mercredi 30 janvier 2013

O mal consentido

A pergunta que faço, diante da tragédia de Santa Maria, e esta é uma questão teológica é como se transforma nossa concepção do mal quando o abordamos em toda a sua banalidade. A primeira coisa que me ocorre é que o bem será sempre um movimento de vida, com total ausência do consentimento da alienação. Donde, seguindo a trilha de Aurelio Artera (Mal consentido, la cumplicidade del espectador indiferente, Madri, Alianza Editorial, 2010), o mal banal desconstrói a substância ontológica da alienação, exatamente porque ao analisá-lo em sua estrutura microfísica aparentemente perde sua pretensão metafísica. Mas este é o caminho que a teologia deve fazer, despojar o mal da auréola que herdou da tradição escolástica, desnudá-lo de sua roupagem de festa luciferina e estudá-lo como encarnação de pessoas normais.

Quando fazemos assim vemos que diante do mal social, o comum é limitar suas dimensões ao mal cometido e ao mal sofrido. Ou seja, tudo se resume à dualidade agressor/vitima. No Brasil, não temos muita intimidade com a filosofia basca, por isso vou pensar esta questão transversalmente com Artera, que fornece a nós teólogos reflexões magistrais: A compaixão, apologia de uma virtude sob suspeita (1996) e Mal consentido, a que me referi acima. Ele trabalha outras questões referentes a ética e política, cujos textos vou deixar de lado nessas meditações portenhas.

Partindo da compreensão, como o faz Artera e também Tiago, de que erra aquele que sabe fazer o bem e não o faz, todo mal consentido em relação ao cometido não deixa de ser um mal e um mal tão real como o que se comete e o que se padece, temos um paradoxo: na omissão a deficiência se torna eficaz, a ausência se faz presente e a passividade extremamente ativa.

Quando falamos em consentimento ou omissão estamos falando de ação social. Ou seja, há uma fazer alienante, um fazer mal que nasce de nosso consentimento ou de nossa omissão, em relação ao um e a todos. Mas do que ato passivo, o mal consentido, o mal por omissão é ativo e tão destruidor como aquele do agressor. Nenhum de nós quer ser definido como agressor de seu próximo ou como sofredores de violência, mas o mal consentido transformou-se numa maneira de não-vida social.

Mas voltemos à questão da alienação cotidiana ou mal perpretado por cada um, por todos, socialmente, nos consentimentos e omissões da não-vida diária. Paulo nos diz que quem realiza o mal, seja quem for, paga por ele. Ou seja, consentimento e omissão são ações degeneradoras e destruidoras. Atinge ao que consente, ao omisso e a todos.

O mal banal, que de fato nunca é banal, quebra o movimento da vida, cria a trombada. Produz um choque de nossas existências. E essa construção do mal consentido e omisso não acontece de uma hora para outra. São necessários alguns milhares de segundos, tijolo por tijolo, argamassa e muita falta de imaginação. E a falta de imaginação é trilha assassina.

E paro aqui com uma frase de Ezequiel: se uma pessoa de coração deixar de fazer o bem e começar a fazer o mal cotidiano será que ele vai viver? Conclua você. Beijos.

mardi 29 janvier 2013

A Europa como projeto está morrendo

“A Europa, como projeto, está morrendo”, constata manifesto de intelectuais.
Modelo de integração e de paz para muitas democracias do mundo, a Europa está escorrendo por várias veias, entre elas a Grécia. É o que aparece no manifesto assinado por personalidades como Umberto Eco, Salman Rushdie e Bernard-Henri Lévy.

A reportagem é de Eduardo Febbro e está publicada no jornal Página/12, 28-01-2013. A tradução é do Cepat.

“A unidade da Europa era o sonho de uns poucos. Tornou-se uma esperança para muitos. Hoje é uma necessidade para todos nós”. A frase do ex-chanceler alemão Konrad Adenauer tem um lugar na história. Foi pronunciada 10 anos antes que França e Alemanha assinassem, no dia 22 de janeiro de 1963, o tratado de cooperação franco-alemão conhecido como o Tratado dos Elíseos. Esse texto marca um passo definitivo rumo à reconciliação entre Paris e Berlim e reforçou a construção europeia. Transcorreram exatamente 50 anos e esse “sonho” e essa “necessidade” estão hoje em pleno marasmo. A Europa está indo a pique. É precisamente isso que constata um grupo importante de intelectuais europeus que publicaram um manifesto cujos três primeiros parágrafos dão conta da orfandade que ameaça o Velho Continente: “A Europa não está em crise, está morrendo. Não a Europa como território, naturalmente, mas a Europa como Ideia. A Europa como sonho e como projeto”.

Este grupo de filósofos, escritores, psicanalistas e jornalistas, entre os quais se encontram personalidades como Umberto Eco, Salman Rushdie, Fernando Savater, Bernard-Henri Lévy, Claudio Magris ou Julia Kristeva apela à consciência dos dirigentes para que não se apague o sonho da unidade europeia surgido depois da Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, os intelectuais anotam que “esta Europa como vontade e representação, como quimera e como obra, esta Europa que nossos pais colocaram em pé, esta Europa que soube tornar-se uma ideia nova, que foi capaz de proporcionar aos povos que acabavam de sair da Segunda Guerra Mundial uma paz, uma prosperidade e uma difusão da democracia inéditas, mas que, diante dos nossos próprios olhos, está se desfazendo mais uma vez”. Em termos de produto interno bruto, PIB, a Europa é sem dúvida a maior potência econômica que existe. Mas isso não basta porque, para os autores do manifesto, essa potência econômica tragou a ideia de Europa e o Velho Continente sonhado por seus pais fundadores está se “desfazendo em Atenas, uma de suas cunhas, em meio à indiferença e ao cinismo de seus países irmãos”.

Modelo de integração e de paz para muitas democracias do mundo, a Europa vai morrendo por várias veias, começando por um de seus pilares, isto é, a Grécia: “Dá a impressão de que os herdeiros daqueles grandes europeus, enquanto os helenos travam uma nova batalha contra outra forma de decadência e sujeição, não têm nada melhor a fazer que castigá-los, estigmatizá-los, pisoteá-los e, a partir dos planos de rigor e de austeridade impostos, são despojados do princípio de soberania que, há tanto tempo, eles mesmos inventaram”. Esse diagnóstico vale também para a Itália, país onde se inventou a “distinção entre a lei e o direito, entre o homem e o cidadão”, país “que está na origem do modelo democrático que tanto contribuiu”, e, hoje, está “doente de um ‘berlusconismo’ que não acaba mais”. Doença crucial que envolve também o ideal europeu e que faz da Itália “o doente do continente. Que miséria! Que ridículo!”.

