vendredi 3 juin 2016

Poder e secularização

Uma análise do conservadorismo político evangélico
no Brasil, a partir de Poder e Secularização, as categorias do tempode Giacomo Marramao

Jorge Pinheiro [1]


Em 1983, o cientista político italiano Giacomo Marramao[2] lançou Potere e secolarizzazione [3], em que de forma contundente trabalha a controvérsia sobre tempo pagão e tempo cristão e, como consequência, a questão das imagens do mundo e as representações do tempo.

No Brasil de hoje e, sem dúvida, no mundo da globalidade, podemos falar de uma multidimensionalidade do tempo na cultura. Ora, antes, sem dúvida, o tempo deveria ser distintamente diferente para crentes e não-crentes, mas agora com a criação e combinação dos tempos artificiais produzidos pela tecnologia, os ritmos e tempos se interpenetram.

O conceito secularização não é apenas uma metáfora, que expressa o distanciamento progressivo da esfera religiosa enquanto poder, já que seu significado semântico continua em permanente construção. Para Marramao (1997), "a impossibilidade de reconduzir essa noção a uma concepção unitária não depende meramente, como no caso de outros termos característicos da modernidade, da sua polissemia ou polivalência semântica", mas necessita de uma "estrutural ambivalência de significado, a qual dá lugar a premissas antitéticas ou diametralmente inversas". [4]

Assim, o paradoxo maior da secularização mostra-se enquanto conflito Igreja versus secularidade, já que a Igreja assume uma caráter burocrático e a secularidade, cada vez mais, discute, opina e legisla sobre questões religiosas. Ou seja, há ou não um interseccionalidade de valores? A Igreja, e aqui estamos a falar dos evangélicos brasileiros, posa enquanto institucionalidade estatal e a secularidade cria características religiosas.

Assim, é de se entender que a secularização, enquanto fenômeno interseccional, possui significado de afirmação e de oposição entre o espiritual e o secular. Dessa maneira, a secularização se apresenta hoje, na hipermodernidade sob três formas, o princípio da ação eletiva, o princípio da diferenciação/especialização progressiva, e o princípio da legitimação. E se falamos do princípio da ação eletiva, estamos a falar da emersão progressiva da pessoa na busca do significado do seu "eu" e da "consciência de si mesmo". Por isso, para Marramao (1995), "este aspecto comporta um modo cultural particular de estabelecer a linha de demarcação entre subjetividade e objetividade e, portanto, de construir a realidade social."

Já o princípio da diferenciação/especialização progressiva nos mostra que quando o princípio eletivo se torna afirmativo, a adoção do critério de escolha fica em aberto. Esse critério de escolha está no âmbito da racionalidade instrumental, assim, Marramao (1995) nos dirá que "a consequência disto é a relação estreitamente biunívoca que a se instaurar entre secularização e aumento de complexidade do mundo social."

Ao analisar a politica evangélica no Brasil, dois autores traçam linhas bem demarcadas, sobre como se lançaram contra os direitos civis, democráticos, seculares. Para Cowan, “a direita política evangélica no Brasil tornou-se presuntiva, mas foram prefiguradas durante os processos simultâneos de redemocratização nacional e de politização evangélica na década de 1970. 

Nesta encruzilhada, os líderes de várias denominações religiosas adotaram a linguagem de uma crise moral aguda, lançando as bases para uma direita evangélica. A própria crise moral tornou-se “nosso terreno”, o ponto de inserção dos evangélicos de direita na esfera política, e uma das várias questões-chave que dividem evangélicos reacionários e seus correligionários progressistas. Até o momento da Constituinte, a posição dos Batistas e Assembleianos, como vozes dos conservadores que apoiaram amplamente o regime militar e se opuseram às iniciativas de justiça social do ecumenismo de esquerda e ao comunismo, tinha sido estabelecida após anos de pronunciamentos que ligavam essas questões à crise moral.” [5]

E para Carneiro, “no Brasil, a formação da Assembleia de Deus por missionários suecos trouxe o que já se chamou de uma mistura do pietismo sueco com o patriarcalismo nordestino forjando a imagem popular do rigorismo do “crente” como alguém abstinente de todos os prazeres e de vestuário austero, que não gostava de dança nem de música e menos ainda de adornos corporais.

“Os novos cultos pentecostais acrescentaram, além dos elementos de transe e de práticas extáticas e de possessão, uma relativa abertura para um aggiornamento que levou algumas igrejas a se especializarem em segmentos jovens, de surfistas, rockeiros, etc. A diversidade de congregações traz as mais diversas atitudes, mas permanece nos grupos dominantes a identidade comum de abstinência como valor de pureza cristã. Quando essa atitude se torna um lobby político elegendo parlamentares e até candidatos presidenciais com a intenção de impor à sociedade os critérios particulares dessas igrejas estamos diante de um tipo de fundamentalismo religioso.

