jeudi 12 juillet 2018

Os caminhos humanos no pensamento de Tillich e Dussel, Jorge Pinheiro



TEOLOGIA SOCIALISTA
Os caminhos humanos no pensamento de Tillich e Dussel
Jorge Pinheiro


São Paulo, março de 2017






TEOLOGIA SOCIALISTA
Os caminhos humanos no pensamento de Tillich e Dussel

Jorge Pinheiro
São Paulo, março de 2017

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Pinheiro, Jorge
O caminho do humano: uma leitura a partir de Paul Tillich e Enrique Dussel / Jorge Pinheiro. São Paulo.

Bibliografia
1. Teologia  – Paul Tillich e Enrique Dussel.
2. Política  -- Socialismo e Religião. 



para
as mãos 
que moldam o mundo, 
pela esperança
e fraternidade que unem
nossos corações e mentes,
... e à eternidade que se fez companheira e humana

"Que mau encontro foi este, que o ser humano, livre por natureza, tenha perdido a memória de sua condição e o desejo de regressar a ela? " 
Etienne de la Boétie, Discurso sobre a servidão voluntária (1571).


SUMÁRIO

Para abrir a discussão

Capítulo Um
Tillich e o socialismo religioso

Capítulo Dois
Dussel e a religião infraestrutual


Capítulo Três
O caminho do humano

Para viver a práxis

Bibliografia


PARA ABRIR A DISCUSSÃO


Théodore Monod  disse que não somos meio termo, mas complemento. Não somos cinza, mas cores do espectro. Na verdade, os escritos judaicos da Era Comum nos dizem que a eternidade construiu o ser humano e, em seguida, retirou-se para que este humano pudesse construir sua liberdade e o seu lugar. Dessa forma, para este pensamento religioso o ser humano é potencialmente autônomo dentro dos limites da existência, constrói  livre-arbítrio e, portanto, responsabilidade. 

Os escritos judaicos, entregues no caminhar da diáspora, entendem que a eternidade aposta na construção permanente do ser humano. A construção do humano, vista dessa forma, não está completa, pois é o próprio ser humano, enquanto pessoa e comuna, quem continua a sua construção. Por isso, a construção da transcendência é a chave para o humano futuro. É o que leva à revolução permanente. Textos da sabedoria judaica, quando falam do acesso ao mundo da transcendência, perguntam: "Você se tornou o que você é?" 

O ser humano, enquanto pessoa e comuna, é construtor de si mesmo. Sua vida é uma viagem com a finalidade do tornar-se. Ele deve saltar do "conhece a ti mesmo" para "tornar-se quem ele é" e "descobrir qual é o seu destino". É a viagem da existência humana, e a liberdade é uma viagem dentro de si mesmo, numa comunhão que engloba o cosmo, e deve ser realizada através do corte da pedra, símbolo do ser humano, do material em direção ao transcendente.

E para pensar este caminhar humano, político e religioso, vamos partir de Paul Tillich e Enrique Dussel. Os textos socialistas e os conceitos da correlação entre cultura e religião em Tillich, assim como as abordagens sobre a religião infraestrutural e sobre o fator religioso no processo político-revolucionário desenvolvidas por Dussel norteram esta abordagem sobre o fazer política, hoje, na alta-modernidade. 

Tillich e Dussel fornecem os referenciais que utilizamos, iluminando questões teóricas e possibilitando a compreensão de realidades até agora mal observadas e mal compreendidas. Por isso, utilizamos como referenciais os textos socialistas e conceitos da cultura de Tillich, assim como as abordagens sobre a religião infraestrutural e sobre o fator religioso no processo revolucionário desenvolvidas por Dussel.

A teologia para Tillich relaciona polos, a mensagem religiosa e a interpretação dessa mensagem, que deve levar em conta a situação daqueles a quem ela se destina. Situação, aqui, são as formas artísticas e científicas, econômicas, éticas e políticas, através das quais as pessoas e grupos exprimem as suas interpretações da existência.  Nesse sentido, a teologia, enquanto cosmovisão, dá respostas às perguntas implícitas na situação, não enquanto soluções definitivas, mas no sentido de procurar sínteses. Para isso, Tillich trabalha a partir da correlação, ou seja, da análise da situação humana, de forma que venham à tona perguntas; e a individuação das respostas nos fatos reveladores, possibilitando respostas correlatas às perguntas colocadas pela própria existência.

A partir daí nos vemos diante da pergunta: que sentido tem a história? Tillich nega o negativismo que não vê sentido na história, mas também vai além do progressismo intra-histórico, quer iluminista, quer marxiano. Para ele, a religião propõe símbolos religiosos, que devem ser interpretados como dimensão histórica e dimensão transistórica. Dessa maneira, o sentido da história está na manifestação deste símbolos, quer enquanto reino de transcendência, em contraposição à história do mundo, quer enquanto diretrizes e movimento em direção à plenitude da história, que nesta dimensão transcendente e transistórica é a vida plena de sentido. 

Perguntas acerca das situações e respostas religiosas estão ligadas à existência. Por isso, ao analisar a questão do socialismo, Tillich faz uma ontologia política onde seu referencial primeiro é o ser. Nesse sentido, podemos dizer esta ontologia se faz fenomenologia política quando analisa questões como a origem do pensamento político enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político. E é a partir da análise do pensamento político que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo. Mas, acredito que é necessário fazer a crítica do socialismo religioso e do sentido dialético do método da correlação tillichianos por serem modernos. E para realizar a crítica e o aggiornamento recorremos a Dussel, com o conceito de religião infraestrutural e seu método analético.

Dussel trabalha com duas abordagens construídas a partir de Lévinas e Marx -- nos leva ao outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e à religião enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente --, que nos ajudam a aterrissar Tillich na realidade pós-moderna.
  
Assim para Dussel, a fé é um ato da inteligência, é um modo de ver, que não pára em algo que não pode transcender, pois sabe que há algo mais. Ela, a fé, vai além do que se vê. É esperança de que há um outro que se revelará – o amor do outro enquanto outro.  Nesse sentido, para Dussel, o amor é o que vai além do rosto, e recorre à uma imagem bíblica e diz que a chama do arbusto não é um sinal de presença, assim como o rosto não é também sinal de presença. Afinal, todos os dias vemos rostos, mas o rosto que vemos não é. Devemos, então, nos abrir diante do rosto como sinal de um mistério da liberdade. Isto porque, todos aqueles que nos rodeiam e todos os grupos sociais não são de fato o outro, pois outro é sempre livre.  

Mas, para que a religião direcione é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico nos remete ao falar diante. Mas falar diante de quem? Diante das gentes. E assim fazemos profecia, falamos a homens e mulheres da fé cotidiana, falamos do sentido dos acontecimentos que estão diante de nós.  

Esta compreensão, a partir da leitura dos dois autores, mostra a importância da correlação política e religião para se agir e pensar teologia socialistas. A inclusão da religião na análise crítica da construção do pensamento socialista, amplia o horizonte de compreensão dos estudos sobre política. Assim, optamos pela abordagem comparativa  representada pela presença da religião na discussão da política e do socialismo. Desta maneira, o debate não se limita ao que já foi dito, mas terá novas perspectivas de discussão interdisciplinar. Esta maneira de fazer Teologia norteia o trabalho desenvolvido. 


Capítulo Um
TILLICH E O SOCIALISMO RELIGIOSO


A produção teórica de Paul Tillich sobre o socialismo é muito vasta e cobre dezesseis anos de produção, indo de 1919 a 1935, fora textos produzidos posteriormente em sua fase norte-americana. Embora tenhamos feito uma leitura de seus principais textos, editados em francês, em 1990, 1992 e 1994,  nos concentramos em algumas formulações que consideramos fundamentais para a compreensão do fenômeno político e do socialismo em particular. Nossa abordagem de Tillich e de sua produção procura a compreensão de métodos de análise e de crítica da condição socialista e não tomar as idéias e argumentos de Tillich como cânon. Entendemos que seus escritos foram elaborados sob condições especiais e refletem conjunturas e realidades peculiares à modernidade do século XX e, embora nos sirvam de roteiro para reflexão, não podem ser entendidos como palavra final. Metodologicamente optamos por uma leitura não histórica e não cronológica, mas sistemática. Assim, procuramos compreender o pensamento político de Tillich em seu conjunto, situando nessa compreensão a questão socialista e como suas abordagens, mas também suas contradições e perspectivas.   

Tillich nasceu num lar luterano, na cidade alemã de Starzddel, perto de Berlim, em 1886. Em 1910, graduou-se doutor em Filosofia, em Breslau, e em 1912 licenciou-se em Teologia, em Halle. Durante a I Guerra Mundial serviu como capelão no exército alemão. Psicologicamente, foi muito afetado pela visão das mortes e da destruição em massa causadas pela guerra. Sofreu dois colapsos nervosos e sua fé num cristianismo calcado no romanticismo alemão do século XIX desabou. Ele conta como foi esse sofrimento, que produziu a grande transformação de sua vida:

 “A transformação ocorreu durante a batalha de Champagne, em 1915. Houve um ataque noturno. Durante toda a noite, não fiz outra coisa senão andar entre feridos e moribundos. Muitos deles eram meus amigos íntimos. Durante toda aquela longa e terrível noite, caminhei entre filas de gente que morria. Naquela noite, grande parte da minha filosofia clássica ruiu em pedaços; a convicção de que o homem fosse capaz de apossar-se da essência do seu ser, a doutrina da identidade entre essência e existência... Lembro-me que sentava entre as árvores das florestas francesas e lia “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, como faziam muitos outros soldados alemães, em contínuo estado de exaltação. Tratava-se da liberação definitiva da heteronomia. O niilismo europeu desfraldava o dito profético de Nietzsche, ‘Deus está morto’. Pois bem, o conceito tradicional de Deus estava mesmo morto”.  

Para Tillich, o mundo entrara em colapso, e com ele o otimismo naquela cultura que tinha depositado sua confiança no ser humano e acreditado no progresso da civilização. "A experiência dos quatro anos de guerra -- escreveu Tillich --, abriu diante de mim e de todos de minha geração tal um abismo que nunca pôde ser fechado novamente". E foi em Verdun que Tillich situou sua ruptura com o liberalismo teológico alemão. Como vimos, ele fala com tristeza daquela noite que, em meio ao trovejar dos canhões, depois de procurar durante horas dar um pouco de conforto aos moribundos que chegavam ao acampamento, ao amanhecer, exausto, dormiu entre cadáveres. E ali morreu seu idealismo teológico. Há nesta descrição da batalha de Verdun uma releitura das memórias de Goethe quando este fala da batalha de Valmy: "Neste lugar e neste dia começa um tempo novo da história do mundo". Goethe disse que Valmy foi o começo do século XIX, marcado pela fé na razão, na paz, na justiça e na democracia, convencido de que a cultura européia chegava a um momento especial de sua história. Em Verdun, Tillich descreve o fracasso desta fé, a queda desta convicção e, também, o fim do século de XIX.  

A experiência que Tillich viveu como capelão durante a I Guerra Mundial, não foi simplesmente uma experiência particular, mas em última instância a compreensão da condição humana, enquanto demonstração da situação espiritual do momento que se abria para o mundo. Nesse sentido, seu destino pessoal coincide com o destino de milhões de pessoas e da Europa inteira. Com a guerra, a derrota da Alemanha e o fim da monarquia, algo novo emergiu do desastre, surgiu das profundezas, da dimensão da profundidade do inconsciente de milhões de pessoas. Se durante alguns anos, o destino da morte cobriu uma geração inteira, derrubando por terra o edifício do século XIX, desse caos surgia a possibilidade de mudança, de construção de algo novo. O julgamento da I Guerra Mundial levou Tillich à compreensão de que não se pode divinizar nenhuma construção política. Mas ao se fazer o julgamento da guerra, também se faz o julgamento das possibilidades humanas. Ora, tal julgamento tem um aspecto positivo, que Tillich chamará de kairós : é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna plena de força divina. Mas este kairós é diferente das propostas apresentadas por aqueles socialismos que se posicionam a favor da guerra, pois o kairós aponta para a possibilidade de um mundo novo. E a esperança que ele gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem a própria eternidade por fundamento, já que aqui a graça gera o kairós.

Herdeiro do pensamento alemão do século XIX, Paul Tillich é devedor do idealismo alemão, em especial de Hegel e Schelling,  mas é a partir de 1919, na Alemanha destruída pela I Guerra Mundial, que começa a trabalhar sobre a idéia de uma teologia da cultura. Ora, a cultura deveria ter uma leitura diferente daquela da antropologia da segunda metade do século XIX, que incluía toda a produção humana com sua riqueza e diversidade. Para ele, cultura era a produção da intelectualidade européia ilustrada. E por baixo das manifestações culturais específicas se faz presente a religião. Assim, a religião expressa o incondicionado, dando margem a manifestações especiais, que se apresentam enquanto cultura. Daí seu interesse em manter um permanente diálogo com artistas, escritores e com o mundo social-democrata da época. Dessa maneira, durante toda sua vida Tillich será um teólogo da cultura e um filósofo da religião. 

Para Tillich, depois da I Guerra Mundial, era preciso abandonar aquele Deus concebido pela teologia do século XIX e fazer o cristianismo responder aos problemas e às exigências contemporâneas. Assim, depois da guerra começou a repensar seu cristianismo e se aproximou do socialismo do Partido Social Democrata alemão. Conforme explica o próprio Tillich, ele poderia ter desenvolvido sua teologia a partir da leitura de Nietzsche, mas a experiência da revolução alemã de 1918  dirigiu suas preocupações em direção a uma filosofia da história, a partir da sociologia e da politica. E seu estudo de Ernst Troeltsch (1865-1923)  preparou a mudança de direção.  

Para definir os contornos do socialismo tillichiano em sua fase inicial devemos nos remeter a dois textos escritos nos dois anos subsequentes à revolução de 1918, redigidos no calor da vitória revolucionária, e que se encontram em “Christianisme et socialisme I e II”.  Embora esses textos não tenham a profundidade sistemática dos escritos socialistas dos anos 1920-30, eles procuram explicar de um ponto de vista teológico o papel da revolução que acabava de acontecer na Alemanha. Assim, em 1919, Tillich deu uma conferência pública cujo conteúdo foi um esforço para fundamentar teologicamente um artigo que tinha escrito antes, onde dizia ser tarefa do cristianismo assegurar a unidade interior do ser humano futuro, através da construção de uma nova síntese entre a religião e a cultura. Na conferência afirmava que tal exigência estava fundamentada na radicalidade da teologia. A conferência recebeu o título de “Sobre a idéia de uma teologia da cultura”.  Aqui Tillich empreende pela primeira vez uma definição da tarefa da teologia, no quadro das ciências da cultura. Ela aparece como ciência normativa, não por impor sua autoridade sobre as normas da conduta humana ou por traduzir o processo dos julgamentos de valor que esta conduta requer, mas porque está interessada em situações concretas, que constituem seu conteúdo. Ou, em outras palavras, ela é normativa porque é reveladora de sentido. 

A teologia, para Tillich, enquanto ciência do indivíduo deve partir do contexto histórico e cultural. Ele observa que as éticas teológicas anteriores tinham se dado como tarefa analisar o enraizamento da vida moral, ou seja, a raiz concreta do indivíduo em sua comunidade. Mas, agora, no momento em que a teologia reconhece a existência de uma comunidade cultural externa à igreja, comunidade que constitui o horizonte imediato das decisões do indivíduo e que se enraíza numa cultura contemporânea global, a constituição de uma ética teológica pura não é mais possível: torna-se necessário elaborar uma teologia da cultura. 

Anos mais tarde, em janeiro de 1933, o nacional-socialismo chegava ao poder. Entre os anos de 1919 e 1924, Tillich tinha participado do Círculo Kairós, um grupo de reflexão sociológico, filosófico e teológico do socialismo. Entre os anos 1920 e 1927 ajudou a editar os Cadernos do Socialismo Religioso, e em 1929/30 os Novos Cadernos do Socialismo. Mas com o advento do nazismo ao poder, ele percebe que o socialismo havia nascido como kairós, com a reflexão contextual da revolução socialista, e deveria desaparecer com ela. Nesse contexto de ascensão do nazismo, de crise e derrota da revolução socialista, não se poderia esquecer o fato de que o julgamento divino se apresenta paradoxal porque declara absoluto, perfeito e santo aquilo que é relativo, imperfeito e pecador, o ser humano. Assim, partindo da teologia de Lutero e de seu conceito de salvação pela graça, Tillich faz uma nova abordagem da questão social na Alemanha e na Europa: aquilo que aparece como abismo da realidade, que reduz a nada o que existe, que coloca todas as coisas sob julgamento, tem um lado positivo. É possível afirmar que o contexto de julgamento pode levar a uma vontade de moldar o mundo de maneira imanente, momento do novo, quando o reinar da eternidade se faz presente no mundo.

Fruto desses anos de reflexão e militância intelectual, Tillich formulou seu conceito de socialismo religioso  e escreveu A Decisão Socialista,  livro que foi queimado publicamente pelos nazistas em 1933. Se tivesse ficado na Alemanha, possivelmente Tillich tivesse terminado seus dias num campo de concentração, mas salvou-se ao aceitar o convite para lecionar na Universidade de Columbia e no Union Theological Seminary, em Nova York. 

No século XX, poucos teólogos tiveram tanta influência como Paul Tillich, que procurou responder às questões universais relacionando cultura e religião. Mas quando Tillich fala de religião está a falar da tradição judaico-cristão, construtora presente da sociedade ocidental. Em termos teológicos sua pressuposição básica era de que a religião, ou seja, judaísmo e cristianismo, não são necessariamente inaceitáveis para a cultura e a cultura contemporânea não é necessariamente inaceitável para a fé. Buscou desenvolver uma teologia cujo método consistiu em relacionar fé e cultura, a fim de responder ao desafio de contextualizar a mensagem cristã num primeiro momento para a intelectualidade socialista e, posteriormente, para o ser humano contemporâneo. 
  
A cultura socialista no início do século XX via a religião como ópio, fator de alienação das massas. A contribuição de Tillich foi oferecer ao pensamento socialista, a partir de uma nova maneira de fazer teologia, respostas sobre o significado de vida. O que Tillich procurou demonstrar é que uma compreensão da eternidade é consistente com a compreensão socialista do mundo, e o que o intelectual via como uma deficiência na construção das idéias cristãs, Tillich encarava como uma oportunidade de alcançar o conhecimento não-empírico. Se para pensador socialista a gênese do futuro repousava sobre a luta de classes, para Tillich o socialismo traduzia o clamor contra a desumanidade, era um protesto contra sociedade industrial, que substituía os seres humanos por máquinas, dilacerando-os nos dentes da engrenagem da produção e do consumo capitalistas. Se a tecnologia levava a isso, onde estava a esperança e a resposta ao descontentamento vivido por essas gerações? O elemento perdido nesse processo era o espírito. Assim, Tillich resgata Kierkegaard  quando dá ênfase à potência da individualidade humana, à existência.  O que deve ser encontrado só o será através de sua própria coragem interna. Dessa maneira, a pergunta fundamental da existência humana é: o que eu sou? E essa pergunta só pode ser respondida por aquele que pergunta.

O intelecto permite um conhecimento do funcionamento do universo físico e das complexidades dos sistemas do macrocosmo. Antes de uma pessoa poder dominar as técnicas, a consciência do observador precisa conhecer o lugar dele no esquema das coisas. Porém para entender o conceito, a razão, é necessário entender a ontologia fundamental que expressa as condições de essência e existência. Por isso, a ontologia existencial em Tillich eleva a pergunta pelo ser e pelo não-ser à teologia, que pode responder à pergunta sobre a eternidade a partir da luz que o não-ser reflete. O que Tillich apresentou ao mundo é um modo de unir verdades infinitas à uma cultura que parece desconsiderar a consistência histórica. O medo de um propósito perdido prevaleceu naquelas décadas de violência e destruição. Diante do equilíbrio perdido e da presença do caos permanente, Tillich redescobriu o equilíbrio e usou o presente como fogo que acende a pira. Para ele a chave está no espírito, pois sem poder criativo não há vida. O espírito é poder, assim como a razão, que se unem e transcendem. As obras de arte, a literatura e a poesia, a filosofia e a política são frutos não só da razão, mas também do espírito. São criações individuais, mas também universais da razão e do espírito. Em todo trabalho humano de relevo pode-se ver a profundidade do que é individual, a grandiosidade de algo único, que acontece, mas que não pode ser repetido, e que, não obstante, por atravessar os  séculos é universal, mas acessível ao conjunto dos seres humanos.  

Assim a teologia, enquanto conhecimento humano, particular, mas também universal, traduz-se enquanto maneira de busca do transcendente. A distância entre a religião e cultura, através da teologia, deve ser estreitada para que o ser humano possa resistir à tentação de que apenas o que é físico e material é o padrão maior da civilização. A teologia da cultura de Tillich é um marco para aqueles que investigam a espiritualidade humana aparentemente perdida, isto porque o mundo tecnológico não pode ser compreendido em profundidade sem a admissão de que a espiritualidade faz parte do conhecimento e busca do gênero humano. Assim, o fundamento da teologia da cultura está no fato de que a ontologia da cultura é um desdobramento da ontologia do ser humano. Na direção desse fundamento está a pergunta sobre a unidade ontológica da cultura: qual o princípio antropológico da criação cultural? Quando dizemos que o ser humano é o único animal que cria seu próprio universo de significação é na cultura que vamos encontrar o ato e a forma da expressividade humana como ser histórico. O primeiro momento da reflexão teológica sobre a cultura consiste em assegurar, seja ao ato da criação cultural, seja na forma do seu objeto, a unidade que só pode ser pensada em oposição ao fluxo do tempo e à dispersão do espaço onde a experiência se situa. A unidade ontológica da cultura reside na relação dialética que vigora entre a estrutura transcendental do sujeito, que se manifesta no ato da criação cultural, e a idealidade transcendental da obra de cultura, manifestada na forma transtemporal e transespacial que lhe assegura perenidade simbólica. A teologia apresenta-se, então, como paradigma da ontologia da cultura, pois tematiza a transcendência do ato como interrogação sobre o que é, tanto no que se refere à idealidade da forma, como na objetividade do ser.  

A partir dessa leitura teológica da cultura, o resultado da relação entre a política e a religião levou Tillich a um sofisticado sistema de pensamento, onde a teologia da cultura tornou-se algo especial dentro da história da teologia. Talvez, pudéssemos falar de uma teologia sociopolítica, ou mesmo de uma teologia do socialismo, já que a concepção teológica de Tillich parte de uma leitura sociológica e histórica, e de uma análise crítica. Para ele, a relação entre teologia e política nunca pode ser descrita apenas pela conjunção “e”, mesmo quando um movimento político está fundamentado numa concepção de mundo. Nesse caso, duas atitudes são possíveis: pode-se ver a política sob o ângulo da luta pelo poder e seu objetivo estratégico; ou pode-se levar em conta as pretensões desse grupo político em encarnar uma concepção de mundo e submeter suas pretensões ao tribunal das categorias teológicas. Neste caso, não estamos falando mais de política, mas de teologia política. Em outras palavras, há um setor da teologia da cultura, que a teologia não pode esquecer se quiser manter a exigência da incondicionalidade da mensagem cristã.  
    
Segundo Eberhard Amelung, que foi orientado por Tillich em sua tese de doutorado, em Harvard, os principais conceitos desenvolvidos com o socialismo religioso,  como kairós e teonomia são fruto da leitura tillichiana da situação histórica dos anos 1920 na Alemanha. Dessa maneira, para Amelung, o compromisso socialista religioso de Tillich constitui a matriz de sua teologia da cultura, e possivelmente de toda a sua teologia.

O socialismo significou muito mais para Tillich do que apenas militância num partido político. Traduzia, em última instância, o novo destino de Alemanha e da Europa. Para Tillich, uma pessoa só poderia falar de um compromisso sem reservas com este novo tempo, se falasse também em compromisso com as idéias socialistas. E para ele socialismo era movimento socialista, enquanto tradução das diferentes realizações da mente socialista, ou da idéia socialista, como gostava de dizer. Mas este compromisso com as idéias socialistas era um compromisso crítico onde toda a realização concreta deveria ser examinada no contexto histórico daquilo que se buscava, a construção do destino humano.   

Assim, o método de correlação tillichiano parte de questionamentos filosóficos para formular perguntas à teologia, realizando uma construção a partir da ontologia existencial, enquanto estudo do ser, conceito que ele toma de Heidegger, que usou como base para discutir o não-ser, pois para ele a ansiedade do não-ser está presente em tudo que é finito. Embora Tillich e Martin Heidegger tenham trabalhado na mesma época em Marburg, a maioria dos estudiosos e biógrafos dos dois, atualmente, são da opinião de que não desenvolveram nenhum relacionamento especial, a não ser de forma indireta através de alunos. Houve, no entanto, um relacionamento estrutural de idéias entre os dois,    em especial, como defende Boss, sobre o conceito de kairos. 

“Em sua Fenomenologia da vida religiosa (inverno de 1920-1921), Heidegger cita Sobre a idéia de uma teologia da cultura de um certo Paul Tillich para ilustrar o interesse da época nos problemas da filosofia da religião. Heidegger, definitivamente, não fez caso do artigo que Tillich escreveu. Na verdade, para ele, era apenas um texto marcado pela influência de Troeltsch”.  

É natural aos seres humanos desejarem saber sobre seu próprio estado em relação ao ser, porque nas situações-limite têm consciência de sua finitude, transitoriedade e temporalidade: podem não-ser da mesma maneira que são. Na verdade, não-ser faz parte da existência, porque todos estão diante da ameaça de não-ser em todo momento. A pergunta sobre o não-ser nos leva a outra pergunta: o que mantém os seres finitos. Tal poder não pode ser finito, pois poderiam não-ser da mesma forma que são. Isto levanta a questão daquilo que transcende, do infinito, de Deus. Para Tillich, a única maneira de entender Deus parte da pergunta sobre o não-ser. A ontologia existencial apresenta a pergunta pelo ser/não-ser e a teologia esta desafiada a responder tal questão. Nem o filósofo, nem o teólogo podem evitar a questão ontológica. Mas Tillich não pára aí. Ele parte da simbologia cristã, culturalmente condicionada, que expressa a experiência da comunidade da fé, enquanto poder que se faz presente de um modo especial. Para Tillich, o símbolo se diferencia do signo no sentido de que o símbolo não se restringe em designar de maneira extrínseca e convencional um significado, mas possui enquanto significante um poder próprio, intrínseco, que lhe permite exprimir a realidade incondicional, última ou mais simplesmente o objeto buscado pelo pensamento ou pela ação humana.  

Um símbolo é religioso quando remete explicitamente ao incondicionado. Graças aos símbolos, a religião pode se orientar de imediato em direção ao incondicionado. O símbolo é, então, um ponto de encontro da finitude humana com a infinitude divina. Ele nos abre um nível de realidade e de significação que não poderíamos descobrir, nem exprimir de outra forma. Assim, só o símbolo nos permite de fato exprimir o ato de fé no incondicionado. A isso Tillich chamará de preocupação última, ultimate concern. 

A tradução francesa do texto original em inglês optou pela expressão “préoccupation ultime”,    mas utilizaremos a expressão em inglês ultimate concern, mais conhecida e teologicamente aceita. 

“O ultimate concern é a tradução abstrata do grande mandamento do amor a Deus. Trata-se do interesse religioso, que é último (decisivo, definitivo, tornando todos os outros preliminares e provisórios), incondicionado, total e infinito. O concern remete ao caráter existencial da experiência religiosa. O objeto da religião só pode ser atingido por uma atitude radical, não objetivante, total, por ‘uma paixão e um interesse infinitos’ (Kierkegaard). A preocupação suprema é a única competência do teólogo enquanto tal. Os interesses preliminares, em todos os setores da cultura, não podem ser absolutizados e substituir o interesse absoluto, mas devem ser considerados portadores e veículos dele”.  

Dessa maneira, Tillich apresentou à teologia uma teoria do símbolo como meio da comunicação fundamental da fé, de todos os atos humanos orientados para uma realidade transcendente ou sagrada.  É interessante que a esta leitura tillichiana, Probst agrega que a correlação autêntica significa o restabelecimento, a restauração, a reforma da relação do ser humano com a eternidade, e que nenhuma aliança, mesmo sob a forma de uma sutil preparação, não pode prevalecer sobre o encontro com Cristo e a revelação especial da eternidade na Escritura.   

A partir das discussões das idéias socialistas e do uso do método de correlação há uma outra questão que será fundamental na obra de Tillich. Ora, se para ele razão e revelação não são termos opostos, já que a revelação é a resposta às perguntas da razão, e também porque a razão não resiste à revelação, somos obrigados a ver em que sentido ele utiliza o conceito razão. 

O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte de existência: origem do Ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, Tillich fala do lógos, que correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o lógos. Assim, o lógos é a origem da razão e também do Ser. Mas, origem do Ser aqui não significa conhecimento a priori, mas estar colocado à parte do reino da finitude e por isso a origem do Ser só é conhecida por um ato de revelação.

Já a existência refere-se ao que é finito, enquanto parte de seu verdadeiro ser. Quando Tillich fala de finitude apresenta sempre termos que se correlacionam: como heteronomia/ autonomia, formal/emocional e estático/dinâmico. A solução destes aparentes conflitos da existência se dá no reino da essência, fundamento do Ser, dos quais os seres humanos foram arrancados e por isso se encontram dependentes e alienados. Dessa maneira, para Tillich, existência é alienação.  

Ora, a essencialização traduz o movimento final da ontologia, que se traduz no Novo Ser, quando a existência realiza aquilo que devemos Ser, nossa essência. No cristianismo, o Novo Ser é o Cristo. A imagem do Cristo expressa o que a eternidade quer que sejamos: o que os seres humanos são essencialmente e deveriam ser. Aquilo que todo ser humano é potencialmente foi expresso em Jesus, enquanto Cristo. Assim, a doutrina de salvação para Tillich é regeneração, a participação no Novo Ser, justificação, a aceitação do Novo Ser, e santificação, a transformação pelo Novo Ser. Com seu conceito de essencialização, Tillich subverteu a compreensão da existência e de seus conflitos, ao mostrar que servem para enriquecer o ser essencial. Ao voltar-se para o que é eterno, a existência é derrotada em sua reivindicação de ser positiva, ou seja, o eterno nega à finitude sua reivindicação de infinitude. Assim, Jesus, finito, tornou-se Cristo no seu auto-sacrifício e morte. Recusou a tentação demoníaca inerente à existência finita de reivindicar infinitude. Dessa maneira, a ontologia, através da análise da essência, existência e da essencialização, conduziu a uma releitura da compreensão da eternidade na religião cristã.  Por isso, Tillich, afirmou que a eternidade não tem existência, já que ela é além da essência e da existência. Falar de eternidade enquanto existência é negá-la, porque existência é alienação e finitude, mas não enquanto relação mecânica e formal como creram Schelling  e Kierkegaard, por ele criticados. Para Tillich há uma finititude essencial e alienação existencial. 

Por não entender a afirmação de Tillich, muitos religiosos o consideram ateu. Mas o que ele fez foi nos conduzir a uma compreensão da eternidade além do eterno  existencial. Ora, a eternidade, o fundamento do Ser, está além do reino da finitude, que relaciona ser/não ser, e por isso a eternidade não pode ser um ser. A eternidade está além do reino finito. Tudo que se faz existência é corrompido por sua ambigüidade e finitude. Dessa maneira, as afirmações sobre a eternidade são simbólicas, inclusive a afirmação de que a eternidade é o fundamento do ser. E embora se reivindique o conhecimento da eternidade, o infinito, isso é impossível, pois quando a eternidade é trazida da essência para a existência, a eternidade é corrompida pela finitude e pela compreensão limitada. No reino da finitude é impossível conhecer plenamente que/quem a eternidade realmente é, pois o infinito não permanece infinito no reino finito. 

Nos textos intitulados Christentum und Sozialismus,  Tillich nos dá um roteiro teórico para a leitura do socialismo. Como já dissemos, ao analisar o surgimento do socialismo, Tillich leva em conta aspectos históricos, assim como os grandes movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual ele constrói a sua leitura socialista, que tem por base a chamada a um posicionamento transcendente, de resistência ao impacto da catástrofe histórica, que deveria levar os cristãos a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo. Nesse contexto, vai definir o ser humano moderno como autônomo, embora inseguro na sua autonomia. Isto levou a Igreja católica à tentativa de emancipá-lo através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas na autonomia já foi experimentado algo e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.

O conceito tillichiano de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Ou como afirma Adams, “a existência humana é a elevação do ser à dimensão da liberdade. O ser se liberta das cadeias da necessidade natural. Torna-se espírito e adquire liberdade de se questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. ‘Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria profunda inquietude da existência; é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada’. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Conseqüentemente, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrenta-la jamais se reveste de segurança absoluta. Trata-se pois do que Tillich chama de ‘situação humana limite’: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites”.  

