mardi 25 mars 2014

Evangélicos, negros e eleições no Brasil

A pensar de novo um tema discutido fazem cinco anos
Jorge Pinheiro, PhD

Mais de três séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, mas é comum ouvirmos falar apenas das heranças e contribuições do negro na cultura, culinária, música, etc. Pouco se trata das consequências sociais historicamente enraizadas deste processo, como o racismo e a acentuada discriminação social dos descendentes dos africanos para cá trazidos à força, que hoje se encontram incluídos nos extratos mais despossuídos de uma imensa maioria de pobres.

E quando se resgata a história da escravidão e a trajetória posterior do negro na sociedade brasileira, também é destinado um espaço pequeno para as formas de resistência e luta contra a opressão empreendidas por homens e mulheres que viveram sob os grilhões da privação da liberdade e continuam a sofrer com a discriminação.

Apesar de tudo, o povo negro no Brasil entrou o século XXI com mais conquistas do que em todas as outras épocas reunidas. Segundo levantamentos do Ipea, da Fundação Seade, e do instituto Grottera, divulgados pela revista Veja em outubro de 1999, o povo negro representava um terço da classe média brasileira e movimentava 50 bilhões de reais por ano. Segundo os estudos, de cada grupo de dez negros, quatro estão parados na pirâmide social e dos seis que se movimentam, cinco estão subindo. 

Ao mesmo tempo persistem fortes diferenças, como a salarial, a remuneração média dos negros é metade da que se oferece aos brancos. E a população negra economicamente ativa ocupa apenas 1% dos postos de trabalho estratégicos do mercado. 

Num país miscigenado, o preconceito racial não é discutido, em parte porque desde a abolição dos escravos nunca tenha se apresentado de forma explícita como em países que adotaram políticas de segregação. Por isso, as experiências com o racismo são vividas de formas muito diferentes por negros e mulatos. O escritor Lima Barreto denunciou e sentiu o peso da discriminação por toda a vida e terminou seus dias internado em um hospício, enquanto o igualmente mulato Machado de Assis passou a vida aclamado, sem jamais mencionar ou discutir sua origem racial. 

A Lei Afonso Arinos, de 1953, assegurou direitos, mas não garantiu o respeito e o direito à cidadania plena ao negro que, ainda hoje, carece de muitas conquistas. Apesar de tudo, cresce o número de negros e mulatos em governos estaduais e na máquina do governo federal e é cada vez maior o número dos que denunciam o preconceito - levando inclusive à cadeia os que o praticam. 

Artistas negros, especialmente no mundo da música, tiveram as portas da sociedade abertas e receberam tratamento diferenciado dos demais negros no Brasil ao longo do século. De Pixinguinha a Gilberto Gil e de Milton Nascimento a Carlinhos Brown e Alexandre Pires, a cultura foi uma das principais credenciais para a ascensão e aceitação do negro. A atriz e cantora Zezé Motta afirmou-se nos anos 70 como exemplo de beleza, talento e sensualidade, sem abrir mão das características de sua raça. 

Na área dos esportes, Edson Arantes do Nascimento, o “Rei” Pelé, foi o maior expoente brasileiro. Ao receber o prêmio de “Atleta do Século”, na categoria Futebol, em Viena, no mês de novembro de 1999, ele dedicou o troféu aos negros e lembrou os problemas raciais enfrentados em décadas anteriores por jogadores do esporte mais popular do País. 

O Brasil tem sido olhado pelos europeus como um modelo para os países em desenvolvimento. A política social é elogiada, embora haja certa incompreensão diante da aproximação do Brasil a países com o Irã. Isto porque os europeus desconfiam dos regimes teocráticos. Afinal, a liberdade de organização das religiões tem uma dimensão importante no seu relacionamento com o Estado. Esse relacionamento pode se dar de três formas, por fusão, união e separação. Um estado laico é leigo, neutro e separado da religião. 

O termo laico remete-nos a uma atitude crítica da interferência das religiões na vida pública da sociedade. Assim, a laicidade do estado é condição indispensável para a existência da democracia. Sem o respeito às crenças, às descrenças e à ausência de crenças, de neutralidade confessional, é impossível ao estado assegurar democracia religiosa e, inclusive, social. As teocracias, assim como as militâncias fundamentalistas, sejam elas cristãs, de descrença ou islâmicas, na modernidade que se esvai, ameaçam o respeito ao outro e geram discriminação e ódio. Esta seria a crítica de fundo às pressões islâmicas hoje e, em especial, ao desejo iraniano de chegar à tecnologia nuclear, já que sob regime teocrático o Irã não transmite confiabilidade ao mundo europeu.

