jeudi 30 avril 2015

Para Marcela

Para Marcela, filha querida, horas antes do primeiro de maio. Num momento em Paris, antes de grandes emoções ao lado dela.

Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu sei que quero estar.

Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, querida e amada filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola.

Não sei por onde começar,
Eu devo viver a lua ou minha bela estrela
Até que a vida acabe por passar,
Ou provocar o destino fatal

Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes

(Olivia Ruiz, Paris)

Vamos pensar um pouco sobre a consciência do não-ser. E começarei dizendo que a coragem de ser parte da experiência e da compreensão de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.

Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal-fazer ou do não-fazer-bem está a consciência ontológica do não-ser, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse confrontar-se com o não-ser que fez o hominídeo dar o salto antropológico, existencial: passar de homo apenas e rudimentarmente sapiens a sapiens-sapiens. Reconhece a força do não-ser, sabe que ele ronda e passa a temer a ausência e a separação definitivas.

Tanta gente e tão poucos olhares,
Tanta gente e tão poucos sorrisos
Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,
Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar

Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes

Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência do não-ser. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

Alienação, ausência, separação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência do não-ser. Para o apóstolo, o estado de alienação, ausência, separação na existência produz uma consciência matricial, a consciência do não-ser.

A partir da consciência do não-ser temos a consciência do transcendente, a consciência da diversidade, já que não somos bichos. E, por extensão, não somos apenas natureza, temos a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que ações e coisas podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Um pouco cansada
Ela avança em meio à multidão
em sentido contrário
Um barco embriagado sobre a onda

Bela Paris, seja generosa
para com a minha pobre alma triste
Eu direi por toda parte que és maravilhosa,
Se você me encontrar um único eu te amo

Assim, diante da alienação, da ausência e do distanciamento presentes e futuros estão necessidade e lei, e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.

Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.

Em se falando de consciência do não-ser, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo.