Para Marcela, filha querida, horas antes do primeiro de maio. Num momento em Paris, antes de grandes emoções ao lado dela.
Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu sei que quero estar.
Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, querida e amada filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola.
Não sei por onde começar,
Eu devo viver a lua ou minha bela estrela
Até que a vida acabe por passar,
Ou provocar o destino fatal
Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes
(Olivia Ruiz, Paris)
Vamos pensar um pouco sobre a consciência do não-ser. E começarei dizendo que a coragem de ser parte da experiência e da compreensão de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.
Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal-fazer ou do não-fazer-bem está a consciência ontológica do não-ser, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse confrontar-se com o não-ser que fez o hominídeo dar o salto antropológico, existencial: passar de homo apenas e rudimentarmente sapiens a sapiens-sapiens. Reconhece a força do não-ser, sabe que ele ronda e passa a temer a ausência e a separação definitivas.
Tanta gente e tão poucos olhares,
Tanta gente e tão poucos sorrisos
Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,
Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar
Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes
Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência do não-ser. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.
Alienação, ausência, separação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência do não-ser. Para o apóstolo, o estado de alienação, ausência, separação na existência produz uma consciência matricial, a consciência do não-ser.
A partir da consciência do não-ser temos a consciência do transcendente, a consciência da diversidade, já que não somos bichos. E, por extensão, não somos apenas natureza, temos a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que ações e coisas podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.
Um pouco cansada
Ela avança em meio à multidão
em sentido contrário
Um barco embriagado sobre a onda
Bela Paris, seja generosa
para com a minha pobre alma triste
Eu direi por toda parte que és maravilhosa,
Se você me encontrar um único eu te amo
Assim, diante da alienação, da ausência e do distanciamento presentes e futuros estão necessidade e lei, e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.
Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.
Em se falando de consciência do não-ser, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo.
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