O apelo destes intelectuais do Velho Mundo é tão dramático quanto lúcido. Em sua breve e apaixonada demonstração, o texto mergulha na grande miséria europeia contemporânea: miséria moral, ética, miséria da solidariedade, miséria dos ideais que os europeus impulsionaram pelo mundo.

Daí que o manifesto insista em que a Europa faz água por todos os lados: “De leste a oeste, de norte a sul, com a ascensão dos populismos, dos chauvinismos, das ideologias de exclusão e ódio que a Europa tinha precisamente como missão marginalizar, esfriar, e que voltam vergonhosamente a levantar a cabeça. Quão distante está a época em que, pelas ruas da França, em solidariedade com um estudante insultado pelo dirigente de um partido de memória tão escassa como suas ideias, se cantava ‘todos somos judeus alemães’? Quão distante parecem hoje os movimentos de solidariedade, em Londres, Berlim, Roma, Paris, com os dissidentes daquela outra Europa que Milan Kundera chamava de Europa cativa e que parecia o coração do continente! E, quanto à pequena internacional de espíritos livres que lutavam, há 20 anos, por essa alma europeia que encarnava Sarajevo, sob as bombas e presa de uma impiedosa ‘limpeza étnica’, onde está? Por que já não é mais ouvida?”

Sonho e realidade dos quais, imediatamente, milhões de indivíduos acordam sacudidos pela crise do euro, “essa moeda única abstrata, flutuante porque não está ancorada na economia, nos recursos e em um sistema fiscal convergente”. O horizonte desenhado pelos abaixo-assinantes do manifesto para voltar a dar corpo ao sonho europeu é a união política do Velho Continente, sem a qual não haverá vida possível: “O teorema é implacável. Sem federação não há moeda que se sustente. Sem unidade política, a moeda dura algumas décadas e depois, aproveitando uma guerra ou uma crise, será dissolvida”.

O apelo divulgado neste final de semana coloca um paradigma curioso: “Antes se dizia: socialismo ou barbárie. Hoje é preciso dizer: união política ou barbárie. Melhor dito: federalismo ou explosão e, na loucura da explosão, regressão social, precariedade, desemprego disparado, miséria. Melhor dito: ou a Europa dá um passo a mais, e decisivo, rumo à integração política, ou sai da História e se afunda no caos. Já não resta outra opção: ou a união política ou a morte”. A corrida vertiginosa para esse fim da Europa já começou, dizem os autores, e se não forem tomadas as medidas adequadas e não simples maquiagens, nada a deterá: “A Europa sairá da História. De uma ou de outra forma, se não se fizer algo, desaparecerá. Isto deixou de ser uma hipótese, um vago temor, um pano vermelho que se agita diante dos europeus recalcitrantes. É uma certeza. Um horizonte insuperável e fatal. Todo o resto – truques de magia de alguns, pequenos acordos de outros, fundos de solidariedade por aqui, bancos de estabilização por ali – serve apenas para atrasar o fim e entreter o moribundo com a ilusão de uma sobrevida”.

Serão escutados estes herdeiros do pensamento crítico que ainda parece conservar essa dimensão tão europeia que consiste em nunca perder a capacidade crítica frente ao comportamento dos Estados? Apostar nisso seria outro sonho: entre socialdemocratas que desenham políticas liberais, socialistas ajoelhados diante das grandes corporações e capazes de voltar a servir a bandeja da “guerra contra o terrorismo islâmico” para justificar intervenções militares em outros países – Mali –, enquanto as pessoas morrem como moscas na Síria, entre governos liberais sacudidos por níveis de corrupção dignos de comédias, que não se vê por onde possa aparecer alguém capaz de encarnar o grande sonho europeu. Ao menos que aqueles que o fomentaram se levantem de suas tumbas.

Fonte
Instituto Humanitas Unisinos / Notícias / Terça, 29 de janeiro de 2013

lundi 28 janvier 2013

Falta justiça, sobra corrupção

Por Jorge Pinheiro

A política tem uma essência: o uso do poder. E o poder determina os caminhos da sociedade. E esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao Estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. Mas as convicções pessoais sobre a transcendência e sua soberania, numa leitura reducionista da espiritualidade, quando vê apenas sua dimensão negativa, têm implicações no pensar a política. Ao optar por uma espiritualidade privatizada,[1] ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. E dessa maneira, a política não tem sido aceita por essa espiritualidade negativa brasileira, que apresenta propostas de uma ordem política onde o amor sem poder supere o poder sem amor.

Ao analisar tais propostas, que ressuscitam entre os protestantres evangélicos a teoria social dos anabatistas, de contrapor as políticas de poder ao amor cristão, vemos que para o negativismo é impossível integrar política e estilo de vida cristão. Chamam, então, às igrejas a rejeitarem qualquer forma de poder representado na ordem econômica e política sob o poder do Estado. Mas ao rejeitarem as políticas de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a política também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente.

Neste sentido, diferem do separatismo batista, que historicamente propôs a radical separação entre Igreja e Estado em nome da liberdade de consciência. Este separatismo acreditava que o fracasso das políticas de poder eram impedimentos para a manifestação da transcendência.

Era um fundamentalismo de cunho liberal, fazia a crítica da política e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. O que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude política consciente. Hoje, a espiritualidade cristã brasileira não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. Ora, se a comunidade cristã tem uma ética política, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. Rejeitar o poder é rejeitar políticas. Tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. Quando uma comunidade acredita que a omissão diante da política e do poder favorece à instalação do reino de Deus, tem-se a negação da política como política cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. E, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino de Deus.

Se não é possível falar de política sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis?[2] A pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades cristãs negam a possibilidade de todo e qualquer poder. Tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. O poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. E o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. Mas se há um amor reunificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. Tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. Já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do Estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. Outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. Como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necesita de um agente moral livre.

O Estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. A relação da pessoa com o Estado é uma relação cidadão/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. Além disso, o amor tem um caráter sacrificial. Ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. Conscientemente, é um perder para que outro ganhe. Sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado. Ou seja, por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. Cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. É importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita.

É por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. Assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. E, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

A política implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. É organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e socialistas, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio Estado. Nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem política, seja ela dirigida por trabalhadores e socialistas ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral.

E quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o Estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. Fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de Estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. Não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do Estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra-senso, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. Tal coerção destruiria também a obrigação moral do Estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

Dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, evangélica ou não, deve se situar frente à política implementada pelo Partido dos Trabalhadores? Colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do Reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. Como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político?

A alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. E justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. Mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? Uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. Nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. O problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a relação de forças nesses encontros.