A situação-limite nasce em torno da justificação pela fé. Este é um aspecto notável da doutrina da justificação em Tillich, conforme observa Adams. Lutero aplicou tal conceito, resgatado do apóstolo Paulo, ao papel do sacrifício de Jesus. Ou seja,  o ser humano era justificado de sua alienação pela morte vicária do filho de Deus.  Já Tillich utilizou o conceito no sentido ético e intelectual. Ninguém tem autoridade para decretar a aceitação de qualquer doutrina correta. A fé é opção suprema. Existe um elemento incondicional, pessoal, na integridade que leva à dúvida sobre Deus e a religião. Nesse sentido, Deus é o fundamento e não o objeto. A lealdade à verdade é religiosa, mesmo quando define que não há. Por isso, parafraseando Agostinho podemos dizer “duvido, logo sou religioso”. O incondicionado está presente na dúvida. E a não-crença remete ao incondicional, é fé também. Ou seja, há sentido na falta de sentido e por isso podemos dizer que quem duvida está justificado. Nesse sentido, não religiosa é a postura cínica porque traduz falta de seriedade.  Assim, a vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. Tillich vê no reconhecimento da existência da situação-limite, que deve traduzir-se em julgamento e transformação, a diferença entre qualquer cristianismo que faça a defesa da hierarquia e da tradição e o princípio protestante.  

E o poder formativo é o poder de criar formas, mas o protestantismo enquanto princípio é o protesto contra as formas. E protesto protestante só pode existir em relação à gestalt a qual pertence. Aqui gestalt é a estrutura total de uma realidade viva. A igreja deve expressar seu protesto por causa do caráter incondicional do divino e por causa do caráter concreto da situação histórica. Por isso, as teologias que não forem atingidas pela “teologia da crise” e que não perceberem a importância do não profético não podem ser levadas a sério. Então, é o caso de perguntar: quais são os princípios do poder formativo do protestantismo? De que maneira a crítica e a criação poderão se unir? O protestantismo, enquanto princípio, deve viver na realidade da graça, e a luta dos reformadores não faria sentido se começassem a falar em estruturas sagradas da realidade. A hierarquia não pode se apoderar do direito à graça, levando os cristãos a se submeterem à autoridade na busca pela salvação. A religião é humana, mas não vem do humano, embora se realize no humano. A graça é pregada e assim vem a fé. Ter fé significa ser tomado e transformado pela graça. 

Quatro princípios são determinantes para as formas protestantes: em todas as formas protestantes o elemento religioso deve se relacionar com o elemento secular e se deixar relacionar com ele; em todas as formas protestantes o elemento eterno deve ser expresso em relação a situação presente; em todas as formas protestantes a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; e em todas as formas protestantes expressa-se necessariamente a atitude do realismo da fé. Por isso, o realismo religioso quer entender as coisas e os eventos em seu sentido religioso e na relação que tem com o transcendente, isto significa falar a respeito da eternidade de tal maneira que não pareça mero objeto acima dos outros, nem simples símbolo, mas realmente real. O poder formativo do protestantismo age sempre quando a realidade é interpretada em relação com seu fundamento e seu sentido último. A justificação pela fé é, então, melhor entendida a partir da situação-limite. Para Tillich, sem uma relação universal com o mundo essencial a noção de vocação individual não é a medida correta para se construir uma ética. Ou seja, não se pode fundar uma ética protestante apenas sobre o terreno da individualidade.  

Numa conferência realizada em 1941,  Tillich se perguntava se temos condições de falar de mudanças e de transformações éticas: será que os princípios fundamentais da moral permanecem os mesmos através dos tempos? Será que depois de milhares de anos, o decálogo guarda a mesma pertinência? Será que uma ética social hoje difere daquela do passado? Tillich considera que as duas respostas dadas a essas questões são insuficientes: tanto a que declara ser a ética absoluta e imutável, como aquela que considera a ética mutável e relativa, pois as duas conduzem a impasses. A primeira sucumbe às regras abstratas, distantes da realidade da vida das pessoas. A segunda deixa a ética ao sabor das flutuações da moda, não guia, nem dirige a existência humana, e não diz o que se deve ou não fazer: perdeu o seu caráter normativo. Por isso, a ética deve combinar uma performance fundamental com uma renovação permanente. Procura aplicar os mesmo valores em diferentes situações, mas, se nunca é exatamente a mesma, também não é inteiramente diferente.  Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, fonte e razão de toda ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção tomista de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para o indivíduo, quanto para a consciência de um grupo social. Exatamente por isso, para Tillich, toda realidade essencial comporta dois aspectos: aquele que a traz de volta à sua origem, ao fundamento e abismo de todo ser; e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude. 

A realização da essência deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, toda ética transporta a eternidade e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Dessa maneira, ao se posicionar por uma ética que parte da essência, se posiciona por uma ética da vida. A posição de Tillich sobre a ética se inscreve no quadro de que o pensamento se desenvolve sobre relações triangulares entre a religião, a cultura e a moralidade. É necessário existir um equilíbrio dinâmico entre estes três componentes: quando se ignora um ou se absolutiza outro, desliza-se em direção ao demoníaco. A religião, a moralidade e a cultura, para ele, são três funções do espírito, que se originam de sua unidade essencial.  Fundamentalmente, participam na estrutura do ser, mas, concretamente, há entre eles um equilíbrio dialético que pode ser rompido pelo ser humano. E tal compreensão leva-o estudar o desenvolvimento criativo e estratégico desta essência enquanto vida que brota na história, criadora do novo.

O cristianismo, segundo o pensamento de Tillich, é em sua essência uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas.  Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece à humanidade uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo.  Exatamente por isso, apresenta-se como capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer, conforme expõe, que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo está ligado à interpenetração de formas de consciência filosófica, à experiência estética e ao ideal ético de pessoalidade e, logicamente, aos grandes modelos sociais e econômicos.  Por isso, para Tillich, todas as questões políticas convergem para uma mesma questão: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre pessoa e massa. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino.  É sempre necessário perguntar pelas raízes do fenômeno, seja ele espiritual ou social. Muitas vezes tal pergunta mostra-se supérflua, principalmente quando um testemunho revela a integridade das raízes. Mas quando se apresentam distorções ou desvios, quando o testemunho congela ou a vida principia a desaparecer, então se torna necessário perguntar: quais são suas raízes?  

Assim, quando se levanta a pergunta pelas raízes do pensamento socialista, faz-se necessário ir mais fundo, porque o socialismo é um movimento de mão dupla: de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo possibilita entender as raízes do pensamento político que lhe deram origem. Por isso, é necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Para ele, sem uma imagem do ser humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento. Sem uma teoria do ser humano não se pode construir uma teoria das orientações políticas. 

Um dos conceitos trabalhados por Tillich é especialmente importante para a construção de nosso referencial: o de socialismo religioso. O socialismo religioso, teorizado por ele, parte da consideração de que as forças demoníacas da injustiça, do orgulho e da vontade de poder jamais serão completamente erradicadas da história. Como consequência, o socialismo religioso acredita que a corrupção da situação humana tem raízes mais profundas do que as meras estruturas históricas e sociológicas. 

“Como Kierkegaard – diz Tillich --, Marx fala da situação alienada do homem na estrutura social da sociedade burguesa. Empregava a palavra alienação (entfremdung) não do ponto de vista individual, mas social. Segundo Hegel essa alienação significa a incursão do Espírito absoluto na natureza, distanciando-se de si mesmo. Para Kierkegaard era a queda do homem, a transição, por meio de um salto, da inocência para o conhecimento e para a tragédia. Para Marx era a estrutura da sociedade capitalista”.  

Tal corrupção humana está encravada nas profundezas do coração humano.  Para o socialismo religioso, por isso, o momento decisivo da história não foi o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação de Deus. Essa é uma diferença central com o pensamento de Karl Marx e do marxismo posterior. Para ele, é tarefa do socialismo religioso fazer a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas da sociedade. Assim, o socialismo religioso se faz radical e revolucionário, porque vê a crise social do ponto de vista do incondicionado e a partir do espírito crítico do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.  

Em 1936, Tillich explicou sua visão do socialismo religioso dizendo que não é de surpreender que suas idéias anteriores sobre os papéis da religião e da cultura, sobre o profano e o sagrado, sobre a heteronomia e a autonomia fossem incorporadas à sua compreensão do socialismo religioso, que se tornou o ponto central de todo o seu pensamento.  O socialismo lhe forneceu fundamentos teórico e prático, quando se esforçou para elaborar uma teologia a partir da teonomia. Assim, ao analisar o conceito de tempo histórico, enquanto diferente dos tempos físico e biológico, desenvolveu um conceito de história, onde entrava um componente: o movimento em direção ao novo, que é por sua vez exigência e espera. Esse conteúdo do novo em direção à história, que se movimenta e que pode ser visto através dos acontecimentos, ele chamou de “centro da historia”. E agregou: “do ponto de vista cristão o centro é a aparição de Jesus, o Cristo”. 

Política e religião, para Tillich, não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político. 

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, ele trabalhou com uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.  E a questão do ser, presente na teologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano. 

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão. 

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.   

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte. 

A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura.  A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. 

Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a ressurreição e a segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma teologia consciente da história, que podemos chamar de uma teologia da existência.  A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós. 

O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império.  A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política.  
    
Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. O mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade. 

“ Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo ”. 

Dessa maneira, o mito é sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista. 

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético.  A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambiguidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambiguidade da origem.    

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambiguidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Mas essa teoria tillichiana de uma justiça criativa não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, poisa fraternidade pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados. Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambiguidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor.  Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito profético não deve perder a audácia do não e do sim concretos.

Isto é verdade porque cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. A utopia está presente em todo agir incondicionalmente orientado à transformação do presente.  A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia.  O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão crítica e transformadora se encontra além do tempo.  Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável.  Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.
  
Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do que simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável, diferente de quando estamos diante de uma exigência do incondicionado. 

Ninguém pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.  Não pode falar dele porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem. Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento tácito das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder  e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.  Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Religião e política estão imbricadas, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia,  enquanto grupo no poder. 

Para Tillich, a religião tem mais afinidades com determinadas formas de organização social do que outras, pois tem por base uma ética calcada na fraternidade, que possibilita um objetivo estável para os grandes desafios sociais: reunir o que está separado e mudar o que não deve ser. A separação toma diferentes formas através dos tempos, das relações e das circunstâncias. A fraternidade deve, como consequência, partir da intuição criadora para superar a separação. Não pode se contentar com velhas receitas, deve imaginar sempre novas soluções. Não pode ficar preso aos mandamentos, as leis, as regras, e embora parta delas e seja inspirado por elas, deve modificá-las e atualizá-las em função das novas situações que se apresentam.  A ética da fraternidade leva a religião a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na opressão e na exclusão social: faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico, e proclama a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.  A fraternidade denuncia o egoísmo da economia das multinacionais  e dos governos que servem à elas, que levam à expropriação de muitos em benefício de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas nega também a afirmação da luta de classes enquanto princípio e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e da exploração de setores profissionais por outros. 

A fraternidade condena também o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre povos, nações e continentes. Assim, a ética da fraternidade prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades. Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico, afirma Tillich, diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, para ele, a partir da fraternidade, vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que, por isso, o objetivo da economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

Para Tillich, na história, uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica. A alma dessa unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido. 

Em artigo publicado em Das neue Deutschland,  em 1919, disse que o socialismo é o produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impõe com a Renascença, a Reforma e no surgimento do capitalismo. Visão que é compartida por teóricos marxistas, como Gramsci, por exemplo.  Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa.  

A organização espiritual e econômica da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa.  Ou, como diz Costa, não distinguia aparência de essência. Ela era a substância mesma do que significava viver. Foi o romanticismo de Rousseau, a educação burguesa e a invenção do “homem trabalhador” que reduziram a sociabilidade em dois domínios separados: um domínio afetivo, interpessoal, no qual podemos ser sinceros e honestos, e um domínio público, impessoal, no qual dissimulamos o que sentimos para melhor exercer a função de cidadão.  Mas foi a Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, que golpeou o sistema de autoridade, trouxe a religião para o plano formal ao recorrer à autoridade das Escrituras e no plano material valorizou a subjetividade da consciência individual. E a Revolução francesa, em 1789, propôs ao mundo um novo tipo de sociedade.  A França tornou-se o primeiro país da Europa a viver uma realidade politico-social até então inédita, que transformaria de alto a baixo a vida da Igreja cristã. Na verdade, a Igreja já tinha vivido crises, como a da Reforma protestante, mas mesmo esta tinha acontecido no âmbito da consciência cristã. Agora, a partir da Revolução surgia uma sociedade que não tinha como fundamento as evidências ou afirmações de fé da Igreja. Ao contrário, a França e, por extensão, a Europa escolhiam o caminho oposto, da secularização, que tem por base o ideal triplo de liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse caso, a nova sociedade buscou uma razão cujos ideais aparentemente eram estranhos à revelação.      

Apoiado formalmente sobre as Escrituras, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições, mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos. Coube ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se. Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento, transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos: a consciência europeia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.  Para Tillich, o pensamento cartesiano deu um golpe decisivo no autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraíza a certeza. Assim, no século XVIII uma profunda mudança de mentalidade teve lugar na cultura europeia, que foi dominada por um apaixonado desejo de felicidade, de confiança no progresso sem limites e em projetos para transformar o ser humano e a sociedade. Nesse processo, a autonomia da razão era olhada como fonte de tolerância e maturidade, e única norma para a liberdade. Tal mudança fixou aspirações e projetos, unidos ao sentimento de que o ser humano havia arrancado das mãos da eternidade o conhecimento da natureza e a partir daí definiria a condução de seu próprio destino.  E o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica. Mas se o racionalismo levou ao Iluminismo, possibilitou também o surgimento de novos movimentos religiosos, como o pietismo, que surgiu na Europa continental. O pietismo levou a um novo interesse pelo estudo das Escrituras, pela ação e função do Espírito Santo, gerando um avivamento da igreja luterana na Morávia. Este avivamento alastrou-se pelo continente, pela Inglaterra e chegou aos Estados Unidos. O conde de Zinzendorf (1700-1760) e o teólogo August Spangensberg, assim como o pietismo morávio de conjunto, influenciaram John Wesley (1793-1791), fundador do Metodismo e um dos líderes do avivamento na Inglaterra.  Assim, a partir do Iluminismo, no domínio espiritual, político, econômico, nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência pensante, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades estabelecidas. Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, deu-se o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem autonomia. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Esse é um fato fundamental que o cristianismo deve levar em conta. 

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentava um sistema novo, racional. O pensamento moderno, que surgiu com o fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa continental e da revolução puritana na Inglaterra, deu origem à filosofia racionalista, à ciência empírica e ao formalismo religioso. Este último, durante quase um século predominou no Velho Mundo e na jovem América. Para entender o empirismo e o racionalismo é importante notar que a partir do final da Idade Média o conhecimento científico começou a desenvolver-se numa velocidade até então desconhecida. Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Sir Isaac Newton (1642-1727), John Locke (1632-1704) foram cientistas e filósofos que mudaram a maneira do mundo pensar. Cada vez mais, o mundo buscava as razões naturais, compreensíveis à razão.  O universo deixava de ser um desconhecido e tornava-se máquina movida por leis mensuráveis. Depois de séculos de arbítrio, os homens foram possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional. 

Mas também a vida econômica deve ser formulada racionalmente.  Não é o prazer de certos indivíduos ou povos que deve fazer a lei, mas é a humanidade inteira,  que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deve fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisa construir um mundo sem arbítrio. Eis um segundo fato que o cristianismo não pode esquecer . Mas, explica Tillich, sem dúvida foi Marx  quem introduziu o pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão:  uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas. 

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza.  Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado e rebaixado por um outro mundo, sombrio e místico.  Os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da natureza, diante da beleza do real redescoberta na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza.  É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se une à consciência da autonomia  e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este é o terceiro fato  que o cristianismo deve levar em conta.

Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, diz ele, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade é neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional. A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias à idéia de uma transformação racional do mundo. Foi somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, que nasceu uma consciência solidária, no coração da qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no ser humano um meio e não um fim. O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo e o confessionalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada homem e mulher. Este é o quarto fato  que o cristianismo deve levar em conta. 

O que fica claro é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo, servirá de base para a ação socialista. E a autonomia será o momento supremo da razão e da imanência  e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo. A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio. Assim os elementos formadores do movimento socialista são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles abrem a possibilidade para um diálogo construtivo entre cristianismo e socialismo. 

A pergunta sobre as possíveis relações entre protestantismo e socialismo exige definições sobre a religião cristã e o socialismo. Não podemos esquecer que ambas correntes de pensamento sofreram diferentes interpretações, que derivaram dos diferentes usos que se fizeram de ambas. Em nome do cristianismo foram violados e esquecidos os direitos mais elementares dos seres humanos nas diferentes fases da história. O mesmo aconteceu com o socialismo.  Talvez por isso tenha sido tão difícil estabelecer um diálogo entre ambas concepções. Porém, tanto na história do cristianismo, como na história do socialismo moderno há características coincidentes. Claro que não é de nosso interesse neste estudo analisar as duas histórias, mas é necessário realçar os elementos que estão presentes nessas duas maneiras de pensar, em especial, a crença na capacidade do ser humano para transformar sua própria realidade. Assim, a questão humana é uma das linhas condutoras desse diálogo possível. Mas tal diálogo deve ir além do ser humano abstrato para pousar sobre o companheiro histórico que faz sua história e se revela quando confrontado com a alienação e a opressão. Quando falamos do cristianismo temos que entender sua antropologia, que apresenta o ser humano como transformador e revolucionário, tradição que remonta ao judaísmo antigo. A partir da recuperação da tradição crítica e transformadora é possível entender a antropologia cristã enquanto procura da emancipação humana. A leitura social dos textos véteros e neotestamentários, que descrevem movimentos proféticos, são rastros que remetem ao reino da eternidade na terra, que segundo Tillich, não somente existencializa a reflexão teológica, mas apresenta a salvação e a fé como imperativos ontológicos.

Mas aqueles sistemas religiosos erigidos sobre o princípio da autoridade centralizada, só podem se opor a um movimento autônomo como o socialismo.  Pois, são opostos na medida em que tal sistema se afirma enquanto sistema de autoridade. Eles se colocam como opostos mesmo quando tal sistema aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Para o catolicismo da Contra-Reforma continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária.  Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade desse catolicismo impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma tem dificuldades de reconhecer.  Da mesma maneira, o protestantismo, embora tenha quebrado o sistema de autoridade em seu princípio-base e dado voz à autonomia, erra ao considerar de forma heterônoma as palavras de Jesus. Do ponto de vista histórico, os fatos não são simples, porque Jesus não levantou, de fato, nenhum esboço de programa de reforma social, embora, convencido da revolução iminente do reino da eternidade tenha apresentado aos seus discípulos as consequências do mandamento da fraternidade. Sobre essa relação que envolve reino eterno e justiça, Tillich dirá: 

“O fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eternal. Mas antecipações fragmentárias são possíveis. A própria Igreja é uma antecipação fragmentária. E há grupos e movimentos, que embora não pertençam à Igreja visível, representam algo que podemos chamar de Igreja latente. Mas nem a Igreja visível, nem a Igreja latente são o reino de Deus”.  

Por isso, deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça social não depende de sua conformidade às Escrituras,  mesmo quando é apresentada sob a autoridade das palavras de Jesus. Assim, o socialismo pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta. Para ele, quando os laços do cristianismo e do socialismo estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as palavras de Jesus ou das Escrituras, não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo.

Seja qual for a opinião sobre a relação entre cristianismo, capitalismo e socialismo, um fato deve ser ressaltado: é possível e necessário para o cristianismo manter um relacionamento com todas as formações econômicas e sociais, em especial com o socialismo, já que a rejeição do princípio socialista em nome do cristianismo contradiz a universalidade do cristianismo.  E se o cristianismo não somente pode, mas deve manter um relacionamento com o socialismo, devemos nos perguntar se o contrário da premissa é verdadeiro: pode e deve o socialismo ter um relacionamento construtivo com o cristianismo? Embora, haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão, tal como pode ser percebida na pregação do Jesus apresentado nos Evangelhos. Quer dizer, ainda há em setores do socialismo uma hostilidade contra o cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética socialista, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos. Se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial, de princípio, com o cristianismo e com a Igreja que vive o princípio protestante, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação ao socialismo. 

Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio da fraternidade cristã, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma outra ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua periféricos e excluídos. Isto porque o socialismo não é só tarefa e necessidade de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças dos mais variados setores da sociedade. Ou, nas palavras de Tillich:

“O socialismo que nós queremos é aquele que coloca na teoria e na prática a pergunta pela possibilidade de que a vida tenha sentido para todas as pessoas e todos os grupos da sociedade. Esse socialismo procura responder a essa pergunta tanto no plano da realidade como no do pensamento. Um tal socialismo é mais que um simples movimento político, e mais que um simples movimento proletário. É um movimento que procura apreender cada aspecto de vida e cada grupo da sociedade. Tem uma pretensão universal que não exclui ninguém. Quando tomamos isso em sua profundidade última, também é necessário tomá-lo em sua universalidade. Deve então tornar-se o fundamento da ação espiritual de transformação política, quer dizer a ação que leva a tudo aquilo que o socialismo pode ser”. 

Para muitos, a concepção materialista da história nega a possibilidade dessa aproximação. Mas se entendemos que em Marx esta concepção de fato não é materialista, mas econômica, conforme considera Tillich, vemos que ela mostra somente uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização espiritual da cultura.  E, ao contrário, tal fundamento dá as ciências do espírito uma possibilidade metodológica fecunda, que não tem nada a ver com ateísmo ou materialismo. As doutrinas de Marx sempre foram discutidas com seriedade como parte da fundamentação teórica do socialismo religioso. E na maioria dos casos, como resultado disso, muitos religiosos rejeitaram o marxismo, enquanto outros o aceitaram parcialmente ou até mesmo transformaram essencialmente as doutrinas de Marx. Mas para Tillich, é importante que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apoie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio de uma simples tecnificação do mundo. Assim, o espírito religioso estaria vivo no movimento socialista, enquanto vibração religiosa que circula através das comunidades. E essa santificação da vida cultural no socialismo, para o teólogo, é uma herança cristã, que lhe transmite coragem e vida.

Ao buscar as raízes antropológicas do socialismo, Tillich achou um aliado nos textos do jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, publicados por J. P. Mayer e Siegfried Landshut, dois colaboradores do Neue Blätter für den Sozialismus, jornal socialista religioso co-editado por Tillich.   Ele descobriu o Marx humanista, que contrasta com o Marx da maturidade, voltado para a leitura econômica da realidade.  Porém, resistiu à tendência de lançar um contra o outro, afirmando que o Marx real deve ser visto no contexto de seu próprio desenvolvimento. Mas, há uma razão para se fazer a crítica teológica de Marx, e esta é exatamente a impressionante analogia estrutural existente entre a interpretação da crítica profética e a interpretação marxiana da história. Para Tillich, a resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa profética, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse sentido, o princípio da crítica ,envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. O espírito crítico da profecia leva, sob o capitalismo, ao princípio da autonomia protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam à vida. E porque a situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não; Tillich diz que devemos nos perguntar, se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’ — simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz”. 

O princípio profético – crítico e transformador -- e Marx partem de interpretações capazes de ver sentido na história. Para essas duas leituras da realidade, a história vai na direção de um alvo, cuja realização dará sentido a todos os eventos vividos. E se a história tem um fim, tem também um começo e um centro, onde o sentido da vida se torna visível e possibilita a tarefa de interpretação, tanto do profeta como do militante socialista. Assim, para o profetismo e para o pensamento marxiano, o conteúdo básico da história encontra-se na luta entre o bem e o mal. As forças do mal são identificadas como injustiça, mas podem ser derrotadas. Esta interpretação cria nos dois casos certa atmosfera escatológica, visível na tensão da expectativa e no direcionamento para o futuro, coisa que falta completamente em todos os tipos de religião sacramental  e mística. O profetismo e o marxismo atacam a ordem vigente da sociedade e a piedade pessoal como expressões do mal universal num período específico.  Ora, há um desafio ético, apaixonado, como afirma Tillich, das formas concretas de injustiça, que levanta um protesto, o punho ameaçador, contra aqueles que são responsáveis por este estado de coisas. Assim, o espírito profético e Marx colocam os grupos governantes sob o julgamento da história e proclamam a destruição desses grupos. Tanto o profetismo como o pensamento marxiano acreditam que a transição do atual estágio da história em direção a uma época de plena realização se dará através de uma série de eventos catastróficos, que culminará com o estabelecimento de um reino de paz e justiça. Dessa maneira, o espírito profético e o marxismo são portadores do destino histórico da humanidade e agem como instrumento desse destino por meio de atos livres, já que a liberdade não contradiz o destino histórico. Mas, a analogia estrutural entre o espírito profético e o pensamento de Marx não se limita à interpretação histórica, mas se estende à própria doutrina do homem. É uma semelhança, inclusive, que vai além de uma cosmovisão profética do humano, que se apresenta como doutrina cristã do humano.

O ser humano, para Marx, não é o que deveria ser, sua existência real contradiz seu ser essencial. Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 escreve: "quanto mais produz o operário com seu trabalho, mais o mundo objetivo, estranho que ele cria em torno de si, torna-se poderoso, mais ele empobrece, mais pobre torna-se seu mundo interior e menos ele possui de seu". Ao partir de sua preocupação central, o estudo da economia política de seu tempo, Marx diz que "a miséria do operário está em razão inversa do poder e da grandeza de sua produção".  Mais produz, maior é a sua miséria. Assim, a produção não faz apenas do ser humano mercadoria (a mercadoria humana), mas o faz também ser espiritual e fisicamente desumanizado... Se o desenvolvimento das forças produtivas ao mesmo tempo em que desenvolve as possibilidades humanas cria a reprodução da desumanidade, evidenciam-se os limites antropológicos e existenciais de tal desenvolvimento, já que toda relação social não se dará apenas através de uma elevação espiritual, mas de movimentos que deixam em aberto as possibilidades para a própria destruição do humano. A idéia da queda está presente no marxismo. Já que se o ser humano não caiu de um estado de bondade original, caiu de um estado de inocência primária. Alienou-se de si mesmo, de sua humanidade. Transformou-se em objeto, instrumento de lucro e quantidade de força de trabalho.

Para o cristianismo, como sabemos, o ser humano alienou-se de seu destino divino, perdeu a dignidade de seu ser, separou-se de seus semelhantes, por causa do orgulho, da desesperança, do poder. O cristianismo e o pensamento marxiano concordam que é inviável determinar a existência humana de cima para baixo, por isso a existência histórica é determinante na construção da antropologia. A analogia entre cristianismo e marxismo vai mais longe ainda. Vêem o ser humano como ser social, e que por isso o bem e o mal praticados não estão separados de sua existência social. O indivíduo não escapa dessa situação. Faz parte do mundo caído, não importando se a queda se expressa em termos religiosos ou sociológicos. Tem a possibilidade de fazer parte do novo mundo, não importando se o concebemos em termos de transformação supra-histórica ou infra-histórica.  Dessa maneira, a idéia de verdade tanto no cristianismo como no marxismo vai além da separação entre teoria e prática. Ou seja, a verdade para ser conhecida deve ser feita. Vive-se a verdade. Sem a transformação da realidade não se conhece a realidade. Donde a capacidade de conhecimento depende da situação de conhecimento em que se está. E apoiando-se no apóstolo Paulo, Tillich explica que só o “homem espiritual” consegue julgar todas as coisas, da mesma maneira aquele que participa da luta do “grupo eleito” contra a sociedade de classe consegue entender o verdadeiro caráter do ser. Assim, com a deformação da existência histórica, praticamente em todas as esferas, torna-se muito difícil a percepção da condição humana e do próprio ser, por isso a presença da igreja e do proletariado na luta é o lugar onde a verdade tem mais condições de ser aceita e vivida.

O auto-engano e a produção de ideologias surge como inevitáveis em nossas sociedades carentes de sentido, a não ser naqueles pequenos grupos que enfrentam suprema angústia, desespero e falta de sentido. A verdade então aparece e pode ser vivida, porque os véus ideológicos foram rasgados. Mas, alerta Tillich, a verdade pode se transformar num instrumento de orgulho religioso ou de vontade de poder político. Em tudo isso o cristianismo e o marxismo estão juntos em oposição ao otimismo pelagiano ou de harmonia em relação à natureza humana. 

Segundo Tillich, não podemos ver o pensamento de Marx como se fosse uma coisa do passado, quando aceitamos o espírito profético enquanto socialistas religiosos. O socialismo religioso se quiser continuar a ter sentido não pode se transformar numa justificativa ideológica das atuais democracias, nem num idealismo progressivo ou num sistema de harmonia autônoma. O socialismo religioso dentro do espírito do profetismo e com os métodos do marxismo é capaz de entender e transcender o mundo atual.  Mas até que ponto a metodologia marxiana e uma hipotética conquista do poder político poderiam dar sentido à vida? Na verdade, por ser marxista, tal metodologia não entende que a corrupção também está localizada nas profundezas do coração humano. Por isso, o alerta de Tillich, sobre as diferenças entre espírito profético e marxismo, cresce em importância e deve ser ressaltado. 

O socialismo religioso entende que as forças demoníacas da injustiça e da vontade de poder jamais serão plenamente erradicadas da cena histórica. Por isso, considera que a regeneração da humanidade não é possível apenas mediante mudanças políticas, mas requer mudanças na atitude das pessoas em favor da vida. Assim, para o socialismo religioso, o momento decisivo da história não é o surgimento do proletariado, mas o aparecimento do novo sentido da vida na automanifestação divina. Essa diferença tem extrema importância, mas de nenhuma maneira – pensa o teólogo -- impede a inclusão de elementos básicos da doutrina marxista da história e do ser humano no cristianismo profético. 

“Sob todos os aspectos, o socialismo religioso quer aprofundar a crítica, trazer à tona as questões últimas e decisivas; ele se faz mais radical e mais revolucionário que o socialismo, porque vê a krisis do ponto de vista do incondicionado”. 

Quanto às organizações socialistas, é necessário ver que têm uma atitude em relação ao cristianismo e uma outra em relação às estruturas hierárquicas da Igreja.  A história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação facilita e potencializa a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não podemos dizer que o ateísmo materialista seja um fenômeno constitutivo do socialismo. Para Tillich, é uma herança da cultura burguesa, cética e crítica.  Essa herança foi adotada pelo socialismo sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um novo mundo, mais digno e justo.

Para Paul Tillich em Masse et Esprit, Études de philosophie de la masse,  a palavra massa transformou-se em slogan político e social, e em expressão que conota superioridade e idolatria. Por isso, quando se deseja discutir seriamente o conceito massa é necessário definir seus contornos e esfriar um pouco a fervura do slogan.

Segundo Tillich há dois conceitos de massa, um formal e outro material, o primeiro de ordem psicológica e sociológica e o segundo de ordem histórica e social.  Em termos formais, a massa consiste numa associação de pessoas que, na associação, deixam de ser indivíduos. Sua individualidade se perde e ele se submete à coletividade. A pessoa se torna um átomo, desprovido de suas qualidades, seu movimento próprio, e se transforma em pura quantidade subordinada ao movimento da massa. Através da psicologia das massas pode-se ver como a alma perde sua forma individualizada uma vez que toma a forma da massa e como o indivíduo entra em contradição com ele próprio,  já que é um átomo da massa ou um ser bem singularizado. 

Tillich considera que no movimento psíquico da massa alguns elementos se separam e se isolam, adquirindo eficiências por eles próprios. Isto porque um indivíduo é o resultado de uma longa evolução interior e sua alma está ligada por milhares de liames à vida da alma em sua totalidade, que assim torna-se autônoma.  Na massa, as forças de inibição, de reflexão e de matizações caducam. Tudo se transforma. Assim, podemos resumir essas transformações em duas leis. A lei da imediaticidade, segundo a qual a massa não reflete, mas é. Ela tem uma existência objetiva, não subjetiva como afirmou Hegel,  ela é em si, não para si. A massa não sabe porque ela faz aquilo que faz. Quando acede a ela própria é sempre através de certos indivíduos, um orador ou chefe. A massa é imediata, vive inteiramente o presente, sem ligações com o passado ou o futuro, sem lembranças ou reflexões. Suas motivações são irracionais. Mas para Tillich, a lei da imediaticidade explica o desabrochar dos instintos biológicos imediatos, que estavam inibidos. Também mostra a existência de um princípio espiritual imediato que se faz presente, que pode ser traduzido como o abandono ao instinto do momento em direção à disponibilidade da revelação espiritual do presente, revelação de uma espiritualidade subjetiva impura. Ou seja, a irracionalidade das motivações pode dirigir ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 

A outra lei da psicologia das massas, segundo Tillich, é a lei da amplificação. Se a vida espiritual do indivíduo perde suas inibições, se tal fato se repete em cada indivíduo presente, como num alternador, o vivido por um, suscita em outro experiência idêntica, porque a massa vivencia ela própria o ser massa.  Essa lei nos leva a dois aspectos da vida da alma, o aspecto emocional e o aspecto intelectual. Em todo movimento da massa podemos observar a força do entusiasmo, a amplificação das paixões, da coragem, que podem levar ao seu sacrifício e destruição. Do lado intelectual, a lei da amplificação age de forma mais discreta, porque o processo de reflexão não convém à massa por causa de sua complexidade. 

De certo ponto de vista, explica Tillich, o indivíduo está mais alerta que a massa, mas a massa pode se elevar bem acima das consciências subjetivas, com suas intuições mais simples, mas também maiores e também com sua clarividência disso, que prepara o espírito objetivo no momento presente.  A amplificação pode levar ao monumental e ao heroísmo, mas também ao demoníaco e à destruição. E as intuições da massa podem se conformar ao espírito ou lhe ser refratário. As leis da psicologia das massas são leis naturais, afirma Tillich. Elas são sempre válidas e necessárias onde uma pluralidade se encontra reunida. Elas têm valor para todos os estamentos sociais, para um grupo de marginais, assim como para uma assembléia de nobres. Com ironia superior, elas regem uma reunião de convencidos individualistas, assim como explicam o sentimento de superioridade existente na palavra massa, quando usado como slogan.

Segundo Paul Tillich, no conceito material de massa, a essência de um grupo determinado é ser essencialmente formado conforme a psicologia das massas.  Por isso, no sentido histórico do termo, a massa, quer sejam classes ou ordens, raças ou círculos, partilha do destino de ser excluído de toda formação espiritual individual. Vemos, então, que para Tillich a imediaticidade da massa faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à revelação espiritual do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência disso. Este processo prepara o espírito objetivo no momento presente. Quando objetivamente a massa vive esse processo de espiritualização, nela, cultura e religião se misturam. A esse primeiro momento de evolução da massa Tillich chama de massa mística.

No contexto geral de uma análise socialista, não se pode deixar de levar em conta que a evolução histórica dá nascimento a diferentes tipos de massa, conforme o modelo de desenvolvimento das relações entre cultura e religião. 

O primeiro estado, conforme explica Richard, consiste em uma unidade onde os dois ainda não se distinguem. Uma segunda etapa é marcada pela autonomia da cultura: assim, ela se diferencia mais e mais da religião, a ponto de gerar a secularidade moderna. Mas esta ruptura e separação são catastróficas tanto para a cultura como para a religião. E serão então superadas pela etapa final da teonomia, caracterizada pela presença de conteúdo religioso em todas as formas autônomas da cultura.  Podemos facilmente reconhecer os elementos desse esquema na descrição que Tillich faz dos diferentes tipos de massa, diz Richard. A massa mística corresponde à religião de origem:  é a fusão dos indivíduos numa única comunidade que engloba tudo. Vem em seguida a etapa da autonomia, onde os indivíduos se diferenciam cada vez mais da comunidade de origem, até tornarem-se completamente independentes e separados. Mas ainda é massa sem forma e cultura, que não se colocou em movimento e caminhou para um estado de individualização. Essa é o estado de massa técnica ou mecânica, característico da moderna sociedade industrializada.  A partir daí surge a perspectiva de uma etapa final onde a massa e a individualidade pessoal formarão uma nova união, uma síntese nova, chamada massa orgânica, que corresponderá ao ideal da teonomia. Mas que nem sempre caminhará em direção a este ideal. Quando, porém, o tempo histórico orienta nessa direção temos a massa dinâmica.  

Dessa maneira, para Tillich, a massa dinâmica é sempre revolucionária, não unicamente no sentido político do termo – inclusive este é o sentido menos freqüente --, mas sempre em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que ela seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa e todas as formas que são responsáveis por este regulamento.  Assim, explica Richard, para Tillich o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica e é essencialmente um movimento de libertação: o movimento da massa dinâmica parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica, não importando que esse começo seja ou não atendido. 

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar nesta tese – já que este não é seu objetivo – fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: o espírito crítico da profecia, conforme vimos, não se limita ao profeta ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma dupla ação, de liderança da sociedade e de transformação da situação-limite.  

Na perspectiva do socialismo, Tillich não se limita à consideração da massa orgânica. Para ele, a passagem da heteronomia à autonomia e posteriormente à teonomia, que fazem parte da estrutura de sua teologia, constituem ciclos que se encontram em diversas épocas.  Assim, os movimentos de massa dinâmica são encontrados no movimento religioso do cristianismo primitivo helenístico, no movimento político e racial da migração dos povos, no movimento espiritual e religioso da Reforma, no movimento econômico do socialismo.  Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre como movimentos de libertação: a massa dinâmica é parteira de escravos oprimidos, de povos bárbaros excluídos, de leigos passivos, ou desses escravos livres que são os trabalhadores assalariados, sempre que a mecanização real ou ameaçadora deu lugar a um movimento que transbordou a história.  

O conflito interno do socialismo tem como ponto de partida a própria situação proletária. Donde, para se entender as contradições do socialismo devemos entender o conflito interno da condição proletária. Essa antinomia nos remete às forças que se digladiam internamente no proletariado.  E é impossível resolver o problema teoricamente se não partirmos de uma síntese daquilo que de fato corresponde à realidade do movimento. Ou seja, o que Tillich se pergunta é se podemos saber até que ponto o proletariado tem consciência  de seus conflitos internos e se pode ele mesmo chegar a uma solução deles. Se isso é verdadeiro e possível, então, ele tem condições suficientes para a solução não somente de seus conflitos, mas também daqueles presentes no socialismo. 

O conflito da situação proletária vem do fato de que o proletariado tem que se apoiar no princípio burguês e ao mesmo tempo deve se opor a esse princípio. Ou seja, o conflito tem por base o fato de que o proletariado deve ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição é inevitável, pois a existência proletária é a expressão conseqüente do princípio burguês: a objetivação, a reificação e a ruptura com sua própria origem estão presentes em sua existência.  Então, o proletariado não pode reagir ao pensamento burguês inteiramente, com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos. Mas como então ele se rebela? Como se levanta e propõe o fim do pensamento e do regime burguês? No proletário há o ser humano real que reage, não o ser humano como é visto racionalmente, mas o que está ligado com a origem, com essa força que nos leva a resistir a cortar nossas raízes. Nem na natureza, nem na produção técnica mais refinada, não se encontra esse elemento de manutenção do poder interior que leva o ser humano a resistir a uma assimilação completa. Da mesma maneira, com maior razão, não há ser humano que se deixe desapropriar completamento daquilo que ele tem e daquilo que ele é. O que reage no proletário é esse romanticismo político que se levanta como princípio exclusivo do ser humano e da sociedade: a origem.

Temos aqui outro ponto em comum com o princípio burguês. A única divergência entre os dois, é que o romanticismo político  deseja acabar com o princípio burguês, acreditando que o socialismo pode substitui-lo. Nesse caso, parte da revolta do ser humano contra a desumanização do princípio burguês, e leva para o socialismo o romanticismo político como leitura comum da realidade. 

A burguesia sempre evitou cortar suas relações sociais e afetivas com a origem. Nunca foi até o fundo em seu próprio princípio. Por outro lado, o proletariado está forçado a isso por sua própria situação. Mas, pelas alianças que deve fazer, sempre se viu obrigado a esconder isso de si próprio, de seus aliados e de seus adversários, o que se constituiu num conflito interno permanente. Os teóricos socialistas não entenderam o que a burguesia sabe por instinto de classe, que o princípio analítico, racional, nunca pode agir como portador da fundação do ser individual ou social, mas apenas como norma crítica. A teoria socialista enfrentou esta dificuldade da seguinte maneira: por um lado diagnosticou a completo reificação do proletariado, o que significa que relacionou sua identidade humana de proletariado com a situação econômica de trabalhador assalariado, vendedor de força de trabalho. Mas por outro lado, fez desse proletário um ser puro, vanguarda e portador de uma ordem social nova. Não pode reconciliar estas duas afirmações. E por incrível que pareça o engano maior esta na primeira afirmação. A situação econômica não é suficiente para interpretar a situação humana. Ao contrário, no proletário há o ser humano que reage contra a situação econômica, há um ser proletário que a reificação não define e que se levanta em luta contra o princípio burguês. 

No movimento proletário está presente o ser humano proletário, que reaciona à ameaça de reificação econômica e de reificação completa do ser humano. Apesar da louvável intenção dos teóricos socialistas quando descrevem a situação proletária a partir da negatividade, eles, na verdade, deram aos adversários argumentos que apresentam o proletariado como destituído de força para conduzir uma luta revolucionária, sem o poder interior suficiente para construir uma sociedade nova. Porém esta leitura negativa da situação proletária muitas vezes se transforma em discurso do próprio proletariado. Por isso, devemos entender que movimento proletário é bem mais que luta política a favor do socialismo. Associados a essa luta, sem ser idênticos a ela, estão os movimentos de união, as associações de produtores e consumidores, os grupos religiosos, espirituais e de fins educacionais, enquanto subgrupos do proletariado, e as oposições e alianças de comunidades, os modos de relacionamentos entre sexos e gerações, há movimentos centrados na vida cotidiana, que definem atitudes frente o trabalho, o lazer, a fraternidade, o destino, a morte. A isso estão somadas as tradições nacionais e regionais, que também repercutem na situação proletária. E há ainda as tendências ao aburguesamento, que, na verdade, não passam de uma aspiração nostálgica das pressões da origem. E, deve-se acrescentar, a isso as comunidades e seitas políticas e religiosas, os movimentos proletários de mocidade, e as várias expressões do impulso de luta: emulação e doutrinamento do exército, do qual faz parte a atitude com respeito ao corpo, à vida e à terra, que desembocam no heroísmo do proletariado e sua disposição para o sacrifício. 

A situação proletária mostra que a situação da existência humana está em contradição com o destino do ser humano. É por isso que o princípio protestante  tem função especial na compreensão da situação humana quando se olha a partir da situação proletária, pois esta se apresenta como cisão demoníaca ou alienação  Todos estes elementos estão imbricados à situação de classe e pela consciência socialista, mas também têm uma significação universal.  Eles não são atributos de uma classe, mas fazem parte do conteúdo humano e estão presentes na história. O proletariado descobriu que esses elementos o ligam aos outros grupos humanos. Nele, os elementos originais do ser humano são realidade presente que o leva a uma luta a favor do ser humano, a uma recusa do princípio burguês. Não há uma oposição entre o proletariado e o desafio da origem. Assim, o movimento proletário repousa em forças originais, mas também sob um tipo, disforme, de princípio burguês. Esta situação é geradora do princípio socialista.  

A situação proletária, quando analisada a partir do princípio protestante, mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E o socialismo, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não corresponde nem à mensagem bíblica, nem à teologia de Lutero. Tillich diz que “o protestantismo esta livre para o materialismo proletário”.  De sua parte, o princípio protestante diz ao socialismo que a miséria humana não é somente uma miséria socioeconômica. 

Os elementos que constituem o princípio socialista têm suas raízes no romanticismo político e na sociedade burguesa,  do espoucar do princípio burguês na luta das classes, e do conflito interno do socialismo. Esses três elementos que levam ao socialismo traduzem sua força de origem, a quebra da harmonia e sua orientação para o que é requerido. No princípio socialista há um sim para o poder da origem, que pressupõe uma ruptura com o romanticismo, mas é também um sim para o princípio burguês, ruptura do mito de origem, enquanto exigência incondicional. E há um não para a fé burguesa na harmonia, problema metafísico do princípio burguês. Estes três momentos são organizados de tal modo que o sim ao princípio burguês rompe o original do romanticismo político, e o não à fé burguesa na harmonia abre um espaço que clareia as forças da origem. Os três momentos têm que ser unidos no conceito da espera, que por isso deixa de ser um conceito no sentido restrito e se torna um símbolo. Pelo símbolo da espera, o socialismo opõe mito original e fé numa nova harmonia. Inclui aspectos de um e de outro, mas vai além deles. Por isso, o princípio socialista e as forças que se acham embutidas nele não podem ser compreendidas sem o símbolo da espera. Esta conjunção dos três elementos do princípio socialista no símbolo de momentos e lugares de espera faz do movimento socialista um movimento profético. A profecia é um movimento histórico que fala radicalmente de uma segunda raiz do ser humano, que une os três momentos: o mito de origem, sob a forma da religião do pai; a ruptura com o mito de origem, através de uma exigência incondicional; e a realização do mito de origem, não em um presente interpretado em termos de harmonia, mas em um futuro prometido. Significa que o princípio socialista é profético através de seus conteúdos, que o socialismo é o movimento profético de um mundo onde o mito original foi quebrado e onde domina o princípio burguês. 

O socialismo é a profecia de um mundo autônomo.  É fato histórico que o socialismo depende das seitas cristãs revolucionárias, que se conectam a ele através dos elementos proféticos do cristianismo primitivo. Ninguém entende o socialismo se omitir seu caráter profético. Como esquecer seu caráter autônomo das formas de vida e pensamento? Por isso fala-se de relógio da história, de tempo propício, porque por seu caráter profético o princípio socialista está ligado ao símbolo da espera. O termo espera leva a inúmeras imagens, mas o conceito opõe-se sem ambigüidades ao mito original e ao romanticismo político.  A espera é tensão, orientação para ação de esperar, é processo que leva ao incondicionalmente novo, ao que não era, mas vai acontecer. Não está fora na propagação original entre nascimento e morte, é realização do ser. A ambigüidade da origem nos nega isso, e o romanticismo procura provar a existência de leis eternas para justificar teologicamente sua própria existência. Mas leis eternas não existem. O ser humano é uma possibilidade nova em relação à natureza, e na história essa possibilidade nova torna-se realidade. Mas a história, reafirma o presente e nos projeta para o futuro. História é tensão diante daquilo que vem, é tensão diante dessa possibilidade de uma ordem nova de coisas. E é essa ordem nova que o profeta espera. Assim, em cada momento, a história nos lança para além dela, para aquilo que é incondicionalmente novo. 

A espera profética é um bem comum da religião cristã. Para o romanticismo político não foi tarefa fácil tentar eliminar isso. Alias, o romanticismo conservador sempre teve dificuldades quando tentou unir seu princípio burguês com o cristianismo. Sua pedra de tropeço é a espera, atitude fundamental do cristianismo primitivo. O romanticismo procurou então adaptar o elemento profético, sem suprimi-lo completamente. E fez isso separando a espera do fim e destino da alma individual do destino histórico e da transformação do mundo. As esperas individuais apontam para o próprio fim e realização de uma criatura nova. Mas tal coisa faz parte de um movimento de totalidade. A história é um círculo de círculos onde estão frente a frente a miséria humana e a graça divina, a espera do acontecimento de algo de fundamentalmente novo. Conclui-se toda espera aponta em direção a uma estruturação da realidade, onde o novo está além da história.

Em Tillich, explica Higuet, “a espera surge como atitude espiritual na política. Enquanto símbolo de ruptura com o mito das origens dos políticos conservadores e com a autonomia da burguesia moderna, a espera socialista orienta-se para a realização do futuro prometido. O objeto da espera virá independentemente da ação humana – pois o sentido da vida irrompe incondicionalmente, a partir do seu próprio fundamento -, mas, ao mesmo tempo, é o que deve vir, o que é exigido e só pode realizar-se pela ação humana. Só quando guiados pela espera, o ser humano e a sociedade podem alcançar a sua realização, quebrando o domínio do mito originário: o poder do sangue, do solo, da raça ou do sagrado, produtor de violência e morte. Na espera, manifesta-se radicalmente até que ponto o presente contradiz a sua própria destinação”. 

A partir dessa leitura teológica do romanticismo, o socialismo se organiza como espera, pois reconhece as decepções da história. Ele sabe que não conta com um milagre que transformaria o ser humano e a realidade histórica. É interessante ver como essa perspectiva esta presente no pensamento socialista. Rosa Luxemburg em seu último escrito,  datado de 14 de janeiro de 1919, diz a respeito da derrota do levante operário em Berlim:

“(...) mas, inevitáveis derrotas são a melhor garantia da nossa vitória final... Claro que isso tudo entranha uma condição! E é a de sabermos em que circunstâncias teve lugar cada derrota, quer dizer, se esta foi o resultado de massas imaturas que se lançam à luta ou de uma ação revolucionária paralisada no seu interior pela indecisão, a mornidão e a falta de radicalismo. (...) As massas cumprirão a sua missão, porque fizeram desta nova “derrota” o elo que nos une legitimamente à cadeia histórica de “derrotas” que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Podemos ter a certeza de que desta “derrota” também há de florescer a vitória definitiva. A ordem reina em Berlim!... Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não repararam que a sua “ordem” está alicerçada sobre a areia. A revolução se levantará amanha vitoriosa e o terror se estampará em seus rostos ao ouvir anunciar sob trombetas: era, sou e serei!”  

Para o romanticismo político, as greves, assim como as ações proletárias são o caos ou a barbárie que quebram a harmonia do princípio burguês. Mas para o socialismo são momentos que fundamentam a espera, da mesma maneira que a profecia não renunciou apesar de decepções cruéis.  Da mesma que a profecia não prediz eventos que logo acontecerão, ou uma predição prova ser verdadeira ou não pelo fato de realizar-se em curto prazo, o socialismo enquanto atitude crítica e transformadora supõe só uma coisa: a cada momento move a história para o novo, para o que é prometido. Mas como vemos em Tillich ou nas palavras de Luxemburg, a espera não é uma atitude subjetiva. Acha-se fundada no mesmo impulso de tornar-se. É esse impulso que objetiva transformar a utopia em era de abundância. A realização não é um conceito meramente empírico. Quando reduzido a algo empírico gera a utopia e, com ela, a decepção por ter a espera como fim objetivo. A espera é passagem. É bem mais que o mito da origem ou que um esperado fim objetivo. Ao contrario, a espera não é coisa objetiva, mas a revolução do novo no velho. O socialismo tem um caráter profético porque vive tal atitude, mas como a profecia todas as vezes que ameaça chegar ao objetivo, derrapa na resignação ou na utopia. Orientado para o novo, a espera inclui dois momentos: o que é esperado é o que virá, porém o que virá não depende da ação humana. Mas o que é esperado é o que tem que vir, o que é requerido, porém o que não é requerido pode ser alcançado pela ação humana. É a tensão destes dois elementos aparentemente contraditórios que faz a profundidade do princípio socialista. Esta tensão faz extremamente difícil a construção da teoria socialista e confere à prática alta importância. O que caracteriza o caráter profético do socialismo é que o profeta requer e promete. 

