mercredi 26 août 2015

O mais belo dos cânticos

Amar e ser amado,
Diferentes interpretações de um mesmo tema
Jorge Pinheiro, PhD

Ai flores, ai, flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
[Julião Bolseiro, Cantiga de amigo, do cancioneiro de Dom Diniz].


O Cântico dos Cânticos é o único livro das escrituras judaicas que tem o amor como seu tema exclusivo. Seu título poderia ser traduzido como A mais bela das canções, o que faz juz a esta que é uma das mais bem escritas estórias de amor de toda a literatura universal. Ao traduzir a rica imaginação oriental, o texto fala de amada e amante, interligando os quadros com coros e falas de grupos de personagens, como as filhas de Jerusalém e os guardas.

O texto tem forte conteúdo erótico, parte da realidade vivida por uma jovem camponesa, mostrando que estamos diante de um exemplar da dramaturgia do período áureo da literatura poética hebraica. Várias interpretações têm sido apresentadas para O Cântico dos Cânticos.

Aqui, faremos a leitura do Cântico dos Cânticos partindo de um conselho do intelectual inglês Daniel de Morley em suas memórias de viagens, no século 12, conforme citado por Jacques Le Goff (Os intelectuais na idade média, Lisboa, Editorial Estúdios Cor, 1973, pp. 25-26).

Morley conta que seguiu “as Artes, que esclarecem as Escrituras, em vez de as saudar à passagem ou de as evitar, fazendo resumos. Então, como nos dias de hoje é em Toledo que o ensino dos Árabes, que consiste, quase exclusivamente nas artes do quadrivium, é dispensado às multidões, apressei-me a partir, para aí ouvir as lições dos mais sábios filósofos do mundo. Tendo alguns amigos pedido para eu voltar e tendo sido convidado a deixar a Espanha, vim para Inglaterra com uma preciosa quantidade de livros”.

Que ninguém se indigne se, tratando da criação do mundo, eu invoco o testemunho não dos Padres da Igreja, mas de filósofos pagãos, porque, ainda que estes não figurem entre os fiéis, algumas das suas palavras, desde que sejam cheias de fé, devem ser incorporadas no nosso ensino. Nós que também fomos misticamente libertados do Egito, o Senhor ordenou-nos que despojássemos os Egípcios dos seus tesouros, enriquecendo com eles os Hebreus. Despojemos, pois, conforme o desejo do Senhor, e com a sua ajuda, os filósofos da sua sabedoria e da sua eloqüência, despojemos esses infiéis de modo a enriquecermo-nos com os seus despojos na fidelidade”.

As cantigas de amigo


Assim, queremos aprender com as cantigas de amigo, do medieval ibérico, por terem semelhanças que podem nos ajudar a entender a poesia de Cantares. As cantigas de amigo eram de autoria masculina, assim como Cantares e, também, apresentavam um eu lírico feminino.

Para entender esta questão do eu lírico feminino, é bom ler Magadelene Luise Frettloeh, O amor é forte como a morte: uma leitura de Cânticos dos Cânticos com olhos de mulher (in: Fragmentos de Cultura, Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás, IFITEG, Goiânia, 2002, vol.12, no. 4, pp .633-642).

Ela explica que é necessário ler Cântico dos Cânticos em perspectiva de gênero, pois neste livro canta-se o amor espontâneo entre uma mulher e um homem, um amor que é forte como a morte. E que nos poemas do início e do final do livro há um protagonismo feminino: “no decorrer da história da interpretação tentou-se soterrar essa herança; hoje importa redescobri-la".

Assim, encontramos tanto no Cântico dos Cânticos como nas Cantigas de Amigo a questão do amante ausente: a amada estava a espera dele ou tinha sido abandonada. Ambas poéticas traduzem a força do Eros humano. Outra característica marcada das cantigas de amigo era o fato de estar dirigida às amigas, a mãe ou irmãs, ou as forças da natureza e, em alguns casos, a Deus. A ambientação, rural ou urbana, estava sempre distante do castelo do senhor feudal.

