito”, que nos leva a romper com a finitude, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-la. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma relação negativa com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, agora positiva. 









Esqueceram de mim 





”Ó Deus, oramos por tua Igreja, que está vivendo hoje em meio às perplexidades de constantes mudanças e se encontra diante de um novo e grande trabalho. Lembramo-nos com gratidão de como ela nos nutriu no começo de nossa vida espiritual, das tarefas que ela nos deu para que ficássemos mais fortes, da influência que recebemos das pessoas que ela reúne e do poder constante do bem que ela exerce. Quando a comparamos com todas as outras instituições, nós nos alegramos, porque não há nenhuma outra que se iguale a ela. Mas quando a julgamos com a mente de seu Mestre, nos curvamos com piedade e contrição. Batiza-a novamente no Espírito de Jesus! Permite que ela renasça, ainda que para isso tenha de passar pelas dores de parto do arrependimento e da humilhação. Dá-lhe sensibilidade maior para seus deveres, compaixão mais intensa pelo sofrimento e lealdade total para com a vontade de Deus. (...) Dá-lhe força para aceitar a causa do povo e para reconhecer nas suas mãos, que tateiam em busca da liberdade e da luz, as mãos feridas de Cristo. Ordena que ela pare de procurar sua própria vida, para que ela não a perca. Dá-lhe coragem para se dedicar à humanidade, e, como o Senhor crucificado, que ela possa andar pelo caminho da cruz em direção a uma glória mais alta”. [Oração pela Igreja, Walter Rauschenbusch]. 


Em julho de 2002, os batistas do Estado de São Paulo realizaram a 94ª Assembléia da Convenção Batista do Estado de São Paulo. Fui convidado a falar sobre Brasilidade e Serviço Cristão: uma abordagem da capacitação do cristão no contexto brasileiro. Este foi meu discurso. 




Ao percorrer os caminhos da brasilidade, ao longo dos últimos cinco séculos, podemos encontrar as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam presentes hoje com tanta força como em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do cristianismo no Brasil, que no correr das últimas décadas parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos miseráveis e excluídos. 


No entanto, essas bandeiras emancipatórias são indissociáveis do cristianismo e da ética do amor cristão. E precisam ser vividas, enquanto tradução do cristianismo que professamos.
Ética cristã e democracia não são excludentes. Ao contrário, se completam e precisam ser vividas na Igreja e na denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto batista marque nossa presença no futuro da nação. 


Jesus respondeu: 


-- Um homem ia descendo de Jerusalém para Jericó. No caminho alguns ladrões o assaltaram, tiraram a sua roupa, bateram nele e o deixaram quase morto. Por acaso um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho. Quando viu o homem, passou pelo outro lado da estrada. Também um levita passou por ali. Olhou e também foi embora pelo outro lado da estrada. Mas um samaritano estava viajando por aquele caminho e chegou até ali. Quando viu o homem, ficou com muita pena dele. Chegou perto e fez curativos, pondo azeite e vinho nas feridas. Depois disso, colocou o homem no seu próprio animal e o levou para uma pensão, onde cuidou dele. No dia seguinte, entregou duas moedas de prata ao dono da pensão, dizendo: 




-- Tome conta dele. Na volta, quando eu passar por aqui, pagarei o que você gastar a mais com ele. 




Então Jesus perguntou ao professor da Lei: 


-- Em sua opinião, qual desses três foi o próximo do homem assaltado? 




-- Aquele que o socorreu - respondeu o professor da Lei. 




-- Pois vá e faça a mesma coisa - disse Jesus. (Parábola do bom samaritano, Evangelho de Lucas 10.30-37, versão da Bíblia na Linguagem do Hoje). 


Dentro dos limites possíveis, vamos trabalhar com a teorização produzida a partir da hermenêutica patrística, que chegou ao seu momento mais alto com a lectio divina e a lectio scolastica de Tomás de Aquino. Essa hermenêutica que ficou conhecida como quadrivium, parte da compreensão de que o texto ensina os fatos, a alegoria projeta em direção à teologia, o sentido ético mostra o que se deve fazer e o sentido anagógico aponta para o que tende a ser. 


Quadrivium é uma palavra latina derivada da junção de duas outras: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim, quatro vias, quatro sentidos, quatro caminhos. Quadrívio/quadrivium é então encruzilhada e, por extensão, lugar freqüentado, praça pública. Mas quadrívio é também hermenêutica. 


O sentido primeiro ou sentido literal do quadrívio apresenta fatos e acontecimentos. O sentido alegórico traduz verdades teológicas do texto percebido primeiramente em seu sentido literal. O sentido ético diz respeito àquilo que o crente deve fazer. E por último, o sentido anagógico aponta para os fins últimos, para a esperança escatológica. 


É claro que esses quatro sentidos formam um processo, que vão num crescendo, embora cada um dependa do outro. Assim, é preciso guardar-se da simplificação das categorias. 



Quando a exegese é fraca e desprezamos o sentido literal, o sentido alegórico que leva ao teológico tende a descolar-se da realidade produzindo conclusões disparatadas. E se não entendermos o sentido teológico, da mesma maneira, o fazer ético deixa de ser objetivo e prático. Por fim, quando não vivemos o sentido ético, o escatológico passa a ser um sonho, ou um pesadelo para alguns, por não ter relação com a vida cristã. 


A tomada de decisão na vida pessoal e social é uma exigência constante. Vivemos sob um bombardeio de encruzilhadas. Quando possuímos desejo de mudança, advindo dos erros cometidos, postura e atos mudam a vida até aqui levada. Invertem-se então os papéis. De qualquer maneira, é incontestável o defrontar-se com a necessidade de solucionar difíceis questões no correr de nossa vida. 


Nossas perplexidades diante das circunstâncias e do mundo têm sempre solução na encruzilhada da cruz, que nos apresentam caminhos novos a percorrer. Mas o sentido desse caminhar é desafiador. 




A encruzilhada surge quando precisamos percorrer os quatro caminhos que nos levam à mudança: a escolha de opções, a renúncia da indiferença, a renúncia do status quo e a escolha da pessoa. 


É preciso ter em mente que a partir do momento em que tomamos esse caminho, temos as opções práticas de escolha para a decisão. 


Quando estamos diante de um desafio, estamos também diante de alternativas de escolha, quer seja uma só ou várias. Toda opção exige liberdade de escolha, preferência, tomada de decisão. Por isso é tão difícil. 


Mas, diante da indecisão, temos de escolher dentre as opções a que melhor soluciona o desafio que se levanta diante de nós. Quando entendemos isso, já demos o primeiro passo no caminho das opções. E esse primeiro passo é um progresso. 


Quando tomamos uma decisão é preciso refletir até que ponto ela é inquestionável. Quando descobrimos sua incontestabilidade as dificuldades tornam-se mais fáceis de serem resolvidas, porque temos a convicção de que a melhor opção já foi tomada. Mas ainda faltam caminhos a percorrer. 


Renúncia a tomar posições é uma tentação presente em nossas vidas. É algo demoníaco e só se justifica em casos não vitais e passíveis de aprazamento. Muitas vezes, renunciamos à tomada de decisão quando ela nos parece traumática, não cabível ou impossível à primeira vista, assim protelamos porque nos traz um aparente conforto. Mas, na maioria dos casos, este é o pior caminho. Através dele ignoramos a decisão e optamos pela indiferença: fingimos que a decisão não se refere a nós e preferimos não enxergá-la. 


Normalmente, quando ignorarmos a decisão, a situação tende a se complicar ainda mais. Além, é claro, da possibilidade de sermos considerados covardes e irresponsáveis por aqueles que nos observam. 


Ao escolhermos a via da renúncia à indiferença, procuramos mudar o cenário da decisão a fim de mudar paralelamente as opções de escolha. Ao percebermos que as opções disponíveis não bastam ou não nos atende de maneira satisfatória, procuramos uma mudança nas premissas que estabeleceram a decisão. E é esta situação que nos leva ao terceiro caminho. 


Quando trilhamos o caminho das opções e avançamos através da renúncia à indiferença somos, muitas vezes, desafiados a fazer um terceiro caminho: percorrer a via da resignação da dignidade de posições aparentemente inquestionáveis. Renúncia aos privilégios do status quo é isso... Sacrifício para que possamos superar circunstâncias e tomar decisões. 


Quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o quarto momento do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano organizado. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical. 


É isso que Jesus nos ensina nesta belíssima parábola do Bom Samaritano. E é por isso que ele finaliza a história dizendo: 


-- Vá e faça a mesma coisa. 









Uma triste herança 





Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nele, mostrou que a escravidão - que durou mais de três séculos -- não constituiu um fenômeno a mais, mas deve ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 


Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. 


A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim, mas como igreja raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. 


O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão. 


O autoritarismo brasileiro é fruto de um longo processo histórico que relaciona escravidão, propriedade latifundiária e monocultura. Essas origens, oriundas do modo de produção colonial, serviram para aniquilar as reivindicações e conquistas dos setores populares e médios da sociedade em suas tentativas de levar à prática mudanças democráticas. 


Dessa maneira, a construção da democracia burguesa ficou pela metade, sem consolidar um projeto de cidadania e conquistar direitos civis para a maioria da população brasileira. Por seu caráter tardio, o capitalismo brasileiro repousa sobre os burocratas de Estado, que muitas vezes propõem mudanças a partir de cima. 


Mas, o dado estrutural relevante para a história da modernidade brasileira é a apropriação privada de um território de dimensões continentais apenas para valorização mercantil patrimonialista, sem que o uso social da terra e dos seus recursos naturais fossem levados em consideração pelos regimes republicanos. A questão da terra ligada à herança escravista forma a base social e política do autoritarismo brasileiro. 


Assim, para o pensamento autoritário brasileiro, ordem significa o domínio das classes proprietárias sobre a terra e sobre as pessoas, e progresso é acumulação de capital e poder. Nunca se constituiu, por isso, um consenso na sociedade civil sobre como governar de forma democrática o país. Tal situação manteve a miséria e reforçou a exclusão. 


O cristianismo, quando está comprometido com a vida, é uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana. Uma experiência que é em si mesma independente de formas sociais e econômicas. Nesse sentido, o cristianismo não deveria ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. 


Mas, ao mesmo tempo, tal cristianismo é portador de poder e deve oferecer uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para as pessoas, como para a sociedade. Exatamente por isso, apresenta-se como capenga aquele cristianismo que se fecha na pura interioridade. 


O cristianismo também não deve ser um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. 


A ética da vida leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Essa ética faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclama a necessidade de uma nova postura, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social. 


Essa ética denuncia o egoísmo pessoal e social, assim como as estruturas que mantêm e favorecem esse egoísmo, e que, em última instância, levam à exclusão de grandes parcelas de pessoas em nosso país. A ética da vida propõe uma parceria solidária onde a alegria não é fruto do lucro, mas do próprio trabalho. 


Da mesma maneira, a ética da vida faz a crítica do egoísmo de grupo, quando fechamos nossa igreja entre quatro paredes, para não ver, sentir e sofrer com a miséria e a exclusão de homens e mulheres, que para nós são apenas paisagens dos cenários urbanos e rurais. Essa ética condena o egoísmo que justifica a violência e o abandono. E, ao contrário, prega a submissão à idéia do direito à cidadania, à vida e à construção de uma consciência comunitária. 


Não somos os primeiros cristãos a viver os tempos difíceis. A igreja no correr de sua história viveu tempos terríveis. Mas agora, no terceiro milênio da história cristã, somos mais uma vez desafiados. E tendemos a oscilar entre dois perigos: a desesperança, ou seja, esperar que chegue rápido o clímax da história humana ou viver sem a esperança da parousia. Em ambos os casos caímos numa cilada, que é virar às costas para a realidade social. 


É impressionante notar que o Brasil ocupa um lugar de destaque em população cristã no mundo. O que pode ter um significado estratégico para a causa da justiça social. Mas para que isso aconteça é necessária uma compreensão da ética cristã da relação com o próximo. 


Omissão e indiferença, esses dois inimigos ameaçam o evangelho de Cristo. O primeiro deixa o amor ao próximo para depois, e o segundo está tão ausente que nem o próximo consegue enxergar. Por isso, precisamos desenvolver uma teologia que mostre às nossas igrejas que não existe cristianismo pleno sem compromisso social. 


O amor cristão parte da compreensão de Deus. Ele é o Deus da justiça, é o Deus da misericórdia. Os cristãos em comunidade formam a igreja e ela é o corpo de Cristo na terra. É através da comunidade cristã que se dá o exercício terreno da graça de Deus. 




Definida a necessidade de uma teologia e ética da vida, somos levados a estudar a viabilidade da prática dessa atividade cristã. 




É importante ficar claro que nossa responsabilidade social deve levar em conta dois princípios: a justiça e a paz. Está claro que toda decisão a favor da justiça exige não somente uma decisiva postura cristã, mas coragem para renunciarmos ao status quo. 


Posicionar-se no Brasil de hoje, a partir de uma ética da vida, implica em entender uma contradição essencial, que muito possivelmente só poderá ser resolvida no longo prazo: vivemos num país onde imperam a herança do autoritarismo colonial escravista, a ética da casa grande & senzala, e uma moral da sensualidade absoluta, a moral do "não existe pecado do lado de baixo do Equador, vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor". 


Do lado oposto, como cristãos, entendemos que o uso egoísta de bens e posses, a corrupção, a discriminação social e a degradação só produzem miséria e sofrimentos. Não dizemos que a pessoa brasileira está impossibilitada de criar e produzir coisas boas e belas, mas que esta ação, sem uma ética da vida, se torna efêmera. Assim, temos um brasileiro ambíguo, como o resto da humanidade, que produz uma cultura também ambígua, por vezes plena de beleza e criatividade, mas também maligna e destruidora. 


Nossa atuação no campo social implica em entendermos a realidade cultural e optarmos por trilhar a via dolorosa das opções, das renúncias e do encontro com nosso próximo. Só assim, a vida produzirá frutos perenes. Por isso, não falamos de um momento, mas de um processo, que crescerá conforme cresça também a consciência ética dos batistas, de que fomos chamados pelo Cristo para desenvolver uma tarefa histórica, juntos com os setores éticos da sociedade. E a tarefa é esta: transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a cidadania, à justiça e às condições dignas de vida. 


A cultura brasileira, fruto direto da escravidão, tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso. Isto se dá porque o dia-a-dia da pessoa brasileira está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do brasileiro é o transcendente. 


Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do brasileiro simples e pobre ao sofisticado e rico. No entanto, é preciso entender que o maravilhoso relacional da cultura brasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza, de índios e negros. A Contra-Reforma produziu genocídio indígena e escravidão negra, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. Mas nós batistas não ficamos longe disso, já que assimilamos e aceitamos como paisagem cultural a exclusão resultante da escravidão. 


A recuperação da história dos povos indígenas e do povo negro realizada enquanto tradição e cultura ligam-se à necessidade de conscientização da identidade brasileira. Aquele que esquece nega cultura e história, esquece, reprime, suprime. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é convocar e provocar, é transformar. 


Dessa maneira, reconhecendo o negativo da cultura relacional brasileira, que se traduz na tentativa de esconder as injustiças sociais, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir uma teologia que responda às necessidades da pessoa brasileira, compreender a identidade desses povos e suas buscas por felicidade e transcendência. 


Fruto dessa cultura relacional e da presença cristã estamos presenciando em nosso país a descoberta da realidade da vida espiritual e da dimensão religiosa. Diante disso, sugerimos a formulação de uma prática que deve partir de duas tarefas: uma de negação e outra de afirmação. 


A negação consiste em realizar a crítica da tendência à privatização da igreja. O Iluminismo rompeu a unidade entre existência religiosa e existência social. Por isso, a igreja acabou por refugiar-se na esfera do privado. Privatizou a mensagem da salvação e reduziu o exercício da fé à pessoa separada da vida social e do mundo em que vive. Para a consciência batista, determinada por essa teologia, as realidades sociais e políticas têm apenas uma existência efêmera. As categorias que essa teologia utiliza para explicar a mensagem cristã são as categorias do íntimo, do privado, do não social, do não político. A afirmação consiste em desenvolver as implicações sociais da mensagem cristã. Não se trata de dar as costas ao problema levantado pelo Iluminismo, mas em responder teologicamente aos desafios, assumindo a tarefa de desenvolver uma nova relação entre teoria e prática. A igreja pode e deve fazê-lo, pois as promessas escatológicas da tradição bíblica, de liberdade, de paz, de justiça e de reconciliação, não constituem um horizonte vazio na expectativa cristã, mas têm uma dimensão política, que é preciso fazer valer na sua função crítica do processo histórico-social.

Assim, na elaboração de uma prática batista, à igreja cabe a tarefa de proclamar o evangelho da salvação, exercendo função crítica diante da sociedade. A igreja pode e deve assumir essa tarefa. Esta tarefa deve ser exercida na defesa da pessoa e de sua pessoalidade -- que não podem ser vistas como paisagens de um cenário -- e na mobilização do poder crítico do amor que está no centro da tradição cristã. 


A função crítica dos cristãos frente à miséria e exclusão produzirá repercussões na própria igreja: promoverá uma nova consciência no interior da igreja e criará uma transformação das relações da igreja com a sociedade. 


Mas, se deve existir uma ação para fora, deve também existir uma ação para dentro. Isto porque, herdamos em nossas relações sociais, religiosas e denominacionais o padrão autoritário. Tal padrão nos leva a transformar, conscientes ou não, a democracia em discurso ideológico, sem tradução prática para o conjunto da denominação, que não tem como eleger democraticamente, por voto direto e universal, os executivos de nossas empresas eclesiais, definir mandatos, propor programas e apresentar candidaturas, chapas e programas para essas empresas e suas gestões. Reproduzimos assim o padrão autoritário, impossibilitando que jovens participem dele, que a criatividade e gente melhor capacitada participem do processo democrático da gestão e governo da denominação e suas empresas. 


Por isso, podemos dizer que a ética da vida, a democracia e a transparência não são excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vividas também nas empresas da denominação, se desejamos fazer a diferença, fazer com que o significado histórico do projeto evangélico marque presença no futuro da nação. 


Afinal, quando nos deparamos com circunstâncias adversas, é fundamental que a escolha de opções e nossas renúncias nos levem à pessoa. É claro que os fatores externos precisam ser levados em conta, a mudança dos paradigmas pessoais é prioritária, mas se permanecermos neles como únicas bases para nossa escolha, o futuro será implacável. A criatura humana, imagem de Deus, ser consciente de si mesmo, senhor dos seus atos e, por isso, responsável por eles, é o momento especial do quadrívio. Mas, esta pessoa é também unidade social que se expressa no agrupamento humano, denominacional ou não. No caminhar, o caminhante faz o caminho. E esta é uma questão radical. 












Armínio e Spielberg falam de escolha 





A nova lei, as tecnologias de informação -- computadores, engenharia genética e neurologia -- encontraram sua tradução teológica no filme de Steven Spielberg, “Minority Report”. O filme procura estabelecer um jogo entre constante e variável no mundo daqui a cinquenta anos. As pessoas se vestem como nós, a arquitetura é parecida, a tecnologia do dia-a-dia não é muito diferente e os Estados Unidos continuam os mesmos, ou seja, o ideal social é lúdico e as pessoas buscam o sucesso. “É ilusão, é ilusão, diz o sábio. Tudo é ilusão”. (Eclesiastes 1.1) 


Mas, a discussão de fundo colocada por Spielberg gira ao redor do alcance da liberdade humana. Será que ela existe? Tomás de Aquino (1225-1274) e seus seguidores achavam que sim, entrelaçando a questão da liberdade de escolha com a capacidade da razão. Para ele, a razão tinha essa possibilidade. Assim, partindo da análise indutiva do mundo, do tempo e do espaço, o ser humano teria todas as condições para construir um conhecimento natural, onde, através da razão, as verdades poderiam ser apreendidas na natureza, no humano e no que se referia à própria revelação. 


Esse racionalismo indutivo, que partia da lógica aristotélica, soou como heresia para os reformadores do século 16. Mas foi Immanuel Kant, mais cientista do que teólogo, quem rechaçou as proposições tomistas, dizendo que é impossível conhecer Deus e sua realidade, dando origem ao fideísmo ou irracionalismo cristão. Fideísmo é o termo técnico da teologia que nega à razão condições de conhecer a verdade religiosa. Para os fideístas, a fé só pode ser compreendida através da experiência religiosa. Assim, o fideísmo considera que a razão é incapaz de estabelecer a certeza da fé. Expoentes do pensamento reformado, como Lutero, Schleiermacher e Karl Barth são considerados fideístas. 


Temos, então, duas visões que se opõem: o racionalismo e o fideísmo. E aqui, no fio da navalha, se movimenta Spielberg com uma leveza de criador. Mas, para entender essa discussão de fundo, que é feita em Minority Report, somos obrigados a analisar a relação entre revelação e liberdade humana. Se há uma revelação universal, que é, como acreditamos, a automanifestação de Deus a todas as pessoas, em todos os tempos e lugares, objetiva, e que apresenta a partir do cosmológico, do ontológico e do antropológico um conhecimento universal, será possível a existência de pessoas com poderes de vidência, capazes de visualizar assassinatos antes que sejam praticados? Para Spielberg e para a engenharia genética, sim, é possível. 




Assim, Spielberg parte do atual conhecimento humano e faz projeções: estamos, então, diante de pre-cogs. Esses videntes desenvolvidos pela ciência não veriam as coisas como num filme, com enquadramento e cortes, mas como faz o olho humano, que vê em círculos. E mais uma vez, sem pedir permissão, Spielberg discute teologia, mais especificamente visão profética e escolha. 


A discussão entre razão e revelação guarda em seu bojo a discussão da extensão da liberdade humana. E esse é o tema recorrente do Minority Report. Aliás, tal debate vem desde os primeiros séculos, quando Justino Mártir afirmou que o homem, por ser racional e livre, é responsável por seus próprios atos. Mais tarde, essa discussão tomou corpo com Pelágio e Agostinho. Pelágio afirmava que a humanidade retinha sua liberdade de escolha, podendo optar entre o bem e o mal. Agostinho discordava. Para Agostinho, querendo ou não o ser humano sempre expressaria a natureza pecaminosa herdada dos pais da humanidade.

A partir da crítica que a Reforma faz ao racionalismo tomista, o assunto volta à tona. Só que será feita sob novos prismas. Qual é o destino que Deus reservou ao ser humano? Assim, a discussão entre razão e revelação, liberdade e depravação do homem levam o tema do destino.

Em Minority Report, Spielberg e sua equipe investigam a natureza do crime, podemos dizer do pecado, a tecnologia e o destino com um sentido de aventura e um toque de mistério característico dos filmes noir da década de 1940. Spielberg explica: "Quero abordar temas em que nunca havia tocado. Estou numa fase de experimentação, testando coisas que me desafiem. Minority Report -- A Nova Lei é um verdadeiro mistério. As questões são 'quem foi?' e 'quem irá fazer', e você é envolvido pelo clima. É também uma história muito humana sobre um homem que passou por uma tragédia e está tentando superá-la". 


Não podemos esquecer que Spielberg trabalhou com um grupo que reunia cientistas do MIT (Massachusetts Institute of Tecnology) como John Underkoffler. Durante três dias, instalados num hotel em Santa Mônica, na Califórnia, discutiram o mundo dentro de cinqüenta anos. E junto com os cientistas estavam os realizadores do filme, o roteirista Scott Frank, o desenhista de produção Alex McDowell e sua equipe. Segundo o desenhista de produção, sentaram para discutir como será a sociedade daqui a 5, 10, 20, 30 anos. As conversas englobaram de tudo, avanços na medicina, como as pessoas irão escovar os dentes, transportes, planejamento urbano, arquitetura e arte. 


Nessa análise de Minority Report vamos recorrer a um teólogo, que por ter fornecido elementos para o pensamento iluminista, fornece instrumental teórico para se entender Spielberg. Alertando, no entanto, que seu pensamento não é consenso entre os intelectuais cristãos. 


Para Jacó Armínio (1560-1609), a questão do destino humano precisa ser encarada a partir do papel da graça, que se opõe à alienação humana. Para Armínio, o destino está condicionado à graça -- encontro e conjunção entre o divino e o humano que produz sentido e plenitude de vida. É confluência e presença. Assim, a graça ilumina a inteligência e move a vontade no sentido do bem. Em sua Declaração de Sentimentos apresentada ao sínodo da igreja holandesa em 30 de outubro de 1605, ele afirmou que Deus não destina ninguém para a danação. E explica que Deus escolheu seu Filho como Salvador, para mediar a favor daqueles que se arrependem e crêem em Cristo, e para administrar os meios eficientes e eficazes para a fé de cada um deles. 


Voltando ao filme, é interessante ver que antes de olhar seu próprio rosto no Pré-Crime, Anderton nunca tinha se questionado acerca das implicações decorrentes da captura e prisão de pessoas anteriormente à prática dos crimes. Tudo se baseia na presunção de que o Pré-Crime, o que inclui os pre-cogs, não se engana. 


Spielberg ressalta que Anderton se encontra no meio de duas jornadas: "Uma é a jornada física da descoberta das pistas que irão redimi-lo ou mostrar que ele vai realmente matar. A outra é uma jornada interior, um conflito emocional. Por isso, cada cena tem uma dupla conotação. Isto torna este o papel mais estimulante que Tom Cruise já interpretou, e acho que ele se saiu maravilhosamente bem". 


Na verdade, consideramos que toda a tensão entre destino irremediável ou destino condicional está presente em Minority Report e leva à discussão graça e escolha. Teologicamente, ou melhor, partindo do destino condicional proposto por Armínio, tomamos por base o arrazoado que o apóstolo Pedro faz em sua segunda epístola, explicando esta questão. Ele mostra que a graça não está limitada pelo destino, pois Deus não quer a destruição, mas que todos cheguem à rejeição sincera do comportamento pregresso. 




A graça tem eficácia plena, mas há uma chave que é a contrição. A expiação deve ser somada à contrição pelo mal anterior e presente, produzindo então a vida. A expiação embora seja universal, sem a metanóia diante do mal existencial e presente não produz vida. Quando essa função não se realiza, a expiação sem o arrependimento produz justiça. 


Assim, o valor da expiação não tem limites, mas sua aplicação sim. O destino humano é a vida, mas a escolha é própria. Por isso, Armínio diz que Deus decreta a salvação e a condenação de pessoas em particular com base no conhecimento divino da fé e da perseverança de cada uma. 


Spielberg e Tom Cruise buscaram em Minority um projeto no qual pudessem trabalhar juntos. Foi um caminho longo. Quando filmava De Olhos bem Fechados, filme do diretor Stanley Kubrick, uma adaptação da história de Philip K. Dick chamou a atenção de Tom Cruise. Ele a enviou para Spielberg e o retorno do diretor foi imediato. "Ele ficou entusiasmado. É uma excelente história", conta Cruise. 


Minority Report era um projeto da Fox cobiçado por diversos realizadores. Depois que Tom Cruise enviou para Spielberg a adaptação da história escrita por Jon Cohen, o diretor leu o conto de Dick, intitulado The Minority Report, e convidou o roteirista Scott Frank para adaptá-lo. 


A história de Dick tinha sido publicada pela primeira vez em 1956, na revista Fantastic Universe. O autor de ficção científica escreveu centenas de contos entre as décadas de 1950 e 1960, porém nunca foi bem-sucedido comercialmente. Dick morreu antes da conclusão do primeiro filme baseado numa obra sua, Blade Runner, de Ridley Scott, filme que marcou minha geração e levantou questões que permanecem atuais, como a construção de pessoas e nosso relacionamento ético e social com elas. 


Minority Report revela um mundo que não tem o visual futurístico tradicional de um filme de ficção científica. Mostra um desenvolvimento do mundo de hoje. Vale a pena discutir teologicamente as questões levantadas por Spielberg. 












As fronteiras da igualdade e da liberdade 




”Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”. 


Esses versículos Paulo são a chave para se entender a carta do apóstolo aos gálatas. A partir dela que Paulo fala sobre a possibilidade da superação das desigualdades raciais e religiosas, sociais e de gênero. E o argumento de Paulo é a unidade em Cristo, que possibilita a igualdade, liberdade e conduz à unidade na diversidade. 


Assim, Gálatas 3.26-28 propõe abertura de fronteiras, superação de conflitos e antagonismos que dividem a igreja e, por extensão, as comunidades. Paulo apresenta questões desafiadoras. Igualdade e liberdade desafiam a igreja de hoje, quando leituras tendenciosas fazem perigosas leituras da eclesiologia e do evangelho. As diferenças culturais, econômicas e sociais, assim como as de gênero, estão presentes nas comunidades. Por isso, reler Gálatas, a partir do argumento de Paulo, pode ser libertador e restaurador da vida em comunidade. 


Igualdade e liberdade desafiavam a igreja cristã nas comunidades da Galácia do Norte. Havia conflitos e estes eram gerados por diferenças de gênero, raciais e sociais. Mas Paulo acreditava que podiam ser superados através da unidade em Cristo. Assim, propõe a superação dos limites impostos por condições sociais, raça e sexo e propõe à igreja um fundamento de unidade que tenha por base Cristo. Ou seja, será através dele que se construirá uma vida comunitária sem discriminações, onde todos e todas tenham as mesmas possibilidades. 


A abrangência do argumento de Paulo nos leva a uma reflexão sobre três assuntos que estão imbricados na abertura de fronteiras: igualdade; liberdade e unidade em Cristo. Obriga-nos a repensar às questões de etnia, escravidão e gênero. E a apresentar ao país propostas de equidade, paridade, direitos e oportunidades, de liberdade, de tal forma que cada pessoa possa dispor seu arbítrio, em pleno gozo dos direitos de ser dependente diante de Deus e de ser autônomo diante sua consciência, com direitos garantidos de existência e vida. 


E isso me faz lembrar Bultmann, quando diz: 


"Ao homem que se lamenta: 'Não consigo ver significado na história, e, portanto, minha vida, entrelaçada com ela, também é destituída de significado', respondemos: não fiques olhando ao redor de ti, para a história universal, mas olha para tua história pessoal. O sentido da história sempre está contigo no teu presente, e tu não podes vê-lo como mero espectador, mas somente em tuas decisões responsáveis. Em cada momento dorme a possibilidade de vir a ser o momento escatológico. Cabe a ti despertá-la". 


Esta é a mensagem de Paulo aos gálatas, ontem, e para o Brasil, hoje: Se formos um só em Cristo -- e é isso que deve ser buscado --, nem a igreja, nem a comunidade humana podem estar divididos entre judeus e palestinos, entre miseráveis e poderosos, entre homens e mulheres. 









Quanto pesa a sua alma? 







"O meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que eu vá, é ele quem me leva. O Teu dom inflama-nos e arrebata-nos para o alto. Andamos e partimos. Fazemos ascensões no coração e cantamos o cântico dos degraus”. 




Este texto não é somente belo. Mil e trezentos anos antes de sir Isaac Newton, Agostinho intuía que há coisas tão leves, que sobem, ao invés de cair. E que todas as coisas só encontram o repouso quando estão no lugar que deveriam estar. 




Para Alejandro González Iñárritu que dirigiu o filme “Vinte e um gramas” a vida é uma história de esperança: você pode ter medo da morte, mas ela virá e, nesse instante, seu corpo se tornará 21 gramas mais leve. E por isso coloca-nos a pergunta: será que é a alma que pesa esses 21 gramas? 




Para Agostinho, teólogo da igreja cristã, "o corpo, devido ao peso, tende para o lugar que lhe é próprio, porque o peso não tende só para baixo, mas também para o lugar que lhe é próprio. Assim, o fogo encaminha-se para cima e a pedra para baixo. Movem-se segundo o seu peso. Dirigem-se para o lugar que lhes compete. O azeite derramado sobre a água aflora a superfície. A água vertida sobre o azeite submerge debaixo deste. Movem-se segundo o seu peso e dirigem-se para o lugar que lhes compete. As coisas que não estão em seu lugar próprio agitam-se, mas quando o encontram, ordenam-se e repousam". 




Ora, se tudo tem um peso, por que não a alma. E se a alma tem um peso, o que a leva para cima ou para baixo? Segundo Agostinho, repousamos no dom do Espírito, que é o nosso descanso, é o nosso lugar. É para lá que o amor nos arrebata e que o Espírito levanta o nosso abatimento desde as portas da morte. 




O filme Vinte e um gramas explora a existência física e emocional de três casais. O professor universitário Paul Rivers e sua mulher Mary vêem o seu casamento oscilar entre a vida e a morte enquanto ele aguarda um transplante de coração. O ex-presidiário Jack Jordan e sua mulher Marianne lutam para criar os dois filhos, enquanto Jack reafirma seu compromisso com a igreja. Cristina perde o marido Michael Peck e suas duas meninas num acidente trágico que entrelaça destinos e os levará às profundezas da vingança, aos limites do amor e à promessa da redenção. 


Assim, Paul, Cristina e Jack são colocados ante a realidade da morte. E ela pesa de maneiras diferentes na vida de cada um. Mas, diante da morte, para que a esperança se faça presente, a vida deve renascer. 




Vinte e um gramas é o peso de cinco moedas de cinco centavos, de um beija-flor e, talvez, da alma humana. 




O filme vale a pena, embora pese muito mais que 21 gramas. Mas, ao sair do cinema, não esqueça que o seu peso é o amor, que nos puxa para cima. Ou, como diz Agostinho: 




"É o Teu fogo, o Teu fogo benfazejo que nos consome, enquanto vamos e subimos para a paz da Jerusalém celeste. Regozijei-me com aquilo que me disseram: iremos para a casa do Senhor. Lá nos colocará a boa vontade, para que nada mais desejemos senão permanecer ali eternamente". 





















Lições da apocalíptica 







O filósofo francês Jean Baudrillard, num simpósio sobre o fim do milênio, afirmou que a engenharia genética anuncia a iminente aparição do homem artificial. E perguntou: o que são os seres humanos? O que acontece com o real quando ele é substituído? O que ocorre com o corpo quando ele se torna inútil? Teremos um corpo de síntese? 




O mundo, para Baudrillard, se converteu numa Disneylândia onde o real foi substituído pelo virtual. As transformações dos últimos anos permitem dizer que este milênio "mudará as regras do jogo, mas não sabemos em que direção". Baudrillard acredita que catástrofes se avizinham. 




Para o teólogo luterano, Hans Georg Gadamer, o que pode nos salvar das catástrofes é o respeito pela fé diferente da nossa, mas o caminho para a salvação tem inimigos dentro e fora da Igreja. 




"Penso no respeito dos não religiosos para com as religiões, mas, sobretudo, no respeito das religiões entre si, como um meio para salvar o planeta da guerra e da ruína”, afirmou Gadamer, hermeneuta e autor de “Verdade e Método” publicado pela Editora Vozes. 




Tais preocupações sobre situações limites nos levam à apocalíptica, agora sem a paranóia de final de milênio, mas à leitura sobre a viabilidade da existência. Assim situações de risco nos remetem às antigas questões escatológicas. 




Essas questões surgiram com extrema força no antigo Israel, durante o período macabeu, e traduziram um tipo central de preocupação: qual o destino humano e quando terminará o caos na história? 




Naquela época, as guerras e as transformações sociais vividas por Israel levantavam questões éticas e políticas. Durante aqueles anos de crise generalizada, a visão espiritual rompeu suas cadeias formais e permitiu uma produção multifacetada até então inédita na história judaica. Esse processo de produção de novas idéias pode ser dividido em três grandes grupos: nacionalista, de sabedoria e apocalíptico. Mas para nós, nesse momento, interessa em especial o terceiro deles. 



Para falar da apocalíptica é preciso entender que a visão profética clássica nasce de uma compreensão do momento presente. O profeta clássico tem sempre um conhecimento da dialética do presente e, chamado por Deus, apresenta sua vontade aos seus concidadãos. Mas, o profeta não é apenas um analista crítico e sim alguém que prega uma postura de vida correta. Nesse sentido, a profecia clássica sempre foi um exercício ético. 



A história de Israel sob os macabeus foi uma história de crise social. Tempo onde a memória emergiu com radicalidade: Ele está ao lado do perseguido e contra o perseguidor. Essa memória se transformou numa visão global da história. E não nasceu da acomodação, nem da alienação diante da injustiça, mas da compreensão do momento presente e da vontade de Deus para o povo. 



Sem dúvida, Deus falou através de sábios e mestres, mesmo quando estes, para evitar a perseguição e o martírio, reeditavam antigos manuscritos, traduziam histórias, memoriais, e omitiam seus verdadeiros nomes. Durante todo o período, antigas promessas foram apresentadas com novos detalhes. Avivado pela palavra profética o povo tomou conhecimento da revelação. E se há na história de Israel uma construção correlacional entre conhecimento e fé, no período macabeu fortaleceu-se esse processo desigual e combinado, onde aspectos até então pouco definidos emergiram com claridade. 



Dessa maneira, encontramos uma visão profética, resgatada da memória dos textos bíblicos antigos que alcançará seu momento de maior expressão com a literatura apocalíptica. 



Na época dos Macabeus, que vai da ascensão dos selêucidas até 67 antes de Cristo, circularam importantes apocalípticos apócrifos: Judite, 2Esdras e Baruch;, pseudo-epígrafos: A Carta de Aristéias, O Livro dos Jubileus, Os Oráculos Sibilinos, Enoque etiópico e o Testamento dos Doze Patriarcas; e um canônico: o livro de Daniel. 




Foram os choques durante os três anos em que o templo foi um santuário pagão, com o banimento do judaísmo, que abriu caminho para esse livro peculiar, o mais estudado do período, enquanto literatura apocalíptica: Daniel. 




Caso situemos o livro de Daniel no período macabeu, enquanto edição de antigos fragmentos do período babilônico, organizados e contextualizados, o capítulo onze descreverá as guerras entre lágidas e selêucidas e as investidas de Antíoco IV Epifânio contra Jerusalém e o templo. Aqui, ao contrário do que aconteceu na profecia anterior, o autor descreve detalhes querendo demonstrar que é testemunha ocular. Dessa maneira, a última edição do livro de Daniel deve ser situada no período da perseguição de Antíoco IV Epifânio, entre os anos de 167 e 164 antes de Cristo. Convém notar que Daniel, para a tradição judaica, é um sábio e não um profeta, e por isso seu livro está incluído nos escritos, ketuvim, e não nos profetas, neviim. 



Os capítulos sete a doze de Daniel são chamados de “vaticinia ex eventu”, porque o autor testemunhou os fatos que descreve. Esses capítulos são uma reação contra a helenização da Judéia e contra as perseguições em curso, mas, paradoxalmente, também uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica. 



A partir da segunda metade do livro, o editor ou grupo de editores trabalharam sobre dois temas registrados na primeira metade: fidelidade e martírio. 



Não é nossa intenção aqui analisar os capítulos finais do livro de Daniel, que permitem diferentes interpretações, quer para judeus como para cristãos, mas entender a característica dessa literatura. Como a profecia anterior, o apocalipse é uma promessa de vida diante da catástrofe. Mas, sob vários aspectos, é uma revolução de forma e conteúdo da experiência revelatória do judaísmo anterior. 




Os profetas clássicos, por exemplo, falavam à sua própria comunidade, o que requeria imediatas escolhas políticas e éticas. Para eles, o futuro permanecia aberto, porque a decisão de Deus poderia mudar, caso as pessoas mudassem. 



Os apocalípticos, no entanto, encaram a história como um processo fechado, vendo a sua era como derradeiro elo de eventos que se desenrola em seqüência pré-ordenada. As visões de Daniel implicam uma divisão tripartida da história do mundo. 



Em primeiro lugar, há o período que vai da formação de Israel, seu estabelecimento em Canaã, até a destruição de seus reinos e do primeiro templo. O segundo período, que se entremeia ligeiramente com o primeiro, era o tempo dos quatro impérios mundiais. O terceiro período, que se sobrepõe ligeiramente com o segundo, é escatológico e derradeiro: o clímax da história. 



Ao contrário das promessas escatológicas da profecia clássica, que viam um “fim dos dias” no futuro distante, o autor apocalíptico crê que a meta está ao seu alcance: está aqui o fim da dominação pagã, a completa salvação de Israel, a manifestação final do reino Deus na terra. O escritor apocalíptico oferece um panorama muito mais amplo da ascensão e queda de vastos impérios, mas seu interesse em relação ao mundo real e imediato é muito menor que o do profeta clássico. Seu olho focaliza outro mundo. 



Outra diferença entre a profecia clássica e a literatura apocalíptica envolve sua proximidade com o reino do céu. Os profetas clássicos, com exceção de Ezequiel, eram reticentes nos relatos do que viam durante a revelação. Sua tarefa principal era comunicar a ordem oral e não apresentar uma descrição visual da corte divina. Já o apocalíptico descreve suas visitas ao céu com pormenores, mencionando os anjos pelos nomes e falando dos palácios, sala do trono e membros da corte celestial que cercam o divino rei. 



O ponto mais importante de contato entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. Anteriormente, foi a idéia de inacessibilidade que levou às meditações de Eclesiastes sobre a ilusão do esforço humano. Agora, a literatura apocalíptica traduz essa ordem em plano providencial de Deus para a história. 



A preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não cessa com a história. O poder de Deus não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia política é tanto pessoal como histórica. Assim, o capítulo 12 de Daniel é o primeiro texto canônico a referir-se claramente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos” (Dn 12:2). No final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre” (Dn 12:3). 



É importante notar que é no período macabeu que a idéia da ressurreição toma corpo, a ponto de transformar-se numa idéia-força do judaísmo popular. A fé na ressurreição aparece de forma muito clara em 2Macabeus 7.9 e 14.46 e é o fundo da história do martírio dos sete irmãos (2Mc 7.11, 14, 23, 29 e 36). Antes, só temos em todo o Primeiro Testamento dois versículos que falam da ressurreição (Isaías 26.19 e Jó 19.26ss). 



Três outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica da época, embora apócrifos e pseudo-epígrafos, são os livros de Enoque, 2Esdras e Baruch. 



Enoque é uma obra longa, uma edição de vários fragmentos, da qual certas partes podem ser até anteriores a Daniel. No correr do livro, o narrador Enoque (Gn. 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. O livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino humano, e uma seção chamada Similitudes, referente ao eleito ou Filho do Homem, que será mandado por Deus nos últimos dias para julgar a humanidade. 




Em 2Esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre Israel, o aparente abandono em que Deus deixa o povo e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. Um anjo dá a Esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo para que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias. 



Baruch, de quem se diz ter sido escriba de Jeremias, trata de questões similares. Contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a Lei, um trecho profético, onde Jerusalém personificada se dirige aos judeus da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas. 




A importância dessa coleção de textos sob o nome de Baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com Jerusalém, pela oração, pelo culto à Lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico. 



Assim, os diferentes textos apocalípticos nos levam à discussão do destino humano frente às situações-limite e apresentam uma mensagem de esperança, através de simbolismos singulares e forte escatologia, onde o mal é vencido e o bem prevalece no cenário cósmico. 



Essa característica diferencia profecia e apocalipse. A profecia é sempre uma palavra dita em nome de Deus, “propheemi”, dizer em lugar de. Nem sempre focaliza o futuro, refere-se às situações do presente, procurando sacudir as pessoas de sua indiferença ou da hipocrisia de vida, levando-as a conduta moral digna e correta. A profecia tem um caráter moralizante, válido para os contemporâneos. 



Nos apocalipses desaparece a índole moralizante: o que preocupa são os acontecimentos finais da história, que redundarão em derrota do mal e vitória do bem. As visões, os sonhos e os símbolos, que os profetas já cultivavam, tornam-se elementos dominantes na forma literária dos apocalipses. 



Assim, durante o período macabeu idéias novas afloraram em meio à vida judaica. Podemos citar o ressurgimento da figura da mulher, com a história de Judite e a personificação da Sabedoria (Eclesiástico 24), o casamento monogâmico, o banho batismal e elementos de uma teologia do Espírito. Mas, sem dúvida, duas idéias revolucionaram o judaísmo: 



A ressurreição, recompensa maior diante da catástrofe; e a figura do Messias, promessa da autoridade profética restauradora da justiça. 



Essas duas idéias deram vida nova ao judaísmo, fazendo com que transcendesse às formalidades das leis e rituais. A partir desse momento, surgiu um judaísmo da pessoa comum, cheio de fé na aparição iminente do Messias e na recompensa divina através da ressurreição. Esse judaísmo ocupou as ruas, subiu os montes, fugiu para o deserto. E diante de situações-limite transmitem esperança a todos nós. 



E assim, porque a esperança escatológica responde ao risco da existência, relemos Moltmann: “Agora poderá se cumprir o que há muito fora prometido, agora poderá se realizar o que há muito tempo se esperava. Este é o pathos messiânico com que se acolhe e se batiza ‘a modernidade’. Agora se realizará o que Gioachino di Fiori predissera: a idade das luzes é a “terceira vinda do Espírito". Agora o homem se torna capaz de dominar a terra e por isso também de restabelecer aquela semelhança com Deus que havia se esmaecido por sua culpa. A glória reflete ainda uma vez a sua luz: esta é a idade das luzes, o momento do êxodo definitivo dos homens da sua ‘minoridade culpável’ para o exercício livre e público da própria razão". 






A assembléia do deserto 







Uma jovem de jeans, no meio de um grupo de moças e rapazes, se aproxima: é Christine Mielke, jovem pastora da Igreja Reformada, originária de Heildelberg, que no exercício de seu ministério pastoral vai realizar batismos nas paróquias de Mialet e Saint-Jean-du-Gard. Ela, como quase todos aqui, conhecem o drama dos huguenotes de Les Cèvennes. Christine cursou a Faculté Protestante de Théologie em Montpellier. 




Aqui em Les Cèvennes, frequentemente, há reuniões de pastores e comunidades originárias desta região conhecida pelos protestantes como o « país do refúgio ». Mas um dos acontecimentos mais importantes é, sem dúvida, a Assembléia do Deserto, que acontece no verão. Pastores de regiões e países diferentes, na maioria francofônicos, reúnem suas comunidades para cultos conjuntos. Todos de origem reformada, mas que com o passar do tempo se tornaram diferentes, às vezes no que se refere à liturgia, às vezes no que se refere à teologia. Por isso, a Assembléia do Deserto é tão importante, permite redescobrir a fé comum, presente na resistência dos séculos 17 e 18, e no estabelecimento do protestantismo no século 19. 




Embora a grande maioria dos fiéis presentes reconheça suas raízes huguenotes, que deu origem entre outros aos presbiterianos e à própria Igreja Reformada francesa, mas também, por influência indireta, à Igreja Reformada evangélica, aos metodistas, adventistas, Exército da Salvação, pentecostais e darbistas, se dirige à Assembléia do Deserto não muito preocupados com essas origens. Assim, todas as tendências do protestantismo europeu se fazem presentes em Cèvennes, no verão, para adorar a Deus, realizando cultos nas cidades de Anduze, Saint-Jean-du-Gard e Alès, em reuniões de até 900 pessoas, o que é um número expressivo quando nos referimos à Europa. 




Até os pentecostais de hoje se sentem próximos às manifestações inspiradas dos antigos profetas “cèvenols”. Uma dessas correntes pentecostais que reivindica a tradição profética “cèvenol” é a Mission Timothè, que inquieta os mais tradicionais. 




Quando falamos de “camisards”, temos que voltar ao levante popular, originado com a revogação do Édito de Nantes, em 1685, que deu início a uma violenta perseguição à fé reformada. Os templos foram fechados, os cultos proibidos, pastores obrigados pela força a se converter ao catolicismo ou a fugir para o exílio. Os huguenotes que não fizeram o caminho do exílio para a Suíça, Alemanha, Países Baixos ou Inglaterra, se refugiaram nas montanhas e nas florestas, formando as primeiras Assembléias do Deserto. 




Nessa época, se desenvolveu entre os crentes um interessante fenômeno espiritual: o profetismo, que levou camponeses, mulheres e crianças a profetizar, a anunciar acontecimentos extraordinários, chamando à resistência. Em resposta ao testemunho da fé protestante, os “dragonnades”, dragões do rei, católicos arregimentados, atacaram com maior violência ainda os fiéis protestantes. 




Na noite de 24 de julho de 1702, um pequeno grupo de protestantes, liderados pelo profeta Abraham Mazel e por Pierre “Esprit” Séguier atacaram a abadia de Chala. A intenção era libertar um grupo de jovens presos em Pont-le-Monvert. A abadia era também residência do inspetor das missões católicas de Les Cèvennes, a serviço da diocese de Mende, famoso pela perseguição sem piedade que fazia aos protestantes. Nessa noite a abadia foi massacrada. 




Como esses ataques guerrilheiros dos protestantes aconteciam, em geral, à noite, os jovens combatentes costumavam vestir uma camisa branca para serem reconhecidos por seus companheiros durante os combates. Do uso dessas camisas brancas veio o nome “camisard”, que hoje é sinônimo de “maquis”, resistente. Essa guerrilha foi amplamente apoiada pela população de Les Cèvennes e foi crescendo numa sucessão de vitórias. 




Diante das derrotas sistemáticas, no final de 1703, o governo decidiu incendiar todas as vilas, cidades e fazendas que pudessem apoiar os camisards. Em 1704, o profeta Roland foi morto, e, em 1710, o mesmo aconteceu com Abraham Mazel. Mas a igreja protestante resistiu e se reorganizou. Em 1787, com o Édito da Tolerância, depois, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem, e, em 1791, com a adoção da liberdade de culto pelo governo francês, os protestantes após cem anos de resistência puderam adorar a Deus a seu modo. 




E se você vier a Les Cèvennes, no verão, participe dos cultos da Assembléia do Deserto e não se esqueça de fazer uma visita ao Museu do Deserto, na comuna de Mialet, cidade natal de Pierre Laporte, o camisard Roland. O museu, através de objetos usados nos cultos e da vida cotidiana, é um impressionante documento da resistência dos protestantes à perseguição sofrida entre os anos de 1685 a 1789. Para os estudantes de Ciências da Religião é interessante pesquisar a coleção de hinários e de Bíblias antigas do museu. 




É importante esclarecer que esses acontecimentos se deram numa época de intolerância religiosa, que não nos autoriza ao ódio contra os católicos. Devemos sim defender a liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, deixando que o Espírito toque os corações. E, como os irmãos que hoje se fazem presentes à Assembléia do Deserto, agradeçamos a Deus por sua fidelidade, por ter mantido viva a igreja protestante na França. 






Entre o céu e a terra 







A teologia é uma construção racional, lógica, que parte de dois princípios: o princípio arquitetônico, que é a revelação, a palavra de Deus; e o princípio hermenêutico, instrumental, que fornece equipamento técnico para a análise do texto escriturístico. 




A teologia serve assim, a partir desses dois princípios, um de entrega transcendente e outro humano, para contextualizar a palavra de Deus e responder aos desafios do tempo presente, armando e fortalecendo a igreja. Apesar desse importante serviço, a teologia é sempre passageira e parcial. Não é revelação. 




A vida é matéria-prima da existência humana, mas também motivação que anima a existência, que lhe dá entusiasmo e nesse sentido é espírito, alma e corpo. Não é apenas razão teológica ou filosófica, mas correlação entre o céu e a terra. 




Quando correlacionamos o céu e a terra surgem questões difíceis de serem respondidas. Entre essas questões podemos citar a encarnação, a kenosis e a ressurreição de Cristo. Outra questão difícil, por implicar nesse cruzamento da infinitude com a finitude é a própria teologia da vida. 




Nesse sentido, há teologias, como a calvinista, que olham esta questão a partir do infinito. E há outras teologias, como a arminiana, que olham esta questão a partir do finito. 




Mas há outra maneira de olhar a questão da vida, a partir da humildade do reconhecimento de que estamos diante de um cruzamento do céu com a terra, do infinito com o finito. E é esta perspectiva bíblica que orienta a teologia da vida. 




