lundi 26 avril 2021

Matei porque me pisou

Matei porque me pisou

Multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. 

A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável.

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É a violência que é e está além da razão de ser violento.

"Há uma grande bomba atômica no Rio de Janeiro que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, como agora", afirmou um morador.

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

"Você vê meninas de 13 anos - uns bebês - grávidas, com outros bebês na barriga, vê garotos de 15 anos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm auto-estima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles", disse outro morador do Rio.

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

"A polícia deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação do Rio de Janeiro, é nacional, é internacional. Os maiores consumidores de drogas são os Estados Unidos, que são contra a legalização porque interessa alimentar a guerra do tráfico, as armas de um lado e de outro", afirmou um funkeiro carioca.

As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifesto da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 

Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se sete pessoas foram mortas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

A consciência humana procede também da ideação da violência e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.