Um dos maiores cancioneiros do medieval ibérico foi Julião Bolseiro e um de seus poemas, que intercala este artigo, expressa esse eu lírico feminino, que se lamenta porque o amante desapareceu e ela não sabe onde se encontra.

O amor entre os dois, diferentemente do amor cortês, vigiado, expressa a força do natural e espontâneo no amor humano, pois a cantiga parece insinuar que houve um relacionamento físico entre os amantes.

Nesta cantiga de amigo, a ambientação é rural, e não somente distante do castelo do senhor feudal, mas com presença marcante da natureza.

Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
ai, Deus, e u é?

Vós me preguntades polo voss' amigo?
E eu ben vos digo que é são e vivo:
ai, Deus, e u é?

Salomão, o herói


Uma interpretação, quase unânime entre antigos rabinos e os pais da Igreja, considera o rei Salomão o herói da estória. Dentro desta perspectiva, o roteiro seria mais ou menos assim: o rei possuía um vinhedo na região de Efraim, 80 quilômetros ao norte de Jerusalém (8:11). Essas terras estavam arrendadas (8:11) a uma viúva e seus quatro filhos (dois rapazes e duas moças, cf. 6:13, 1:5 e 6). A Sulamita, a mais bonita das filhas, era responsável pela casa e também cuidava dos rebanhos (1:8).

Certo dia, o rei, disfarçado para não ser reconhecido, visitou o vinhedo e ficou impressionado com a beleza da moça. Ela tomou Salomão por um pastor de ovelhas e este lhe dirigiu palavras de amor, prometendo voltar no futuro e lhe trazer presentes (1:8-11). À noite, a moça sonhava com a volta do amado, chegando mesmo, em determinado momento a pensar que ele estava chegando (3:1). Mais tarde, ele volta. Mas, agora, não como camponês e sim como rei de Israel (3:6 e 7). Segue-se, então, o casamento e seus desdobramentos.

Partindo desse roteiro temos cinco poemas

Título e prólogo - Cap. 1:1-4
1. O desejo e a satisfação da jovem camponesa - Caps. 1:5-2:7
2. A visita do amado e o sonho da moça - Caps. 2:8-3:5
3. A festa de casamento e as canções do rei - Caps. 3:6-5:1
4. A tardia recepção da amada e sua busca prolongada - Caps. 5:2-6:3
5. Sulamita e seu amado conversam - Caps. 6:4-8:4.
Epílogo e últimas adições - Cap. 8:5-8:14.

Para o teólogo chileno Samuel Fernández Eysaguirre. A manifestis, ad occulta, Las realidades visibles como único camino hacia las invisibles en el comentario al Cantar de los Cantares de Orígenes (in: Anales de la Facultad de Teología. Universidad Católica, Campus Oriente, Santiago, 2000, vol. 51, no. 2, pp.135-159) a leitura literalista levou os teólogos da Igreja antiga a um beco sem saída:

"Una lectura meramente literal del Cantar de los Cantares presentaba graves dificultades a la sensibilidad religiosa de la antigüedad. El libro exalta, al menos en su sentido inmediato, el amor humano y abunda, como pocos textos bíblicos, en descripciones de los miembros del cuerpo. Y por otra parte, el Cantar no menciona explícitamente a Dios. El sentido literal del texto no parecía edificar moralmente a sus lectores. Era posible preguntarse ¿qué hace en las Escrituras un libro que no habla de Dios? Las serias dificultades que presentaba su lectura literal, sumadas al carácter poético del Cantar, favorecían fuertemente una interpretación de tipo simbólica, interpretación que se impuso tanto en el ámbito judío como cristiano. Las dificultades recién descritas llevaron a algunos rabinos a dudar de la canonicidad del Cantar...".

Vós me preguntades polo voss' amado?
E eu ben vos digo que é viv' e são:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é são e vivo
e seerá vosc' ant' o prazo saido:
ai, Deus, e u é?