Para entendermos a teologia do Deus soberano no calvinismo e a teologia do humano livre no arminianismo começaremos a partir de Lutero. A compreensão de Lutero tem por base a sua leitura da Carta de Paulo aos Romanos, e a partir daí sua teologia da cruz. Segundo Loewenich, um especialista na vida e obra do reformador alemão, “a teologia da cruz é o princípio de toda a teologia de Lutero. Ela não pode ser limitada a um período particular de sua teologia”. Nessa teologia, Deus vem até aqui embaixo e a expiação acontece quando Deus chega até o ser humano, que vive sob a ira da lei. Deus é aplacado quando o movimento divino em direção ao humano resulta em fé. Ocorre, então, uma “alegre troca”: Jesus toma a natureza humana e entrega aos homens e mulheres sua vida imortal. E nessa teologia da cruz de Lutero está embutida a primeira compreensão que a Reforma fez daquilo que chamamos a teologia do Deus soberano. 




Para Lutero, conforme expôs no Prefácio a Carta de Paulo aos Romanos, “você deve seguir o raciocínio desta carta na ordem em que é apresentada. Fixe sua atenção, primeiro que tudo no Evangelho de Cristo, de maneira que você possa reconhecer seu pecado e a Sua graça. Então lute contra o pecado, conforme os capítulos de um a oito tem lhe ensinado a fazer. Finalmente, quando você chegar ao capítulo 8, debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, passe para os capítulos de 9 a 11 que lhe ensinarão sobre a providência e o conforto que ela é”. 




Assim, para Lutero, o que vem de cima é uma esperança. Pois, nos momentos de sofrimento, de cruz e das angústias da morte, é a providência divina que dá garantia da presença da graça nas vidas. 




Dessa maneira, para o reformador, o caminho começa com o ato de ouvir o Evangelho, com o reconhecimento do pecado, mas também da graça de Deus, em Cristo. Continua no correr da vida com a luta contra o pecado e, finalmente, quando debaixo da sombra da cruz e do sofrimento, é a providência de Deus, manifesta na eternidade que garante a esperança. 




Calvino partiu dos mesmos textos de Lutero, principalmente da carta de Paulo aos Romanos, mas inverteu a maneira de ver de Lutero. Para Lutero, o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão do Deus soberano, por isso a esperança é entregue, vem do infinito nos momentos de dificuldades e sofrimentos. Para Calvino a base é a escolha eterna do Deus soberano. Em sua teologia, a esperança embora venha da infinitude, não acontece como fim, mas é começo e centralidade. 




Tanto em seu Comentário sobre a Carta aos Romanos, como nas Instituições da Igreja Cristã, Calvino constrói uma teologia que tem por base o Deus soberano. E olha sempre do ponto de vista de Deus, descartando uma leitura a partir da imago Dei. 




Essa teologia da infinitude pode ser definida em três palavras: absoluta, particular e dupla. É absoluta já que não está condicionada a nenhuma contingência finita, é particular no sentido que pertence a pessoas e não a grupos. E, por fim, é dupla: Deus, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a eternidade benfazeja; e, para o louvor de sua justiça, outros para a eternidade maldita. 




A posição de Calvino, quando relaciona céu e terra, pode ser entendida no sentido de que a vida depende do decreto eterno de Deus; que a fé traduz esta escolha feita na eternidade; e que se alguém crê, ele tem a vida porque já foi escolhido. 




A historiografia dos séculos 16 e 17 mostra que a teologia do Deus soberano enfrentou oposição não somente nos meios teológicos, mas também de pastores e fiéis. Entre os opositores podemos citar Erasmo, o movimento anabatista e dois fundadores do pensamento batista na Inglaterra: John Smyth e Guilherme Dell. Mas, historicamente, seu opositor mais conhecido foi Jacó Armínio. 




Apesar da oposição que a leitura de Calvino produziu no mundo protestante, a teologia do Deus soberano deve ser entendida como um esforço de demonstrar que existe garantia para os momentos de provação. É uma confissão de confiança na graça de Deus. 




A teologia de Jacó Armínio (1560-1609) parte da imago Dei e de suas necessidades. É uma teologia do humano livre, que fala da depravação e diante dela realça a graça. Mas, como sua visão é negativa em relação ao humano realça a possibilidade de perda da vida. Assim, para o arminianismo a vida é condicionada pela fé. 




Em sua Declaração de Sentimentos, apresentada à igreja holandesa em 30 de outubro de 1605, ele falou que os seres humanos têm a liberdade aceitar ou recusar a vida; que Cristo morreu pela vida existente em todas as épocas e lugares; que os seres humanos podem perder a vida caso não permaneçam na fé. 




Armínio considerou que a infinitude não define os seres humanos para o não-ser, mas decreta a vida e o não-ser dos humanos em particular com base na onisciência divina da fé e perseverança de cada pessoa. 




A tensão da discussão entre infinitude absoluta e finitude relativa gira ao redor da compreensão da vida. O texto do apóstolo Pedro é paradigmático nesta discussão, pois diz que “o Senhor não demora a fazer o que prometeu, como alguns pensam. Pelo contrário, ele tem paciência com vocês porque não quer que ninguém seja destruído, mas deseja que todos se arrependam dos seus pecados (2Pedro 3.9). 




No arminianismo há uma chave para que a função graça e a função vida sejam plenamente exercidas. E essa chave está no final do versículo acima citado: “que todos cheguem ao arrependimento”. A graça da infinitude absoluta deve ser somada ao arrependimento humano, produzindo então vida. Ou seja: graça mais arrependimento = vida. A graça da infinitude absoluta sem o arrependimento humano produz justiça. Ou seja: graça menos arrependimento = justiça. 




Para Armínio, o valor da cruz não é limitado, mas sua aplicação sim. Para ele, a finitude condicional remete à vida através do arrependimento. Por isso, para Armínio, a infinitude define a vida e o não-ser com base no conhecimento divino da fé e perseverança de cada pessoa. 




A teologia do humano de Armínio procurou ressaltar a liberdade. Como sua teologia era negativa, via a alienação como pecado de origem, a vontade como degenerada e incapacitada para produzir qualquer bem espiritual. Nesse sentido seu conceito de liberdade diferia da visão positiva de Pelágio. A teologia do humano livre de Jacó Armínio antecedeu os padrões do Iluminismo e influenciou a teologia de John Wesley, o metodismo e o protestantismo de missões. 




A teologia do Deus soberano parece confrontar a teologia do humano livre. Mas, as abordagens de ambas as teologias levam a uma teologia correlacional, que trabalha a tensão existente entre infinitude absoluta e finitude relativa e considera que não se opõem, mas se complementam levando a uma teologia da vida. 




A tendência minimalista que olha a questão a partir da infinitude nega a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência maximalista que vê a questão a partir da finitude não vê limitação à possibilidade do humano responder de forma livre à infinitude. 




Mas é necessário entendermos a correlação entre as tendências minimalista e maximalista. A teologia da vida entende que o humano pode apoiar sua resposta à proposta de vida em sua liberdade de consciência, assim como no uso da razão. Mas tal processo sempre tem como ponto de partida a infinitude absoluta. 




Nesse sentido, vida é escolha feita pela infinitude absoluta, a partir da graça. É ação de escolha, chamado e comissionamento. Ainda que baseada na infinitude absoluta, a vida está em perfeita consonância com a liberdade de comunidades e pessoas. Viver de forma plena implica em consciência do ato e ação de viver. 




Existe uma correlação entre infinito e finito. E essa correlação leva à própria ação de viver. Para os teólogos da vida, ela é síntese. Dessa maneira, a infinitude absoluta em sua graça cria e mantém a vida, em e através de Cristo, de comunidades e pessoas sob escolhas, chamados e comissionamentos desde o infinito, à luz da presciência, e de acordo com a liberdade de cada comunidade e de cada pessoa. 




Entre o céu e a terra está a vida. Por isso, a vida é para todos e acontece em e através de Cristo por ação graciosa da infinitude absoluta. A infinitude presciente e de acordo com a liberdade da finitude relativa entregue ao humano colocou sob escolhas, chamados e comissionamentos a vida e os viventes. 




A vida implica em geração e regeneração, relação dialética que é ato inicial em que a infinitude faz crescer o humano. É obra do infinito. Mas geração e regeneração implicam em arrependimento e fé. Arrependimento é mudança na raiz da vida humana. E fé é a confiança e aceitação da vida como comissionamento. Nessa experiência de vida radical o humano pisa na terra, mas se eleva em direção ao céu. E o céu se derrama em direção à terra através do humano. 




Assim, a partir da consistência ontológica do humano, somos levados à necessidade de uma análise da vida como teologia. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem a infinitude fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde naturalidade e historicidade transformam-se em alegoria. 




O pressuposto fundamental dessa reflexão teológica da vida traduz a verdade de que a compreensão da infinitude leva à compreensão do humano e de sua existência. Não se trata de conhecer o humano para conhecer a infinitude, porque o finito relativo não é infinito absoluto. Nesse sentido, a teologia da vida parte da infinitude absoluta. 




Se a revelação é uma conversa entre infinito absoluto e finito relativo, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer a vida, embora ela própria no diálogo adquira características específicas. É nesse contexto que se dá a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo de vida e para a vida. 




Por isso, comissionamento é a propagação da vida e de seu sentido ao mundo, visando a geração e regeneração da própria vida. É escolha e chamado. A responsabilidade da propagação da vida se estende até os confins da terra. Comunidades e pessoas devem promovê-la. E assim nos posicionaremos radicalmente entre o céu e a terra. 


















Soltem o refém! 







Em relação à espiritualidade cristã, o apóstolo Paulo diz que há três tipos de pessoas. (1) A natural, aquela que não reconhece Jesus como senhor de sua vida: “Mas quem não tem o Espírito de Deus não pode receber os dons que vêm do Espírito e, de fato, nem mesmo pode entendê-los. Essas verdades são loucura para essa pessoa porque o sentido delas só pode ser entendido de modo espiritual”. (1Coríntios 2.14). 




(2) A espiritual, aquela pessoa que aceitou Jesus como senhor e salvador e, como conseqüência, tem a sua vida dirigida pelo Espírito Santo: “A pessoa que tem o Espírito Santo pode julgar o valor de todas as coisas, porém ela mesma não pode ser julgada por ninguém. Como dizem as Escrituras Sagradas: Quem pode conhecer a mente do Senhor? Quem é capaz de lhe dar conselhos? Mas nós pensamos como Cristo pensa”. (1Coríntios 2.15-16). 




E (3) a carnal, aquela que já aceitou a Jesus como salvador, mas confia em seus próprios esforços para viver a vida cristã: "Na verdade, irmãos, eu não pude falar com vocês como costumo fazer com as pessoas que têm o Espírito de Deus. Tive de falar com vocês como se vocês fossem pessoas do mundo, como se fossem crianças na fé cristã. Tive de alimentá-los com leite e não com comida forte, pois vocês não estavam prontos para isso. E ainda não estão prontos, porque vivem como se fossem pessoas deste mundo. Quando existem ciumeiras e brigas entre vocês, será que isso não prova que vocês são pessoas deste mundo e fazem o que todos fazem?” (1Coríntios 3.1-3). 




É preciso coragem para ir à luta, como as Escrituras Sagradas nos desafiam. E a principal dessas lutas, diz respeito ao nosso caráter. Por isso, fazer aos outros aquilo que nós desejamos que nos façam, é a melhor definição de amor à vida. Isso quer dizer que devemos considerar as pessoas da nossa família, os amigos, mas também aqueles de quem discordamos tão importantes quanto nós próprios. Significa aprender a respeitar as pessoas e entender que não estão aqui por acaso. Esse é o amor que Jesus ensinou. 




O jeito de Deus para completar a transformação em nossa vida é a obra do Espírito. Caso tenha aceitado Jesus como Senhor da sua vida, uma das primeiras coisas que o Pai fará é introduzir o Espírito, a terceira pessoa da Trindade, na sua vida. Através do Espírito, Ele vai realizar um processo de transformação, trabalhando todos os dias para mudar seu caráter, sua forma de agir e reagir espiritualmente. O Espírito se dedicará a edificar a sua vida através do amor. Mas você deve cooperar com Ele. 




Jesus disse que deveríamos apresentar nossas necessidades ao Pai, em nome dele (João 14.13), e que ele, Jesus, nos responderia para que o Pai fosse glorificado no Filho. A idéia do texto é que devemos entregar a Deus nossas necessidades. É como se disséssemos: Senhor, olha a minha situação, quero lhe entregar este problema, fica com ele, com o problema, a dor, e supre minha necessidade. 




Aprendi com um amigo, que muitas vezes devemos entregar nossas dificuldades de caráter a Deus, como o xerife do filme leva o bandido para a cadeia. “Deus, eis aqui o meu pecado, ele é um bandido na minha vida, eu não quero mais ele comigo. Coloca-o na cadeia”. E Jesus agarra a limitação do nosso caráter e prende. E saímos de diante de Deus, em paz, sem nenhum pecado bandido para infernizar a nossa vida. 




Nesse sentido, como disse o sábio, há tempo para tudo. E você deve definir os tempos de sua liberdade. Isso significa, em primeiro lugar, dizer que a partir de agora, desse momento, você não quer mais conviver com essa falha do seu caráter. 


Muitas pessoas sofrem e oram a Deus para que as liberte de um vício, de um pecado, mas não entregam o bandido ou, como diz a garotada da FEBEM, “não soltam o refém”. Temos que soltar o refém. 




Ao fazer isso, não estamos exigindo nada de Deus. Não estamos mandando em Deus. Ao contrário, estamos fazendo exatamente aquilo que Ele deseja. Quando entregamos a Deus o problema, o vício, o pecado, não saímos vazios da presença de Deus. Como o herói de um filme de bang bang que capturou o bandido procurado e o entregou ao xerife, você, pela graça, recebemos uma recompensa espetacular: o fruto do Espírito. Cada bandido capturado podemos trocar por um gomo do fruto do Espírito. Entregamos o bandido do ódio e saímos com o amor, entregamos a bandida da ira e saímos com a paz no coração. 


Temos uma tarefa pela frente, fixar os tempos da nossa liberdade. Preparemo-nos: estamos desafiados a entregar algum bandido que inferniza a nossa vida -- o ódio ou um de seus cúmplices: antipatia, aversão, enfado, nojo, raiva, repugnância. Nessa tarefa o Espírito é nosso aliado, vai nos dar coragem e força, vai nos animar a cumprir a missão. 


















Lições de judaísmo 



Para um diálogo fraterno entre judeus e cristãos é necessário que cada lado conheça não somente o pensamento, mas em especial a cultura e a maneira de sentir do outro. É uma reflexão desse tipo que pretendo fazer aqui. E hoje vou começar a partir de um filósofo que marcou época: Franz Rosenzweig (1886-1929). 


Em primeiro lugar é importante olhar o judaísmo não como corpo doutrinário ou estrutura de rituais, mas como experiência que parte do reconhecimento de uma realidade que vai além da existência. Tal vivência para o judeu tem seu momento maior na eleição de Israel, que é visto como pai da experiência com o transcendente para todos os povos e culturas. É claro que há momentos da história em que essa percepção aparentemente se perde, obscurecida pela realidade das nações onde o judeu vive. Mas, mesmo nessas situações, subsiste de forma misteriosa a bênção da presença do povo judeu, que mais tarde brotará abençoando povos e nações e assim cumprindo o mandato que Deus deu ao pai Abraão. 


Disse que falaria sobre e a partir de Franz Rosenzweig porque, sem dúvida, temos muito a aprender com ele em matéria de diálogo e fraternidade. Foi um estudioso da teologia protestante liberal de Adolf Harnack, mas permaneceu judeu porque esta era a religião de seus pais e porque gostava de observar os costumes judaicos e de refletir, à maneira judaica, sobre as histórias bíblicas. 


Seu primo, Hans Ehrenberg, se converteu ao cristianismo e foi batizado em 1911. Diante disso, Rosenzweig refletiu sobre sua cultura alemã e escreveu a seus pais dizendo: “Nós somos cristãos em todas as coisas, nós vivemos em um estado cristão, freqüentamos as escolas cristãs, lemos livros cristãos, nossa cultura inteira tem por base uma fundação cristã”, mas isso não fez dele um cristão. Mais tarde, em 1913, ao discutir a conversão de judeus com Eugen Rosenstock e seus primos Hans e Rudolf Ehrenberg, Rosenzweig disse que até poderia vir a batizar-se, mas colocou uma questão: gostaria de examinar o que significaria aceitar o batismo, o que tal ato representaria diante de seu judaísmo, já que não era um pagão, mas um judeu. Assim, pediu a seus parentes um tempo para reflexão, para pensar e celebrar os dez dias santos que vão do Rosh ha Chanah ao Yom Kippur. 


E esses dez dias foram fundamentais para Rosenzweig, pois se transformaram nos dez dias de retorno as suas raízes judaicas. Mais tarde, ele escreveu a Rudolf que a conversão ao cristianismo “parece desnecessária e impossível agora. Eu sou um judeu”. E fez uma leitura teológica judaica do evento Jesus. Concordou com a presença de Cristo e de sua igreja no mundo, mas afirmou que ninguém vem do Pai, mas através dele. (João 14:6). E que isso é assim em relação ao povo judeu, pois como povo não precisa ir ao Pai, porque já está com ele. Essa é a realidade do povo de Israel, do povo, e não do judeu individual. Assim, Rosenzweig fez uma distinção entre o mundo, que precisa conhecer a Deus, e o povo judeu que, em última instância, é a estrela da redenção. 




Ou como disse: “Diante de Deus, judeus e cristãos são, por isso, trabalhadores de uma mesma obra. Não se pode prescindir de nenhum dos dois. Entre os dois sempre existiu inimizade, mas ainda assim estão juntos na mais estreita reciprocidade. Assim, a verdade, toda a verdade, pertence tão pouco a eles quanto a nós”. 


Para Rosenzweig, o caráter e a história da sinagoga são diferentes da igreja, mas não excludentes. Às vezes se chocam, embora estejam juntas na oposição ao paganismo que não tem a revelação por base. Para ele, a revelação é a garantia da vocação permanente, do comissionamento que sustenta e dá sentido tanto à igreja como à sinagoga. Assim, a revelação é a origem objetiva tanto da sinagoga como da igreja, e dá as duas uma orientação firme que, ao mesmo tempo, as diferencia, mas também as une. 


Rosenzweig estudou medicina, história e filosofia. Partiu do idealismo alemão e construiu seu próprio pensar teológico. Bebeu em Goethe e Kant, mas seguiu seu próprio caminho. Professor, considerou que só no período do idealismo alemão o professor da filosofia e o filósofo eram um e o mesmo. E de certa forma procurou seguir esta tradição: procurou encontrar sua própria resposta filosófica para as questões da vida e da espiritualidade, sem abandonar suas funções de professor. 


Estudou judaísmo com Hermann Cohen (1842-1918), que dava um curso de Filosofia da Religião Judaica na Universidade de Marburg. A partir de Cohen, Rosenzweig passou a utilizar o método da correlação, que mais tarde seria usado por Paul Tillich. Para Rosenzweig a filosofia pecara por ser monista, já que a palavra “e” tinha sido descartada. Assim, a partir da correlação passou a fazer uma nova teologia: Deus e humanidade, humanidade e Deus, Deus e natureza, natureza e Deus. Dessa maneira, repensou seu judaísmo. Reconsiderou as relações em que as coisas se encontram, ampliando seu universo teológico, que antes estava imerso em idéias que se bastavam, limitadas aos conceitos e às essências. Lançou, assim, bases filosóficas para se olhar o outro como igual, pensamento que mais tarde renasce com a ética de Emmanuel Lévinas. 









Esperança e desespero 







Vamos aprofundar um pouco mais a questão hermenêutica, fundamental para a teologia. Tocamos a questão muito rapidamente no texto Entre o céu e a terra. Agora vamos um pouco mais fundo. Há princípios que norteiam a pesquisa teológica cristã. E estes princípios estão presentes em nossos estudos mesmo quando os desconhecemos. O primeiro deles é o princípio arquitetônico, ou seja, a revelação enquanto fonte e fundamento de qualquer estudo da teologia. Nesse sentido, a revelação, ou seja, os dois testamentos que compõem as Escrituras Sagradas cristãs são a base e o eixo da teologia. Podemos chamar a revelação também de fé objetiva, pois deve nortear a vida cristã em matéria de doutrina e fé subjetiva. 


O segundo princípio é o hermenêutico e se refere aqueles instrumentos de interpretação que utilizamos para compreender os aspectos históricos da salvação, ou seja, os fundamentos culturais, religiosos, sociais e lingüísticos que subjazem no texto, já que se por um lado o texto é 100% revelado, e nesse sentido entregue, por outro lado é 100% humano. Isso quer dizer que o texto expressa também todas as limitações de uma produção humana, no que tange conteúdos culturais, econômicos, religiosos, sociais e lingüísticos. Assim, o princípio hermenêutico é produto da razão humana. E por se produto da razão a instrumentalidade da hermenêutica através da história cristã sempre expressou a universalidade do senso comum, ou seja, nossa maneira fenomenológica de ver o mundo, de entendê-lo no dia a dia a partir da aparência dos fenômenos. E assim dizemos que o dia nasce às cinco horas, mas é certo que o dia não nasce, nem se põe. Ou, teologicamente, dizemos que uma pessoa quando morre vai para o céu, embora saibamos que o reino escatológico de Deus não se localiza nem na atmosfera, nem na estratosfera e nem mesmo em nenhum lugar do universo visível. 




O senso comum faz parte da linguagem humana, e cada cultura faz suas construções simbólicas, que não traduzem a realidade da natureza. Por isso, a hermenêutica procurou a razão científica, aquela que baseada nas ciências, sejam elas humanas ou técnicas, possibilitam entender melhor a profundidade do texto bíblico. E foi dessa maneira que introduzimos em nossos estudos a lingüística, com o estudo dos idiomas em que os textos foram escritos, a história, a geografia, a sociologia, o direito, etc. E assim a razão científica conquistou um lugar na hermenêutica acadêmica que estuda a teologia. Mas, se os cristãos sempre utilizaram o senso comum, se a academia trouxe os conhecimentos da ciência, a filosofia, desde o início da história da teologia cristã, foi um elemento fundamental na ordenação do pensamento. Na verdade, o mundo ocidental aprendeu a pensar de forma ordenada com os filósofos gregos, já que eles foram aqueles que formataram ainda no início de nossa civilização as bases do pensamento científico. Por isso, quer queiramos ou não, a filosofia é formadora do pensamento cristão e as filosofias em suas diversidades de abordagens e métodos sempre ofereceram ao teólogo instrumental hermenêutico valioso. 


Podemos dizer que o princípio hermenêutico sempre se utilizou do senso comum e da razão filosófica e, na modernidade, agregou ao seu instrumental também a razão científica. Mas, não podemos nos esquecer que a utilização de tais princípios possibilita diferentes avaliações da revelação. Por que? Porque o princípio arquitetônico depende do que colocamos como base da estruturação geral de nossa metodologia de pesquisa: pode ser a graça e a fé, como no caso de Lutero; a soberania de Deus, como no caso de Calvino; ou o amor, a justiça e o poder, como no caso de um célebre texto de Paul Tillich. E também porque o princípio hermenêutico depende do uso de uma ou de várias das múltiplas abordagens filosóficas e científicas que podem ser utilizadas como instrumento de interpretação da história da salvação. É por isso que se diz que a ideologia define a hermenêutica. 


Aqui reside a dificuldade do fazer teológico: a revelação é universal e plena, mas toda teologia é transitória, pois reflete um momento de compreensão da revelação e da história da salvação. 


Depois de fazermos uma ruptura criativa com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história – e fizemos isso ao mostrar as limitações da hermenêutica iluminista --, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual a teologia pisa. Há um momento de cisão no qual se modificou de modo essencial a concepção do que significa a teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 1960 com a teologia da esperança de Jürgen Moltmann. E são os trabalhos dele que utilizaremos aqui para fazer a crítica do teísmo aberto. 




O pensamento de Moltmann é uma reflexão prodigiosamente profética, pois enunciou não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na sequência, e agora muito possivelmente por parte da humanidade. É, sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica teológica. Para esclarecer, entendemos a epistemologia utilizada no campo teológico como os métodos dos diferentes ramos do saber teológico -- Ontologia, Cristologia, Pneumatologia etc. -- e de suas práticas eclesiológicas, avaliadas a partir de sua validade cognitiva, seus paradigmas estruturais e suas relações com a sociedade e a história. Haveria assim uma teoria geral da teologia enquanto gnosiologia e ciência normativa, que nas últimas décadas, através de comunidades e movimentos, abriram aguerridamente, a golpes de machado, a senda da alta modernidade. 


A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Conforme Bachelard, "os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos. Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento". 


A abordagem epistemológica aqui utilizada refere-se ao projeto teológico, de herdadas estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. Usando a leitura de Machado, diríamos que "a história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado". 


É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por Moltmann. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas: 


"Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário". 


Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo. 


A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do ser humano na alta modernidade. 


"O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX". 


A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança. 


Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação da pessoa é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade. 


Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível. Para Bloch, o homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma “pátria de identidade”. É no “vermelho quente” do futuro que está a razão fundamental da existência humana. Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã! 


"Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive' desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro". 


Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia. Talvez por isso possamos dizer que nos anos 1960, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. 


É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heidelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Teologia da Esperança, publicada no início dos anos 1960 na Alemanha, estava na oitava edição e, no ano seguinte, ele lançaria nos Estados Unidos Religião, Revolução e o Futuro. 


A partir da escatologia da esperança de Jürgen Moltmann vejamos uma reflexão que tem por base o texto de Apocalipse 22.6-21. 


No Apocalipse, o futuro define o presente. Ou seja, Moltmann não está errado ao entender que o futuro define o presente. E que a cruz de Cristo veio do futuro em direção ao presente histórico da humanidade. Foi plantada num momento de nossa história, porque o sacrifício foi realizado na eternidade, fora do tempo, no que a partir do senso comum chamamos de futuro, e a partir da razão filosófica chamados de futuro escatológico. E exatamente porque Deus a partir da eternidade criou as materialidades do universo e do humano, ele conhece porque parte do todo, da eternidade, em direção ao contingente, ao universo e a historicidade humana. 


O Apocalipse inverte a nossa noção de tempo. O futuro escatológico modela e estrutura o presente. Saber como a história termina nos ajuda a entender como devemos nos encaixar nela, agora. Por isso, já estamos vivendo os últimos dias. As visões de João mostram a realidade do juízo divino, quando cada um de nós dará conta de sua existência diante de Deus. Deus recompensará aqueles que, às vezes, ao custo de sua própria vida "guardaram as palavras da profecia deste livro". Não podemos esquecer que profecia é proclamação da Palavra de Deus. E no Novo Testamento é proclamação das boas novas. 


Podemos dividir o texto escolhido em três blocos. O primeiro bloco (vv. 6 e 7) nos diz que a esperança escatológica é fiel e verdadeira. Ou seja, as palavras proferidas, profetizadas, proclamadas são leais, não contrariam a confiança depositada no Senhor que as decretou. E estão em conformidade com a realidade escatológica. 


O segundo bloco (vv. 10-12) diz para não fecharmos o livro, porque o futuro é hoje. E é esse futuro escatológico que deve definir o que você faz. E você dará conta do hoje e receberá a justa recompensa. Ora, fechar o livro é abandonar a esperança. É achar que o seu presente você mesmo traça, sem entender que o contingente é sempre um possível dentro de um sistema hipotético dedutível. Dedutível por Deus por conhecer todas as hipóteses, o fundo da alma humana e cada uma das possibilidades da história. É não entender que Deus está fora do tempo e da materialidade e exatamente por isso ao abrir a gaveta de nossa historicidade conhece todas as possibilidades do espaço, os movimentos e o tempo. 


O terceiro bloco (vv. 18-19) é um chamado aos leitores a viver a esperança escatológica. Alertando que a praesumptio e o desperatio subvertem a esperança e por isso não podem ser acrescentadas. Acrescentá-las geram conseqüências, a alienação do futuro escatológico e a morte. Mas também nada pode ser tirado: a cruz, o sofrimento e a dor, incompreensíveis, que fazem parte da materialidade, enquanto espaço/ tempo não completado, e da humanidade, enquanto existência não essencializada, não podem ser arrancadas da vida na esperança escatológica. Tirá-las significa ficar fora do futuro que chegou, que veio da eternidade e nos trouxe o acesso à árvore da vida. Tirá-las é ficar fora da cidade santa e abandonar a esperança. 


A Palavra é fiel (v. 20). Jesus, a Palavra que reina, garante: Ele está chegando! E aqui o texto fala “ercomai táxi”. Ele já saiu nesta sua volta, está chegando rapidamente e não vai atrasar. Por isso, a esperança é possível e qualquer momento da minha vida, por mais estranho que pareça, está debaixo de Sua graça e soberania. 







Adélia e Bataille num diálogo pertinente 







Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta, pela positiva ou pela negativa, nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. 




Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha). 




Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura. 




Daí que neste ensaio sobre o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente. 




Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978, Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa 




Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se poeta e não profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz. 




Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora. 




Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa. “Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”. 




Georges Bataille (1897-1962) nasceu em Billom, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 




Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha. 




Uma de suas obras mais polêmicas é a Historie de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 




Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 




A religio­sidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, en­quanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição. 




Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, in­vocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor to­tal e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continui­dade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 




Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraça­do pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de subli­me e trágico. 




E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. “Não separo, para mim elas são a mesma coisa. Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”. 


Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce. “Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas”. 


E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. 



Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. “Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo”. 




Voltando a Bataille, a trans­gressão é a desordem organizada, na medida em que introduz num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organi­zação, fundada no trabalho, tem por base a des­continuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e pro­dutos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a cons­ciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a des­continuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a ina­nidade do ser descontinuo. 




E a partir de poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado. 




Papai tosse, dando aviso de si, 

vem examinar as tramelas, uma a uma. 

A cumeeira da casa é de peroba do campo, 

posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir, 

tomo a bênção e fujo atrás dos homens, 

me contendo por usura, fazendo render o bom. 

Se me tocar, desencadeio as chusmas, 

os peixinhos cardumes. 

Os topázios me ardem onde mamãe sabe, 

por isso ela me diz com ciúmes: 

dorme logo, que é tarde. 




Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transforma­ram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desli­gados dessa totalidade do ser à qual era, contudo, necessário religá-los. 




Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama. 




Sim, mamãe, já vou: 

passear na praça sem ninguém me ralhar. 

Adeus, que me cuido, vou campear nos becos, 

moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim. 

Quando esta nossa cidade ressonar em neblina, 

os moços marianos vão me esperar na matriz. 

O céu é aqui, mamãe. 

Que bom não ser livro inspirado 

o catecismo da doutrina cristã, 

posso adiar meus escrúpulos 

e cavalgar no torpor 

dos monsenhores podados. 

Posso sofrer amanhã 

a linda nódoa de vinho 

das flores murchas no chão. 




E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inó­cua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 




Por isso, filósofos e poetas negaram o que a igreja considerava sagrado. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama. 




As fábricas têm os seus pátios, 

os muros têm seu atrás. 

No quartel são gentis comigo. 

Não quero chá, minha mãe, 

quero a mão do frei Crisóstomo 

me ungindo com óleo santo. 

Da vida quero a paixão. 

E quero escravos, sou lassa. 

Com amor de zanga e momo 

quero minha cama de catre, 

o santo anjo do Senhor, 

meu zeloso guardador. 

Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe. 




Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobreci­mento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana. 




O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que faze­mos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemen­te que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, na medida em que a nossa existência está presente em nós sob a forma de linguagem, existe como se não existisse. 




Há em nossos dias há uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio. 




Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na expe­riência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso: 




“Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem. Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: ‘Apesar do religioso, até aparece alguma poesia’. Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa”. 




Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realida­de que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, na medida em que ambas têm uma intensidade ex­trema, nos aproxima de outras pessoas e nos afasta delas, nos deixa na solidão. 




A passagem do prazer à santidade tem senti­do, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- fe­lix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 




Só um desvio per­mite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece, sem dúvida, o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nun­ca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização. 




Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o. 




Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante: “Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã”. 




E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que a religião dá sentido à vida, costura sua experiência, dá horizonte. “Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções”. 




Para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é verdadeira vida. A santidade é sem­pre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Na santidade só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: o pensamento comum. 




Então se pode dizer que há ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões antigas, que negam tudo o que se assemelha à transgressão, negam tudo o que se assemelha à proibição. Temos, então, a linguagem do prazer enquanto negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. E a palavra negação, aqui, define o humano em oposição ao animal. Mas, o cristianismo criou um caminho que permite se falar da transgressão... a santidade. 









O desafio de ser benigno 







Um homem viajava de Jerusalém para Jericó. No caminho foi assaltado por bandidos que além de roubarem todos seus pertences, o maltrataram, abandonando-o ferido, quase à morte. Na história, contada por Jesus, as pessoas não são identificadas pelos seus nomes, mas caracterizadas por suas funções e ações. O homem assaltado é um anônimo: talvez um viajante. É alguém desprotegido, no momento sem amigos, sem dinheiro. Sozinho no mundo, como milhões de outros por aí. Lá está ele: jogado à beira da estrada, caído na sarjeta. 




Entram em cena, então, aqueles que tinham a solução do problema nas mãos: um sacerdote e um levita. Diz Jesus, contador de histórias chocantes: "Acontece que um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho". 




Mas, será que o sacerdote parou para ajudá-lo? Não! O sacerdote passou ao largo, ou seja, tentou ignorar aquela situação. Não quis se envolver, nem se incomodou com o pobre miserável. Quem sabe havia trabalhado todo fim de semana. Estava cansado. Queria repousar e ficar em paz. E afinal de contas o que tinha acontecido com aquele estranho não era da sua conta. 




A história continua: também um levita passou por ali, e vendo-o também passou ao largo. O sacerdote nem sequer olhou para o ferido viajante. O levita, quem sabe, preocupado, pensou que poderia ser um parente ou um amigo. Deteve-se por um instante, olhou, e como não o reconhecesse, seguiu seu caminho.  




E lá estava o coitado no chão, quase a morrer. Será que ninguém se preocuparia com ele? Será que ninguém se importava? Não havia uma alma bondosa por ali? 




Neste momento apareceu um inimigo, ou seja, um samaritano, um estrangeiro. Ora, durante os últimos oitocentos anos os judeus não se davam com os samaritanos, porque em 722, os reis da Assíria tomaram Samaria e substituíram seus habitantes por babilônios e sírios, que trouxeram suas tradições e crenças religiosas diferentes daquelas dos judeus. 




Para os judeus, os samaritanos eram inimigos. Eram considerados como cães. Mas, lá estava o coitado no chão. Sentiu que alguém parou, desceu da montaria e se aproximou dele. Quem seria? Oh, impossível! Era um samaritano! 




E o samaritano teve pena dele. Fez curativos em seus machucados, aplicou azeite e vinho. Colocou-o em cima do seu próprio animal e o levou para uma hospedaria. No dia seguinte, pagou ao dono da hospedaria pela estada do homem e disse: cuida dele e, se você gastar mais, eu pago quando voltar. 