A cada momento existem inúmeras possibilidades. E cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. Assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. Donde, não basta justiça como generalidade. É necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moralismo, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

Muitas vezes o Partido dos Trabalhadores, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e políticas em que se fazem presentes. E se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e políticas. Ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. E fazem parte dos debates políticos entre os cristãos e a democracia-social reformista no PT.

Por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes cristãs fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. A justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. O novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. Dentro dessa leitura, só houve justiça na origem. Assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão leva a um problema epistemológico, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação.[3] Essa visão teve e tem conseqüências práticas na elaboração de estratégias para a ação política, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. Ou seja, os cristãos não poderiam, como conseqüência, militar politicamente com não-cristãos, pois não há base secular para o envolvimento político dos cristãos. Desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque política é coisa mundana, ou estabelecer uma política cristã sectária. Por isso, o fundamentalismo no Brasil buscou impor normas redentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da política, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça a negatividade das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática política.

Ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. Assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. E devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem políticas e programas que favorecem a justiça. É exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as democracias representativas.

É o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. É necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana.

Conseqüentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça. Considerando que o amor deve ser volitivamente entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. Essa discussão sobre a justiça, nos leva à questão da democracia. A partir da Revolução Francesa de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. Foi assim que a Europa assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos.

A constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a democracia representativa apresentou-se como a forma política através da qual essas liberdades se exprimiriam.

Mas, a democracia representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque a cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. No Brasil, recentemente, tal situação foi presenciada no final do governo militar, com a campanha pelas Diretas, que mobilizou dois milhões de pessoas nos atos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas, diante do possível desmoronamento do regime militar, iniciou-se um processo onde a democracia representativa funcionou não como forma política de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. E as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada fragorosa e a mobilização das massas levasse a uma ampliação da democracia participativa. Essa democracia de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das massas dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. E no Brasil a revolução democrática, entendida como etapa anterior ao socialismo e defendida pelos democratas radicais e socialistas reformistas, já tinha sido abortada em 1964, e o foi de novo em 1984, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo militar e civil.

Em 1964, assim como em 1984, o Brasil arrancou na direção de uma democracia de participação. No correr da década de 1990, no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da democracia de participação, onde a classe trabalhadora, sob a liderança do PT, poderia marchar em direção ao governo, já que a Constituição de 1988 abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas, surgidas a partir da deterioração da ordem legal, davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais.

De fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e política dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. E, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do debilitamento da política neoliberal. Assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias políticas foram aos poucos, dentro do PT, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade socialista.

A democracia representativa não é um fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. Isto pode ser compreendido quanto se constata que a democracia representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. Assim, como toda a sociedade burguesa, ela astá submetida à economia. Essa enfermidade crônica da democracia representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias.

Logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos de bens e possibiliades. Fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo.

Transformar o princípio de liberdade e igualdade significa reinventar a democracia, o que se traduz na idéia solidária da incondicionalidade da justiça.

Os valores podem ser reiventados, mas isso significa dizer que as massas em movimento, autônomas, devem participativamente tomar essa democracia representativa de assalto, pois ela só permanecerá se mudar, porque não é um estado natural da sociedade, é sempre um ensaio. Por isso, necessita ser reinventada sempre e, diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentalismos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a democracia tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. Se a democracia é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: a democracia reiventada implica em participação. Mas a democracia não pode ser recriada se partir daquilo que é pré-estabelecido. Dizer que a democracia é uma mediação fundamental nas relações entre classes e partidos, não significa que em todos os lugares ela será igual.

Se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e este é o caso brasileiro, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. Mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a democracia, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. E não bastam os mitos fundantes da democracia afirmarem o caráter universal de que “todos os seres humanos são livres e iguais”: esta só pode se realizar enquanto comunidade internacional ativamente participante.

Essa é a base do internacionalismo defendido pelos trabalhadores e socialistas. E tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da transcendência da justiça.

Se a transcendência da justiça está correlacionada à transcendência do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. O amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. O amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. E se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça.

Dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. Isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins.

Tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça.

Mas como os cristãos sociais proclamam, dentro e fora do PT, as boas noticías da autonomia sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. Conseqüentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. Assim, usar o Estado como um instrumento de amor está fora do objetivo dos partidos políticos, pois levaria a um Estado sectário, quando não totalitário. Por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pelo partido para delimitar o que é meu e o que é teu.

Negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer democracia representativa e participativa. O conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades cristãs ao pensar a ação política. A política, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça.

Amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. Amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas.

Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder -- e aí está o berço de toda corrupção. Quando a justiça é negada, a política torna-se escrava do poder e perde o eixo da vida da ação política, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa e essa é uma tarefa política. Para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. Assim, a síntese do diálogo pertinente entre política e fé é a justiça.

Citações
[1] Jorge Pinheiro dos Santos, “Teologia da Libertação e exclusão no século 21”, in Etienne Higuet (org.), Teologia e Modernidade, São Paulo, Fonte Editorial, 2005, pp. 171-182.
[2] Paul Tillich, Amor, poder e justiça, São Paulo, Novo Século, 2004, p. 109.
[3] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, caminhos para o diálogo da teologia com a brasilidade, São Paulo, Editora Ágape, 2001, pp. 58-62.

jeudi 17 janvier 2013

Identidade e eternidade

Uma conversa em tempo, fora do tempo, mas cheia de tempero entre o rabbi Moisés Pinheiro, patriarca, e o fisiologista François Broussais

Por Jorge Pinheiro

Na mesma sala, sentados comodamente, num ambiente nada descontraído, na Paris angustiada mas esperançosa da Revolução de 1830, Moses Pinheiro, rabbi em Livorno, amigo do polêmico messias Shabbetai Zevi, com quem estudou literatura cabalística e talmúdica, discute questões que estão no pano de fundo da revolução com o médico François Joseph Victor Broussais, que pesquisa a relação entre fisiologia e patologia.

O médico se levanta da poltrona, caminha em direção à janela e diz

-- Meu caro Moses, a busca da justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

O rabbi, sarcástico, sem abandonar uma certa postura quase sacerdotal, responde

-- François, é gostoso conversar com um gênio da medicina, como você, mas aqui eu fico com algumas informações de seus colegas. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.

Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?

Prefiro dizer: somos parte da longa corrente da existência, extensa, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade.

O fisiologista, irritado, como se discursasse para o povo sublevado, retruca

-- Moses, amigo, você defende o princípio da coexistência. Você está dizendo que eu sou dois. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta e o outro não muda. Não concordo com isso!

