jeudi 27 janvier 2011

Cinema e ideologia

Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Cinema e ideologia
Uma análise a partir da hermenêutica da crítica ideológica
Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. (João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. 6a. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, p. 312).

I. O que é hermenêutica?
A hermenêutica, enquanto ramo da filosofia, estuda a compreensão e a interpretação da arte: poiesis. A palavra deriva do nome do deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem os gregos atribuíam a origem da linguagem e consideravam patrono da comunicação.

Assim, hermenêutica significa interpretar, levar à compreensão. Alguns autores afirmam que o termo hermenêutica significa técnica também e tem por objeto a comunicação de textos antigos, especialmente das Sagradas Escrituras. Seria, então, interpretação do sentido das palavras dos textos: teoria voltada à interpretação dos signos e seu valor simbólico.

A interpretação faz parte da existência. Nem sempre damos conta de que as escolhas e decisões se fazem a partir de interpretações. Elas se processam ao longo do dia, dos anos e da vida. Mas o que é a interpretação? Questionar radica no que há de mais profundo em nós. Sabemos e não sabemos, queremos e não queremos. O caminho da interpretação é a interpretação do caminho como o não-querer e o não-saber de uma questão. Caso soubéssemos o que desejamos na interpretação, não questionaríamos. Por isso, para Manuel Antônio de Castro, “existir é interpretar a questão” (Poética e poiesis, a questão da interpretação, Rio de Janeiro, UFRJ). Mas o que é a interpretação para que nela se dê a questão? A interpretação, o questionar e o que somos estão assim profundamente interligados. Por isso, quando tomamos como tema a interpretação, é em nossa própria existência que estamos pensando. Interpretar nessa dimensão é interpretar-se. A questão é: O que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se? Interpretar-se é eclodir no que cada um é.

Desde os séculos XVII e XVIII o termo foi empregado no sentido de uma interpretação objetiva da Bíblia. Spinoza, filósofo judeu, foi um dos precursores da hermenêutica bíblica. Já para Schleiermacher, teólogo luterano, a hermenêutica não visava o saber teórico, mas sim o uso prático, a técnica da boa interpretação de um texto falado ou escrito. Tratava-se aí da compreensão, que se tornou desde então o conceito básico e a finalidade fundamental de toda a questão hermenêutica. Schleiermacher definiu a hermenêutica como "reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso".

Já Wilhelm Dilthey, que formula a dualidade entre as "ciências da natureza e ciências do espírito", que se distinguem por meio de um método analítico esclarecedor e um procedimento de compreensão descritiva, os eventos da natureza devem ser explicados, mas a história e a cultura devem ser compreendidos. Ele entendia compreensão como a apreensão de um sentido, e sentido é o que se apresenta à compreensão como conteúdo. Assim, só poderíamos determinar a compreensão pelo sentido e o sentido apenas pela compreensão. Toda compreensão é apreensão de um sentido, visão que se diferencia daquela de Scheleiermacher, que fazia distinção entre compreensão divinatória e comparativa:

1. A compreensão comparativa se apoiaria em uma multiplicidade de conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o sentido a partir do enunciado.
2. E a compreensão divinatória daria significação a uma adivinhação de forma imediata ou através da apreensão imediata do sentido.

Heidegger, em sua análise da compreensão, diz que toda compreensão apresenta uma "estrutura circular", pois para que uma interpretação possa para produzir compreensão, ela deve já ter compreendido o que vai interpretar.

A partir dessas leituras, teríamos quatro estruturas básicas de compreensão:

1. Estrutura de horizonte: o conteúdo singular é apreendido na totalidade de um contexto de sentido, que é pré-apreendido e co-apreendido.
2. Estrutura circular: a compreensão se move numa dialética entre pré-compreensão e compreensão da coisa, em um acontecimento que progride em forma de espiral, na medida que um elemento pressupõe outro e ao mesmo tempo faz com que ele vá adiante.
3. Estrutura de diálogo: no diálogo, mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la e corrigi-la.
4. Estrutura de mediação: a imediatez se apresenta e se manifesta em todos os conteúdos, mas que se medeia à compreensão em nosso mundo e em nossa história.

Segundo Wilhelm Dilthey, estes dois métodos estariam opostos entre si: já que a explicação é própria das ciências naturais, e compreensão é própria das ciências das ciências humanas. Assim, para ele, esclarecemos por meio de processos intelectuais, mas compreendemos pela cooperação de todas as forças sentimentais na apreensão, pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto.

Paul Ricoeur, filósofo cristão reformado francês, procurou superar esta dicotomia, afirmando que compreender um texto é encadear um novo discurso no discurso do texto. Isto supõe que o texto seja aberto. Ler é apropriar-se do sentido do texto. De um lado não há reflexão sem meditação sobre os signos e por outro não há explicação sem a compreensão do mundo e de si mesmo.

E será a partir de Paul Ricoeur, sem negar os hermeneutas anteriores, que analisaremos a ideologia e a necessidade de trabalharmos com a hermenêutica da crítica ideológica para entender a correlação cinema e ideologia.

II. O que é ideologia? O que é crítica ideológica?
Ideologia é um conjunto de idéias e cosmovisões de uma pessoa ou de um grupo, orientado para suas ações culturais, políticas e sociais. E se a ideologia é um conceito genérico para os processos pelos quais o sentido é produzido, contestado e transformado, a crítica ideológica se preocupa em teorizar os processos de produção de sentido como realidades culturais, políticas e sociais. Por isso, os interesses da crítica ideológica se correlacionam com formas diferentes de hermenêuticas, como a crítica cultural, a crítica sociológica e a crítica ética, entre outras.

A crítica ideológica trabalha ao nível de três dimensões:

1. a relação entre a linguagem e a produção de sentido;
2. os diferentes discursos que atuam no texto;
3. e a natureza das relações de poder. A partir dessas buscas constrói os contextos institucionais dos textos, de sua recepção e a influência exercida sobre os leitores em suas posições sociais específicas.

Devemos levar em conta que a consciência humana é sempre cultural, histórica e social, e sofre influência das condições concretas da existência. Isso significa que as idéias nem sempre representam a realidade exatamente como ela, mas que muitas vezes por causa das determinações culturais, históricas e sociais nos apresentam essa realidade de forma distorcida. Daí a necessidade de trabalhar como a hermenêutica da crítica ideológica, para descobrirmos as ideologias que se confrontam na compreensão de um texto ou em produções de arte e comunicação como é o caso do cinema.

A tarefa do filósofo, para Paul Ricoeur, na crítica das ideologias é desmascarar os interesses que impedem a realização humana e pautar a construção da linguagem sem limite e coação. São três os interesses que Jürgen Habermas, filósofo alemão fundador da hermenêutica crítica das ideologias (e citado por Ricoeur) apresenta como constitutivos das ciências:

1. o interesse técnico, baseado nas ciências empírico-analíticas;
2. o interesse prático, que constrói a esfera da comunicação a partir das ciências histórico-hermenêuticas;
3. o interesse pela emancipação, constituído pelas ciências sociais críticas.
A partir daí deve partir a hermenêutica crítica das ideologias, mas, sem dúvida, é o interesse pela emancipação que funciona nela como mola propulsora. Assim, a crítica das ideologias situa-se na base de atuação das ciências histórico-hermenêuticas, ou seja, a comunicação. É no reconhecimento desse espaço que se constitui a idéia reguladora do diálogo livre da dominação. Ora, a comunicação é uma herança cultural da humanidade, uma tradição, que é criada e recriada pela interpretação humana. O ideal da comunicação nada mais é do que uma antecipação, que depende da hermenêutica mesmo para ser anunciada como tal. Ou como disse Habermas: “Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado. É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação”. (Paul Ricoeur, Interpretação e ideologias, org., trad. e apresent. de Hilton Japiassu, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1983, p. 142).

III. Cinema e ideologia

Os artistas são, segundo Martin Heidegger (Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 4, 1977, ano 71, p. 6), os vigias da casa do ser, daquilo que somos, são os vigias da linguagem. Por isso, as interpretações são as ações de vigiar a casa do ser, mas não são o ser. Interpretar não é explicar nem analisar, é conduzir ao diálogo poético, onde o real se manifesta na sua verdade dialógica. A interpretação não substitui a obra poética, possibilita o diálogo. O intérprete não salvaguarda o mundo que a obra de arte abre, mas salvaguarda a abertura de mundo. Salvaguardar a abertura de mundo manifesta a obra poética como vigor de ter sido no vir-a-ser do porvir. A interpretação poética é acontecer, que não se propõe, criticamente, como a única verdadeira.

Mas, ao mesmo tempo, a arte sempre traduz ideologias, sejam elas as predominantes na sociedade ou aquelas que se encontram à margem. Isto porque os artistas, ou aqueles que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas e à medida que a arte vai ficando cada vez mais distante da sociedade real, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Esse é um fenômeno presente no cinema, já que seus profissionais, devido à ideologia tendem a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material. Surge, então, o cinema como cultura de massas predominantemente ideológica.

Eu me lembro de uma experiência vivida em uma viagem a Miami, nos Estados Unidos. Vi um senhor latino varrendo a rua no entardecer. Eu fiquei olhando para ele com uma certa admiração, afinal era velho e magro e tinha uma tristeza no rosto. Ele também olhou para mim e respondeu ao meu olhar com uma única frase em espanhol: “Jovem, isso aqui não é Hollywood”.

Assim a ideologia torna-se ideologia quando não aparece sob a forma de mito, mas como explicação ideal da sociedade. A ideologia surge quando no lugar da palavra dos deuses apresenta idéias: sobre o ser humano, o que é o bem, etc. E no século XX apoiou-se numa arte nova, o cinema. E o que fez o cinema? Ofereceu à sociedade imagens de ocultamente da realidade social, apresentando uma lógica ideológica de dominação social e política. Por isso, ao interpretar uma obra de arte somos chamados ao diálogo com o lado de ocultamento de sua ideologia, mas também a escutar a voz do real na palavra poética. Nessa escuta, que advém da apropriação do que somos, a interpretação não é método ou mediação, mas diálogo e limite, experiência de sentido e verdade do ser. Interpretar torna-se então abrir-se para a escuta e sentido do ser como ethos.

Este abrir-se implica um interpretar-se e não um exteriorizar-se diante de uma obra. Não consiste numa contemplação externa ou interna, mas um abrir-se para a vigência do real, pela qual se dá, na interpretação, uma experiência poética. Nesta, quem advém é o real como mundo. Experienciar a verdade do real como mundo é, então, apropriar-se do que nos é próprio. A apropriação se dá nos limites do caminhar. Interpretar-se poeticamente é experienciar a experiência de ser. Ser é o apropriar-se, em todo caminhar, do vigor de ter sido. Por ter sido, é que podemos nos projetar nos caminhos da interpretação. Por isso, a possibilidade e sentido de toda interpretação é a questão da interpretação como possibilidade e sentido. É sempre uma travessia.

Tudo isso nos leva à questão da interpretação. E aí voltamos a Guimarães Rosa, quando diz que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Grande Sertão: veredas. 6. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, p.235. 22). A questão da interpretação, então, como experiência poética nos leva a inversão: à interpretação da questão. E se aprendemos no exercício de ensinar, nessa aventura poética de interpretar vemos que a interpretação como caminho e experiência poética é o concentrar-se na espera do inesperado.