Ao terminar a história Jesus perguntou: "quem foi o próximo do homem assaltado?” E o intérprete da lei respondeu: "aquele que foi bondoso com ele". E ele estava correto. 




Você já viveu alguma experiência em que teve a oportunidade de crer fazendo? Como você explica esta idéia do apóstolo Tiago: “A religião pura e verdadeira é esta: ajudar os órfãos e as viúvas nas suas aflições". Tiago 1.27 




Quando Jesus terminou de contar a história, disse para o doutor da lei: "Vá e faça a mesma coisa". Se você fosse um dos integrantes da história do bom samaritano, quem seria você? O sacerdote, o levita ou o samaritano? 












O mistério da Trindade 







Bulgakov e Lossky estão entre os maiores pensadores de toda a história do cristianismo oriental. Mas para entender o espaço especial onde o pensamento teológico desses dois homens se movimentou, é preciso compreender que das três principais correntes do cristianismo, a ortodoxia oriental é a que deu mais importância ao estudo do papel do Espírito Santo na Trindade. 




Essa preocupação tem uma razão histórica, já que fez parte da discussão do “filioque”, e representa uma afirmação teológica introduzida pela igreja cristã ocidental no texto original do Credo de Nicéia-Constantinopla. Essa releitura foi feita na Espanha, nos concílios de Toledo dos séculos sexto e sétimo e, mais tarde, generalizou-se a todo o Ocidente. O texto original do Credo diz: "Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai, e com o Pai e o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória". Dessa maneira, para a teologia oriental, o texto afirma que o Pai, criador de todas as coisas, gerou o Filho e expirou o Espírito Santo, e que tanto o Pai, quanto o Filho, assim como o Espírito Santo são adorados e glorificados do mesmo modo, numa Trindade perfeita. 




Ao alterar o texto, aprovado pelos pais conciliares, a igreja ocidental fez uma leitura diferente do texto ao afirmar: "Creio no Espírito Santo (...) que procede do Pai e do Filho (filioque)". Para os teólogos orientais, tal declaração significa que o Espírito Santo passou a ser visto como uma terceira Pessoa diminuída em relação ao Pai e ao Filho. É como se o Espírito Santo já não devesse ser adorado e glorificado do mesmo modo e com a mesma fé com que o são o Pai e o Filho. 




Para o teólogo Vladimir Lossky, a controvérsia sobre o filioque introduziu um conceito pagão no Credo e o Deus dos filósofos tomou o lugar do Deus vivo. A essência incognoscível do Pai, do Filho e do Espírito Santo recebeu qualificações positivas, torna-se objeto de uma teologia natural, relativa a Deus em geral, que pode ser o Deus de Descartes, de Leibniz ou o dos deístas do século XVIII, mas não é certamente o Deus triúno que os pais da igreja proclamaram. 




Assim, concentrando seu esforço na análise da pessoa e ação do Espírito, o pensamento oriental vê uma debilidade e um enfraquecimento da Trindade na teologia ocidental, já que tendemos a realçar a unidade de Deus, tanto na teologia, quanto na realidade de nossa fé. Segundo o pensamento teológico oriental, perdemos com isso a percepção do lado trágico na existência e na história. Para a teologia oriental, o Espírito significa Deus no homem e Deus presente no mundo, e exatamente por isso liberdade. Dessa maneira, a teologia oriental vê o Espírito Santo como aquele que cumpre o que Deus diz, que distingue, une e personifica, aquele que é a atividade criadora do ser, revelador e ao mesmo tempo ouvinte e intérprete, em nós, do Cristo. 




Logicamente, tal postura leva a uma teologia que vê uma complementaridade entre pessoa e comunidade, religião e fé, pensar e agir. Assim, fé e religião não devem ser pensadas como relações de oposição, mas como correlação e encarnação. Da mesma maneira, por ser o Espírito a liberdade na pessoa e na comunidade, ficam de fora do compromisso cristão o individualismo e o coletivismo, substituídos pela busca da justiça social. 




Ao privilegiar teologicamente a questão da liberdade da vida da pessoa (a existência) e da coletividade (a historicidade humana), o pensamento oriental traz novas perspectivas para a teologia ocidental. 




Isto porque, a partir do século 19, o cristianismo ocidental sofreu um processo de esmagamento teológico, com o desafio não resolvido da secularização. No Ocidente, o catolicismo e o protestantismo diante do processo de secularização refugiaram-se na modernidade ética e, posteriormente, na neo-ortodoxia existencial cristológica, enquanto no Oriente, diante da secularização, o cristianismo procurou a saída através de uma teologia trinitária da existência e da historicidade humana. 




Segundo Serghiei Bulgakov (1871-1944) a natureza de Deus pode ser considerada de dois modos: como é em si mesma, como a vida que Deus é e vive; e aquela que é comunicável e revelável. Quando analisamos a partir do segundo modo, temos “a sabedoria divina não criada”, que pode ser definida como “a mente divina que pensa a si mesma”. 




Com essas definições, Bulgakov quer mostrar que sofia (sabedoria) não é uma simples idéia, mas algo vivo e real, embora não-hipostático. Na sofia eterna, o teólogo russo distingue o aspecto da revelação da plenitude do ser divino e o da revelação da felicidade e da beleza de Deus, que ele chama de a “glória de Deus”, que não é aquela glória que damos a Ele, mas a que Ele tem em si mesmo. 




Essa sofia eterna pertence indistintamente às três pessoas da Trindade, porém é revelação do Cristo e do Espírito. É revelação do Cristo enquanto universalidade das idéias divinas, é revelação do Espírito enquanto glória de Deus. 




Dessa maneira, para Bulgakov, as relações intratrinitárias não são relações de origem e causalidade, como ensina o tomismo, mas relações mútuas de revelação: o Pai se revela, o Filho e o Espírito revelam o Pai. 




Para o teólogo, a geração do Filho e a expiração do Espírito não podem ser compreendidas com o conceito de procedência, já que este conceito leva à conclusão da desigualdade entre as Pessoas e a um caráter de subordinação que infectou a teologia católica. Daí que, para Bulgakov, o único conceito legítimo é o da auto-revelação. Nesse sentido, as relações dentro da Trindade não são subsistentes, mas predicamentais. 




E se a sofia está nas três pessoas, em sua hipóstase (pessoa) imediata, a sofia é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus é a sofia. Já o Espírito Santo é a hipóstase do amor. “O amor de Deus, o amor do Pai pelo Filho e o amor do Filho pelo Pai, não é uma simples qualidade ou uma relação: ele possui uma vida pessoal, uma vida hipostática. O amor de Deus é o Espírito Santo, que procede do Pai ao Filho e que repousa nele. O Filho só existe para o Pai no Espírito Santo que repousa nele. Igualmente, o Pai manifesta o seu amor ao Filho através do Espírito Santo, que é a unidade de vida do Pai e do Filho. Esse é o lugar do Espírito Santo no âmbito da Santíssima Trindade” 




Para Bulgakov, a discussão sobre o filioque não foi o que levou à separação entre as igrejas bizantina e romana, embora tal divergência tenha sido levada ao exagero na época de Fócio. Para o teólogo, a afirmação de Fócio (“a Patre solo”), assim como a dos latinos (“a Patre filioque tamquam ab unico principio”) eram inovações e não podiam ser dogmatizadas, pois são simples theologoumenon. A única solução plausível para essa discussão é abandonar o falso ponto de partida. 




Todos os sistemas teológicos têm sido concebidos ao redor da pessoa de Cristo. Quer católicos romanos, como protestantes, pensam cristologicamente. Isso é válido para Teilhard de Chardin, Karl Rahner, Barth, Tillich, Bonhoeffer e Bultmann. Mas, para Vladimir Lossky (1903-1958) a base de um sistema teológico deve ter dois centros: Cristo e o Espírito. 




Segundo o teólogo, nossa salvação é operada em parte pela segunda Pessoa da Trindade e em parte pela terceira. Há, portanto, uma complementaridade entre a ação soteriológica do Cristo e do Espírito. Essas duas economias “encontram-se na base da Igreja, ambas necessárias para que possamos obter a união com Deus”. 




“A obra realizada por Cristo refere-se à nossa natureza, que não está mais separada de Deus devido à culpa. É uma nova natureza, uma criatura renovada que aparece no mundo, um novo corpo, puro de todo assalto do pecado, livre de toda necessidade exterior, separado de nossa iniqüidade, de toda vontade estranha, mediante o precioso sangue de Cristo. É a Igreja, lugar puro e incorruptível em que se alcança a união com Deus; é também a nossa natureza incorporada à Igreja, enquanto parte do Corpo de Cristo, ao qual é integrada por meio do batismo. Contudo, muito embora por nossa natureza sejamos membros, partes da humanidade de Cristo, nossas pessoas ainda não chegaram à união com a divindade. A redenção e a purificação da natureza ainda não oferecem todas as condições para a ‘deificação’. A Igreja já é o Corpo de Cristo, mas ainda não é a ‘plenitude daquele que plenifica tudo em todos’(Ef 1:23). A obra de Cristo está consumada; agora já se pode cumprir a obra do Espírito Santo”. 




Mas para compreendermos a obra do Espírito Santo é fundamental entender a idéia de pessoa dentro da teologia oriental. Sem dúvida, é impossível pensar em pessoa e esquecer o humano. Assim, mesmo que ela, pessoa, se manifeste através do espírito ou do coração, sem esquecer que o faz também através da dimensão corporal, designa o elemento irredutível do ser humano, elemento que, escapando a qualquer descrição objetiva, não pode se traduzida a não ser na afirmação: “eu sou eu”. 




A partir daí, afirma Lossky: "Não encontraremos nenhuma propriedade definível, nenhuma atribuição que seja estranha à natureza descritível do homem e pertença exclusivamente à pessoa tomada em si mesma. Nestas condições, é impossível formar um conceito da pessoa humana, e será preciso contentar-se em dizer que pessoa significa a irredutibilidade do homem à sua natureza. Irredutibilidade e não qualquer coisa de irredutível ou qualquer coisa que torna o homem irredutível à sua natureza, justamente porque não se pode tratar aqui de qualquer coisa de diferente, de outra natureza, mas de alguém que se distingue da sua própria natureza, de alguém que ultrapassa a sua natureza, contendo-a, que a faz existir como natureza humana por esta ultrapassagem e, entretanto, não existe em si mesmo, fora da natureza [através da qual vive] e que ultrapassa sem cessar". 




Eis a razão pela qual a pessoa humana, transcendendo ao descritível é única, não pode realizar-se plenamente senão na comunhão com a irredutibilidade absoluta de Deus. 




A questão da pessoa e de sua comunhão com a irredutibilidade de Deus tem sua expressão maior na teologia da adoção. Assim, na perspectiva da teologia trinitária, esboçada na oração de Efésios 1.3-14, é dito que o Pai determinou que seremos para Ele, “filhos de adoção por Jesus Cristo" (Ef 1.5). E que, aqueles que são justificados por Cristo, libertados da escravidão do pecado, não receberam "um espírito de servidão”, “para permanecerem ainda no temor”, mas receberam um "espírito de adoção" (ROM 8.15). Esta adoção por Deus, esta filiação, realiza-se na unidade com o Filho, já que "o mesmo Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E se nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com Ele padecemos, também com Ele seremos glorificados”. (Rm 8.16-17). 




Tal compreensão é referendada por Irineu, Atanásio e outros pais da igreja, ao afirmarem que Cristo, imagem do Pai, é Filho pela Sua natureza divina e pela Sua filiação, ao passo que os homens são filhos de Deus, à imagem de Cristo, por adoção. 




Ainda na carta aos Efésios, Paulo retoma o tema num contexto eclesiológico (Ef 2.19-22) e diz que enquanto membros da igreja e filhos adotivos de Deus, os fiéis não são mais "estrangeiros nem forasteiros, mas concidadãos dos santos e da família de Deus" (Ef 2.19). Na mesma carta, Paulo dobra os joelhos na presença "do Pai... do qual toda família nos Céus e na Terra toma o Seu nome" (Ef. 3.14-15). 




A idéia de adoção dá conteúdo ao conceito de pessoa em seu encontro com a irredutibilidade de Deus e está presente, por exemplo, na teologia de João, que retoma e amplia o tema da filiação. Assim, na oração de Cristo antes da paixão, no evangelho de João lemos: "Como Tu, ó Pai estás em Mim e Eu em Ti, que também eles sejam um em Nós.." (Jo 17.21; cf. 17.11). 




Assim sintetiza Lossky a relação entre pessoa e a obra do Espírito. 




“A obra do Espírito Santo refere-se às pessoas, dirigindo-se a cada uma delas. O Espírito Santo comunica na Igreja às hipóstases humanas, a plenitude da divindade segundo um modo único, ‘pessoal’, apropriado para cada homem enquanto pessoa criada à imagem de Deus... Cristo torna-se a imagem única apropriada à natureza comum da humanidade.; o Espírito Santo confere a cada pessoa criada à imagem de Deus a possibilidade de efetivar a semelhança na natureza comum. Um empresta sua hipóstase à natureza, a outra dá sua divindade às pessoas. Assim, a obra de Cristo unifica, a obra do Espírito Santo, diversifica: a unidade de natureza se realiza nas pessoas; quanto às pessoas, elas não podem alcançar sua perfeição, tornar-se plenamente pessoas, senão na unidade de natureza, deixando de ser ‘indivíduos’ que vivem para si mesmos, que têm natureza e vontade próprias, ‘individuais’. A obra de Cristo e do Espírito Santo, portanto, são inseparáveis: Cristo cria a unidade do seu corpo místico através do Espírito Santo e o Espírito Santo se comunica às pessoas humanas através de Cristo”. 




O Espírito Santo, segundo Lossky, no seu advento manifesta a natureza comum da Trindade, mas cancela-se enquanto pessoa, já que nele a vontade de Deus não é mais externa. O Espírito está escondido pelo dom, para que o dom que ele comunica seja plenamente nosso. Ele nos dá a graça desde o interior, manifestando-se em nossa própria pessoa, até que a nossa vontade humana permaneça de acordo coma vontade divina e coopere com ela na obtenção da graça, fazendo-a nossa. 




Para Lossky, o Espírito Santo é a unção que repousa sobre Cristo e sobre todos os cristãos que reinarão com ele no século futuro. Então essa pessoa desconhecida, que não tem sua imagem numa outra hipóstase, se manifestará nas pessoas plenas de Cristo: a imagem do Espírito será a multidão dos santos. 



Meu Jesus salvador 







As pessoas celebram o nascimento de um palestino moreno, algo cabeludo, de olhos castanhos e nariz adunco. Se esse era mesmo seu biotipo é difícil dizer, mas é quase certo dizer que ele foi assassinado com cerca de trinta anos numa distante páscoa judaica. E mesmo quem não é cristão reconhece a data em que é comemorada a prisão, tortura e condenação à morte desse homem. A partir daí milênios foram contados para frente e para trás. 




Apesar de seus amigos terem escrito sobre ele e outros que se tornaram amigos, sua vida ainda apresenta mistérios. Yeshua haMasiah. Hoje é um dilema para comunidades e povos: ou aceitamos a convivência respeitosa num mundo marcado por diferenças -- daí os diálogos que procuram pacificar católicos, judeus e protestantes -- ou aprofundamos contrastes, raiz da proliferação do que é antivida. O mais estranho é que, na encruzilhada da civilização, cristãos e não-cristãos voltam ao começo de tudo. 




Yeshua viveu na Palestina. Existem mais fontes sobre ele do que em relação a Sócrates, cuja existência foi basicamente testemunhada por um único discípulo, Platão. Mas não é possível discorrer com a mesma segurança sobre a data de nascimento e a da morte de Yeshua. 




Um recenseamento promovido na Palestina por Herodes, interessado em regularizar a cobrança de impostos, apresenta pistas de que ele teria nascido cerca de seis anos antes do chamado ano zero. Teria morrido às vésperas do Pessach, numa sexta-feira. Conferindo calendários, verifica-se que duas sextas-feiras coincidiram com a celebração naquele período: uma no ano 30 e outra no ano 33 da era Cristã. 




Yeshua é mais que um homem santo ou um mestre de moralidade. Ele é o filho de Yaveh que se tornou filho do Homem. A encarnação é uma expressão da experiência do Masiah na comunidade do Caminho. Nele, a divindade está unida à humanidade, sem a destruição de nenhuma dessas realidades. Yeshua haMasiah é verdadeiramente Yaveh, que tem em comum a mesma realidade igualmente com Abba e o Ruach haKadosh. Ele é verdadeiramente homem que compartilha com todos nós o que é humano. E como único Deus-homem, Yeshua haMasiah colocou a humanidade em comunhão com Yaveh. 




Pela manifestação da trindade, pelo ensinamento do significado da autêntica vida humana, e pela vitória sobre os poderes do pecado e da morte através da ressurreição, haMasiah é a expressão suprema do amor de Yaveh Abba, por seu povo, tornado presente em cada época e em cada lugar pelo Ruach haKadosh através da vida da comunidade. Os pais gregos das primeiras ecclesias resumiram o ministério do Masiah nesta afirmação: "Deus tornou-se o que nós somos de tal maneira que nós podemos nos tornar o que Ele é". 




E, assim, o Caminho judaico do Yeshua haMasiah deixou a Palestina, expandiu-se na Grécia e seguiu as rotas romanas. No quarto século, os seguidores do Yeshua haMasiah, agora Jesus Cristo, feitos poder eclesiástico, declararam: é um risco separar Jesus e Cristo, ou ver a ação salvífica num e em outro não, ou afirmar que há uma ação salvífica no Cristo em sua divindade, separada da humanidade do Cristo encarnado. É fundamental levar em conta os dois aspectos complementares da Cristologia. Ao lado da união das duas naturezas de Jesus, o Cristo, temos que compreender a questão da distinção, que nos alerta para o fato de que não há confusão entre essas duas naturezas. 