E eu ben vos digo que é viv' e são
e s[e]erá vosc' ant' o prazo passado:
ai, Deus, e u é?

Salomão, o vilão


Outra interpretação, formulada pelo teólogo Heinrich Ewald, no século XIX, vê no amante um pastor de quem a jovem estava noiva, antes de ser capturada e levada para o harém de Salomão, por um de seus servos. Depois de ter resistido com sucesso a todas as tentativas do rei para conquistar sua afeição, ela é libertada e se reúne a seu amado, com quem aparece na cena final.

A jovem relembra o amado (1:2-3). Pede que ele a leve de volta logo, pois o rei a introduziu nas seduções da corte (1:4). Suas recordações do amado a perturbam (1:7). O rei tenta seduzi-la com jóias (1:11) e perfumes (1:12), mas ela prefere o cheiro do campo que lembra o corpo do amado (1:13-14). A moça se recorda de uma visita feita por ele e de um sonho que se seguiu (2:8-3:5). Depois disso, ela é novamente visitada e louvada por Salomão (3:6-4:7). Diante da persistente ofensiva do rei, antecipa seu casamento com o jovem camponês (4:8-5:1). Sua vida e seus sonhos estão impregnados com as lembranças do amado (5:2-6:3). Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita (6:4-7:9). Ela, no entanto, mantém sua fidelidade ao pastor e resiste às tentativas do rei (7:10-8:3). Diante disso, Salomão a liberta, verificando que é impossível conquistar a moça.

Dentro desta perspectiva, é interessante ler Cântico dos Cânticos, O fogo e a ternura de Ney Brasil Pereira e Pablo Andiñach, (Col. Comentário Bíblico, Petrópolis/São Leopoldo, Editora Vozes/Editora Sinodal, 1998, 128p., in: Estudos Bíblicos. Editora Vozes, Petrópolis/RJ, Brasil, 2000. no. 65, p9.81-84).

Para os dois teólogos, os poemas do Cântico foram redigidos, em sua redação final, por uma mulher. Seria, portanto, o único livro das escrituras judaicas de uma autora. Isso dá ao comentário um cunho especial, uma vez que se assume que ela, a autora, tenha deixado nos poemas sua marca feminina e seu modo peculiar de viver a sexualidade e a vida. Ao mesmo tempo, a autora teria feito uma crítica sutil, mas firme, ao modelo salomônico de sexualidade, marcado pela frivolidade e a poligamia.

A partir dessa interpretação temos outro roteiro

1. No palácio, a moça relembra o amado e é assediada por Salomão - Caps. 1:1-2:7
2. Lembra-se de uma visita do jovem e de um sonho - Caps. 2:8-3:5
3. Sulamita mais uma vez é visitada e elogiada por Salomão - Caps. 3:6-4:7
4. Resiste às investidas do rei e antecipa seu casamento - Caps. 4:8-5:1
5. A moça relata outro sonho e descreve seu amado - Caps. 5:2-6:3
6. Salomão mais uma vez tenta conquistar Sulamita - Caps. 6:4-7:9
7. Saudosa e fiel, a moça anseia a companhia do amado - Caps. 7:10-8:3
8. Enfim, recebe alforria, e retorna para casa com seu esposo - Cap. 8:4-8:14.

O amor é mais forte


Em meio às várias interpretações, é bom relembrar, como diz Isidoro Mazzarolo, Cântico dos Cânticos, Uma leitura política do amor (1a. ed., Mazzarolo Editor, Rio de Janeiro, 2002. 249 p.), que "o livro dos Cânticos está entre as grandes obras da sabedoria bíblica ao propor uma visão do ser humano, homem e mulher, como duas criaturas colocadas no universo e dotadas de liberdade e dignidade".

Assim, a mensagem de amor permanece. E talvez possamos dizer, como nos lembram as Cantigas de Amigo, que esta é a grande mensagem do livro.