E como os europeus olham o Brasil pentecostal? Vou partir de um artigo do Jean-Jacques Fontaine (Brésil, Le business des églises évangélistes, Le Petit Journal, 9/07/2010), para mostrar como os franceses vêem o movimento evangélico. Para eles, é muito difícil ter uma idéia exata do peso das igrejas evangélicas, porque elas são onipresentes em bairros onde os pastores têm influência, mas isso não se traduz em expressão social. Outra coisa que para eles chama a atenção é o envolvimento da Igreja com o narcotráfico no Rio de Janeiro e a extorsão financeira dos pobres.

Da mesma maneira, não entendem como o fundador de uma igreja, no caso a Universal do Reino de Deus, tenha uma rede de TV, mesmo quando investigado por lavagem de dinheiro e evasão fiscal.

Segundo Fontaine, em 1970, as igrejas evangélicas tinham oficialmente 4.800.000 fiéis. Em outubro de 2009, uma estimativa do instituto de pesquisa "Analisis" diz que hoje são para 23% da população, ou seja, 45 milhões de pessoas. Um crescimento de 10 vezes em 40 anos. Os evangélicos estão nos subúrbios pobres das grandes cidades, na região do Sudeste e na Amazônia. No Nordeste, a igreja católica consegue freiar a expansão evangélica.

Fato que para os franceses é inexplicável, é que os evangélicos, recrutados entre os setores mais pobres da população, pois são mais pobres que os fiéis católicos, dão mais dinheiro em dízimos e ofertas. E diz que as igrejas evangélicas levantam mais de 1 bilhão de reais por mês e que um crente dá em média 32 reais por mês para a igreja.

E Fontaine pergunta se não estamos assistindo a talibanização da sociedade brasileira. E expõe seus motivos para pensar assim: o destino do dinheiro arrecadado pelos pastores não é nada transparente: existe uma disparada na construção de templos. Mas isso é o que se vê, embora se saiba que o dinheiro vai para enriquecimento pessoal e financiamento de campanhas políticas. Basta ver que os evangélicos representam 23% da população, mas já ocupam 35% das cadeiras no Congresso nacional. 

Por isso, talibanização do Evangelho significa que antes havia o poder do Vaticano, que fez e desfez reis, agora, empresas da fé, monopolistas e neoliberais, impõe através de um marketing agressivo uma presença constante a fim de reverter as relações sociais e responsabilizar aqueles cujos comportamentos não seguem seus dogmas. Segundo Rosiane Rodrigues, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, sem muito alarde, em junho de 2009, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa – CCIR - entregou relatório ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Martin Uhomoibai. O documento, além de relatar casos exemplares de perseguição religiosa, acusa a Igreja Universal do Reino de Deus, assim como outras denominações neopetencostais, de promover uma ditadura religiosa no Brasil, através de sua prática racista e discriminatória contra religiosos de matriz africana e minorias étnicas. Na época, a Folha de São Paulo, ao noticiar a entrega do relatório, entrevistou o sociólogo Ricardo Mariano, da USP, que discordou do viés racista da denúncia da CCIR e afirmou que “a atitude adotada pela Igreja Universal é motivada (apenas) por questões estritamente religiosas”, sem ter nenhuma correlação racial. Passado um ano, o relatório publicado pelo Grupo Internacional pelos Direitos das Minorias (Minority Rights Group International - MRG), amplamente noticiado pela imprensa mundial, constata que a intolerância religiosa é o novo racismo. 

Interessante observar que a constatação de Mark Lattimer, diretor da organização que elaborou o estudo europeu, confirma o que os religiosos brasileiros sabem há muito tempo: a intolerância religiosa é uma das faces do racismo. A questão é que praticar o racismo não é apenas segregar pela cor da pele ou origem étnica. É pretender impor a visão dominante (superior e civilizada) com o objetivo de aniquilar as concepções de mundo e identidade de grupos dissidentes (ou resistentes), tratados como primitivos e inferiores.

Outra recente pesquisa realizada pela Univer Cidade, coordenada pelo professor Bayard Boiteux, ouviu 800 pessoas, na cidade do Rio de Janeiro. O estudo pretendeu fazer um mapeamento do preconceito do carioca. Divulgada pelo Jornal O Dia, os dados revelaram que 40% dos entrevistados têm preconceito religioso, principalmente com as religiões de matriz africana. O número chama atenção por ser bem maior que o preconceito racial (30%) e a homofobia (20%).

Assim como a pesquisa da Univer Cidade, a divulgação do Relatório do MRG não chegou a causar frisson nas redações. É sabido que uma parte significativa da imprensa brasileira (e da Academia) faz um esforço hercúleo para classificar pretos, brancos, amarelos, vermelhos, judeus e ciganos como representantes de uma única raça, a humana. É uma discussão que só faz sentido para quem enxerga na desracialização do discurso uma forma de preservar os "diferentes" de ataques e perseguições. Essa fórmula já se mostrou ineficaz - haja visto os grupos neonazistas que continuam existindo em todo mundo - além de ensurdecer a sociedade para questões que precisam ser amplamente discutidas. Talvez tenha sido este o motivo da pouca repercussão do relatório europeu – noticiado até pela Rádio do Vaticano – por aqui. É o reflexo da banalização da discriminação religiosa num país que aprendeu que as expressões religiosas dos africanos, indígenas e minorias étnicas são “magia negra”, “macumba", "coisas do demônio” e “primitivas”. 

Não é difícil entender o quanto a afirmação de Lattimer pode estar afligindo as redações. Ela faz cair por terra teorias míticas da sociedade brasileira: 1) o Brasil é uma democracia racial, mesmo com todas as evidências da existência de um fosso abissal que separa os negros dos brancos; 2) O Brasil é uma democracia religiosa, mesmo com cadeias comunicacionais, políticas e econômicas, dominadas por neopentecostais, que perseguem acintosamente outras religiões; 3) As redações se habituaram a tratar a diversidade brasileira – étnica, cultural e religiosa - como folclore ou algo pitoresco. 

Outro dado que merece ser destacado no relatório da MRG é que "a marginalização econômica que sofrem certos grupos (...) levaram a uma crescente tendência à perseguição das minorias religiosas na maioria dos países da Europa Ocidental e da América do Norte". Se trouxermos esta afirmação para a realidade histórica do país, percebemos que fica fácil “fazer a ficha cair”. O Brasil, colonizado por portugueses e considerado hegemonicamente cristão, ao importar, em meados século XIX, imigrantes europeus e asiáticos como trabalhadores assalariados em detrimento dos descendentes de africanos, recém libertos pela Abolição da Escravatura, realizou uma política pública de “embranquecimento”. Isso significa dizer que para o trabalho escravo o africano serviu - e o seu tráfico foi uma das maiores fontes de renda da Coroa Portuguesa, por séculos. Mas, para o trabalho assalariado, com dignidade e reconhecimento, foram trazidos outros povos – italianos, alemães, poloneses, japoneses. 

O processo de dominação formulado pelos colonizadores - brancos, cristãos, europeus - incutiu na sociedade o entendimento que os negros e índios eram sujos, indolentes, trapaceiros e que praticavam rituais demoníacos, além de representarem um risco a mais por serem a maioria da população. Os imigrantes inegavelmente contribuíram para o enriquecimento da nossa diversidade, mas chegaram aqui em condições privilegiadas em relação aos africanos e, de certa forma, serviram para dar uma “clareadinha” no povo brasileiro, além de ajudarem a consolidar os padrões eurocêntricos de vários governos (já) republicanos. Desde o Império, os governantes tinham o objetivo essencial de aniquilar as identidades culturais, étnicas e religiosas trazidas pelos negros da África e perpetuada por seus descendentes, como forma de resistência. O mesmo processo, guardadas as devidas especificidades históricas e culturais, aconteceu com os índios e mais tarde com ciganos e outros grupos minoritários. 

