mardi 17 novembre 2009

A emergência do pentecostalismo no campo religioso batista

Uma leitura foucaultiana.
Palestra apresentada na XIII Semana de Estudos da Religião. UMESP/ 2009. São Bernardo do Campo.
Por Jorge Pinheiro

Introdução

Enquanto pesquisador da religião, para analisar a relação entre os batistas brasileiros e o pentecostalismo, gostaria de utilizar como referencial um texto de Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a história”(1) quando afirma que “a emergência é a entrada em cena das forças; é a sua interrupção, o salto pelo qual passam dos bastidores para o teatro, cada um com seu vigor e sua própria juventude”.(2)

A partir de Nietzsche, Foucault entende que a emergência não é sinônimo da energia dos fortes, nem a reação dos fracos, mas o teatro onde as forças fortes e as forças fracas se distribuem. É o espaço que se divide e se abre entre elas e também o vazio onde trocam suas ameaças e palavras. Assim, a emergência fala de um lugar de afrontamento. É importante não ver a emergência como campo fechado onde se dá uma batalha, mas um não-lugar onde adversos ativam o jogo da dominação. Por isso, não temos responsáveis por uma emergência, ninguém pode se glorificar por ela, pois sempre acontece no interstício.

Analisar a relação entre os batistas brasileiros e o pentecostalismo nos remete a uma emergência, que teve um palco, a Primeira Igreja Batista de Belém no ano de 1911. E vamos utilizar nessa análise da emergência do pentecostalismo no Brasil dois historiadores batistas brasileiros, de lugar referenciado por relações e estratégias de poder específicas, Antônio N. de Mesquita e José dos Reis Pereira.

O teatro da emergência

Segundo Mesquita, em abril de 1911 “aportaram a Belém dois senhores suecos, Gunnar Vingren e Daniel Berg, dizendo-se batistas e chegaram a mandar buscar cartas. Logo procuraram Nelson, seu compatriota, para pedirem abrigo algures”.(3)

Reis Pereira dá contornos à informação, ao dizer que “o grupo pentecostal mais numeroso, que afirma ter cerca de três milhões de adeptos atualmente, o da Assembléia de Deus, surgiu numa igreja batista, a Primeira de Belém do Pará. Foi no ano de 1911. Dois jovens, suecos de origem, mas radicados nos Estados Unidos, Gunnar Vingren, pastor batista, e Daniel Berg, atendendo ao que entendiam ser direção divina, vieram para Belém do Pará. (...) Apresentaram-se a Eurico Nelson, identificando-se como batistas, ofereceram-se para ajudar o missionário e pediram hospedagem. Nelson deixou-os ocupar o porão da igreja”.(4)

Foucault nos diz que a regra permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. As regras, em si mesmas, são vazias, não finalizadas e feitas para servir a isto ou aquilo. Mas podem ser burladas. A jogada mestra será daquele que se apoderar das regras, que se disfarçar para pervertê-las e utilizá-las ao inverso contra aqueles que as tinham imposto. Nesse sentido, interpretar regras é se apoderar por violência ou dissimulação de um sistema que não tem em si significação essencial e lhe impor uma direção.

Vingren e Berg começaram a realizar reuniões de oração no porão. Nessas reuniões, – informa Reis Pereira – “havia estranhos ruídos e estranhas línguas”. E Mesquita conta que por ocasião das reuniões, “começavam esses batistas a tremer e a gritar” sendo já, a esta altura, imitados por brasileiros. Quando perguntados o que era aquilo, Vingren e Berg respondiam que era o batismo do Espírito. “Línguas e balelas tornaram os cultos um horror. Toda a igreja estava sendo contaminada, pois já muitos falavam as tais línguas”(5), relata Mesquita.

O porão do templo foi entregue a Vingren e Berg e eles ficaram lá enquanto aprendiam o português. O locus porão remete ao trabalho de Alonso, que ao analisar a dominação nos diz que o poder, ao não ser exercido na esfera do macro, torna-se fragmentário quando se redimensiona no exercício do micro, e adquire eficácia especial na operacionalização das redes de poder.(6)

A dominação emergente

Foucault afirma que é preciso entender por acontecimento não uma decisão, mas uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, tomado e voltado contra seus utilizadores. Temos, então, uma dominação que se enfraquece, se envenena, e outra que faz sua entrada, mascarada. Assim, as forças que se encontraram em jogo na Primeira Igreja Batista de Belém não obedeceram nem a uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Apareceram na área singular do acontecimento. Diferente das místicas batista brasileira e pentecostal, tecidas divinamente, a história efetiva do pentecostalismo conhece apenas um reino, o do risco renovado da vontade de potência, que se opõe ao surgimento do acaso.