Eu sei muito bem, porque tenho trabalhado com isso, que o cérebro está ligado à vida mental. Se um paciente sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. Embora ainda não se saiba como, o funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

Era a deixa que o rabbi esperava

-- Espera aí, François, me deixa aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também, é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.

Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.

A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.

Mais calmo, numa tentativa de apaziguar ânimos, o médico desenha pontes no ar

-- Há uma parte do seu argumento que eu gosto, Moses, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do tempo.

O rabbi agora se levanta, dirige-se para uma lousa hipotética, faz sinais cabalísticos diante dela e explicita as diferenças

-- Bem, amigo François, creio que aqui nossos argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a nossa divergência: para mim, o cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. E tomo como ponto de partida Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo.

O médico não se dá por vencido. Até agora não se sentou de novo. Caminha devagar, fixa o rabbi, olho no olho, e tece sua argumentação

-- Bem, Moses, já que você citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa um exemplo apresentado por John Locke. Ele criou uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O corpo do sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o corpo do sapateiro.

Depois da troca, a pessoa no corpo do sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?

Mas Locke resolveu complicar um pouco mais a questão: disse que o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que está no corpo do príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa no corpo do sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa no corpo de sapateiro e não a pessoa no corpo do príncipe.

Com essa parábola, Locke quer mostrar que a nossa identidade obedece à continuidade do meu cérebro. De acordo com a teoria proposta por Locke, uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. A teoria de Locke afirma que o príncipe no corpo do sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele corpo do sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Ao que o rabino responde de imediato, como se tivesse descoberto o ponto fraco do argumento do fisiologista

-- Locke é genial, mas eu pergunto: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro.

É François, talvez aí haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O médico caminha devagar em direção à poltrona. Senta-se. Procura uma posição confortável, coloca calmamente tabaco no cachimbo e ouve com atenção, quase com deleite o discurso do rabino

-- O meu amigo Shabbetai Zevi analisou as possibilidades do midrash do Rav nazareno sobre o Lázaro e o homem rico e constatou que é uma das passagens mais marcantes referente ao estado do ser humano após a morte. Nela se evoca imagens ilustrativas de recompensa e juízo. É interessante notar que o Rav de Nazaré construiu esse midrash para os prushim e não para os seduqim. Os seduqim não pensavam existir uma vida além-túmulo no sentido de céu e inferno, apoiando-se nos conceitos mais tradicionais do judaísmo do Sheol como o lugar de todos os mortos, sem diferenciação. O midrash, como todo o texto maior do Rav Lucas, discípulo do nazareno, desde o capítulo quatorze, parece estar bem dirigida aos prushim, que tinham expectativas messiânicas e escatológicas desenvolvidas. O ensino, portanto, tem uma audiência específica. Parece que o tratamento do reino dado pelo Rav para os seduqim teria uma ótica e ênfase diferente.

O Rav de Nazaré coloca mais ênfase no ensino referente ao inferno do que propriamente no ensino referente ao céu. Deve-se lembrar, porém, que o inferno não é o contraponto ou oposto do céu, mas do reino. Nestes termos, o ensino do Rav é também dirigido à inclusão dos seduqim. O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a vida das eternidades, conforme diz Shabbetai, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Um Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Adonai Echad, mesmo após a morte.

A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Um Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Ain Soph ou na separação dele, o inferno.

O midrash de Lázaro e o homem rico está inserido no contexto maior do texto do Rav Lucas, desde o início do capítulo quatorze. Em geral, um midrash é dirigido a alguém para evocar uma resposta. Assim, é necessário compreender o contexto a quem o midrash estava sendo dirigido e com que motivo foi empregado pelo Rav. Também algumas questões devem ser colocadas de antemão.

O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos prushim e a forma de vida do reinar que o Rav pregava. Desde pelo menos o capítulo quatorze, o Rav lança uma série de críticas aos Cohanim do seu dia. Com esta crítica, enfatiza o tipo de vida do reinar do Adon Olam, a vida das eternidades, por sua qualidade.

A crítica do Rav de Nazaré questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete escatológico: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

François Broussais salta e começa a falar

-- Entendo, entendo. Seu argumento, querido rabbi, é: Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, segundo você, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

O rabbi Moses Pinheiro sorri o sorriso dos sábios

-- Só que não estou só. Aristóteles, todos os cabalistas e eu também não vejo nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmamos que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência é o único princípio de toda a atividade vital do homem, da sua vida vegetativa e sensitiva e, também, de sua vida propriamente espiritual.

A correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.

O fisiologista, quase à maneira de dueto, acrescenta

-- Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Mas, seguindo seu raciocínio, você ainda deve me explicar. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união?

Moses Pinheiro volta às suas construções diante da lousa imaginária. E aceita o desafio do fisiologista

-- O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.

Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.

Deste modo eu considero, com Aristóteles, que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. A diferença de forma é o meio através do qual somos separados de nosso Criador. Assim, como nos ensina o Sefer haZohar, podemos entender que desde que foi colocado no existir o desejo de receber, o que não é encontrado de nenhuma forma no El-Shaddai -- pois de quem Ele poderia receber? --, foi estabelecida a diferença de forma, que nos separa do Criador. Mas se há diferença de forma, há imagem e semelhança: é a união no Criador que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio eterno que coloca em cheque o racionalismo de Descartes.


Talvez por não ter tantas oportunidades de um diálogo com o rabbi, em meio à revolução que estilhaça corações e vidas, François Broussais se mostra curioso diante dos argumentos do judeu

-- É certo, entendo, com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Moses Pinheiro vê a pergunta do cientista como um clamor da existência. E responde docemente, cheio de carinho

-- A eternidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. Como disse anteriormente, o Sefer haZohar diz que o que não existia na essência do Um Eterno, mas que poderia ser chamado de completamente novo criado é a vontade de receber. Este algo novo, que não estava contido na essência do El-Shaddai, é o pensamento da Criação, cujo propósito é dar alegria aqueles que Ele criou, gerado a partir da necessidade da vontade de receber Dele todo o bem e prazer que Ele imaginou para nós. Temos aí a base da existência e de seu caminhar eterno. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral.

O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da existência cuja eternidade repousa no pensamento da Criação.

Há o Adonai Echad e a lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a comunidade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.

O argumento moral se assenta sobre o princípio de que o Um Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.

O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.

Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.

Hades é a expressão grega utilizada na Torá dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. A mishná do sheol cresceu ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, aparece na religião de Israel a construção da mishná da vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. A mishná do sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao midrash em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.

“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”

O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a alegria que surgia pela esperança da tehhiyáth hammethím, a revivificação dos mortos, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios:

“Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não serão revivificados; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos serão revivificados. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”.