Afirmação antropológica de Antonil, no século XVII, de que o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos, não é uma afirmação biológica. Aqui o céu é definido enquanto resultante da cultura relacional, onde o Mulato, termo pejorativo oriundo de mulo, já que era considerado animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Ou seja, não estamos diante de uma cultura dual, como aquelas de corte protestante e calvinista, que opõem bem e mal, deus e diabo. Aqui temos o intermediário, o mulato, a maioria, que representa uma cristalização trágica da cultura relacional, onde “Macunaima, um herói sem nenhum caráter”, de Mário de Andrade, é o exemplo por excelência.

Nos países de cultura protestante, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude enquanto tragédia. Assim, a cultura relacional esconde a injustiça social. Por isso, afirmamos que o Brasil foi formado por três raças: brancos, índios e negros, o que filtrado pela cultura relacional levou a uma ilusão, a uma mentira, de que brancos, índios e negros optaram pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram índios e escravizaram negros. Os códigos relacionais caminham a par com a questão racial. A solução relacional para a injustiça social é a miscigenação e para o preconceito cultural o sincretismo. A oposição entre cultura latina, cultura indígena e cultura negra não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma síncrese relacional, que é a cultura popular brasileira.

Essa cultura mestiça é entendida como a maneira do brasileiro viver a vida, no gosto pela festa, da música, da dança, da comida e do sexo. Essa síncrese é uma forma de viver porque não é cultura acabada e definida, mas vai-se construindo no concreto do dia vivido. Essa é uma característica muito especial da cultura relacional brasileira, tem de ser reelaborada a cada dia. Não é uma forma cultural fixa, mas vai-se modificando conforme se vai vivendo.

Este é um elemento muito importante para se entender a questão de identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída, e os elementos externos e as pressões mais novas (i.e. globalizantes) vão sendo deglutidos, e vividos no hoje que se vive. Mas o dilema é assumir o racismo na sociedade brasileira. 

Setores da grande imprensa e da Academia, a partir de agora, precisam enfrentar este antigo dilema, reavivado por estas incomodas pesquisas: vai, obrigatoriamente, repensar suas linhas editoriais e de levantamento de dados para manter o “estabilishment”, ou correr o risco de ter que – necessariamente - admitir o óbvio: a) o Brasil vive uma das mais perversas práticas do racismo – que é o estrutural – há cinco séculos; b) que esta prática racista não se limita as fronteiras do tom da pele ou ascendência e, ainda hoje, tem como alvo os signos e símbolos utilizados pelas comunidades religiosas afro descendentes e outras minorias; c) que a marginalização econômica e social dos povos negros e indígenas – que são as bases da cultura do Brasil – fragilizou ainda mais essas populações; d) que o racismo estrutural é um dos motivos da desmobilização e invisibilidade social e cultural de negros e índios; e) que os neopentecostais se aproveitam do preconceito racial – que é latente e histórico na sociedade brasileira – para estruturarem seus discursos e práticas persecutórias e arregimentar cada vez mais fiéis, que se transformam em poderio político, eleitoral e comunicacional; f) que é comum – para governantes, jornalistas e formadores de opinião - a demonização e criminalização das religiões dos povos que foram escravizados e que são considerados primitivos e não civilizados; g) que a intolerância religiosa que assola o país e vitimiza milhares de homens, mulheres e crianças é o reflexo do racismo enraizado na sociedade. 

Bom, as redações e os pesquisadores podem também optar em nem sequer pensar sobre esses temas e manter a sujeira do racismo brasileiro – transfigurado em crescente intolerância religiosa - bem varridinho, para debaixo do tapete. Mas, depois da divulgação dos relatórios da MRG e da Univer Cidade, o tapete corre o risco de ter que crescer muito para abrigar um grande lixão. 

Assim, o lobby da fé evangélica investe pesado na mídia, especialmente rádio e televisão, que são as principais fontes de informação dos pobres. A estimativa trabalhada por Fontaine estima que 60% das estações de rádio e TV estão direta ou indiretamente ligadas aos evangélicos.

Mas por que isso funciona? Porque o discurso dos pastores evangélicos se baseia na lógica do dinheiro. Não há nenhuma preocupação com o paraíso depois da morte, a recompensa tem que ser tangível. A mensagem é moderna, pragmática e refere-se ao mundo dos negócios. E ele conta que um pastor, em seu programa de TV, argumentou que "tudo que você tem será comido pela crise do mundo. Precisamos salvar a sua propriedade, removendo-a do banco e deixá-la nas mãos de Deus”.