Filosofia cristã

A proposição fundamental da Filosofia cristã
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

A Filosofia cristã estabelece uma proposição fundamental: um princípio atemporal e não espacial, onipresente, eterno, sem limites e imutável, sobre o qual qualquer especulação é impossível, uma vez que transcende o poder da concepção humana e seria diminuído por qualquer expressão humana ou similitude. Está além do âmbito e alcance do pensamento e da razão, é impensável e impronunciável.

Para tornar essas idéias mais claras, pode-se partir do postulado de que há uma realidade absoluta que antecede todo ser manifestado. Esta causa infinita e eterna – na psicologia moderna formulada como inconsciente - é a raiz sem raiz de tudo que foi e é. Despido de atributos não tem, essencialmente, nenhuma relação com o ser finito, condicionado. É “o que é” e está além de todo pensamento ou especulação.


Este "o que é" é simbolizado, na Filosofia cristã, sob dois aspectos: por um lado, é o anti-espaço absoluto que representa a subjetividade, aquilo que nenhuma mente humana pode excluir de nenhuma concepção ou conceber por si mesma. Por outro lado, é movimento eterno absoluto, que na psicologia seria a consciência incondicionada. Mas a consciência é inconcebível se a separamos da mudança, e o movimento é o que melhor simboliza a mudança, sendo esta a sua característica essencial. Este último aspecto da realidade una, na linguagem hegeliana, também é simbolizado pela expressão "o primeiro sopro", um símbolo gráfico. Este primeiro axioma fundamental da Filosofia cristã – “o que é” –, metafísico, remete àquilo que a inteligência finita simboliza com a Trindade teológica.

A natureza da primeira causa, derivada da causa sem causa, do eterno e do incognoscível, aflora dento do finito como consciência, realidade impessoal que permeia a natureza, enquanto noumeno. Esta realidade una, o absoluto, é o campo da consciência absoluta, essência que transcende toda relação com a existência condicionada e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade, sobrevém o espírito/consciência e a matéria/sujeito e objeto.

O espírito/consciência e a matéria/sujeito e objeto devem, portanto, ser considerados, não como realidades independentes, mas como correlações do absoluto, que constituem a base do ser condicionado subjetivo/objetivo. Considerada esta tríade da metafísica cristã como a raiz da qual procedem toda manifestação, o sopro assume o caráter de ideação pré-natureza. Ele é a fons et origo da força de toda consciência individual e fornece à inteligência guia no vasto esquema da natureza. Tal raiz pré-natureza é aquele aspecto do absoluto que é a base de todos os planos objetivos do cosmos. Tal ideação pré-natureza é também a raiz da consciência individual, já que a substância pré-natureza é o substrato da matéria nos vários graus de sua diferenciação.

A correlação desses dois aspectos do absoluto é essencial para a existência do universo manifestado. A ideação da natureza, separada de sua substância, não pode ainda se manifestar como consciência individual, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a consciência aflora como "eu sou eu", como alienado que necessitou de base física para focar-se enquanto estágio da complexidade. Da mesma forma, a substância da natureza, separada da ideação da natureza, permaneceria como uma abstração vazia da qual a consciência não poderia emergir. O universo manifestado, portanto, é permeado pela correlação que é, por assim dizer, a própria essência de sua existência como manifestação.

Mas, assim como as correlações sujeito/objeto, espírito/matéria são símbolos da realidade una, também no universo manifestado se dão as correlações que possibilitam espírito e matéria, sujeito e objeto. Essa correlação é a alienação existencial, é a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza na forma de leis da natureza. A alienação, portanto, é dinâmica da ideação da natureza, é meio inteligente que guia a manifestação. Assim, do espírito ou ideação da natureza procede a consciência, e os meios que possibilitam à consciência individualizar-se procedem da substância da natureza, chegando à consciência reflexiva. A alienação em suas várias manifestações é o elo entre a mente e matéria, o princípio que possibilita a vida.