“No Brasil, o evangelicalismo evoluiu cada vez mais para a direita ao longo do período ditatorial e pós-ditatorial, constituindo o que já foi chamado de uma “nova direita” baseada na reação moral e cultural. Na ditadura houve uma distinção clara entre setores protestantes e evangélicos democráticos que se opuseram ao regime, como o pastor presbiteriano James Wright, fundador do Brasil Nunca Mais, e os grupos mais conservadores e anti-ecumênicos que apoiaram os governos militares.

“Esta ala direita se aproveitou de benesses do regime, cresceu e predominou. Sua atuação política mais destacada se deu em torno ao combate à pornografia, o alcoolismo, o tabagismo, o jogo, o divórcio, e a emancipação feminina. Defensores de que o lugar da mulher é no lar, se juntaram à Igreja Católica para se opor ao controle populacional e aos anticonceptivos.” [6]

Mas temos que ver, a partir de Marramao, que tal realidade se expressa de forma imagológica na política, fazendo com que as propostas evangélicas interseccionadas enquanto governamentais, quer no que se relaciona à pessoa, à família ou às comunidades, se entrelacem e produzam, como diz Giner, “mutações na vivencia e qualidade desses tempos”. [7] Assim, a bancada evangélica, presente hoje no Congresso brasileiro, expressa produções imagológicas de tempos, que apesar de suas volatilidades, acumulam de forma caleidoscópica mudanças no momento presente.

Em seu livro Passagem ao Ocidente, filosofia e globalização, de 2003, Marramao faz uma análise do pensamento contemporâneo e como este se debruçou sobre a investigação da globalização. Mas procura evitar a ocidentalização da abordagem, delineando uma política global.

Assim fez leituras de F. Fukuyama e Kojève e, consequentemente, ao fim da História e à universalidade do individualismo competitivo. Atravessa, então, o conflito de civilizações que, após o colapso do Muro de Berlim, viu o globo mergulhado num conflito intercultural mundial. E, chegou com S. Latouche, à concepção da expansão planetária de dominação da tecnologia sob o controle da razão instrumental.

Mas, para Marramao, a globalização deve ser vista como pressuposto típico da modernidade, na transição de um mundo fechado a um universo circum-navegável, que possibilita o encontro, mas também o choque de culturas, levando a sociedade a ser transformada por esse encontro diário, que se espraia a partir das megalópolis, mas que permanentemente desafia a nossa identidade.

No percurso dessa compreensão da globalidade, vai além da crise do Estado-nação, agora personificada pelo Leviatã democratizado de John Rawls[8]. Aqui temos a reconstrução do princípio de universalidade da diferença, que se dá em esfera global, onde o mundo aparece como presença-imagem da racionalidade técnica e econômica, que influencia tudo e todos através da criação de um modelo único de sociedade e pensamento. E que, ao mesmo tempo, tira proveito da riqueza das diferenças para construir uma globalidade cosmopolita, onde todos podemos cultivar nossos politeísmo de valores. 

Mas globalidade e temporalidade, para Marramao, estão imbricadas. E para chegar à sua construção da temporalidade da globalização, fez a reconstrução das concepções de tempo nascidas na reflexão ocidental a partir da análise de Timeu de Platão, até chegar às discussões sobre a flecha do tempo na física. Mas, construindo uma reflexão sobre temporalidade/identidade, onde busca os pontos de contato entre as abordagens focadas na pessoa e as sociais.

Assim, faz a crítica da sociedade contemporânea, onde o presente é dominado pelo movimento incessante, onde ninguém consegue saborear o presente. E reconstrói a etimologia do tempo latino, onde são colocados o sentido interno de tempo, a síndrome temporal da pressa e a busca insana para se recuperar a posse da existência.

Donde, o tempo kairós, tão caro à escatologia judaico-cristã, se apresenta como interseção entre a realidade divergente de tempo privado e tempo público. Isto porque o tempo privado deixa de ser humano e passa a depender de condições e variáveis que incluem desde a situação mundial às situações físicas e psíquicas, plasmando tempos esmagam pessoas e comunidades.

