vendredi 24 octobre 2014

O papel da ética protestante -- elementos para uma reflexão sobre a Era PT

Elementos para uma reflexão sobre a
Era PT e o papel ético do protestantismo

Jorge Pinheiro, PhD

Ao construir um roteiro e bases teóricas para a leitura da ética do protestantismo, apresentamos o conceito de barbárie histórica, que explica desde um ponto de vista filosófico como realidades e estruturas colocam em risco a existência humana, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A esta proclamação da vida e a este protesto contra aquilo que fere a essência do ser humano chamamos clamor protestante.

Ao levar em conta o momento histórico vivido pelo Brasil durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores, tanto em relação às reivindicações democráticas, quanto em relação às perspectivas de construção de futuro, este foi um momento especial para a colocação de propostas e alternativas sociais. É um tempo carregado de tensão, de possibilidades e qualitativo e rico de conteúdo. Por isso, dizemos que vivemos um tempo de kairós, de viva consciência da história e é a partir dele que segmentos da sociedade brasileira procuraram elaborar uma filosofia consciente da história. 


Ao analisar o surgimento do protestantismo devemos levar em conta aspectos históricos do final da Idade Média e os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da revolução protestante no século dezesseis. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual constrói a própria ética protestante, já que em termos filosóficos a revolução que começou na Alemanha e se espraiou pela Europa fez um chamado a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica na Europa. A necessidade de resistência e transformação exortava às comunidades de fé, recém surgidas em meio à convulsão social, a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo simples.

Nesse contexto, o ser humano pós-medieval surge como livre, mas ainda estava inseguro em sua liberdade. Tal situação fez com que setores institucionalizados das comunidades de fé levantassem a necessidade de uma volta ao passado, fazendo o discurso da emancipação da autonomia, e retorno à submissão à hierarquia e à tradição. Mas a liberdade já tinha sido experimentada e, por isso, sua tendência era à expansão. Ora, a existência humana estava a elevar-se ao cume do que vivera até aquele momento em sua dimensão de liberdade. O ser humano se libertava das cadeias da necessidade natural imperiosamente presentes na Idade Média. Tornava-se consciente e adquiria liberdade de questionar a si próprio, seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, havia nessa liberdade certa falta de liberdade, pois implica em descobrir a importância de decidir por si próprio.

O ato de decidir faz parte da inevitabilidade da liberdade, e cria uma inquietude na existência. É no ato da decisão que a existência se sente ameaçada. Isso porque somos confrontados com a exigência de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso pode ou não ser alcançado. No protestantismo, o ser humano, enquanto dimensão espiritual carrega uma ruptura, uma alienação, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência, e quando a enfrentamos nunca nos sentimos absolutamente seguros.

Estamos, então, diante da possibilidade da barbárie, de uma situação histórica limite, onde os direitos e seguranças que construímos são questionados e as possibilidades apresentam limites. Na filosofia protestante, tal processo leva ao conceito de justificação, pois a graça da vida em todas as suas dimensões descarta o direito de qualquer autoridade, institucional ou não, exigir a aceitação de uma crença correta, definitiva.

Assim, a devoção à verdade é suprema somente quando é devoção a Deus, por isso, existe um elemento sagrado na própria dúvida, mesmo quando esta se refere ao Deus e às religiões. Na verdade, se Deus é a verdade, ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Nesse sentido, qualquer lealdade à verdade seria sempre protestante, mesmo quando acaba constatando a falta de verdade. Assim, no protestantismo, o divino se faz presente na dúvida e o ateísmo pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade, pois a consciência da falta de sentido é uma presença paradoxal do sentido que há na falta de sentido. Assim na filosofia protestante, a justificação nasce não da certeza, mas da dúvida que leva ao movimento e à ação. E a atitude antagônica à justificação, é o cinismo que imobiliza. 


Por isso, o conceito barbárie se traduz como ameaça final à existência e é o diferencial do protestantismo. Nasce em torno da justificação pela fé, da vida em liberdade que traduz a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Enfrentar a possibilidade da barbárie significa julgar e transformar, e essa é a diferença entre a ética protestante e aquelas que fazem a defesa da hierarquia e da tradição.

Sem uma relação universal entre protestantismo e ética não pode se construir uma noção de vocação da pessoa. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade. Mas é importante entender que não existe uma única interpretação da globalidade, por isso a ética protestante não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, as éticas protestantes não subscrevem nem a construção uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.

Ou seja, toda compreensão da globalidade e toda ética real são concretas, pois toda globalidade se situa num momento temporal determinado, pleno, que a filosofia protestante chama kairós. E a universalidade do kairós comporta riscos concretos, não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. Assim, o que é válido para a pessoa se expressa enquanto consciência ética geral também para a comunidade.


Exatamente por isso, toda realidade global comporta dois aspectos: aquele que a leva à sua particularidade de origem, ao seu fundamento, e um outro que, a partir da particularidade, a remete à universalidade. Assim, a realização da globalidade se orienta na direção a ela própria, exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a filosofia protestante diz que a ética transporta ao Deus e à vida, que são o bem e o bom da existência.