Fontaine acredita que os crentes evangélicos não se ofendem com a utilização de seu dinheiro para fins políticos. E afirma que os três últimos presidentes do Brasil, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva usaram a mesma estratégia para serem eleitos: a aliança com as oligarquias tradicionais do Nordeste e o acordo com os evangélicos nas periferias urbanas do sul- sudeste. E cita dois exemplos dessa presença política: o ex-vice-presidente José Alencar era evangélico, e Marina Silva, quase permanente candidata da presidência da República, também é.

Antes de tudo, as questões que envolvem religião e sociedade na França e demais países europeus são bem diferentes das nossas preocupações. Vejamos uma delas. Na França e alguns países europeus, estamos diante do fenômeno da cristalização da visibilidade do Islã. Mas esse fenômeno não é de hoje. Aparentemente, começou no 11 de setembro de 2001, mas, já em 1989, com a discussão sobre o uso ou não do véu nas escolas públicas, os franceses descobriram que a presença muçulmana era maciça no país.

Na verdade, os muçulmanos são a maior minoria em solo francês. A polêmica sobre o véu nas escolas públicas quase se transformou em luta interna contra o fundamentalismo islâmico, mas a lei acabou por ser aprovada. Os valores de liberdade, cidadania e democracia na França, assim como os valores universais do cristianismo, foram levados em conta, já que por ser uma sociedade laica, a França não podia optar por uma retaliação ao Islã. Era preciso que a sociedade francesa, sem se tornar refém da religião islâmica, possibilitasse sua expressão. E, ao mesmo tempo, se num Estado laico, as minorias cristãs não intervêm na máquina do Estado, mas tem o direito à existência, assim também deveria ser em relação à religião islâmica. Essa talvez tenha sido a grande e maior discussão política dos últimos anos em que as religiões se expressaram e que, de certa forma, quanto ao resultado final, prevaleceu a laicidade francesa. 

Vou responder essa questão a partir de uma reflexão sobre a situação atual. Diante de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no púlpito, da palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros, faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o momento presente e o espírito crítico e transformador do movimento evangélico? Exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que significa o atual momento enquanto desafio político para os evangélicos brasileiros. Falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de um momento em direção a outro momento diferente, que pode ser de qualidade inferior ou superior, mas nunca igual. O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. Mas, como disse o profeta Miqueias, "o Senhor já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito, amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus" (6.8). Na concepção progressista, também conhecida como esquerda, existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora debilita a esquerda e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se num progresso mitigado, em crítica desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim daquilo que é incondicional nas questões concretas. É o adversário do movimento evangélico radical. 

Conservadorismo e progressismo, esquerda e direita, estão entrelaçados na consciência do presente que estamos vivendo, que surge cheio de necessidades e pede transformação. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho. E o terceiro caminho é a profecia, que é a visão ir a frente sob o comando da vontade de Deus para o povo. Sem o espírito profético não há protesto, nem crítica radical. O espírito profético quer responder às necessidades e transformar o tempo, mas temos também de nos lembrar que aquilo que é novo, que chega sem pedir licença, abala o próprio tempo e tudo que está nele. É por isso que muita gente se decepciona com a profecia.

Mas a idéia de que a situação presente nos coloca necessidades e pede transformação nasce da compreensão da profecia. Necessidades e transformação clamam pela irrupção de criatividade e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo neste instante histórico. Mas, se criatividade e novidade respondem às necessidades e transformam o tempo concreto, é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente eterno. Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidades e transformação, criatividade e novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais evangélica e radical que seja. O sujeito da transformação será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o evangelicalismo radical, assim como a intelectualidade protestante têm aí um importante papel a cumprir, além de qualquer esquerda e direita, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós aconteça no presente concreto brasileiro: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene. 