Dessa maneira, a síndrome da pressa, do tempo que falta, tornou-se parte do projeto moderno, numa racionalização da escatologia judaico-cristã, onde se busca o fim último do domínio da razão instrumental. Essa homogeneização, que se procura planetária, responde à síndrome da pressa repetindo, eternizando, a mesma cena neurótica, por não ser capaz de parar, considerando normal chegar sempre fora do tempo certo, tarde demais, vivendo a angústia e o trauma permanente da perda da oportunidade certa.

Mas este projeto moderno, afirma Marramao, está em crise, e devemos olhá-lo com distanciamento, superando Weber, já que a racionalidade instrumental é um fenômeno típico do Ocidente, que não surgiu em nenhuma outra cultura, nem mesmo na China. É com este distanciamento que devemos analisar o capitalismo, nos debruçando sobre outras culturas, humildes na certeza de que têm algo a dizer e que podem nos ensinar a escapar da sociedade contemporânea e aprender a viver no presente, debruçados sobre um presente escatológico, renunciando à idéia de que lá na frente algo bom e definitivo deve acontecer.

Michael Löwy trabalha esta questão a partir de uma leitura weberiana, o que matiza os contornos aparentemente demoníacos da presença evangélica na política brasileira. Para ele, “os evangélicos são, no fundo, uma religião mágica. Eles acreditam que, fazendo certos rituais, orações ou mesmo dando dinheiro para a igreja, terão seus problemas resolvidos. Isso, para parte da população, sempre foi assim. Mas devemos reconhecer que os evangélicos, pela ética protestante, calvinista, impõem uma série de proibições aos fiéis: não podem consumir álcool, drogas, ir a prostíbulos, jogar cartas. E isso melhora a situação da família, é fato. Por outro lado, essas igrejas são conservadoras, intolerantes, fundamentalistas e, na maioria das questões sociais, regressivas. Além do quê, desenvolvem uma pretensa teologia da prosperidade que faz elogios ao capitalismo, ao neoliberalismo, ao mercado e ao consumo, que é bastante negativo.” [9]

Ou seja, podemos, caso utilizemos critérios modernos de análise, falar em tempo da mentalidade conservadora versus tempo da mentalidade progressista. Mas tais critérios de análise, embora sejam aparentemente agradáveis e facilitadores, já não cabem na multidimensionalidade do tempo na cultura, que nos leva, a partir de Marramao, a falar de conflitualidade endêmica do mundo e, como consequência, dos dilemas que traz para a política e para a religião. 

Ou como diz Barrera, “a contraposição mecânica entre a efervescência religiosa, que carateriza hoje as sociedades latino-americanas, e o conceito de secularização leva ao erro comum de negar o processo de secularização e esconde uma superficial compreensão do conceito. Muito pelo contrário, a discussão de conceitos como “secularização”, “desencantamento do mundo” e “saída da religião” mostram que é precisamente nas sociedades secularizadas onde tornou-se possível a pluralidade religiosa que, ao nosso ver, é a maior evidência do enfraquecimento da influência social do outrora poder institucional religioso“. [10]


Notas

[1] Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2011) e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2008), Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2006), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (2001) e Graduado em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (2001). É professor de tempo integral na Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Jornalista Profissional. Atua na área de Ciências da Religião, com especialização nas relações entre religião e política, e filosofia, teologia e cristianismo. 
[2] Nasceu em Catanzaro, a 18 de outubro de 1946, e é filósofo, professor de Filosofia Política na Universidade de Roma III, diretor da Fundação Lelio Basso e membro do Colégio Internacional de Filosofia em Paris. Seus estudos se iniciaram com o marxismo e atualmente versam sobre questões políticas, culturais e simbólicas da globalização. 
[3] Giacomo Marramao, Poder e secularização, as categorias do tempo, São Paulo, UNESP, 1995. 
[4] Saulo Barbosa, A secularização e seus problemas conceituais. webartigos.com. Acesso 03/10/2015. 
[5] Benjamin Arthur Cowan, Nosso Terreno, crise moral, política evangélica e a formação da “Nova Direita” brasileira, VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 30, no 52, pp.101-125, jan/abr 2014. 
[6] Henrique Carneiro, O proibicionismo na gênese do evangelicalismo na política: a nova direita. WEB: blogconvergência.org. Acesso 03/10/2015. 
[7] Salvador Giner in Marramao, op. cit., p. 13. 
[8] John Rawls, A theory of justice, Steven M. Cahn (ed.), 1999. 
[9] Michael Löwy, À brasileiros, sociólogo Michael Löwy propõe outra alternativa: o ecossocialismo. WEB: Brasileiros. Acesso em 03/10/2015. 
[10] Paulo Barrera Rivera, Desencantamento do mundo e declínio dos compromissos religiosos. A transformação religiosa antes da pós-modernidade. Ciencias Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 4, n. 4, p.87-104, out 2002.