O profeta relaciona a situação imediata a uma situação sem igual que nunca se apresentará sob essa forma, cujas exigências não se repetirão e cuja realização só acontecerá uma vez. O que é planejado, requer. A realidade orienta nesse sentido, um evento particular puxa para lá, uma constelação de fatos aponta nessa direção: pode ser alcançado, mas também não ser. Esta conjunção da exigência, assim como a promessa caracterizam a espera como profética. Isso determina a espera socialista, ela se caracteriza claramente como profética. É expressamente o caso da interpretação marxista do socialismo. Como a espera está esperando o que é requerido, ela é diferente da espera passiva, que de fato não está esperando. Até mesmo etimologicamente, há na espera mais que um olhar passivo. A espera inclui a ação. Sem a ação, a espera seria uma teoria fútil.

A consciência inspirada pelo mito original requer e também age. Entretanto a exigência não é atitude profética socialista. No campo do mito original, a exigência aponta para a manutenção da origem, enquanto a ação procura alcançar aquilo que está nos limites do ciclo que, partindo da origem, volta à origem. A exigência não se move no sentido do novo, para o que está além da origem, mas confirma os poderes patriarcais e feudais da origem. A exigência da práxis socialista, pelo contrário, submete à sua crítica todos os poderes, grandes e pequenos. Por ultrapassar a origem não depende de qualquer poder estabelecido. Tal é o sentido de igualdade, da exigência de solidariedade na profecia e no socialismo.  A exigência incondicional, que fala a cada um, faz todos semelhantes. Por isso, o poder perde toda a significação diante da exigência do sentido de igualdade. Isto porque no limite da existência o ser humano é desafiado à realização de seu destino. É isso que explica a valorização do fraco na profecia e no cristianismo. Pelas mesmas razões, daí parte a exigência de se tratar todo ser humano conforme sua destinação, de lhe permitir alcançar a abundância que lhe está proposta e sem a qual a humanidade como um todo caminha para a estagnação. O ideal do ser é a realização, mas isso não exclui a possibilidade do enfraquecimento extremo do ser, pelo contrário, abundância e fraqueza sempre se fazem presentes. É por isso que a profecia luta contra a opressão do pobre pelo poderoso e para que a injustiça não arraste pessoas ao abismo. E é pelo mesmo motivo que Marx se levanta contra a reificação do ser humano e a favor de um real humanismo. É por isso que o socialismo considera a situação proletária como crise da sociedade burguesa e como confrontação do romanticismo político. Esta luta contra a opressão não exclui, em muitos casos, o sacrifício das vidas daqueles que combatem, mas exclui todas as ideologias de dominação que procuram justificar a situação de excluídos e proletários.  

A origem esta associada à espera e a realização de seu objetivo de duas maneiras: a meta realiza o que a origem apontou, mas é com a espera que a origem obtém a força que lhe permite alcançar a realização de seu objetivo. Estes dois aspectos são importantes para o movimento socialista. O primeiro dá conteúdo à espera socialista, e o segundo indica o modo de sua realização.  Esta união da origem com a espera abarca todos os modos de esperar: a espera mítica, a espera profética e a espera racional. Embora esteja ancorada na realidade, a espera mantém uma exigência que não diz nada àqueles a qual não se dirige, mas para aqueles que se interessam por aquilo que ela discerne, apresenta-se como promessa. Ou seja, ela é incompreensível para quem não a aceita. Exigência e promessa têm que interessar a aqueles a quem se dirige para que haja a possibilidade de realização, pois estes conhecem a ausência da abundância. No mito é discernida essa ausência de abundância como uma perda da realização original, que deve ser reencontrada. Para o pensamento conceitual, a ausência de abundância é o contingente, o não necessário, contra o qual se opõe. O mito e sua relação com a ausência de abundância se nutrem mutuamente. Devido a essa correspondência entre tempo primordial e tempo final, o que é esperado remete às características da origem, embora estas características sejam transformadas pelo movimento da história. Em todo caso, a realização não é extinção da origem. Isso também vale para o socialismo e sua espera. Mas agora, no socialismo, a realização não esta dirigida a um ser privado de origem, como se vê no princípio burguês. Não almeja um estado onde a consciência suprima o ser, pois a espera aponta à realização do ser, que deseja estar no controle do poder verdadeiro, com suas particularidades e tensões. Tal poder é o núcleo da exigência profética e socialista, e sua exigência combate os poderes míticos da origem. Por isso, na realização reaparece a origem, mas como realidade nova, transformada pela exigência que a submete. Esta conexão suprime o princípio burguês e possibilita o princípio socialista. Os poderes da origem justificam e limitam o princípio socialista. Deles procedem o conflito interno do socialismo. Em segundo lugar, a origem e a realização estão imbricadas de tal modo que o socialismo perde força e razão de existir se não se mover em direção àquilo que é requerido: o socialismo quando se transforma numa espécie de utopia torna-se impotente para enfrentar os poderes da sociedade. Se não se pergunta a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização. Aqui mito e conceito andam juntos. O mito para existir deve ser governado pelos poderes da origem. A tradição judaico-cristã expressa o mito através do símbolo da "providência" que se apresenta como aquilo que une o ser com o que deve ser. A idéia de providência expressa que aquilo que não é plenamente, não está tão distante do que deve ser, pois apesar de sua não completude, enquanto realização se move em direção ao ser. Assim, livre das amarras do mito, a idéia de providência procede, pois origem e destino são portadores de realização. 

Marx, afirma Tillich, viveu e denunciou a não completude do ser. A situação proletária revelou a alienação do sistema burguês, por isso Marx submeteu o sistema ao não e levantou a exigência de justiça. Ele devolveu à espera profética o papel que antes lhe era dado, de fé na providência, enquanto realização daquilo que é prometido.  Para Tillich, Marx recusou a utopia de uma possível reforma do mundo, mas colocou a exigência incondicional da mudança na direção do que é requerido, de forma que a exigência não se torne abstrata e sem força. Em sua análise da sociedade capitalista confrontou aquilo que presumiu ser seu fundamento, sua base econômica produtiva. E considerou que estruturalmente o capitalismo tendia ao socialismo, a uma sociedade sem classes. Tendencialmente, parecia que a exigência socialista seria confirmada enquanto projeto de uma nova sociedade. A existência da luta proletária, de sua revolta inspirada no ideal humano calcado na exigência da justiça, denotava um movimento em direção à sociedade sem classes. Aparentemente, tais elementos bastavam para possibilitar a viabilidade do socialismo, que Marx analisou sob a forma de análises econômicas. Na última parte de sua vida ele se distanciou da questão humana e existencial, debruçando-se sobre a leitura econômica. Mas, sem a questão humana e existencial, a economia se faz abstrata, e, por outro lado, a questão humana e existencial sem a leitura econômica apresenta-se distorcida. O que se espera de um ser humano realizado ou, como disse o jovem Marx, de um real humanismo, é que a motivação científica deságüe em ações políticas. 

Para o princípio socialista, o segundo problema é a relação entre origem e meta, que leva o sentido da espera ao conceito de esperança, no seu sentido mais profundo.  O socialismo é o movimento profético de um mundo autônomo e racional. A substância profética – crítica e transformadora -- se expressa de uma maneira racional, no conhecimento como também na ação.  Esta relação entre profecia e racionalidade é essencial ao socialismo. E aí residem a profundidade e também seus riscos. Por isso, o conflito interno do socialismo deve partir dos perigos que ameaçam o socialismo, tais como o romanticismo politico, que leva à negação da autonomia e da racionalidade.  A relação entre a substância profética e a racionalidade são os dois lados da moeda no socialismo, e por isso nos levam a duas questões: uma em relação à meta, outra em relação ao tipo de socialismo. A partir de seu caráter profético, os movimentos da espera têm contextos semelhantes, são previsíveis e maleáveis, mas levam a uma criação nova, ao totalmente outro. Mas a partir de seu caráter racional, a espera apesar de seus contextos semelhantes, aponta para algo que já conhecemos, isto porque na espera há algo que se mantém enquanto continuidade com o presente. A espera profética é um ir além, a espera racional é o realizar agora. Por isso, os dois lados da moeda: a práxis e espera racional. A tensão destes dois momentos é incontestável, e sempre está presente na história. Mas a tensão não é oposição. O pensamento e a ação dos socialistas constituem a realidade que não permite que a tensão se torne oposição. Enquanto existir como movimento vivo não sofrerá de esclerose. Princípio socialista implica em ação e pensamento amplos, que não podem ser paralisados nem pela espera profética, nem pela espera racional.  O ser humano real está além desta oposição. A espera humana sempre é sobre o ir além de aqui e agora, que estão debaixo do tempo. Para a espera, não há nenhuma oposição nisso, ao contrario, é o fim de toda espera profética. Mas para que essa espera possa revelar-se pressupõe a transformação completa do presente, a abolição das leis naturais, o estar aqui abaixo, para poder ir além. Ou, o que vem está separado do presente por um acidente cósmico, está além. Os quadros que descrevem tal realidade vêm da experiência. Por isso, ir além é na verdade partir de baixo. Esses conteúdos estão presentes na espera socialista. E eles já estão presentes aqui embaixo como igualdade, liberdade, satisfação das necessidades. Quando lemos esta realidade a partir do princípio socialista descobrimos que espera supõe uma transformação radical da natureza humana e, a partir da natureza humana, a transformação da natureza e de suas leis. 

Assim, a espera socialista vai além da oposição do previsível e do imprevisível. A profecia conta com o milagre, mas também leva em consideração fatores históricos, políticos e sociais colocados enquanto necessidade para a concretização deste ou daquele evento. Da mesma maneira que a espera socialista é paradoxal, quando se observa a mudança contínua de fatores aparentemente previsíveis, as vezes favoráveis, as vezes desfavoráveis ao socialismo, em todos lugares, a vida real nos remete aquilo que se espera. O socialismo deseja a sociedade sem classes, como bem humano, que deve ir além do símbolo, como objeto daquilo que está em baixo. Por isso, tanto na espera profética como na espera socialista, a vida aponta para uma conquista fundamental e protesta contra as concepções que negam o ir além do que está aqui e agora. 

As dialéticas históricas são mais que nada símbolos da espera socialista. Em primeiro lugar, vemos que essas teorias que analisam a história e e as políticas que lhe dão forma não eliminam o destino que transcende o ser humano. A análise racional, ao contrario, inclui tal fato, enquanto elemento que permanece inacessível, não por sua complexidade, mas porque está presente na própria analise racional, como vimos no jovem Marx. Assim, a fé profética na providência não deixa de lado a analise dos detalhes da situação histórica real e de seus fatores. Uma consciência viva da história, calcada no princípio socialista, compreende tal unidade. O ser humano que age pressupõe, assim, a unidade na tensão do elemento profético e do elemento racional no socialismo, não enquanto contradição, mas expressão autêntica da espera, componente do ser socialista. Dessa maneira, o princípio socialista é a expressão conceitual do poder interior do movimento socialista. É a dynamis do socialismo, que de símbolo se tornou conceito.  Por isto, só princípio socialista tem condições de resolver as contradições do socialismo. Mas não podemos esquecer que a situação proletária revela que a situação humana permanece como situação de espera. O princípio protestante mostra que a realização da espera, enquanto instauração do reino de Deus, está próxima de cada kairós, mas que transcende e não pode realizar-se a não ser de maneira dialética. Assim, o princípio protestante nega a utopia que espera na história ou além da história uma realização completa da existência. O fim da história está sempre presente como verticalidade que corta a horizontalidade, mas que jamais poderá ser completada na horizontalidade. 

As fórmulas “pela graça somente”, “pela fé somente”, diz Tillich, transportam juntas vida e espírito no domínio do conhecimento e rejeitam todo legalismo, todo farisaísmo de ter a posse da verdade absoluta e de querer impor tal verdade aos outros. Através delas, a religião e o espírito autônomo podem tornar-se um, e é somente quando isso se dá que a autonomia se instala e é livrada de cair sob o arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propõe criar uma nova vida cultural e social unida sobre a base de uma economia unificada, mas isso só será possível se a autonomia caminhar em direção a uma teonomia, ou seja, uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se incondicionalmente de todas as coisas. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem se colocar de acordo,  afirma Tillich.

A idéia de dar forma racional ao mundo fez oposição à concepção do cristianismo que vê o mundo como essencialmente antidivino e a razão como corrompida,  e que vê a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente ao espírito, que nada mais é que a história do espírito em geral e da religião em particular. Para Tillich, essa concepção ética-religiosa elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre e ética é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas inevitáveis particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade. Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, que aprofunda esta contradição entre o ser e o mérito, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois será onírico, desprovido de liberdade verdadeira e de mérito interior. Assim, o cristianismo traduz uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino eterno vem ao mundo. Mas ao mesmo tempo tal concepção apresenta limitações: o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito.  Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer.

É importante que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio da tecnificação do mundo. Cristianismo e socialismo devem discutir esta questão. É com a experiência da imanência, explica Tillich, que surge claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta. Lá onde se vive a profundidade última da experiência religiosa, onde a experiência da incondicionalidade com o sim e o não é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto e o embaixo relativo. O termo profundidade  é uma metáfora. Significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último e incondicional. No sentido mais amplo, religião é esta preocupação última. Preocupação que se manifesta nas funções criativas do espírito humano, nas esferas da moral, do conhecimento, da estética, e no anelo de expressar um significado último. Por isso, quando alguém rechaça a religião em nome da função moral do espírito humano, em nome da função cognitiva do espírito humano, em nome da função estética do espírito humano, rechaça a religião em nome da própria religião. A religião, para Tillich, constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do humano. Esse é o aspecto religioso do espírito humano. Assim, o sim e o não são pronunciados sobre o aqui embaixo, sobre a realidade. É no coração das pessoas que acontece a separação, o julgamento paradoxal que torna tudo absoluto e relativo, eterno e terrestre.  Assim devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição absoluta, nem conhecimento absoluto, nem estado absoluto, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo. Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que o cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real. 

Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo. Essas atitudes se tornam nulas num estado exclusivo. Pode-se conceber um fazer profano, a ciência, a arte, a moralidade, a vida jurídica e econômica, a política nacional e exterior e se pode concebê-las de maneira religiosa. Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis,  mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar, e por isso aproximar-se de tais coisas com respeito sagrado. O espírito religioso está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também inumeráveis presenças profanas no movimento, mesmo entre seus ‘padres’ e ‘bispos’. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular, é a marca deixada pelo cristianismo. Este é outro ponto sobre o qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo,  diz Tillich. 

A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em transmitir a experiência religiosa às gerações futuras. É para isso que servem as idéias expressivas, as formas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões, e que a partir da força da tradição se opõem ao racionalismo confessional. 

Mas Tillich faz um alerta: apesar de toda aparência de que estamos apresentando novo confessionalismo, com suas verdades e suas formas absolutas que suprimem a comunhão com os fiéis de outras crenças, vamos insistir na necessidade de falar sobre um quarto ponto: a experiência humana universal.  Esta experiência tem seu fundamento nada menos que no próprio cristianismo. Nós podemos ver na cruz de Cristo não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, no sentido de que se absolutiza enquanto confissão. As igrejas cristãs não podem deixar essa consciência tornar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as sangrentas guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis. O cristianismo confere assim seu próprio conteúdo à experiência humana do socialismo. A solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa. Os fatos confirmam isso. Mas o socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade, que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicionado desperta a alma. Este é mais um ponto  sobre o qual o cristianismo e o socialismo devem se colocar de acordo.

Para Tillich, não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como revolução da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros. Nesse sentido, é a teonomia,  que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do sim e do não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão da distância entre o em cima absoluto e o embaixo relativo, que pode levar transcendência ao socialismo. O espírito religioso que existe no socialismo, enquanto vibração de graça e fé que circula nas massas, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, é o cristianismo que pode fecundar a autonomia socialista. Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo e o socialismo, conclui Tillich, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Mas, afinal, que relação existe entre o tempo presente e o espírito profético? Para responder a esta questão é necessário antes que nada entender como Tillich vê o tempo presente. Em seu artigo Kairós, Zur Geisteslage und Geisteswendung, publicado em 1926 como obra coletiva,  Tillich diz que falar da situação espiritual do tempo presente pode significar duas coisas. Pode querer dizer que vamos de uma situação contingente em direção a um ponto de vista superior. O tempo presente seria, então, parte de uma situação mais geral. O momento presente estaria enquadrado no caminhar do processo histórico. E para fazer a leitura desse tempo presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o tempo presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que nos pode levar a escorregar para um julgamento do ser enquanto aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro.