Donos de um quarto dos votos no país, os evangélicos se dizem mais dispostos a optar por José Serra (PSDB) do que por Dilma Rousseff (PT) na corrida presidencial, segundo entrevista de Bernardo Mello Franco na Folha de S. Paulo (26/04/2010). José Serra, por exemplo, tem o apoio das Assembleias de Deus e é amigo do líder da igreja, Pr. José Wellington; já Dilma Rousseff tenta se aproximar da Igreja Universal do Reino de Deus, mas enfrenta dificuldades em negociar com igrejas mais conservadoras, como as Assembleias de Deus. Porém, vou abordar essa questão a partir da laicidade do Estado brasileiro. Ao poder temporal da Igreja sobre o Estado, chamamos clericalismo. E, a partir daí, podemos dizer que não existe anticlericalismo sem clericalismo, nem liberdade sem laicidade. Por isso, a teocracia é a negação da democracia. E não vamos esquecer que a Constituição de 1824 estabelecia três vetores em relação à questão religiosa: (1) o catolicismo era a religião oficial do Império; (2) a permanência da Igreja Católica Apostólica Romana na condição de religião do Império, apesar de admitir o culto particular de outras religiões, desde que em casas para isso destinadas, sem forma exterior de templo; e (3) a permissão da elegibilidade para o Congresso apenas daquelas pessoas que professassem o catolicismo. Essa hegemonia foi superada, ao menos no texto, com a chegada da República. Dessa maneira, o Brasil é um estado laico desde a edição do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, que instaurou a separação entre a Igreja e o Estado. É uma vitória cidadã e democrática. Quebrar essa conquista é retrocesso que em última instância não favorecerá grupo algum. Exemplo disso foram as guerras de religião entre católicos e protestantes na Europa e a violência dos conflitos étnicos religiosos na Iugoslávia. No Brasil laico e democrático, nós protestantes devemos defender nossas convicções e agir em nome próprio, como cidadãos, e não enquanto representantes de instituição religiosa. Devemos nos associar livremente como qualquer grupo organizado da sociedade, para expor e propagar maneiras de ver e viver. A influência das igrejas protestantes pode ser muito positiva para a sociedade. A exposição de valores como a ética cristã, a solidariedade e a luta por melhor distribuição de oportunidades e possibilidades, podem fazer enorme diferença para o futuro da nação. 

Prefiro discutir essa questão a partir do desafio da globalidade. Estamos diante de um sistema imperial de domínio, novo na história da humanidade, um domínio globalizante, que não pode ser encarado como totalidade que favorece a todos, nem como totalidade que prejudica a todos. Apresenta categorias dialéticas que regulam seu processo de existência e expansão. Vemos também que essa existência e expansão sofre uma oposição crescente, não somente política, mas também religiosa. E as oposições religiosas – tanto cristãs como muçulmanas – se levantam contra o domínio globalizante porque ele é concretamente destruidor da fé e um produtor de vítimas, que são todos aqueles excluídos dos acontecimentos globalizantes. Assim, quer queira ou não a Igreja se vê envolvida e confrontada por este domínio, porque ele ao impossibilitar a produção e reprodução da vida coloca a questão de outra globalidade, proposta pelo Cristo evangélico, que não se construa a partir da semeadura da fome, do terror e da morte. Cabe ao cristão levantar, então, a ética da vida enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo. Ao cristão cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de verdade vida/morte. Sem dúvida, o cristão latino-americano está desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante das vítimas e a paranoia fundamentalista. E esse é um tema para o púlpito. É política cristã que deve escorrer também para os valados da política partidária.

Se compreendermos que a laicidade e a democracia não são inimigas das crenças particulares, vamos entender que os protestantes têm o direito de exercer sua cidadania e se manifestar sobre aqueles temas que geram discussão e polêmica. E as pautas de discussão somos nós que as geramos. Devemos exigir de nossos candidatos que levantem e publicitem as questões que nos preocupam. As questões éticas em tempos de crise têm cobrem importância especial. Mas essas questões não podem ser encaradas apenas como questões religiosas, estritamente nossas, fechadas nas quatro paredes da igreja. Nosso protestantismo deve, permanentemente, abastecer a ética e influenciar nas decisões do País.

Em sua abordagem sobre o poder formativo do protestantismo, Tillich apresenta quatro princípios que balizariam a ética do protesto contra a idolatria: o religioso deve se relacionar com o secular; o que é eterno deve ser expresso em relação à presente situação; a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; e o poder formativo do protestantismo deve expressar o radicalismo da fé. 

