samedi 9 février 2013

Para pensar o Carnaval brasileiro

Na multicultura relacional brasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. E a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso:

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado/ suado/ a todo vapor/ me deixa ser teu escracho/ capacho/ teu cacho/ diacho/ riacho de amor/ Vê se me usa/ abusa/ lambuza/ que a tua cafusa não pode esperar/ quando a lição é de escracho/ olha aí/ sai de baixo/ que eu sou professor/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá/ vê se me esgota/ me bota na mesa/ que a tua holandesa não pode esperar/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá”.
Esses códigos das brasilidades caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça social foi a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas latinas, as culturas indígenas e as culturas negras não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura popular brasileira. Essa multicultura mestiça é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da multicultura relacional brasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive.
O concreto e imediato da vida do brasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do brasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o brasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência.

Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. E as religiosidades brasilíndias e afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, são mais do que “um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país”, e são traduções antropológicas da multiculturalidade brasileira, inclusive de seus códigos relacionais.

Dessa maneira, “a adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes”.
Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do brasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o brasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o brasileiro solitário.

Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o brasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura brasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o brasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos.

Citações pela ordem:
Ney Matogrosso, “Não existe pecado ao sul do equador”. Letra e música de Chico Buarque e Ruy Guerra, in: “Feitiço Elektra”, 1978.
Peter Fry e Gary Nigel Howe, “Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo” in Debate e Crítica, São Paulo, no 6, 1975. Ruben George OLIVEN, A antropologia de grupos urbanos, Petrópolis, Ed. Vozes, 1987, p. 42.