Imago Dei, uma introdução necessária

Uma introdução necessária
Jorge Pinheiro, Phd


Para estudar e pensar a teologia do ser humano, ou seja, a imago Dei, devemos nos debruçar sobre questões fundantes para este estudo: o desafio do Cristo, o desafio do humano e o desafio da interpretação. Mas, ainda assim, é necessário pensar duas outras questões que estão imbricadas numa relação causal e definitiva -- revelação e teologia.

E nessa introdução necessária, desejamos analisar com você, caro leitor, ainda que a voo de pássaro, o fato de que a teologia que nasce dos textos antigos da tradição hebraica muitas vezes é abordada apenas sob um de seus aspectos, a auto-manifestação da divindade, deixando de lado seu aspecto fundante: de que nos textos primeiros da teologia judaico-cristã estamos diante de um diálogo, pois toda construção desses textos implicou em interação, na existência de um personagem, que muitas vezes deixamos de ver sua centralidade, a espécie humana, que não somente participa do diálogo, mas vive. E é a partir daí, da teologia que nasce da construção dos textos antigos enquanto diálogo, que deve partir toda e qualquer análise da imago Dei, enquanto teologia do ser humano.

A questão antropológica no processo da construção dos textos antigos da tradição hebraica é determinante, pois não basta ouvir, o desafio é viver. Nesse processo desigual e combinado presente nos textos antigos da literatura hebraica podemos distinguir elementos que se sobrepõem e se complementam. Dentre eles, o mais fascinante é a questão do significado e da significação que estes textos constroem na história do povo hebreu e por extensão no imaginário da tradição cristã. A construção dos textos antigos da tradição hebraica dá-se através de um processo de adequação histórica e linguística.

Entretanto essa construção não demanda unicamente a apreensão de uma determinada realidade. Faz-se necessário que esta realidade seja lida através de uma construção de análise e síntese. Como premissa fundante, temos que reconhecer uma justaposição entre compreensão intuitiva e conhecimento discursivo. A compreensão intuitiva vem de imediato à mente sem que se tenha à frente uma determinada realidade, palpável e visual, ao passo que o conhecimento discursivo requer passar de algo conhecido, através de uma série de juízos, à apreensão do ainda não apreendido. Ao primeiro processo chamamos juízo sintético e ao segundo juízo analítico.

Tal construção dos textos antigos hebraicos não se deu simplesmente como processo de adequação da mente humana, individual e coletiva, ao novo que lhe era apresentado. Impôs-se que o novo inerente ao processo cognoscitivo tivesse um significado. Uma relação em que o ser humano operou como ser significante e o novo como significado. Desta forma, a construção dos textos antigos não se processaram entre realidades que não são históricas, mas em relação espacial e temporal, exigindo para que a interação entre o ser humano e a realidade se estabelecesse como algo maior, alguma coisa além de ambos, da pessoa coletiva e da própria realidade em que estava situada esta coletividade, deixando assim de ser causal e tornando-se essencial. 

No processo da construção dos textos antigos o ser humano, enquanto pessoa e coletividade, também encontrava-se em construção, pois não havia senhorio pleno do processo. Era um ser colocado no tempo e no espaço, que estabelecia relação com a realidade que o circundava, que o cercava dentro do processo cognoscitivo enquanto dimensão humana e histórica.

Outro pressuposto é a natureza genética da linguagem, que se encontrava em constante construção. Dessa maneira, significante e significado estavam intimamente ligados à linguagem, enquanto construção cultural e histórica. Assim, compreendemos que dependendo da utilização de determinado objeto ou realidade o ser humano constrói conhecimento de determinada forma e no processo pode construir conceitos diferentes a partir de um objeto ou realidade anteriores. Podemos inferir ao que isso conduz. 

A construção dos textos antigos está ligada à vida do ser humano, já que será a própria experiência humana que agregará valor ao objeto ou realidade antes conhecidos e vividos. Dessa maneira, o velho gerará o novo, uma essência que transcende, uma universalidade, a partir da própria experiência de vida, que teologicamente podemos chamar de obediência ao mandamento de Deus. Mas ainda não definimos a importância do ser significante e do significado dentro do processo da construção dos textos antigos. Se tal construção é histórica, é importante notar que ela própria age sobre a vida humana, pessoal e coletiva, sobre a historicidade do ser humano. 