Nesta obra, o autor foi buscar nos textos de juventude de Paul Tillich o material necessário para definir sua metodologia de trabalho. Esses textos em sua grande maioria foram escritos entre 1919 e 1931, época em que o socialismo teve um papel relevante na história da Alemanha. Paul Tillich, socialista e teólogo, viu-se colocado diante do desafio de pensar a realidade vivida. Por ser este o grande momento da produção teológica de Tillich sobre socialismo e ética, em tais textos o autor foi buscar a base metodológica para seu projeto. Convém notar que esses textos não se encontram traduzidos em português. O autor utilizou traduções francesas. Textos de maturidade também foram utilizados na composição metodológica do projeto. 

Na definição de sua metodologia, o autor analisou a relação entre teologia e socialismo em Tillich, focalizando questões como a ética do amor, ética e crítica social, ética e socialismo. 

Metodologicamente, a intenção do autor foi compreender a relação que Tillich construiu entre ética socialista e conceitos como espírito de profecia, autonomia e teonomia, e o papel das massas na transformação social.

A partir daí, a pesquisa entra objetivamente na realidade do final dos anos 70, quando setores não-religiosos, que traduziam a radicalidade da juventude, levantaram o discurso da ética socialista propondo o julgamento e a transformação da sociedade brasileira, então sob regime militar.

Viveu-se um movimento crescente, que num determinado momento envolveu parte da sociedade civil, com greves, manifestações públicas, organização das entidades de classe e participação nas eleições. Ao expor publicamente tal protesto, os líderes visíveis desses movimentos colocaram-se na situação-limite, correndo os riscos advindos de tal postura.

“A existência humana é a elevação do ser à dimensão da liberdade. O ser se liberta das cadeias da necessidade natural. Torna-se espírito e adquire liberdade de se questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. ‘Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria profunda inquietude da existência; é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada’. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Conseqüentemente, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrenta-la jamais se reveste de segurança absoluta. Trata-se pois do que Tillich chama de ‘situação humana limite’: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites”. James Luther Adams, O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992, p. 301.

O Brasil necessitava de uma ética, mas aparentemente estava longe dela. Na busca de soluções, Versus pergunta: quais as razões da mortalidade infantil e da criminalidade infanto-juvenil? Este é um problema muito discutido hoje, mas em 1979 Versus procurava respostas. E acaba por relacionar entre suas causas uma catastrófica distribuição de renda, miséria endêmica e racismo.

Em agosto de 1978, a assistente social Maria Benedita Salgado Arcas, já denunciava: “O problema não é o menor abandonado, mas as famílias abandonadas. O verdadeiro problema é a carência das famílias”. Funcionária lotada na Febem do Tatuapé, Maria Benedita tocara com profunda acuidade o cerne do problema, a má distribuição da renda regional e a péssima distribuição da renda individual.

Muitos juízes de menores, inclusive o ex-presidente da FEBEM, João Benedito de Azevedo Marques, acabaram afirmando então que era necessária uma “transformação da estrutura sócio-brasileira”

“Depois, como disse um menor no Rio de Janeiro, depois de fugir de uma das unidades da Funabem, para onde ir? Se for para a rua, disse ele, vou matar muito ou morrer rapidinho. Mas as unidades de amparo ao menor têm sido alvo das mais fantásticas fugas, tanto pela violência desencadeada, como pela audácia dos fugitivos e pela sua periodicidade. As fugas são resultado dos maus tratos físicos, das torturas, homossexualismo, e mau tratamento carcerário, como no Rio, onde havia uma solitária medindo aproximadamente 2,10 metros por 1,10 com um colchão no chão, e um vaso sanitário sem descarga. Procurou-se uma solução (paliativo?) lançando-se uma campanha, para a adoção de crianças. Mas como 65 por cento das crianças são negras segundo dados fornecidos por Gilcéria Oliveira, ex-presidente da Associação Cultural do Negro, ninguém apresentava-se disposto a fazer alguma adoção. Foi quando Paulo Rui de Oliveira, vereador pelo MDB, dizendo-se representante da comunidade negra, veio apelar a esta que ajudasse nossos irmãos da Febem. Isto acarretou uma discussão acalorada entre o vereador e os jornalistas Hamilton Bernardes Cardoso, editor de Versus, e Neusa Pereira, militante do Movimento Negro. Tudo isto tendo como veículo o Jornal da Tarde. Paulo Rui argumentava dizendo ser da responsabilidade da comunidade negra os negrinhos que estavam na Febem, e Hamilton Bernardes Cardoso e Neusa Pereira lembravam ao vereador a condição sócio-econômica do conjunto da comunidade negra. Enquanto isto, o Juiz Nilton Silveira nega que havia racismo na adoção das crianças, ao mesmo tempo em que se contradizia, afirmando que já havia 80 famílias negras esperando a adoção. Sem levar em conta a rigidez do protocolo para adoção, é bom lembrar as palavras do sociólogo Clóvis Moura: Existem em São Paulo 150 famílias negras que podem ser consideradas (sic) de classe média... Estas 80 realmente são intrigantes”. 