O ser levantado para a vida é realidade do Adon Olam e do coração reto humano diante dele. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Adonai Echad.

Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites da mishná estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas de nosso povo: o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O Rav de Nazaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção no midrash não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação do Adonai da vida. A nossa leitura realça o conceito normativo de retribuição. O justo recebe recompensa material, e o injusto carece de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Um Eterno e dignos do reino do Messias. Mas o Rav de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.

Lázaro é Eliezer, aquele a quem Adonai Echad ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela comunidade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Um Eterno, porém, o socorre. O Rav de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos prushim: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do Rav nos últimos capítulos do midrash do rabbi Lucas está claro.

O Rav de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Um Eterno se preocupa com aqueles descartados pela comunidade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Ain Soph é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.

Uma pergunta que provém do estudo do midrash pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do Rav aos prushim através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do Rav em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na tehhiyáth hammethím, na revivificação dos mortos -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o Rav de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar do Ain Soph. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.

O fisiologista solta uma baforada, olha para seu novo amigo, e diz

-- Eu não concordo, o povo está nas ruas, clama por liberdade e justiça e você lança a questão para as calendas. Mas entendi o seu argumento: a questão da justica, por relacionar identidade e eternidade se resolve numa equação: há o Um Eterno sábio e justo; nenhuma contradiçao é definitiva; temos então uma dimensão onde se estabelece o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos. E por ser ilimitada a duração dessa existência, a eternidade constitui o elemento essencial da felicidade completa, já que não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo.

Ao que o rabbi completa

-- É, amigo, por isso os sábios afirmam, a existência futura, a eternidade, é infinita e ilimitada, e a sua realização é a justiça e a liberdade, em conformidade com os desígnios do Criador, Adonai Echad.

lundi 14 janvier 2013

Desafios à igreja brasileira


Desafios à igreja brasileira

Desejo abordar a questão das espiritualidades da igreja protestante/ evangélica a partir da fenomenologia da religião. Quanto falamos em fenomenologia da religião falamos de como captar o lado único da experiência religiosa. E utilizamos como método científico a observação, explicando as simbologias e as crenças. Assim, a fenomenologia procura compreender a espiritualidade a partir do ponto de vista do fiel, bem como o valor dessa espiritualidade na vida do mesmo. Por estas razões evita os juízos de valores e os conceitos de época.

Quando olhamos para a espiritualidade da igreja protestante/ evangélica podemos ver dois tipos de espiritualidades: a exotérica e esotérica. A espiritualidade exotérica é aquela que pertence ao lado de fora, racionalista e literalista. Assim, esta espiritualidade apresenta estruturas de crenças que procuram explicar os mistérios do mundo através de leituras racionalistas da revelação, ao invés de utilizar testemunhal ou experiência direta. Apresenta, também, na maioria das vezes, uma interpretação fundamentalista da fé, das doutrinas e da dogmática.

Já a espiritualidade esotérica traduz a idéia de uma espiritualidade íntima, que se situa no interior, naquilo que vem de dentro. O fato de a espiritualidade esotérica, que também podemos chamar de mística, apresentar-se como oculta não surge do fato de ser secreta, mas porque traduz uma experiência direta ou percepção pessoal. Esta espiritualidade não acredita em dogmas por obediência, mas faz a viagem das experiências pessoais. Sua base é a experiência direta e esta experiência pode ser validada por outras pessoas desde que executem o mesmo experimento. E o maior experimento da espiritualidade mística é o êxtase.

Para explicar esta espiritualidade vamos recorrer à matemática. Não há prova de que menos um elevado ao quadrado seja igual a um, ou seja, (-1)2 = 1. Não há prova empírica para tal afirmação. Mas, consideramos o enunciado acima verdadeiro por lógica interna. Não há menos um (-1) no mundo exterior, só na mente. Mas isso não significa que tal afirmação não seja verdadeira, já que é validada por matemáticos, ou seja, por aqueles que sabem como funciona o experimento lógico-matemático. Para a espiritualidade esotérica o processo é parecido: a experiência do êxtase é conhecimento interno, que pode ser validado por outros fiéis, aqueles que conhecem a lógica interna da experiência do êxtase.

Dessa maneira, o oculto da espiritualidade esotérica reside no fato de que se não há o experimento, não há condições de conhecer. Ou seja, essa espiritualidade está oculta para aqueles que não realizam o experimento. De certa forma, podemos dizer também que as espiritualidades esotéricas das igrejas evangélicas apresentam uma unidade no que diz respeito ao Espírito e à natureza da sua identidade. Superficialmente, as estruturas das igrejas de espiritualidade esotérica variam, mas na essência são semelhantes, e refletem de certa forma a unanimidade do Espírito acerca das leis fenomenologicamente reveladas.

Já as espiritualidades exotéricas não apresentam esta unidade estrutural, isto porque repousam sobre peculiaridades culturais e de época que transformadas em construções racionalistas, hermenêuticas, doutrinas e dogmáticas, as levam ao choque. É verdade que os textos antigos e suas simbologias podem ser interpretados como alegorias ou metáforas para as questões transcendentais. Mas, como estamos fazendo fenomenologia, devemos dizer que os fiéis da espiritualidade exotéricas não vêem as simbologias dos textos como alegorias, mas revelação que deve ser lida e entendida literalmente.


A espiritualidade esotérica, que vem de dentro, no entanto, dá significado para aos textos e seus símbolos a partir da experiência interior, do êxtase, e não de um sistema exterior de crença.

No correr do século vinte, no Brasil, na igreja protestante/ evangélica essas duas espiritualidades se confrontaram. Cada uma delas apresentava argumentos contra a outra. Fracionamentos aconteceram e essas espiritualidades se afastaram. Mas é o caso de perguntar: elas são antagônicas ou correlatas? Na verdade, a espiritualidade exotérica, por privilegiar o texto, as doutrinas e os dogmas, situa-se no passado, enquanto a espiritualidade esotérica por situar-se dentro, na experiência da pessoalidade, situa-se no presente, apesar de fazer na maioria das vezes uma leitura estática e privatizada desse presente.

Por isso, a correlação dessas espiritualidades nos leva aos três desafios vividos hoje pela igreja evangélica brasileira.

Vou sintetizar o que quero dizer e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais, contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.

Esses desafios de vida evangélica para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.

Ora, se presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões social, racial, de gênero e outras.

E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.

Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.

Esses desafios, em especial o da relação da conterraneidade com o Reino de Deus, discuto no meu livro, “Deus é brasileiro, as brasilidades e o Reino de Deus”, que foi lançado em fevereiro de 2008 pela Fonte Editorial.