E mais do que isso, ao definir a historicidade humana muda o próprio meio onde o ser humano vive e atua. Dessa forma, a construção dos textos antigos cria processos de formação, escalas de valores, normas e condicionamentos. E é aí que reside toda a problemática dessa construção enquanto conhecimento: como o ser humano, a partir da construção dos textos, num primeiro momento presa à oralidade e só depois gravada em pedra e registrada em manuscritos, pode conhecer a Deus e dar um sentido ao mundo que o cerca, assim como achar seu papel dentro de todo esse complexo?

A verdade da construção dos textos antigos é o significado que uma determinada realidade tem para a comunidade e a pessoa. Há uma construção intuitiva, quando a experiência da própria construção produz uma interação entre o humano, pessoal e coletivo, e a divindade, sem que essa experiência necessariamente influa no processo discursivo de conhecimento. Mas mesmo neste caso o ser humano não abandona ou perde sua formação. Não deixa de ser aquilo que é: pessoa inserida em determinada comunidade. Mesmo quando esse processo dá-se sem elaboração discursiva, é intuitiva, o ser humano está condicionado pela historicidade de ser cognoscente. 

E dentro dessa condicionante sempre se processa a interação ser humano e realidade. Aqui, afetividades e sentimentos, que geralmente passam despercebidos, são realçados. Isso porque nesse momento específico, determinada realidade passa a ter significado, que mesmo não sendo inerente, exige que se lhe dê um. E nesse caso o conhecimento da construção faz do ser humano um ser significante. Assim a construção dos textos antigos dá ao mundo um significado imanente. 

O ser humano, enquanto pessoa e comunidade, através da construção do texto passa a ter significado, contudo este conhecimento e o significado dado não se dão sem história, mas dentro das limitações de sua própria obediência dos limites e regras que vão sendo definidos. Podemos, então, concluir que a partir da construção da antiga literatura hebraica, teológica e religiosa, o ser humano torna-se significante na construção da comunidade, pois através do conhecimento construído é ele quem historicamente pode modificar causas e efeitos, imprimindo ao processo nova direção.

Como se processa a relação entre significado e significante quer no caso isolado da interação entre ser humano e realidade, quer no caso de todo o processo da construção dos textos antigos? Se dentro do conhecimento da construção do texto o ser humano é um ser significante podemos, então, ver que a escala de valores do sistema ético, oferecido por esta construção à comunidade, torna-se parte integrante do significado dado ao mundo pela própria construção. Portanto, dentro de uma interação significante/significado existem elementos dinâmicos de transformação. O universo é o mundo do ser humano, em que ele constrói seu habitat. Através do significado dado pelo ser humano à natureza, dentro de um significado de utilização que lhe empresta, ele atua sobre ela produzindo cultura e transformação.

A construção dos textos antigos, enquanto relação entre significante e significado é dialética. Pois se ela faz da pessoa e da comunidade ser significante, permite a ambas transferir ao mundo que as cercam a cosmovisão que utiliza essa mesma significação. Ao fazer significante a sua realidade, o ser humano dá origem a transformações, engendra causas e passa à construção do futuro, já não como sonho, mas como realidade. Para viabilizar tais transformações é necessário que transfira, enquanto comunidade, novos significados aos processos históricos e sociais. Através da relação estabelecida entre significante e significado encontraremos as causas de conotações. 

Um dos exemplos desse processo encontramos no livro das Origens, quando a divindade ordena a circuncisão do clã de Abraão. A circuncisão, antes um costume presente em algumas tribos da Palestina, recebe a conotação de aliança. E a circuncisão, enquanto aliança, passa a ser marca de uma comunidade especial, separada, é mandamento do Eterno. Mas isso só acontece historicamente, quando pessoas e comunidade vivem tal ordenança. É, então, que a circuncisão faz de cada homem hebreu significante dessa construção, dando significado cultural, histórico e teológico ao ato de corte do prepúcio. 

Nesse sentido, revelação traduz o processo de construção dos textos antigos judaico-cristãos, conforme exposto acima, e, por isso neste trabalho damos a devida importância à linguística e à antropologia, para podemos construir uma teologia do ser humano, enquanto imago Dei. Por isso, consideramos que quando deixamos de colocar os desafios do Cristo, do humano e da interpretação em diálogo com a imago Dei compreendemos de forma fraturada questões fundantes quanto ao destino humano. 

Por isso, assim definimos nosso caminhar na construção dessa teologia do ser humano, construída com três momentos: o metodológico, o da leitura dos textos antigos, e o contextual-contemporâneo, quando a teologia do ser humano invade nossa vida, como desafio de ação e transformação.

Assim, desejamos que o leitor compreenda este processo de construção dos textos antigos, enquanto desafio ético, e possa caminhar nesta teologia do ser humano, que desafia à ação e transformação.