O momento é importante, mas transformar o exame da situação espiritual do tempo presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar elevado e a perspectiva que temos é aparentemente ampla e global, apesar de seu caráter individual e limitado. Tal análise do momento pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos da sociedade e comunidades inteiras. Tillich cita como exemplo o trabalho de Spengler, A decadência do Ocidente, onde o filósofo alemão parte da profunda crise de seu país no primeiro pós-guerra e conclui que a cultura ocidental chegou ao fim. Esta é uma maneira de ver. Ela pode ser qualificada como irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. Mas por que então irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte. Mas se existe um nível mais elevado, mais amplo do que este analisado pelo observador, somos, explica Tillich, levados a falar da situação espiritual do tempo presente, possibilidade que pode ser qualificada de responsável. E é possível chegar a tal patamar de observação?  Caso exista um ponto de vista mais elevado, a partir do qual se posicione um atalaia do tempo presente, como deve ser este mirante? Para Tillich, deve estar numa altura absoluta, inacessível a qualquer comparação. Só o absolutamente inacessível, incomparável, incondicionado, livre das amarras do historicismo, pode ser de fato responsável. Partindo dessa realidade, pode-se dizer que existiram homens que interpretaram a situação espiritual de uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o tempo presente e o espírito profético. Seguindo a trilha aberta por Tillich, que cita a paixão de Troeltsch no combate ao historicismo, e que terá seus estudos sobre profetismo reconhecidos inclusive por estudiosos judeus,  é possível afirmar que o princípio profético traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos. 

Há uma semelhante busca de respostas entre aquele que encarna o espírito profético e a ação consciente do intelectual orgânico. Assim, afirma Gramsci, “se a relação entre intelectuais e povo/nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada por uma adesão orgânica, na qual o sentimento paixão torna-se compreensão e portanto saber, não mecanicamente, mas de forma viva, é somente então que a relação é de representação e que se produz o intercâmbio de elementos individuais entre governados e governantes, entre dirigidos e dirigentes, isto é: que se realiza a vida conjunta que, só ela, é a vida social, cria-se um bloco histórico”.  Por isso, ambos, profeta e intelectual quando representam determinada comunidade têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. Embora o profetismo bíblico não responda às necessidades atuais de análise de situações-limite, mostra que não basta o exame da situação espiritual do tempo presente como totalidade e permanência, ao contrário, mostra que é necessário compreender as exigências colocadas pelo absolutamente inacessível, mostra que é preciso estar livre das amarras do historicismo. Tal compreensão, que faz parte do princípio profético, expressão humana e verbal do incondicionado, é encontrada no profetismo bíblico , que possuía uma concepção unitária do fato e procurava a síntese entre política e ética. Eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do porvir, nada faziam sem invocar a tradição, no entanto, sua mensagem  eram os novos tempos. Os profetas sabiam servir-se do passado para as necessidades do presente. Todos pareciam ter algo em comum: uma atitude realista. Abominavam o palavreado superficial, a eloqüência abstrata. Ao contrário dos falsos profetas, interessavam-se pelo concreto e procuravam não viver envoltos em véus de ilusões. A pregação do futuro não constituía o essencial de seus clamores; era antes, o fruto e o resultado final de conhecimento aprofundado no mundo adjacente, da atualidade e do passado.  

Mas isso não basta. O espírito crítico no tempo presente não pode ser apreendido a partir da leitura dos profetas bíblicos, nem do Novo Testamento, e nem mesmo de Lutero, diz Tillich. Os evangélicos radicais atacavam a doutrina de Lutero a respeito da Escritura, afirmando que a eternidade não falara apenas no passado, tornando-se mudo no presente. Sempre falou aos corações ou nas profundezas de qualquer ser humano preparado para ouvi-lo por meio de sua própria cruz. O Espírito habita nas profundezas do coração, não no nosso, naturalmente, mas no de Deus. Thomas Müntzer, o mais criativo dos evangélicos radicais, acreditava que o Espírito podia sempre falar por meio dos indivíduos. No entanto, para se receber o Espírito era preciso participar da cruz. Lutero, dizia Müntzer, prega um Cristo doce, um Cristo do perdão. Devemos também pregar o Cristo amargo, o Cristo que nos chama a carregar sua cruz. A cruz, considera Tillich, representa a situação limite. É externa e interna. Surpreendentemente, Müntzer expressa esta idéia em termos existenciais modernos. Quando percebemos a finidade humana, desgostamo-nos com a totalidade do mundo. E nos tornamos pobres de espírito. O ser humano é tomado pela ansiedade de sua existência de criatura e descobre que a coragem é impossível. Nesse momento a eternidade se manifesta e ele é transformado. Quando isso acontece, o ser humano pode receber revelações especiais. Pode ter visões pessoais não apenas a respeito de teologia como um todo, mas sobre assuntos de vida diária.  Assim, quando procuramos um lugar que não possa ser abalado, nossa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo da Igreja. 

Para fazer a leitura deste espírito profético no tempo presente, Tillich analisa o século XIX e constata: o espírito profético aflorou em Karl Marx e Friedrich Nietzsche, no signo da luta contra o cristianismo. Em Marx o espírito da profecia hebréia se manifestou através das palavras e da ação e em Nietzsche aflorou o espírito profético de Lutero.  Ambos se levantaram contra o Eterno da sociedade burguesa. 

“A descrição de Marx da sociedade moderna é muito importante – explica Tillich. Se nós, na qualidade de teólogos, falamos de pecado original, por exemplo, sem perceber os problemas da alienação na situação social, não poderemos nos dirigir ao povo em sua situação real no cotidiano. Segundo Marx, a alienação significa a desumanização presente na situação social. Ao falar da humanidade no futuro, fala de verdadeiro humanismo. Aguarda uma situação em que o verdadeiro humanismo não seja fruição de apenas alguns privilegiados; nem é o humanismo a posse de certos bens culturais. Busca o restabelecimento da verdadeira humanidade, capaz de substituir a desumanização da sociedade alienada. O principal nessa idéia de desumanização é que o homem se transformou num dente da engrenagem no processo de produção e do consumo. No processo da produção o trabalhador individual se transformou numa coisa, num instrumento, ou numa mercadoria comprada e vendida no mercado. O indivíduo tem que se vender para sobreviver. Suas descrições supõem que o homem seja essencialmente pessoa e não objeto. O homem é fim e alvo supremo e não mero instrumento. Não é uma mercadoria, mas o telos  interior de tudo que faz. É o significado e o alvo interior. A descrição de Marx da desumanização ou da forma particular de alienação existente na sociedade capitalista contradiz completamente sua herança clássica humanista. Não podia haver reconciliação. Na realidade social existe apenas desumanização e alienação. Vinha daí o poder para a mudança da situação. Quando Marx, em seu Manifesto Comunista, se referia à libertação das massas de suas cadeias, essas cadeias eram os poderes desumanizadores produzidos pelas condições de trabalho da sociedade capitalista. Conseqüentemente, perdia-se o caráter essencial do homem nesse tipo de sociedade. O homem deformava-se nos dois lados do conflito pelas condições da existência. Só voltaremos a saber o que o homem realmente é quando essas condições forem superadas. A teologia cristã afirma que podemos saber o que é essencialmente o homem, porque o homem essencial já apareceu nas condições da existência no Cristo. A alienação não se refere apenas às relações humanas, caracterizadas pela separação entre as classes, mas também à relação do homem com a natureza. Retira-se do homem o eros. A natureza passa a ser apenas matéria de onde se fazem instrumentos, para a manufatura dos bens de consumo. A natureza deixa de ser um sujeito com o qual nós, também sujeitos, podemos nos unir em termos de eros, daquele amor que vê na natureza o poder interior do ser, o fundamento do ser criativamente ativo por meio da natureza. Na sociedade industrial transformamos a natureza na matéria de onde fazemos as coisas para comprar e vender”.   

Marx levantou a bandeira da justiça e Nietzsche da vida criativa. A influência de Marx se fará sentir na filosofia da história, no combate contra o ethos burguês, contra o capitalismo e contra o imperialismo, e também na idéia da cultura comunitária e na tensão apaixonada pelo futuro. Já Nietzsche, por outro lado, influenciou a filosofia da vida, a literatura, a arte expressionista, os movimentos de juventude, a luta contra as convenções burguesas e a valorização da disciplina aristocrática. 

Não podemos, porém, falar de filosofia da história sem nos remetermos a um pensador alemão que influenciou Tillich: Ernst Troeltsch. Atualmente, os trabalhos dele e a influência que exerceu sobre o pensamento tillichiano são objetos de pesquisa. E ganharam importância a partir do final do século XX, relevância que aumenta na proporção das perguntas referentes ao lugar da religião na sociedade e da discussão sobre a necessidade crescente do diálogo inter-religioso no mundo. Tal preocupação levou especialistas a fazerem comparações sistemáticas das obras dos dois autores, a fim de discernir as diferenças e a complementaridade delas. Tillich nos remete a Troeltsch, porque esse filósofo da religião abriu caminho para uma filosofia social e uma filosofia da história, que posteriormente foram utilizadas por Tillich na construção de sua teologia da cultura, que caracterizo como teologia da existência. Assim, podemos dizer que a filosofia da religião está no centro das preocupações de Troeltsch e Tillich. O que nos abre um campo de pesquisa sobre o papel da religião na modernidade e nesta alta-modernidade, onde a questão epistemológica da relação entre ciências empíricas e ciências normativas da religião continua na ordem do dia. A pesquisa de Troeltsch cobriu os domínios da psicologia empírica da religião, mas também procurou formular uma teoria da religiosidade enquanto a priori, numa clara tentativa de ir além do proposto pelo positivismo.  Tillich, por sua vez, aprofundará a questão epistemológica e da relação entre ciências empíricas e ciências normativas, apresentando sua concepção de teonomia, onde a religião é concebida como substância da cultura. Em relação à teologia, os dois procuram responder ao desafio de elaborar uma interpretação da fé cristã que respondesse à situação presente. Troeltsch situou seu questionamento no estudo da modernidade, e Tillich partiu da I Guerra Mundial, momento que para ele marcou o fim da moderna burguesia, o que colocava diante de todos nós a possibilidade de um tempo novo, um kairós. Os dois, contudo, partem das mesmas convicções no que se refere à critica ao supranaturalismo enquanto método de interpretação da revelação e da fé. Assim, Troeltsch caminhou em direção à perspectiva histórica, enquanto Tillich abriu uma nova perspectiva no contexto do diálogo religioso. Essa influência de Troeltsch está presente nos escritos socialistas de Tillich, tanto na escolha de termos, como no fato de que parte do conceito troeltschiano de “síntese criativa” ao falar da relação entre cristianismo e socialismo. Esse conceito Troeltsch tomou emprestado de Wilhelm Wundt, a fim de superar a contradição "relativismo-absolutismo" presente na filosofia da história. 

“A síntese criativa, sempre nova, confere ao Absoluto a forma possível ao momento e carrega, portanto, nela o sentimento de não ser mais que uma simples aproximação dos valores verdadeiros e últimos”. 

Mas um terceiro elemento intervém: a tendência dialética da teologia protestante, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos. Crítica do movimento socialista, ainda em seus primórdios, e crítica da tentativa de limitar a profecia a um ponto de vista particular.  Submetido a este tribunal, o espírito do tempo presente ganhou em pureza e profundidade. E esta negação do tempo a partir da eternidade teve uma conseqüência fatal. Recusou-se a ser um simples ponto de vista. Considerou que tudo depende, então, do grau de proximidade existente entre uma profecia e o que acontece no mais íntimo de uma época.  Tudo depende do grau de concretude e do tipo de força em seu interior disposto a anunciar o sentido do tempo presente.

“O Deus do tempo é o Deus da história. Isso significa em primeiro lugar, que é o Deus que atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela e por intermédio dela. Essa meta designa-se de várias maneiras: bem-aventurança universal, vitória sobre os poderes demoníacos representados pelas nações imperialistas, chegada do Reino de Deus na história e, mais além da história, transformação da forma do mundo, etc. Os símbolos são muitos – alguns mais imanentes, como no profetismo antigo e no moderno protestantismo, outros mais transcendentes, como nas doutrinas apocalípticas posteriores e no cristianismo tradicional --, mas em todos os casos o tempo dirige, cria algo novo, uma “nova criatura”, como chama Paulo. O trágico círculo do espaço foi superado. A história tem um princípio e um fim definidos. No profetismo, a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais, as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, o sofrimento da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo. Em sua tentativa de criar uma consciência humana indivisa, as missões têm um caráter universal. O tempo alcança plenitude na história e a história a alcança no reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço. O monoteísmo profético é o monoteísmo da justiça. Os deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder de um dos grupos não pode fazer justiça ao outro. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro da nação e para as próprias nações. O politeísmo, a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula o universalismo implícito na idéia de justiça. Este é o único significado do monoteísmo profético. Deus é um porque a justiça é uma. A ameaça profética que pende sobre o povo eleito, de ser rechaçado por Deus, por causa da injustiça, é a verdadeira vitória sobre os deuses do espaço. A interpretação da história que nos dá o dêutero-Isaías, segundo o qual Deus chama os demais povos para castigar o povo por Ele escolhido, devido à sua injustiça, confere a Deus um caráter universal. A tragédia e a injustiça são próprias dos deuses do espaço; a realização histórica e a justiça o são de Deus que atua no tempo, e por seu intermédio, unindo no amor o vasto espaço de seu universo”.  

Quando analisamos o espírito profético a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, diferentemente da profecia clássica dos hebreus. Ele profere um não ao tempo presente. Um não abstrato, amplo, já que não critica o tempo presente em concreto, de forma particular, pelo simples fato de não aceitar os símbolos das forças demoníacas de nosso tempo, como o fizeram os antigos profetas, o cristianismo primitivo, Lutero, Marx e Nietzsche.  Ao renunciar a um não concreto à situação presente, apresenta um sim a esta situação. O não abstrato torna profanas todas as oposições e as rebaixa de tal modo que deixam de ter importância última. E por isso a santa paixão profética perde sua razão de ser. 

O individualismo religioso e o criticismo na filosofia são, quando consideramos a situação do tempo presente, movimentos reacionários.  E é terrível ver que, muitas vezes, ambos estão sob a proteção de um falso profetismo, cuja essência e mensagem consistem em congregar tudo sob o mesmo não. Assim, o combate profético concreto perde forças e fica amarrado diante das forças demoníacas da época. Ao contrário, agrega Tillich, o espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. Sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Mas não deverá, por temer o não, perder a audácia do não e do sim concretos. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito de profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos.  Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a revolução do eterno no tempo. Kairós não é um qualquer momento pleno, uma parte ou outra do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável, de uma responsabilidade inelutável, é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Diante dessa responsabilidade inelutável existem, para Tillich, três posições distintas, que se definem na sua compreensão do tempo presente. Vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações. 

A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano. A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, não é ele quem se revela em todos os sim e não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido supratemporal do kairós. Noutro extremo, a concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicionados, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos.  É o verdadeiro adversário do espírito profético.

Mas ao contrário de negar o conservadorismo e o progressismo, Tillich mostra que reação e progresso estão entrelaçados na consciência do kairós. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho. E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem espírito profético. Isto é exato na medida em que cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. Eis porque o espírito da utopia está presente em todo agir incondicionalmente decidido, em todo agir orientado à transformação do presente. Para Tillich, a utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós, explica Tillich, nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista perde força, mas não a sua ação.  Toda transformação, metodologicamente, exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este kairós e a utopia. Tal desafio, para Tillich, não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, o movimento da massa dinâmica.

Para Tillich, o período que se abre com o final da Segunda Guerra Mundial, em vez de se caracterizar por um kairós criativo, surgiu como vazio, que só poderia ser transformado se a humanidade rejeitasse as soluções prematuras e não se afundasse na esperança nula do sagrado. Em junho de 1949, Tillich afirmou não duvidar de que as concepções básicas do socialismo religioso fossem válidas, pois apontavam para o modo político e cultural de vida pela qual a Europa poderia ser reconstruída. Mas não estava seguro de que a adoção dos princípios do socialismo religioso fosse de fato uma possibilidade num futuro próximo.  Sua frustração se devia, em grande parte, à ruptura entre Leste e Oeste, e à divisão da Alemanha, fenômeno particular da divisão do mundo em dois blocos. Assim, em conferência realizada em Nottinghan, Inglaterra, em 1953, Tillich disse que a diminuição das soberanias nacionais, o surgimento de grupos de poder abrangentes e a divisão do mundo em dois blocos de poder político abrangentes colocavam a questão da possibilidade ou não de uma humanidade unida.  Tillich naquele momento acreditava na possibilidade de que um dos blocos de poder pudesse se desenvolver na direção de um centro mundial, embora isso não representasse o reino da eternidade, “pois a desintegração e a revolução não estão excluídas”.  Tal compreensão da realidade mundial levou-o não a abandonar suas preocupações políticas, mas a se debruçar sobre projetos que tiveram início ainda na sua fase alemã, como o de uma nova leitura da sistemática cristã e suas reflexões sobre a cultura. Mas a maioria de seus companheiros, que esperavam a realização do socialismo religioso, com o crescente desprezo pelas liberdades civis e aos direitos humanos, assim como a descoberta da existência de gulags nos países comunistas, se desiludiu. O movimento marxista, segundo Tillich, não foi capaz de se criticar por causa da estrutura em que caiu, transformando-se no que passou a ser chamado de stalinismo. Dessa maneira, todas as coisas em favor das quais os grupos originais tanto lutaram acabaram sendo reprimidas e esquecidas. 