No livro digo que a partir dos clamores éticos da profecia bíblica temos uma compreensão da práxis cristã, que podemos chamar de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.

Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as situações-limite que ameacem o sentido da vida, aí está o protestantismo no seu sentido mais profundo e abrangente.

Prof. Pós-Doutor Jorge Pinheiro, cientista da religião

samedi 12 janvier 2013

Escravidão e negritude na construção da família brasileira

Uma leitura a partir de Gilberto Freyre 
Prof. Dr. Jorge Pinheiro[1], 


"Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, 
traz na alma, quando não na alma e no corpo 
– há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – 
a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro". 

Gilberto Freyre, Casa-Grande e Senzala. 

Introdução 

Ao percorrer os caminhos da afrobrasilidade ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam encontros e desencontros do processo civilizatório vividos na formação da nacionalidade. A questão afro é uma das principais delas. E por não ter sido solucionada a contento, as bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do movimento evangélico no Brasil, que, apesar de ter crescido muito, pouco tem feito em relação aos deserdados e excluídos. 

Negra escrava, foto de Alberto Henschel, 1870

“Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca de influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do moleaue que foi nosso primeiro companheiro de brinquedo”.[2]

Em razão da ideologia do ocultamento, é necessáriio entender que as bandeiras emancipatórias são indissociáveis da pregação das boas novas, e precisam ser vividas como tradução do cristianismo que professamos. Assim, ética cristã e democracia não podem ser olhadas como excludentes. Ao contrário, se complementam e precisam ser vivenciadas na Igreja e além-muros, se desejamos fazer com que o significado histórico do projeto protestante evangélico marque nossa presença no futuro da nação. 

2. A presença da mulher negra 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora de nossa formação histórica. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 

“Foram essas Minas e Fulas – africanas não só de pele lais clara, como mais próximas, em cultura e ´domesticação´ dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como Minas Gerais, de colonização escoteira, para ´amigas´, ´mancebas´ e ´caseiras´dos brancos. Ilustres famílias daquele Estado, que ainda guardam traços negróides, terão tido o seu começonessa união de brancos e negras Minas, vindas da áfrica como escravas, mas aqui elevadas à condição de, segundo testeminho de Vaía Monteiro, de ´donas de casa´. Outras terão permanecido escravas, ao mesmo tempo que amantes dos senhores brancos: ´preferidas como mucamas e cozinheiras´”.[3]

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão de nosso passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. 

A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes da Igreja, nós protestantes, raramente reconhecemos essa dívida intelectual, cultural e social. 

O autoritarismo tão típico de nossa elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses 370 anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. 

“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime. Em primerio lugar, o próprio interesse econômico favorece a depravação criando nos proprietários de homens imoderado desejo de possuir o maior número de crias. Joaquim Nabuco colheu em uma manifesto escravocrata de fazendeiros as seguintes palavras, tão ricas de significação: ´a parte mais produtiva da propriedade escrava é o ventre gerador´”.[4]

Nossa multicultura é relacional. Isto siginifica que é pouco intervencionista diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, na multicultura brasileira, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. E os seus códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium[5]. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. 

A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século XVIII, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica[6]. Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes já livres da escravidão: podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado. 

Assim, o paraíso aqui foi definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, será ele aquele que rompe a dualidade cultural, tão típica das sociedades protestantes e calvinistas, que opõe bem e mal, deus e diabo. Aqui, ao contrário, com a construção da cultura afrobrasileira e com o mulato, dá-se a síntese que traduz nossa cultura relacional. 

Ótimo exemplo é o nosso Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude. 

Antonio Manzatto (1994) analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral da identidade do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases da cultura relacional afrobrasileira, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. 

A cultura relacional esconde a injustiça social[7] e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por três matrizes: brancos, índios e negros, o que, filtrado pela cultura relacional, leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. 

“A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino as sílabas moles. (...) A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um sabor quase africano: cacá, pipi, bumbum, tentém, neném, tatá, papato, lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha”.[8]

Claude-Lévi Strauss em O cru e o cozido (1964) nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Claude-Lévi Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelas tribos sul-americanas. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a cultura relacional brasileira. 

“No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-se principalmente pela introdução do azeite-de-dendê e da pimenta-malagueta, tão característicos da cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso da banana; pela grande variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe”.[9]

No Brasil há um código relacional que traduz uma equivalência entre comida e sexualidade, que tem como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para o cru e o cozido, relacionando alimento, comida e sexo. 

“Um dos característicos da cozinha ortodoxamente afro-brasileira é fazer acompanhar de verduras – de quiabo, couve, taioba, jerimum – os seus quitutes de peixe, de carne, de galinha”.[10]

Para a cultura afrobrasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, síntese da afrobrasilidade. Herdeiros que somos das culturas das irmandades de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação vida da comunidade cabia à mulher, na cultura afrobrasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. E mulher é dona Flor, moquequeira dengosa, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela. 

3. A presença do homem negro 

Na cultura relacional afrobrasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. 

“Notou o abade Étienne aue o islamismo ramificou-se no Brasil em seita poderosa, florescendo no escuro da senzala. Que daáfrica vieram mestres e pregadores a fim de ensinarem a ler no árabe os livros do Corão. Que aqui funcionavam escolas e casas de oreção maometanas”.[11]

A festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira. Todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. 

“Os reis do Congo eleitos no Brasil rezam a Nossa Senhora do Rosário e trajam à moda dos brancos; eles e seus súditos conservam, é certo, as danças do seu país: mas nas suas festas admitem escravos africanos de outras regiões, crioulos e mulatos que dançam da mesma maneira; essas danças atualmente são mais danças nacionais do Brasil do que da África”.[12]

Os códigos da afrobrasilidade caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síntese, que é a cultura popular afrobrasileira. 

Essa cultura mestiça, essa síntese, é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional afrobrasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo. 

Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do afrobrasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (isto é, globalizantes) vão sendo deglutidos e vividos no hoje que se vive. 

4. A religião dos orixás 

O concreto e imediato da vida do afrobrasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do afrobrasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. 

“Foi a perícia no preparo dos feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto prestígio a escravos macumbeiros junto aos senhores brancos já velhos e gastos. Agripino Grieco recolheu no Rio de Janeiro, na região das velhas fazendas de café, a tradição de senhores de 70, 80 anos, que estimulados pelos afrodisíacos dos negros macumbeiros, viviam rodeados de negrinhas ainda impúberes; e estas a lhes proporcionarem as últimas sensações de homem”.[13]

É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o afrobrasileiro chama de amizade e companheirismo. 