O monofisismo se apresenta quando iniciamos a caminhada em direção à predileção por uma das naturezas do Cristo, no caso, a tendência de absorção da natureza humana na divina. Mas há um monofisismo invertido, outro risco, o da absorção da natureza divina na humana, ocasionando uma redução da divindade da pessoa do Logos. 




A ação humana de Jesus é a ação do Cristo encarnado, mas há uma ação divina que permanece sempre distinta da humana. Há uma ação contínua do Logos antes e depois da encarnação, mas sem que isto signifique a negação do evento cristológico como concentração insuperável da auto-revelação divina. Isto porque a economia do Cristo encarnado constitui a revelação de uma economia mais ampla, a do Cristo eterno de Deus. 


A revelação de Jesus, o Cristo, oferece à humanidade tudo o que é necessário para a salvação, não necessitando ser completada por qualquer outra ação ou processo, que não seja o arrependimento e a obediência. O evento Jesus, sem deixar de ser revelação universal da vontade de Deus, permanece particular em razão de sua historicidade. 




Significa que tal evento não diminui a potência salvífica de Deus, pois a ação universal do Cristo e do Espírito não se circunscreve à humanidade de Jesus. Por isso não se pode reduzir Jesus a uma figura salvífica entre outras. A revelação operada em Jesus Cristo é definitiva e insuperável. 


Seria um erro entender a ação do Espírito deslocada da economia salvífica universal do Cristo encarnado. Na historicidade da igreja, é fundamental insistir na conjunção da Cristologia com a Pneumatologia, a fim de preservar a centralidade do evento Cristo. Irineu, pai da igreja, utiliza uma metáfora para nos explicar essa conjunção – que logicamente como qualquer metáfora tem suas limitações. Ele fala das duas mãos de Deus que operam juntas a economia da salvação: a mão do Cristo e a mão do Espírito. Mãos que atuam unidas, mas são distintas e complementares. Assim, a presença do Espírito na obra do Cristo encarnado não põe um fim na atuação do Espírito depois do evento-Cristo. O Espírito estava presente e operante antes da glorificação do Cristo e continua presente hoje. 


A revelação universal do Cristo não pode nos levar a considerar as religiões do mundo como caminhos complementares ao do corpo de Cristo. Quando muito a universalidade da revelação presente nessas confissões assume um papel de preparação evangélica para a compreensão no evento Cristo, não podendo ser consideradas caminhos de salvação. 




Ao longo da história cristã foram comuns injustiças e perseguições aos grupos e denominações que discordavam do cristianismo hegemônico naquele momento. Ações essas que violentam a imago Dei, a liberdade de escolha e a compreensão da ação salvífica do Cristo. Denominações não se resumem à mera representação de uma busca humana de Deus, mas traduzem a revelação universal de Deus, através da qual Ele tem se automanifestado à humanidade. São partes do processo de envolvimento pessoal de Deus com a humanidade, que atravessa a história, tendo como centro salvífico o evento Cristo. 




Jesus, o Cristo, é aquele que revela o Pai. Quando Deus dá-se a conhecer, de forma direta e especial, o faz através de seu Filho, em carne e osso. E é justamente essa verdade revelada em Cristo, que deve dirigir toda a compreensão do ser humano e da igreja de Cristo. Jesus Cristo é Deus e homem, consubstancialmente perfeito e pleno. Nesse sentido, entendemos que o Cristo encarnado possibilita uma compreensão do que é a humanidade, traduzindo numa linguagem cheia de vida os conteúdos fundamentais daquilo que está dito em Gênesis sobre o ser humano, antes do pecado. 




O Cristo revelado é a dimensão mais profunda do humano, a dimensão que traduz aquilo que o cristão é: filho adotado do amor e da graça de Deus, criado para o louvor, honra e glória do Deus eterno. 




O corpo de Cristo sobre a terra é uma nova vida com Cristo e em Cristo, dirigida pelo Espírito. A luz da ressurreição de Cristo reina sobre a igreja e a alegria da ressurreição, do triunfo sobre a morte, compenetra-se nela. O Senhor ressuscitado vive conosco e nossa vida é uma vida misteriosa em Cristo. Os cristãos levam este nome precisamente porque são de Cristo, vivem em Cristo e Cristo vive neles. 




A encarnação não é unicamente uma idéia ou uma teologia; é antes de tudo um fato que se produziu uma vez no tempo, mas que possui a força da eternidade. E esta encarnação perpétua, sem confusão, das duas naturezas: a natureza divina e a natureza humana. 




A comunidade de fé, a ecclesia, é o corpo místico de Cristo, enquanto unidade de vida com Ele. Expressa-se a mesma idéia quando se dá à ecclesia o nome de esposa de Cristo ou esposa do Logos. A ecclesia enquanto corpo de Cristo não é Deus/homem, pois ela não é mais que sua humanidade; mas é a vida em Cristo e com Cristo, a vida de Cristo em nós: "Não sou mais eu quem vive, é Cristo que vive em mim" (Gálatas 2.20). 




A ecclesia, em sua qualidade de corpo de Cristo, que vive da vida de Cristo, é por Ele mesmo o domínio, onde está presente e onde opera o Espírito. Eis aqui, porque se pode definir a ecclesia como vida bendita no Espírito. A ecclesia é obra da encarnação do Cristo, ela é encarnação: na ecclesia Deus se assimila à natureza humana e através da ecclesia o corpo se assimila à natureza divina. É a santificação, que os pais chamavam deificação, “zeosis” da natureza humana, conseqüência da união de duas naturezas em Cristo. 




Assim, a ecclesia é o corpo de Cristo: enquanto ecclesia participamos da vida divina da Trindade. Ela é a vida em Cristo, é o corpo de Cristo, que permanece unida à Trindade. 




Entendemos o que somos e o comissionamento que temos, enquanto ecclesia, através da ação de Jesus na Palestina. Por isso, vamos caminhar com ele. A primeira parte da missão de Jesus (4.14–9.50) foi toda situada na Galiléia (cf. 23.5; Atos 10.37). Ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), Lucas abre a comissão de Jesus com a cena da pregação na sinagoga de Nazaré (4.16-30), que descortina toda a seqüência do evangelho: o anúncio da salvação fundamentado nas promessas do Primeiro Testamento e inspirado pelo Espírito, a salvação dos não-judeus, a rejeição de seus compatriotas e a tentativa de assassinato. 




No texto, Lucas descreve duas questões centrais: em primeiro lugar o programa de Jesus e, em segundo lugar, o destinatário da mensagem. Assim, os versículos 18 e 19 apresentam o programa e os versículos 23-27 seu público, os gentios. 




Jesus foi ungido, escolhido por Deus, e sob a ação do Espírito – ação esta que caracteriza o verdadeiro profeta – tem como missão proclamar e libertar. Seu programa é formado por quatro pontos: anunciar a boa nova aos pobres, proclamar a libertação aos cativos, dar vista aos cegos, por em liberdade os oprimidos. O programa destaca as idéias de anunciar/ proclamar e a de libertar/ salvar. 




A idéia de proclamar está presente no Primeiro Testamento, já que a missão profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias, incluídos nesse período de ouro homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias, esses anunciadores da vontade de Deus falaram aos reis e ao povo. Advertiam, repreendiam, encorajavam. Falavam de julgamentos e de promessas espetaculares. Traduziam grandeza de caráter e força moral. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. As Escrituras eram lidas e interpretadas. 




João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa da proclamação. 




O conceito de libertação no Primeiro Testamento parte da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador no Primeiro Testamento traduz sempre a imagem do libertador como alguém que arrebata um povo da destruição. E no Novo Testamento, o libertador era aquele que soltava os israelitas da escravidão, ou que arrancaria a nação da impiedade. 




Para todo o judeu, na época de Jesus, o ato mais característico de libertação ocorreu sob a liderança de Moisés, quando Deus salvou seu povo da escravidão aos egípcios e o libertou no deserto do Sinai. É fundamental entender que a libertação da escravidão egípcia definiu para os judeus do período helênico o paradigma da libertação como um ato de Deus que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa. Mas, e aí está a chave do conceito de aliança, para que livres pudessem servi-lo. Essa idéia fundamenta o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século. 




O texto usado por Jesus é a leitura de Isaías 61.1-2. Ao ler o texto e dizer que ele próprio era o cumprimento da profecia, Jesus criou uma nova hermenêutica, que será amplamente utilizada por todos os escritores do Novo Testamento. Ele é o intérprete inspirado, ungido, no cumprimento do que foi anunciado e que está presente nesse kairós para o desenlace dos últimos tempos: proclamar o ano aceitável do Senhor. Partindo dessa hermenêutica, os escritores do Novo Testamento, e Lucas entre eles, lerão o Primeiro Testamento à luz do evento Jesus. 




Uma característica marcante que se destaca na personalidade de Jesus é a sua liberdade. Liberdade policrômica e polifônica, que abrange os mais diversos registros de expressão e, talvez, seja a chave para explicar o fascínio exercido por ele sobre os que o rodeavam. Autonomia de iniciativa e de movimentos, como desenvoltura e franqueza para falar, com clareza quando toma alguma posição, instrui ou critica. Demonstra grande liberdade em face das classes dominantes. Liberdade para ensinar. 




Liberdade para escolher seus discípulos entre pessoas mal vistas. A liberdade de Jesus vai abrindo caminho entre os conflitos sociais, sem renunciar um só momento ao sentido do outro, à preocupação pela pessoa de carne e osso dentro de cada situação concreta. Liberdade que visa suscitar condições humanas adequadas a uma vida pessoal criativa e de autonomia dos grilhões que prendem ao passado e tolhem o futuro. 




A radicalidade da liberdade de Jesus consiste na plenitude de sua inserção no mundo do excluído. A liberdade de Jesus constitui-se assim no fato pessoal fundamental ligado à pregação do Reino. Antes de ser tema de sua pregação, a liberdade e a libertação encontram expressão concreta na própria pessoa, no seu dinamismo criador, na sua originalidade irredutível. Jesus se mostra profundamente livre e, por isso, tanto a sua palavra como seus atos suscitam liberdade ali onde se fazem presentes. Neste sentido, sua prática é fundadora de liberdade. Jesus liberta para o Reino. 




Em meio a todas as questões, surge uma pergunta: O que quis e veio trazer afinal Jesus, o Cristo, com a sua pregação? A resposta é: ser em sua própria pessoa a resposta de Deus à condição humana. Mas para entender Jesus como resposta à condição humana, precisamos compreender quais são as questões que demandam esta resposta. De uma forma geral podemos dizer que elas são geradas por um princípio-esperança gerador de constantes utopias de superação de felicidade plena, que faz parte do humano, seja qual for a sua cultura ou civilização. 


É neste contexto, que de certa forma esta presente em toda história humana, que surge o homem de Nazaré anunciando a resposta de Deus: o romper da nova ordem está próximo e será trazido por Deus. 


Jesus não começou pregando a si mesmo, mas o Reino de Deus, que é indiscutivelmente o centro de sua mensagem. Mas o que era Reino de Deus para os ouvintes de Jesus? A realização da esperança de superação de todas as alienações humanas, da destruição de todo mal, seja físico, seja moral, do pecado, do ódio, da divisão, da dor e da morte. Isto aconteceria não numa outra vida, no céu, ou pós-morte. Esta utopia, anseio de todos os povos, é o objeto da pregação de Jesus. A sua promessa é que não será mais utopia, mas realidade a ser introduzida por Deus. 




Jesus torna-se libertador porque prega e inaugura o Reino de Deus. Reino este, que é a transformação global e estrutural da realidade estabelecida do humano e do cosmos, purificados de todos os seus males. Não é ser outro mundo, mas transformar o mundo em novo. Ele apresenta o Reino como graça, acima de todos os esquemas anteriores de possíveis virtudes e merecimentos. 


Os zelotas procuravam alianças para realizar a sua revolta militar; os sacerdotes obtinham a ajuda dos grandes poderes do mundo para manter a ordem sacra estabelecida; os fariseus insistiam na pureza da lei que pode conservar os fiéis impolutos dentro deste mundo corrupto; e os apocalípticos queriam congregar os restantes escolhidos para o tempo de julgamento que estava próximo. 




Jesus escolhe como destinatários do seu reino os últimos do mundo. É o cumprimento de uma das grandes utopias do Primeiro Testamento, expressas no ano sabático ou do jubileu, que jamais foram realizadas como ideais sociais de forma definitiva. Os milagres de Jesus vêm mostrar que o Reino já esta presente e vai implodir o velho mundo. Jesus anuncia o ano de graça do Senhor que não conhecerá ocaso. 


A libertação promovida por este Reino abarca tudo: humano, comunidade, mundo, a totalidade da realidade deve ser transformada por Deus, a partir do próprio ser humano. A pregação do Reino se realiza em dois tempos: no presente e no futuro. 




Por isto Jesus entusiasma as massas. Ele tem consciência de que com ele já se iniciou o fim deste velho mundo. Jesus vai entender o messianismo e as categorias apocalípticas como os meios mais adequados para comunicar sua mensagem libertadora. Com essa linguagem ele participa dos desejos fundamentais do coração humano, de libertação e de uma nova ordem. A sua moral tem sentido messiânico e se exprime na forma de ruptura. Suplantando os princípios do seu povo, ele acolhe à mesa e na amizade os perdidos, expulsos da aliança. Apesar destes elementos, a pregação de Jesus destaca-se das expectativas messiânicas do povo. Ele não alimenta o nacionalismo judeu; não diz nenhuma palavra de rebelião contra os romanos, nem faz qualquer alusão à restauração do rei davídico. Neste ponto, decepciona a todos. O que mais ressalta em Jesus, o Cristo, é a autoridade com que anuncia o reino e o torna presente por sinais e gestos inauditos. Em Jesus, irrompe o tempo da libertação. 




Uma vez entendendo qual era a sua missão, é preciso saber qual a sua estratégia. Já que Reino de Deus significa uma revolução global e estrutural da velha ordem, Jesus faz duas exigências fundamentais: exige conversão da pessoa e postula uma reestruturação do mundo da pessoa. 




O Reino atinge primeiro as pessoas. Delas se exige conversão, mudar modo de pensar e agir no sentido de Deus, portanto, revolucionar-se interiormente. É um novo modo de existir diante de Deus e diante da novidade anunciada por Jesus. Implica uma ruptura. É um não à ordem vigente. Ruptura até mesmo de uma religião que gerava uma consciência oprimida. Afinal, na religião judaica, ao tempo do Novo Testamento, tudo estava prescrito e determinado, tanto nas relações com Deus como entre os homens. A Lei era apresentada como a manifestação da vontade de Deus, com isso a consciência sentia-se oprimida por um fardo insuportável de prescrições legais. 


Jesus levanta um protesto contra a escravização do homem em nome da lei. A pregação ética de Jesus pode ser resumida em uma frase: não é a lei que salva, mas o amor. Em outras palavras ele desteologiza a concepção da lei. A vontade de Deus não se encontra só nas prescrições legais e nos livros santos, mas se manifesta principalmente nos sinais dos tempos. 




Mas, se Jesus liberta o ser humano das leis, não o entrega a libertinagem ou a irresponsabilidade. Antes, cria laços ainda mais fortes que os da lei. Liberdade sim, frente à lei, contudo para a vida e não para a morte. 




Desta forma, salvar o humano das convenções e dos preconceitos sociais. No Reino de Deus há liberdade e igualdade fraterna. Nesta concepção, justiça supera o conceito clássico de dar a cada um o que é seu. Jesus vem anunciar uma igualdade fundamental. Ele confronta toda a subordinação desumanizadora a um sistema, seja social ou religioso. 


Outro aspecto deste processo de salvação, passa pelo mundo das pessoas como, por exemplo, a libertação do legalismo, das convenções sem fundamento, do autoritarismo e das forças e poderes que subjugam o ser humano. Estas forças eram representadas particularmente pelos escribas e fariseus, que viviam espalhados por todo Israel, comandavam as sinagogas, possuíam enorme influência sobre o povo e para cada caso tinham uma solução que arrancavam das tradições religiosas do passado e dos comentários da lei mosaica. Quanto a eles, Jesus declara que dizem e nada fazem. Atam pesadas cargas de preceitos e leis e põem-nas nos ombros dos outros. 


Jesus prega que para entrar no Reino não basta fazer o que a lei ordena. A presente ordem das coisas não pode salvar o homem da sua alienação fundamental. Ela é uma desordem. Urge uma mudança de vida e uma reviravolta nos fundamentos da velha situação. Por isso os marginalizados da ordem vigente estão mais próximos do Reino de Deus que os outros. Jesus vai além das fronteiras da lei, para o local onde habitam aqueles a quem o povo e os letrados consideram pecadores. Ele veio de forma provocativa. 




Podia ter vindo silenciosamente, mas preferiu comportar-se escandalosamente: sentou-se à mesa com publicanos e prostitutas, convidando-os/as para o banquete novo de seu Reino. Ele rompeu os preconceitos sociais da época, não se ateve às convenções religiosas e não respeitou as divisões de classes. Ele realizou sua ação no reverso da história. Estava, está e continua radicalmente apaixonado por mim. E é paixão dele que garante a minha. 