Dessa maneira, a emergência do pentecostalismo não é um evento simples onde dominações se apagaram para que o sentido final aflorasse. Acontecimentos vários, entrelaçados, hoje parecem magicamente coloridos, o que nos leva enquanto pesquisadores da religião a correr o risco de confundir a relação entre próximo e distante, a procurar lógicas e razões, quando o sentido histórico mais que nada é perspectivo.

Quando aconteceu a primeira manifestação pentecostal numa reunião de oração da igreja, e estando o moderador da igreja, José Plácido da Costa, envolvido, o evangelista Raimundo Nobre convocou, com o apoio de diáconos, uma sessão extraordinária, e os adeptos de Vingren e Berg foram excluídos. A igreja nesse momento – ainda segundo Reis Pereira – tinha cerca de 170 membros e os excluídos foram treze. Mas aqui, em relação ao número de excluídos, não há acordo entre os dois historiadores batistas brasileiros. Mesquita, antes de Reis Pereira, relatara em sua história que “o evangelista, ajudado por Felix de Barros Rocha, organista de igreja, convocou uma sessão extraordinária, declarou fora de ordem os pentecostais que já constituíam a maioria e com a minoria excluiu os que se tinham desviado das doutrinas”. E Mesquita concluiu: “uma desolação, este fim de 1911. Foi o começo do pentecostismo no Brasil”.(7)

O sentido da história não é consciência neutra. Sempre depende da máscara que se usa, ou seja, as formas de saber traduzem paixão e obstinação. Por isso, Foucault vai dizer que se antes as religiões exigiam sacrifícios humanos, hoje algo semelhante acontece, quando o saber conclama ao sacrifício do sujeito do conhecimento. É importante compreender, por isso, que o sentido da história perde o limite e a intenção de verdade no sacrifício que se faz do sujeito de conhecimento. Ou seja, não se trata de julgar o passado em nome de uma verdade que o presente seria o único a deter. É necessário, ao contrário, entender que a vontade de saber procura a destruição do sujeito do conhecimento. Assim, o pesquisador da religião deve desdobrar o origami, desdobrar sempre essa vontade de saber para não sacrificar o sujeito do conhecimento.

Os excluídos reuniram-se num ponto de pregação da igreja, e organizaram em 18 de junho de 1911, a primeira Assembléia de Deus no Brasil. Segundo Antônio B. de Almeida, historiador da Primeira Igreja Batista de Belém, Vingren e Berg continuaram a realizar trabalho de proselitismo entre os batistas, “em lugar de evangelizar os descrentes”, o que “deveriam ter feito desde o princípio, se eram autênticos missionários, e não vierem perturbar uma igreja batista já existente”.(8)

Considerações finais

Dessa maneira, para Reis Pereira, o procedimento dos dois pentecostais foi “desleal’, “esconderam o jogo” e “tentaram apossar-se de uma igreja”. E, considerou que essa maneira de começar o trabalho pentecostal das Assembléias de Deus foi a causa da primeira desconfiança com que os batistas brasileiros tratam até hoje os pentecostais.

O método de reuniões mais ou menos clandestinas tem sido repetido noutras ocasiões e lugares com resultados idênticos. A idéia de um súbito revestimento do Espírito Santo, um segundo batismo ou segunda bênção, tem-se revelado muito atrativa no Brasil e daí o crescimento do pentecostismo”.(9)

Talvez o erro maior dos historiadores batistas brasileiros, ao produzir e reproduzir leituras referenciadas por relações e estratégias de poder, foi colocar o presente na origem, o que os levou à metafísica da crença no trabalho sombrio de uma destinação. A pesquisa da religião, no entanto, deve fazer a genealogia da emergência, que visa restabelecer os diversos sistemas de dominação, o jogo casual das dominações, que não traduzem nenhuma potência antecipadora de sentido.