“A liberdade do escravo de conservar e até de ostentar em festas públicas – a princípio na véspera de Reis, depois na noite de Natal, na de Ano-Bom, nos três dias de carnaval – formas e acessórios de sua mítica, de sua cultura fetichista e toêmica, dá bem a idéia de aproximação das duas culturas”.[14]

E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. 

Nas religiões afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, das quais a Umbanda[15] talvez seja o caso mais peculiar, os elementos constitutivos da personalidade dos orixás são traduções antropológicas do afrobrasileiro, inclusive de seus códigos relacionais[16]. 

Tanto o ideal de liberdade como outras características do afrobrasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o afrobrasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. 

Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. 

É difícil imaginar o afrobrasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a cultura popular reflete é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. 

A sua práxis religiosa é sempre coletiva. A religião é sempre um acontecimento comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o afrobrasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na cultura afrobrasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. 

E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o afrobrasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos. 

5. A Criatividade Afrobrasileira 

Um pensamento evangélico que parta da realidade da cultura relacional afrobrasileira não pode desrespeitar a negritude. Não pode negar o mundo negro considerado parte integrante da humanidade criada à imagem e semelhança de Deus. Ao contrário, deve partir da realidade antropológica da criatividade afrobrasileira, que em amplo espectro se traduz numa antropologia da aventura e do risco enquanto fonte da liberdade que busca. 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no afrobrasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O afrobrasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. 

Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Mulato, não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e globalizada. 

Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o afrobrasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do afrobrasileiro. 

A dificuldade em globalizar o afrobrasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e prazer. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem como expressões maiores da possibilidade da utopia. 

O pensamento evangélico não pode estar preocupado em adaptar o homo afrobrasiliensis à globalidade banalizadora, mas em entender os elementos da imago Dei que permeiam essa riqueza civilizatória. 

6. A Busca do Transcendente 

A afrobrasilidade é um modo de ser, uma maneira de existir. O afrobrasileiro não se diferencia simplesmente pela sua cor de pele. A pele negra tem uma história, uma história de negações e de resistências. É preciso, pois, compreender que o afrobrasileiro se autocompreende, num primeiro momento, em sua história de negação, e por isso se afirma negro. 

A afrobrasilidade é afirmação deste que é negro e negra: é negação da negação. Este afrobrasileiro, destituído de sua história, vive imerso em si mesmo e numa sociedade que promove a ruptura de seus valores étnicos, sociais e culturais, mas quer iniciar uma outra história, onde não é João ninguém, Maria nenhuma. 

Mas a história do povo negro não começa com a escravidão. Afirmar a afrobrasilidade é afirmar uma proposta teológica em que a afrobrasilidade é mais do que uma evidência, é afirmar uma história que foi excluída. Implica compromisso com a causa de um povo. 

Se a cultura relacional afrobrasileira tem um caráter mágico, fortemente empapado no maravilhoso, isso se dá porque o dia-a-dia desse ser humano está ligado à busca da transcendência. Nesse sentido, o elemento que vai além e ultrapassa o concreto do dia-a-dia do afrobrasileiro é o transcendente. 

Essa presença do maravilhoso caldeia toda a malha relacional, indo do afrobrasileiro simples ao que alcançou o sucesso e a glória. É importante, no entanto, entender que o maravilhoso relacional da cultura afrobrasileira não nasceu de um processo pacífico, mas violento, do choque entre o universo transcendental de brancos e a matriz sacralizadora da natureza da religiosidade negra. A contra-reforma produziu genocídio e escravidão, macerando o universo religioso de povos e nacionalidades. 

A recuperação da história do povo negro como tradição e cultura liga-se à necessidade de conscientização da identidade afrobrasileira. Aquele que esquece nega o esquecido, reprimindo ou suprimindo. A identidade está imbricada à memória. Evocar a memória é provocar e transformar. 

Dessa maneira, reconhecendo os elementos negativos da cultura relacional afrobrasileira, que se traduziu na tentativa de esconder as injustiças sociais sofridas, podemos resgatar o que ela construiu de positivo. Afirmar a cultura à qual pertencemos é o primeiro passo para construir um pensamento evangélico afrobrasileiro, que compreenda a identidade do povo negro em sua busca de felicidade e transcendência. 

A antropologia mostra-nos um afrobrasileiro em busca da felicidade imediata e da transcendência, possibilitando ao pensamento evangélico uma compreensão dos elementos da revelação e da imagem de Deus aí embutidos[17]. Não devemos temer o afrobrasileiro, mas conscientemente reconstruir raízes e memória. Esse caminho dará fundamentos a velhos sonhos, traduzirá a boa notícia do Cristo, como resposta imediata e concreta para a utopia que se desfaz na quarta-feira de cinzas. 

Ser teologicamente negro traduz uma conversão e por isso a afrobrasilidade constitui-se num desafio não só para os negros. A afrobrasilidade deve ser uma postura teológica, uma atitude de resgate diante da história de negação do negro. Desse ponto de vista, colocar para a nova igreja protestante[18] a afrobrasilidade como pensamento teológico implica resgate de uma história de sofrimento e dor e redenção diante das possibilidades que estes sofrimento e dor construíram. 

O lugar fundamental da gestação da afrobrasilidade do ponto de vista do pensamento teológico dá-se no locus da comunidade negra, espaço de formação da identidade negra, como vida resgatada. 

Considerando que o pensamento teológico possui dimensões que transcendem o locus, é importante estabelecer paradigmas que o viabilizem. Paradigmas esses que possibilitem a cada grupo traçar seu caminho de liberdade, de acordo com sua realidade e necessidade, sem perder o vínculo com o conjunto da mensagem de redenção. 

Nesse sentido, não basta construir um pensamento teológico da negação, mas um pensamento teológico da afirmação da afrobrasilidade. Não somente uma teologia do protesto, mas uma teologia da proposta, uma teologia da salvação que permita levar a riqueza dos sonhos ancestrais à sociedade afrobrasileira de conjunto. 

Num primeiro momento, abertura à transcendência é sofrimento e cruz. Motor da liberdade cristã, quando esta se revela no aspecto da supressão do ser humano imediato. É a exigência de romper com o existente aceito. Essa ruptura, no entanto, exige persistência na determinação e no sofrimento em nível imediato, sem a qual não há liberdade dentro da ordem existente (Ballestero, 1970, p.110-111). 

Contudo, abertura à transcendência não se resume a esse primeiro momento. Na verdade, é diametralmente oposto a ele, traduz outra realidade, outra natureza. A unidade transcendência-humilhação-cruz é superficial como realidade imediata. 

Por isso, a emergência da transcendência passa pela morte do mundo, porque a realidade entrou em caducidade. Sofrimento e cruz refletem essa impossibilidade de vida e de eternidade. A transcendência é regeneradora porque acontece no mais fundo da própria raiz humana. É no momento da morte de seu consciente, que o mais profundo da intencionalidade humana se revela. 

A interioridade cristã não é consciência cartesiana. É um tempo de negação de todo objeto possível, tempo de vazio interno que possibilita a abertura ao sagrado. É nesse momento que a transcendência aparece como disponibilidade transparente da consciência. 

Dessa maneira, a transcendência do afrobrasileiro não pode realizar-se a não ser como articulação viva da subjetividade e como sua obra. A morte do afrobrasileiro imediato é o ato que faz possível ressurgir o verdadeiro afrobrasileiro, a partir daquilo que lhe é inalienável e próprio. Fazendo uma releitura de Lutero podemos dizer que o cristão é servo em tudo e está submetido a todo mundo, então... o cristão é senhor de todas as coisas e não está submetido a ninguém (Luther, 1955, p. 225). 

Se entendermos a dialética desse processo, teremos elementos para dar início à construção de um pensamento teológico afrobrasileiro. Um pensamento que parte da condenação daqueles 370 anos de escravidão , mas vai além, transcende, pois fará de todos nós, em Cristo, senhores do Brasil que nos foi entregue. 



"Eu ouço as vozes 
eu vejo as cores 
eu sinto os passos 
de outro Brasil que vem aí 
mais tropical 
mais fraternal 
mais brasileiro". 

"O mapa desse Brasil em vez das cores dos Estados 
terá as cores das produções e dos trabalho. 
Os homens desse Brasil em vez das cores das três raças 
terão as cores das profissões e das regiões. 
As mulheres do Brasil em vez de cores boreais terão as cores variamente tropicais. 
Todo brasileiro poderá dizer: é assim que eu quer o Brasil, 
todo brasileiro e não apenas o bacharel ou o doutor 
o preto, o pardo, o roxo e não apenas o branco e o semibranco". 

Gylberto Freyre, O outro Brasil que vem aí, 1926. 



Referências Bibliográficas 

ANTONIL, André João. Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, 1711. 
AZEVEDO, Israel Belo de. A Celebração do Indivíduo. A Formação do Pensamento Batista Brasileiro, Piracicaba: Editora Unimep, São Paulo, Exodus, 1996. 
BALLESTERO, Manuel. La revolución del espíritu (Tres pensamientos de libertad). Madrid: Siglo XXI, 1970. 
BERDYAEV, Nicholas, The Destiny of Man. London: Geoffrey Bles, 1984. 
CAVALCANTI, Robinson. Os Terreiros de Jesus. O Evangelicalismo e a Raça Negra no Brasil, Ultimato, Ano XXI, No. 193. Minas Gerais, Editora Ultimato, 1988. 
FRY, Peter e HOWE, Gary Nigel. “Duas respostas à aflição: umbanda e pentecostalismo”. In: Debate e Crítica, São Paulo, no 6, 1975. 
HEFNER, Phillip J. “A questão do destino humano”. In: Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W. Dogmática Cristã. Vol. 1, São Leopoldo: Sinodal, 1990. 
LUTHER, Martin, Les Grands écrits reformateurs. Paris: Aubier, 1955. 
MANZATTO, Antonio, Teologia e literatura, reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo, Loyola, 1994. 
MEER, Antonia Leonora Van Der, África, um Continente Maldito?, Ultimato, Ano XXIX, No. 243. Minas Gerais: Editora Ultimato, 1996. 
PINHEIRO, Jorge, Negritude, Projetos Políticos e Nova Ordem Mundial, Apostila. São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, 1999. 
O'DONOVAN JR., Wilbur, O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana, Trad. Hans Udo Fuchs. São Paulo, Edições Vida Nova, 1999. 
OLIVEN, Ruben George, A antropologia de grupos urbanos, Petrópolis: Vozes, 1987. 
SANT'ANA, Antônio Olímpio de, O Negro Latino-Americano, Tempo e Presença, Ano 11, No. 242. São Paulo: Centro Ecumênico de Documentação e Informação, 1989. 
STRAUSS, Claude-Lévi, O Cru e o Cozido, Mitológicas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1991. 
WILMORE, Gayraud S. e CONE, James H., Teologia negra, São Paulo: Paulinas, 1986. Trad. Euclides Carneiro da Silva. 

[1] Teólogo pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo; Pós-Doutorm Doutor e Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp); Pós-Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É pastor adjunto da Igreja Batista em Perdizes (SP). 
[2] Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, São Paulo, Global Editora, 2004, 49ª. Edição, p. 367. 
[3] Gilberto Freyre, obra citada, p. 389. 
[4] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 399. 
[5] O tripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá-los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. 
[6] Em obra publicada em 1711, Os escravos são os pés e as mãos do senhor do engenho, o jesuíta André João Antonil, proprietário do maior número de engenhos entre as ordens religiosas, afirmava que sem os escravos “no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente. E do modo, como se há com eles, depende tê-los bons ou maus para o serviço. Por isso é necessário comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e barcas”. 
[7] “Livres para a fome, livres para o inverno e para as chuvas do céu... Livres sem um teto para os cobrir, sem pão para comer, sem terra para cultivar... Nós lhes demos liberdade e fome ao mesmo tempo” (Wilmore e Cone, 1986, p. 42). 
[8] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 414. 
[9] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 542. 
[10] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 549. 
[11] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 393. 
[12] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 439.
[13] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 408. 
[14] Gilberto Freyre, idem, op. cit., p. 439. 
[15] “Mais do que um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país” (Fry e Howe, 1975). 
[16] “A adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. (...) Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes. Elas não só satisfazem aspirações em relação a uma visão espiritual e mágica do mundo, mas também fornecem ao crente uma orientação definitiva em relação à sua conduta, assim proporcionando apoio espiritual” (Oliven, 1987, p. 42). 
[17] O ser humano tem um destino. O termo destino conota vocação, aponta para aquele conteúdo intrínseco que constitui uma dimensão da natureza humana. Destino tem matizes de dom, propósito e alvo. A concepção cristã do ser humano trabalha com a idéia de que todos os seres humanos são chamados à construção de destino pleno de sentido. 
[18] A expressão nova igreja protestante traduz a consciência de que o Cristianismo deve apresentar um evangelho integral, holístico, ao mundo. Esse evangelho não se limita ao privatissimum da salvação individual e nem se fecha entre as quatro paredes do templo, mas está preocupado com o ser humano enquanto totalidade social, política e cultural. Essa consciência vem se estendendo cada vez mais pelo conjunto das igrejas evangélicas no Brasil, sejam elas históricas ou pentecostais.