Versus analisou, então, até que ponto o racismo é um sério entrave para uma política social. 

Mas ao colocar a questão racial na adoção das crianças, Paulo Rui deixou aberta a porta de um raciocínio mais abrangente. Voltemos a alguns dados acima. A população baiana tem um índice de mortalidade que triplica o índice de Angola, mesmo considerando a sua densidade demográfica. Os maiores índices de mortalidade infantil ocorrem nos estados de maioria negra, ao contrário dos estados do Sul e Sudeste. Todos os números apresentados, de desnutrição, doenças, retardamento mental dizem respeito muito mais aos negros destes estados que ao número de brancos, em sua maioria situados abaixo do Trópico de Capricórnio. As unidades de “bem estar social” são guetos estruturalmente construídos com um capricho superior ao das prisões, mas não lhes fica devendo nada em relação ao tratamento dispensado.

No Brasil vê-se a questão do racismo individual, quando este é uma versão cuja consequência brutal é institucional, gerando o desemprego, a criminalidade e a morte de milhões de negros. O sonho de “embranquecimento” do Brasil, vai, enquanto isto, à todo vapor, pois aliado a imperiosidade de miscigenação, vai se diluindo a população negra no Brasil.

“Observamos aqui um dos aspectos mais originais e notáveis da doutrina da justificação em Tillich. Lutero aplicava essa doutrina apenas à vida religiosa-moral. O pecador, não obstante ser injusto era ‘justificado’. Tillich aplica a mesma doutrina igualmente à esfera religiosa-intelectual. Nenhuma autoridade tem o direito de exigir, na verdade, a aceitação de qualquer crença ‘correta’ de quem quer que seja. A devoção à verdade é suprema; é devoção a Deus. Existe sempre um elemento sagrado na integridade que conduz à dúvida mesmo sobre Deus e a religião. Na verdade, se Deus é a verdade, Ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Qualquer lealdade à verdade será sempre religiosa, mesmo quando acabar constatando a falta de verdade. Parafraseando Agostinho, a pessoa que duvida com seriedade terá de dizer: ‘Duvido, logo sou religioso’. O divino se faz presente até mesmo na dúvida. O ateísmo absolutamente sério pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade. Vê-se aqui a conquista da falta de sentido pela consciência da presença paradoxal do ‘sentido na própria falta de sentido’. Assim é ‘justificado’ aquele que duvida. A única atitude fundamentalmente irreligiosa é, então, a do cinismo absoluto com sua completa falta de seriedade”. James Luther Adams, idem, op., cit., pp. 302-3.

A análise da situação das crianças abandonadas levou o Versus a enfrentar-se com a realidade da discriminação racial no Brasil. Mais uma vez, tal questão poderia ter sido encarada apenas como mera questão técnica. Mas aqui o amor tem uma outra tradução: justiça.

Para Tillich, quando tomamos o conceito de justiça, concretamente, significa a lei e as instituições portadoras do amor em situações especiais. Para o socialismo, a justiça deve representar, na sociedade futura, plena de sentido de vida, o sistema de leis e formas capaz de manter e de desenvolver a segurança necessária para todas as pessoas (A Era Protestante, op. cit., p. 179). Por ora, por não existir tal sociedade, a justiça, mesmo como princípio secundário, que traduz um momento do amor, deve ser buscada.

Fica, no entanto, uma constatação colocada por Tillich: o amor é a própria vida em sua unidade concreta. As formas e estruturas do amor são as formas e as estruturas que possibilitam a vida, nas quais as forças destrutivas são superadas. Este é o sentido da ética: expressar as diferentes maneiras da concretização do amor e da manutenção e salvação da vida. (A Era Protestante, op. cit., p. 180).