Um século depois da emergência pentecostal no campo batista brasileiro, em Belém, e quarenta anos depois da dissidência surgida com a emergência do Movimento de Renovação Espiritual, nos anos 1960,(10) que os batistas brasileiros consideram processo cismático provocado pelo pentecostalismo, e dos conflitos e choques daí oriundos, as relações entre os batistas brasileiros e o pentecostalismo tenderam a um ponto de equilíbrio. Entre diferentes exemplos podemos citar o fato do pastor Enéas Tognini, ator de primeira grandeza do Movimento de Renovação Espiritual, nos anos 1960, vice-presidente e fundador da Igreja Batista do Povo, ser hoje pastor emérito da Igreja Batista em Perdizes,(11) da Convenção Batista Brasileira. Ou ainda a formação de um grupo de trabalho da Convenção Batista Brasileira com a finalidade de analisar as possibilidades de aproximação entre os batistas brasileiros e os batistas nacionais.(12)

Um estudo do pesquisador Sébastien Fath explica esse processo no campo religioso batista francês. Para ele, a ortopraxia e o congregacionalismo radical dão aos batistas uma plasticidade que os leva a absorver influências diversas, a começar pelo impacto do pentecostalismo. Talvez por isso se possa dizer que o campo religioso batista brasileiro, hoje, é teatro de aculturação de um pentecostalismo de lugar não referenciado. Esse fenômeno, apesar das tensões presentes em cada igreja local, tende a ser recíproco: os elementos pentecostais são aculturados ao tipo de regulação própria dos batistas, que, por sua vez, integram em releituras próprias elementos da cultura carismática.

Notas

1. Michel Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder, São Paulo, Graal, 2007, p.15-37.
2. Michel Foucault, idem, op. cit, p. 24.
3. Antonio N. Mesquita, História dos Batistas do Brasil, de 1907 até 1935, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1940, p. 136.
4. J. Reis Pereira, História dos Batistas no Brasil, Rio de Janeiro, JUERP, 1982, p. 110.
5. Antonio N. Mesquita, idem, op. cit., p. 137.
6. Leandro Seawright Alonso, Poder e experiência religiosa: Uma história de um cisma pentecostal na Convenção Batista Brasileira na década de 1960, São Bernardo do Campo, UMESP, 2008, p. 76.
7. Antonio N. Mesquita, idem, op. cit., p. 137.
8. J. Reis Pereira, idem, op. cit., p. 111.
9. J. Reis Pereira, ibidem, op. cit., 111.
10. Leandro Seawright Alonso, idem, op. cit., pp. 101-149.
11. “Quando ainda era presidente da Convenção Batista Nacional, houve uma reunião na Primeira Igreja Batista de Niterói [RJ] entre a Aliança Batista Mundial, a Convenção Batista Brasileira e nós da CBN. Chegamos à conclusão de que, apesar de sermos diferentes em alguns aspectos litúrgicos e doutrinários, somos igualmente batistas. Foi um momento histórico, onde nos demos as mãos e selamos a fraternidade”. Entrevista de Enéas Tognini ao jornalista Claiton Cesar, “Aos 91 com fôlego de 19”, revista Eclésia on-line.
WEB: http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=304 (texto pesquisado em 17/11/2009).
12. “Tanto na CBB quanto na CBN, existem dois grupos: um esclarecido, aberto ao diálogo, e outro que não quer a paz e busca o isolamento. Conseqüentemente, a união seria pior, pois nos dividiríamos em quatro convenções, duas deles e duas nossas. Ao meu ver, é melhor deixar do jeito que está, na política da boa vizinhança”. Entrevista de Enéas Tognini, idem, artigo citado da revista Eclésia.
WEB: http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=304

Bibliografia

ALONSO, Leandro Seawright, Poder e experiência religiosa: Uma história de um cisma pentecostal na Convenção Batista Brasileira na década de 1960, São Bernardo do Campo, UMESP, 2008
CONDE, Emílio, História das Assembléias de Deus no Brasil, Rio de Janeiro, CPAD, s/d.
FATH, Sébastien, “Os batistas na Europa Latina: entre tradição e emoção, quais recomposições?” in Jean-Pierre Bastian (org.), La recomposition des protestantismes en Europe Latine: entre émotion et tradition, Genebra: Labor et Fides, 2004, pp.121- 138. Trad. Naira Carla Di Giuseppe Pinheiro dos Santos.
FOUCAULT, Michel, “Nietzsche, a genealogia e a história” in Microfísica do poder, São Paulo, Graal, 2007.
MESQUITA, Antonio N., História dos Batistas do Brasil, de 1907 até 1935, Rio de Janeiro, Casa Publicadora Batista, 1940.
PEREIRA, José dos Reis, História dos Batistas no Brasil, Rio de Janeiro, JUERP, 1982.
______________, História dos Batistas no Brasil, 1882-2001, reedição atualizada e ampliada, Rio de Janeiro, JUERP, 2001.