As boas obras do amor 







"Por amor à verdade e no empenho de elucidá-la, discutir-se-á o seguinte em Wittenberg, sob a presidência do reverendo padre Martinho Lutero, mestre de Artes e de Santa Teologia e professor catedrático desta última, naquela localidade. Por esta razão, ele solicita que os que não puderem estar presentes e debater conosco oralmente o façam por escrito, mesmo que ausentes. Em nome do nosso Senhor Jesus Cristo. Amém". 




Eis a apresentação das 95 teses de Lutero em Wittenberg. E como neste livro o tema é a teologia da vida, que direciona pensar e sentir, achamos por bem começar pela tese número 41 de Lutero: "Deve-se pregar com muita cautela sobre as indulgências apostólicas, para que o povo não as julgue erroneamente como preferíveis às demais boas obras do amor". 




As boas obras do amor. Mas o que é isso? Silva em O Amor e seus Mo(vi)mentos diz que o amor é processo que acompanha o humano desde a sua concepção. Mas que a compreensão do amor depende das relações que mantém com os outros e das experiências que tem. Assim, o processo do amor pode favorecer o desenvolvimento particular do humano, mas é lento e gradual. Compreende aprendizados, ações e interpretações para a dotação de sentido que os humanos constroem em comunidade. Ou seja, amor inclui outros. Mas e as tais boas obras, como surgem? 




Em Kierkegaard, as boas obras do amor traduzem uma ética que se estabelece no dever de amar, conforme explica Roos. A partir do amor enquanto dever surge o conceito de próximo. O dever de amar o próximo critica o amor egoísta. Assim, o amor, fundamentado no outro, muda o olhar. E é o olhar transformado que possibilita não errar o alvo. Ser ético é isso: não errar o alvo em relação ao outro, agora próximo, pois olhamos com um olhar transformado, de amor. 




Ao contrário do que muitas pensam, e como vimos em Lutero, a graça não descarta a importância das obras do amor. Na verdade, as obras do amor são consequência da graça. 


Em 1521, em seu polêmico Magnificat, um comentário sobre a oração de Maria, Lutero critica aqueles que só olham para os céus “em busca de honra, poder, riqueza, conhecimento, bem-estar e tudo que é grande e elevado”. Ou seja, não olham para baixo “onde existe pobreza, ignomínia, miséria, desgraça e angústia”. Assim, abandonados pelo pecado da usura e do egoísmo, os pobres “permanecem na condição de humilhação e desprezo”. 


Na verdade, as obras do amor e seu contrário, as obras do egoísmo, são uma constante nos sermões de Lutero. Ao falar sobre o Comércio e a usura, Lutero condenou aqueles que depositavam seu amor no dinheiro e, por esse motivo, praticavam os atos mais vis. Segundo o reformador, “praticam livremente todo tipo de tramóia e astúcia, e inventam outras diariamente. Assim tudo fede a ganância. Tudo está afogado e mergulhado num grande mar de lama.” 


“Eles deram um jeito de ter lucro certo e eterno da mercadoria incerta e arriscada. Mesmo assim precisam sugar o mundo inteiro. Todo o dinheiro tem de entrar e flutuar para o bolso deles.” 


“São todos uns ladrões, assaltantes e agiotas públicos.” 


Talvez por isso, Lutero mostrou-se preocupado com a economia e a política, e procurou soluções criativas para os problemas sociais. No Estatuto para uma Caixa Comunitária, escrito em 1523, Lutero propõe o armazenamento de grãos e ervilha, para que, em época de inflação, os preços pudessem ser regulados. A manutenção dessa caixa comunitária viria da produção de pomares, campos, pastagens, assim como de pedágios, aluguéis e juros. De doações, coletas, contribuições, esmolas e de heranças “espontâneas, feitas em estado saudável e por testamento no leito de morte, em espírito cristão, para honra e glória de Deus e por amor ao próximo, sejam em bens, dinheiro, jóias e provisões”. E tudo isso, para garantir a vida de pobres, idosos, viúvas, órfãos, cidadãos endividados e estrangeiros que estivessem mudando para Wittenberg. 


Essa cooperativa de consumo seria administrada por provedores eleitos por assembléia geral da igreja, com representação na nobreza, do conselho paroquial, dos habitantes da cidade e dos camponeses. Os recursos financeiros seriam guardados num cofre, em lugar fechado, e as chaves entregues aos administradores. Entre outras coisas, esse dinheiro seria empregado no pagamento dos salários dos professores. 




Talvez essa cooperativa proposta por Lutero nos faça entender melhor o que o reformador entendia por boas obras do amor. 









A teologia nossa de cada dia 




A vida é radical, é comunicação e presença. Com isso queremos dizer que a teologia que nasce da vida correlaciona comunicação e presença, sem colocar um sinal de igualdade entre essas realidades e sem declarar que necessitam sempre ser levadas a termo juntas. Na radicalidade da vida, a comunicação tem conseqüências sociais porque convoca pessoas e comunidades ao amor pelos outros em todas as áreas da vida. 


A teologia que nasce da vida vê compromisso social como comunicação e presença, que tem conseqüências para a proclamação da boa nova que se dá através do testemunho da graça do Cristo. Quando há silêncio e cruzar dos braços diante dos sofrimentos do mundo, a Palavra é traída, já que nessas circunstâncias não há o que oferecer ao mundo. E tem como um de seus pilares o serviço, que em seu sentido cristão significa amor ao próximo. Diante da alegria pelo que Deus tem feito, ao abençoar pessoas, propõe como resposta a promoção do serviço. Nesse sentido, vida e serviço são expressões que não podem vir separadas. 


Nas primeiras comunidades cristãs, o serviço teve característica singular de testemunho de fé por meio da vida solidária (Atos 2.44-45; 4.32-35), já que, como disse Paulo, “se um membro sofre todos sofrem com ele” (1Coríntios 12.26). O fundamento dessa ação solidária repousa nos ensinos e prática de Jesus. Por isso, para a teologia da vida, o amor a Deus só é possível se este alcança o próximo (1João 4.20). Na prática, amar ao próximo consiste em propiciar dignidade humana e integração na comunidade (Mateus 9.35ss). Por seu ministério e morte, Cristo assumiu a fraqueza humana e sofreu o poder de morte do mundo para, então, superá-los. Assim, desafia ao testemunho do amor de Deus, enquanto ação solidária. 




A teologia que nasce da vida é sentido e luta incondicional pela justiça, entendendo que a justificação pela graça, através da fé, não se refere apenas a fé posicional, mas existencial. É uma instrução de que falamos de Cristo na comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. E, assim, é fé material, política e espiritual, já que transformação da pessoa e transformação estrutural estão correlacionadas. Ser, fazer e dizer estão no coração da vida. 


Podemos, então, na contemporaneidade dizer que a radicalidade da vida remete a uma teologia da centralidade em Cristo, pois o serviço sacrificial de Jesus é o paradigma. Em sua vida e por meio da sua morte, Jesus estabeleceu o modelo de identificação com os excluídos e o exercício da inclusão. Na cruz, Deus revela a seriedade com que Ele olha para a justiça e reconcilia consigo integrados e excluídos, ao cumprir com os requerimentos de sua própria justiça. No caminhar com os excluídos de bens e possibilidades, serve-se no poder do Senhor por meio do Espírito e encontra-se a esperança em submeter todas as coisas a Cristo. 


A vida é graça de Deus, que concede impulso à comunicação permanente onde todo e qualquer locus é campo privilegiado. Como receptores do amor somos pessoas agraciadas pela generosidade e aceitação dos demais. Tal graça define a justiça frente à situação-limite vivida pelo povo brasileiro, não somente como contrato que deve ser honrado, mas como serviço àquele que se encontra à margem, caído. 


Vida plena é diálogo no Espírito, um convívio com o Espírito, já que este traduz o sentido cristão da palavra espiritualidade. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da radicalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus. Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de Deus é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar. 


A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida. 


O Espírito é o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio de Cristo. Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é experimentado somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver. E onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do Espírito, Paulo falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé. 


A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre não é somente a fé com a qual eu concordo, mas aquela que me leva a partir e repartir o pão e o vinho. Tal fé pessoal é sempre comunitária e o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o caos. Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a vivenciam realmente: é libertação do medo para confiança, reviver para uma esperança viva, amor incondicional à vida. 


Para a fé que parte e reparte pão e vinho, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela necessidade do outro que sofre. Fé significa assim, posicionamento existencial, ser criativo diante dessas gentes brasileiras, com suas comunidades, com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado marcado pela escravidão e pela exclusão e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta com o próximo e eterna com Deus. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito. 


Mas a radicalidade da vida remete também a imagem de Deus, e nesse sentido é uma teologia para os excluídos, que como todos os humanos são portadores da imagem de Deus Criador. Pessoas e comunidades excluídas de bens e possibilidades têm conhecimentos, habilidades e recursos. Tratar tais pessoas com dignidade significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades. Trabalhar com elas envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua. 


A vida dialoga na igreja local, porque Deus por sua graça tem dado as comunidades de fé o desafio da comunicação. O futuro da comunicação se define em termos de expansão do Reino de Deus, capacitando as gentes para que transformem suas comunidades. As comunidades de fé devem gerar espaços e tempos de inclusividade, como fruto natural do chamado que receberam. As pessoas e mesmo as comunidades são atraídas por este fazer de amor das comunidades cristã. E é a partir daí que são impactadas pela mensagem cristã. 


O Reino de Deus questiona permanentemente a vida, porque a experiência de caminhar com as comunidades excluídas deixa uma interrogação sobre o que significa ser comunidade de fé. A igreja pode ser instituição ou organização, mas é nas comunidades de fé em Jesus que se concretizam os valores do Reino. A participação dos excluídos na vida das comunidades de fé possibilita o encontro de novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira, ao invés de ser simples reflexo dos valores da subcultura dominante. A comunicação tem credibilidade na medida em que adota uma aproximação encarnada. Com freqüência as comunidades de fé têm-se dedicado à obtenção de dinheiro, êxito e influência. A comunidade que Jesus Cristo denominou seu pequeno rebanho faz parte do Reino de Deus. As tradições eclesiásticas não podem congelar o que a igreja já fez pela expansão do Reino. A igreja pode enfrentar o problema da miséria quando trabalha com os miseráveis e, a partir daí, pressiona atores sociais como a sociedade civil, os governos e o setor privado, sobre a base do respeito mútuo e o reconhecimento do papel de cada participante. 


É impossível na América Latina falar de compromisso com a vida e voltar às costas às transformações sociais que favoreçam os excluídos e caminhem na direção de acabar com a miséria. Venham de onde vierem, essas ações transformadoras se ampliam para incluir avanços em direção à transformação de valores, o reconhecimento da dignidade das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Com sua presença ao lado dos excluídos, as comunidades de fé colocam-se numa posição singular que favorece o trabalho para restaurar a dignidade concedida por Deus, apresentando valores que produzem recursos próprios e criam redes de solidariedade. 


Assim, vida cidadã é uma expressão que chegou à teologia. Traduz a consciência de direitos e deveres de cada pessoa como integrante de uma coletividade, entendendo-se essa coletividade em todas as instâncias do Reino de Deus e de sua presença no mundo. Isso pressupõe a igualdade, que transpõe barreiras de nível sócio-econômico, de etnia, de faixa etária, de sexo, de cultura, de situação civil, de deficiência física, de instituição e, também, pressupõe a unidade na pluralidade. Trata da existência humana sobre a face da terra, e seu direito à vida, liberdade, propriedade, trabalho, educação, saúde, entretenimento e cultura. Assim, a vida se faz teologia inclusiva, pois se contrapõe à opressão, omissão, rejeição e massificação. E também teologia espacial, pois considera o mundo como “oikos”, que precisa ser preservado, cuidado, adaptado, sinalizado, para usufruto e bem estar do ser humano, o que integra as demais criaturas, como parte de seus direitos e deveres, enquanto coroa da Criação. 


E a partir da vida, a ecologia também se faz teologia, pois envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões morais, intelectuais, econômicas, culturais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação do sentido bíblico de mordomia. O conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo. Os cristãos integrados no Brasil devem usar sua riqueza e seu poder a serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos de sua escravidão ao dinheiro e ao poder. A esperança de tesouros no céu livra da tirania de Mamon. 


Uma teologia que se propõe da vida deve repousar sobre o amor, a paz e a reconciliação, porque num mundo de conflitos e tensões étnicas tem-se falhado na tarefa de construir pontes. Trabalha pela reconciliação entre comunidades divididas etnicamente, entre integrados e excluídos, entre opressores e oprimidos. Reconhece o mandato de falar por quem não pode clamar por si mesmo e, também, a necessidade de defensoria tanto para tratar da injustiça estrutural, como para resgatar o próximo necessitado. Essa teologia clama por outra globalidade, solidária, pois a globalização excludente é o domínio de culturas que têm o poder de promover seus produtos, tecnologias e imagens além de suas fronteiras. A luz deste fato, as comunidades de fé com sua rica diversidade desempenham um papel singular por ser uma comunidade verdadeiramente global.  


E, por fim, nessas reflexões da teologia da radicalidade da vida para nosso continente, diremos que é espírito de família inclusiva, que faz a crítica da globalização selvagem e chama pessoas e comunidades à uma solidariedade com a América Latina, construída ao redor de propostas e ações de justiça e paz. Os países desenvolvidos, se comprometidos com a vida, devem reconhecer seu papel no desenvolvimento de uma economia global solidária, onde estão incluídas novas formas de pensar e agir em relação ao continente latino-americano. 


Sem descartar outras teologias de intervenção na sociedade, a defesa da vida nos leva a reconhecer o valor do planejamento, da organização e de outras ferramentas para a ação. Porém, estas ferramentas devem estar a serviço do processo de construção de relações e valorização dos excluídos latino-americanos, sejam eles pessoas ou comunidades. 


Dessa maneira, a radicalidade da vida faz um chamado à solidariedade latino-americana, entendendo que os cristãos devem ajudar aqueles que clamam pelos direitos das pessoas e comunidades e apoiar aqueles que se dedicam a melhorar as condições e possibilidades das populações na América Latina. 






O tempo das cerejas 







Ontem, já em São Paulo, eu cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata, mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido. 




É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas. 




Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado. 




Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor? 




Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida. 



Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento. 




Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente à Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas. 




Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar. 




O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher 

serviu o sangue da virgem num cálice 

cada gole tem o sabor da vida derramada 

mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras 

a rua está perfumada 

a alameda é atravessada. 




Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista. 




De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar. 


O tempo das cerejas fugirá para outras bandas 

Miró mia nas minhas lembranças 

rabisco no La Chascona ao poeta 

bardo brado 

por onde anda a ode? 

flagelo e sal 

sangue e semente 

formigas desfilam sobre o açúcar derramado 

você e eu descarrilados 

por poemar instantes 

beleza é água na garganta seca. 




Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago. 



Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se. 




Essas ruas de Santiago, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr, herói dos trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus: 




1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido. 




Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária. 




Também foi em 1955 que King finalizou sua tese A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-estadunidense e, por isso, sua ação militante repousou em parte sobre o pensamento socialista de Tillich. 



Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder. 




Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida de King e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal Versus orou pelo companheiro abatido: 




Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King! 




Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só aconteceria quando se estabelecesse uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. Seria um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garantiria a vitória. O aparelho do poder deveria ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruiria, mesmo quando os meios técnicos permitissem que se impusesse por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas. 




Mas do que palavras, a militância política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista. 




Londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte 

lugar de sonhos desperdiçados 

picadas na carne nova 

matinais de 11 de setembro 

o azul cede ao cinza 

morcegos desconstroem flores 

palavras duras decretam o fim da esperança 

olhos mareados 

a porta esmurrada 

a fronte torturada 

o corpo desfilado 

olho perdido na esquina. 




Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palácio, o La Moneda. 




E me lembro de um político, Salvador Allende, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se organizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina. 


Londres-fixo
nem Caetano 

nem Gil 

é ilha no nada 

lagartos da inexistência 

tristeza, espanto, perplexidade 

Tiago não tem salvador 

coturnos abundam! 




Os demônios estão mortos. Trinta e cinco anos depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. 















Quando a dor é grande 


Quando a dor é grande, 

Às vezes, eu duvido. 


Quando a dor é grande, 

Às vezes, eu pergunto: 

Estou mal de coração, 

Ou estou mal de ouvido? 


Se há resposta é o Nome, 

Se há caminho é a Paixão. 


São tantas as coincidências, 

Que coincidências não são: 

É a Tua presença na minha vida. 


Quando a dor é grande, 

Eu creio. Sei que é o meio 

Da Tua presença na minha vida. 


TEOLOGIA DA VIDA


Viver teologia é uma ordem radical e apaixonada. É, de certa maneira, uma lei, um mandamento do qual não escapo. O pecado como fato e ato que nos afasta da vida, a política como ação solidária que mantém a vida, e a beleza da negritude.

Temas de reflexões, variados como uma construção não previamente determinada, que aconteceu no escorrer da contingência. Falo de autores amados, de cidades francesas, cinema, artes, literatura, mulher e assassinato.

Nossas esperanças falam de promessas vividas, viventes e a viver, por isso, olhamos para o deserto que foi , mas também para a escatologia. Entre o céu e a terra, caro leitor, está a sua vida, seja você um menino solto nas ruas de São Paulo, um teólogo como Rosenzweig, uma Adélia Prado ou Georges Bataille. Alguns mistérios deliciosamente colocados a nossa frente são desafios marcados, que nos obrigam a pensar o impensável. Faça a sua viagem e que a paixão pela vida seja para você o pão de cada dia.

Fonte Editorial http://www.fonteeditorial.com.br/fonte-editorial-catalogo/teologia-da-vida/