Porém, é importante lembrar que a oposição entre o marxismo e a fé crista não está no método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos, que para Marx determinam a história. Já na visão cristã é a combinação dos fatores intra e supra-históricos que define a história. A ausência do elemento transistórico no marxismo, não somente o colocou em oposição ao cristianismo, mas levou o stalinismo a caminhar numa direção contrária a do próprio marxismo. Assim, o fator decisivo não é o contraste intelectual entre cristianismo e marxismo, mas o contraste na prática. O marxismo percebe a condição humana, incluindo a historia humana, como completamente circunscrita ao tempo. Propõe, então, trabalhar com a organização da sociedade dentro do tempo e, quanto mais está convencido da verdade de sua própria concepção, mais tenta realizá-la em todos os sentidos, a ponto de desconsiderar a dignidade humana. Espera uma reconciliação entre o espaço e o tempo, o que o leva a uma visão utópica, e ao desapontamento que segue toda utopia e, em última instância, ao terror. Já o cristianismo vê a condição humana, incluindo a história humana, a partir de uma posição entre tempo e eternidade. Percebe a infinita dignidade da pessoa, que decorre de sua relação com a eternidade, e percebe também o limite de tudo que é humano, no espaço e no tempo, submisso às condições de finitude e culpa. Por isso, coloca a questão concernente à reconciliação na qual o temporal é elevado ao que é eterno. E o eterno se torna efetivo no reino do tempo. A escolha entre essas duas possibilidades de vida não é nem econômica, nem política, é religiosa. 

O fortalecimento do stalinismo fez com que Tillich, que não se considerava um utópico, constatasse que o amanhecer de uma nova era criativa se distanciava da humanidade.  E alertou para o perigo, a partir da experiência stalinista, de o socialismo transformar-se em totalitarismo, já que não aceitava a pluralidade de partidos políticos e as liberdades civis, que ele e os socialistas religiosos defendiam. Mas é interessante ver que descartava qualquer possibilidade de hegemonia permanente, quer por parte do bloco soviético, quer por parte do bloco ocidental:

“Novos centros de poder podem aparecer, primeiro secretamente, e depois, então, abertamente, levando para a separação de ou para a transformação radical do todo. (...) O poder inicia a luta novamente e o período determinado do império mundial será tão limitado quanto o foi o período augustiniano de paz”.  

E disse que um mundo sem as dinâmicas do poder, sem a tragédia da vida e da história não é o reino de Deus, nem a finalidade do ser humano, pois o fim está limitado à eternidade e nenhuma imaginação pode atingir o eterno. Mas as antecipações fragmentárias são possíveis.  Assim, falar de socialismo religioso significa entender que ele se traduz na defesa do sentido último do significado profundo das raízes do ser humano e, no mundo contemporâneo, que ele, diante do trovejar dos canhões e da ameaça à vida, levanta-se como voz profética de um mundo novo.

Segundo Higuet, em Tillich, a espera/esperança exorta a luta política a caminhar na direção do futuro prometido. A ação humana deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. Nas Escrituras, o objetivo central da espera é a realização do reino eterno e sua justiça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade de todo ser humano como pessoa, e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. “O ‘espírito da utopia’, que se identifica com o espírito profético, reanima a esperança, que está no coração de toda espera responsável. Assim deve ser também a espera política”.  Talvez por isso, Albrecht e Schussler finalizaram a biografia de Tillich, lembrando suas palavras sobre os quatro primeiros versículos do salmo 90: 

“Na noite de 20 de agosto de 1915, meu aniversário de nascimento, fui despertado duas vezes pelos tiros de canhão que me lembravam que eu comemorava um aniversário de guerra. À partir daquele ano, o salmo 90 

[Senhor tu tens sido o nosso refúgio. Antes de formares os montes e de começardes a criar a terra e o universo, Tu és eternamente. Tu dizes aos seres humanos que voltem a ser o que eram antes. Diante de Ti mil anos são como um dia, como o dia de ontem que já passou, são como uma hora noturna que passa depressa.]

tornou-se uma verdade para mim e ele jamais deixou de soar em meu coração a cada aniversário e a cada entrada de ano (São Silvestre) e, ainda hoje, ele é mais poderoso do que todos os tiros de canhão”. 

Tillich nos apresenta roteiros teóricos que possibilitam pensar a questão socialista no Partido dos Trabalhadores, assim como sua corrupção e decadência,  a partir de uma leitura teológica. Com a finalidade de orientar este estudo levantamos pontos que apontam nessa direção:

Condições especiais levam a massa proletária e a individualidade pessoal a formarem uma síntese chamada massa orgânica, que tende ao ideal da teonomia. Mas essa massa orgânica nem sempre caminha em direção ao ideal da teonomia. Quando porém o tempo histórico orienta nessa direção temos a massa dinâmica. Esta é revolucionária, não só no sentido político do termo, mas em um sentido de fé espiritual e social. É necessário que a massa dinâmica seja revolucionária, porque o sentido de seu movimento é precisamente ir além do estado de massa.

O conflito interno do socialismo tem como ponto de partida a própria situação proletária. O conflito da situação proletária vem do fato de que o proletariado tem que se apoiar no princípio burguês e ao mesmo tempo deve se opor a esse princípio. Ou seja, o conflito tem por base o fato de que o proletariado deve ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição é inevitável, pois a existência proletária é a expressão conseqüente do princípio burguês: a objetivação, a reificação e a ruptura com sua própria origem estão presentes em sua existência. Então, o proletariado não pode reagir ao pensamento burguês com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos, isto é, há necessidade de usar meios políticos. 

A situação proletária mostra que a situação da existência humana está em contradição com o destino do ser humano. É por isso que o princípio protestante tem função especial na compreensão da situação humana quando se olha a partir da situação proletária, pois esta se apresenta como cisão demoníaca ou alienação. Estes elementos estão imbricados à situação de classe e à consciência de luta pelo socialismo, mas também têm uma significação universal. Eles não são atributos de uma classe, mas fazem parte do conteúdo humano e estão presentes na história. O proletariado descobriu que esses elementos o ligam aos outros grupos humanos. Nele, os elementos originais do ser humano são realidade presente que o leva à uma luta a favor de si mesmo, a uma recusa do princípio burguês. 

Quando analisada a partir do princípio protestante, a situação proletária mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E o socialismo, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não tem correspondência nem com a mensagem bíblica, nem com a teologia protestante. Tillich diz que “o protestantismo está livre para o materialismo proletário”. De sua parte, o princípio protestante diz ao socialismo que a miséria humana não é somente uma miséria socioeconômica, mas também humana.

A oposição entre o marxismo e a fé crista, não está no método dialético, e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos. Na visão cristã é a combinação dos fatores intra e supra-históricos que define a história. A ausência desse elemento transistórico no marxismo, tende a levar as correntes socialistas a caminharem numa direção contrária a do próprio marxismo. Assim, o fator decisivo não é o contraste intelectual entre cristianismo e marxismo, mas o contraste na prática.

A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos e que é por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. E o progresso mitigado é o resultado dessa utopia revolucionária desencantada. A realização da espera socialista não é um conceito meramente empírico. A utopia é impotente para enfrentar os poderes da sociedade, por isso se não se pergunta a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização. 

Há um choque entre  a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente e o kairós, que se traduz enquanto espírito profético da responsabilidade inelutável. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, que irrompe no instante concreto, no sentido profético, enquanto plenitude do tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo da destinação. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. 

Toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, o movimento da massa dinâmica.

A esperança exorta a luta política a caminhar na direção do futuro prometido. A ação humana deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade de todo ser humano como pessoa e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça.

Assim, Tillich possibilita uma releitura do socialismo e das lutas dos trabalhadores, mas não podemos esquecer a produção posterior, latino-americana, construída nas últimas décadas. Nos parece fundamental esta leitura latino-americana e a faremos a partir de Enrique Dussel, que através dos conceitos de alteridade e analética, e da compreensão da religião como infraestrutura e superestrutura nos possibilitam uma crítica e enriquecimento da teologia tillichiana do socialismo.

O que nos remete ao caminhar. A comunidade, enquanto comuna, não deve ser obstáculo para o caminhar na religiosidade que se opõe ao arbitrio e à opressão. Ao contrário, compreendido o conceito de comunidade, de estar junto para repartir a vida, tal comuna não deve desenvolver reflexo xenófobo, mas abertura para o humano. Seu significado não é excluir a fraternidade, mas estendê-la da comuna em direção a todos os humanos. O objetivo é difícil, mas não há esperança se não perseveramos em direção ao sucesso.

Aprender a liberdade é o primeiro momento dessa construção, comemorada enquanto caminhar em esperança. Caminhamos em direção ao outro e para cima. O caminhar associado a revolução permanente do espírito deve levar a uma transcendência que voa acima das formalizações. É um caminhar fundamentado na fraternidade humana, universal. Donde, história e futuro podem fazer sentido na existência do humano, enquanto elo da cadeia da vida. 

Nesse caminhar descobrimos que a eternidade apesar de incognoscível, se faz presente em todos seus planos da existência. Podemos nomear esta eternidade como aquilo/aquele que não tem fim, espírito absoluto, essência por si. Mas o que temos de concreto é a existência que se faz enquanto complementaridade dos opostos. Assim, a vida é um ponto em suspensão. 

Devemos ser, todos nós humanos, aqueles que esperam pelo mundo do espírito. E o caminhar na liberdade do espirito nos leva à fraternidade, que é chave para a integridade da comuna. Pois, ser fraterno é reconhecer que o outro também está sendo construído para a liberdade do espírito. É com ele caminhar em direção ao sentido pleno da vida. 

A fraternidade dá dignidade ao caminhar. Semeia as sementes da revolução contra a injustiça e a opressão, inclusive religiosa. Reconhece o fato de que o sofrimento é um desequilíbrio do mundo. Mas, a liberdade do espírito nos dá consciência de que a fraternidade não pode ser rebaixada a concepções que degradam a dignidade do humano. Ou seja, ser fraterno não é ato de fé, não é destino, é construção do espírito e da liberdade com todos e todas.


Capítulo Dois
DUSSEL E A RELIGIÃO INFRAESTRUTURAL


Enrique Dussel, cuja teologia parte da exploração da América Latina, considerada continente de terceira classe pelo primeiro mundo, nos dá elementos para uma análise da luta dos excluídos e do socialismo a partir do conceito de Outro. Essa leitura teológica do Mesmo -- aquele que se fecha em si, torna-se auto-suficiente, etnocêntrico e não aceita o Outro, a alteridade --, contextualiza e traz para o momento presente a antropologia política de Paul Tillich, elaborada entre duas grandes guerras do século XX na Europa. Ao fazer a crítica da ontologia da totalidade, onde não há espaço para o Outro, pois é não-ser e negatividade, Dussel propõe uma ética da vida que nos remete a Tillich.

E da mesma maneira, a teologia de Dussel, que procurou responder ao desafio de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações excluídas na América Latina, nos fornece elementos para compreender o papel e a importância do cristianismo na construção do pensamento socialista. E porque trabalhamos a partir desta perspectiva fomos buscar em Paul Tillich os fundamentos teóricos para nossa abordagem e a partir de Enrique Dussel, em permanente diálogo com a filosofia da práxis libertadora e as reflexões da alta-modernidade, uma leitura mais contemporânea da realidade latino-americana e seus desafios, iluminando questões teóricas e possibilitando a compreensão de acontecimentos até então mal observados e mal compreendidos.

Para Dussel, a ontologia, a partir do Iluminismo, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. Essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista. O olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização das vidas nas Américas. A América Latina, afirma Dussel, foi e é marcada pela exploração. Desde a colonização seus habitantes, nativos ou não, foram desrespeitados como povos e culturas. Tal situação tem justificação teórica: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior. Donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. Nada acrescenta ou diminuiu à totalidade. Este mal é transmitido de geração em geração. A prática histórica ganha característica de lei. Por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Para Dussel, a legalidade não pode ser o fundamento da moralidade.  Toda prática justa deve ir além do pré-estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. A origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, opressora e dominadora. Ou como afirmaram teólogos reunidos em Dar-er-Salam, em 1976, citados por Dussel, o método interdisciplinar na teologia tem que levar em conta a inter-relação dialética entre as teologias e a análise social, política e psicológica. Quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do espírito da eternidade em nosso mundo e história é contínua, é importante ter em mente o mistério complexo de maldade que se manifesta no pecado do ser humano nas estruturas socioeconômicas. As desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana, e por isso exigem fazer do Evangelho “um bem novo para o pobre”.  

Em América Latina Dependência e Libertação, Dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. Somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro.  Dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o eu colonizo, o eu conquisto precedem o ego cogito, afirma Dussel. A exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma filosofia da justificação e do ocultamento, uma falsa consciência da realidade. A práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é livre, violento e imperial. O pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade. O que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. Esta superioridade impôs o desenvolvimento monolinear, proposto pela modernidade e agora pela globalização, aos povos “primitivos e grosseiros”. 

“A palavra desenvolvimentismo indica uma categoria filosófica fundamental, uma posição ontológica pela qual se pensa que o desenvolvimento europeu deverá ser seguido com as mesmas características por qualquer outra cultura. É o movimento necessário, para Hegel, o seu desenvolvimento inevitável. Eurocentrismo e falácia desenvolvimentista são dois aspectos do Mesmo”.   

Podemos dizer que em Tillich, enquanto herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. Esta correlação, que em Tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Dussel também faz este trânsito, quando constrói uma dialética que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis. Assim, Dussel busca uma ontologia que será refundada no sentido da metodologia e da lógica. Essa correlação com a exterioridade vai caracterizar a mobilidade da teologia dusseliana da libertação que, por isso, será uma teologia da práxis. Desenvolve, pois, o estudo da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. Dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho inverso ao de Tillich, mas chegando a um cruzamento comum: a ética. A leitura teológica de Tillich sobre política e socialismo rompe as bases preconceituosas sobre tal debate e possibilita abordar o assunto, a partir da correlação, sem estigmatizar grupos e movimentos. Logicamente, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem teológica de Paul Tillich o olhar latino-americano que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã, institucional e invisível, na sociedade brasileira. Por isso consideramos oportuno utilizar os dois pensadores, não apenas como complementares, mas enquanto referenciais que nos permitem analisar a articulação das categorias que possibilitam compreender os diversos momentos de elaboração do pensamento socialista.

Enrique Dussel lido a partir de duas abordagens construídas por ele próprio -- o Outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a religião enquanto infraestrutura que denuncia o poder excludente – nos ajudam a aterrissar Tillich na realidade latino-americana.
  
A fé é um ato da inteligência, é um modo de ver, mas Dussel sabe que pára em algo que não pode transcender e pára ali sabendo que há algo mais. Quem é ou o que é que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê? Em primeiro lugar, a esperança de que o Outro se revelará, concretamente -- a fraternidade do Outro como Outro. A fraternidade é o que vai além da visão do rosto,  porque a chama do arbusto não é mais que um sinal de presença, como rosto do Outro. Todos os dias vemos rostos de pessoas, mas o rosto que vemos não significa abrimo-nos a ele como a um mistério incompreensível da liberdade. Vemos cada um dos que nos rodeiam cotidianamente e também os grupos sociais que estão entre nós, mas o que vemos não é o Outro como livre e mistério. Assim, para Dussel teologia significa um pensar sobre a eternidade, mas um eterno que se revela na história, que se revela através do Outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Crer na revelação do eterno é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através do Outro. Tal compreensão da teologia permite a Dussel analisar como cristianismo e socialismo se relacionaram na história recente. A relação cristianismo-socialismo, afirma Dussel, começou a ser colocada nos grupos estudantis cristãos, a partir de 1959, com a revolução cubana. E, jovens de formação cristã, aceitaram a estratégia revolucionária dos focos, proposta por Che Guevara. Exemplos disso foram a militância do padre Camilo Torres, morto em 15 de fevereiro de 1966, e a guerrilha de Teoponte, de Nestor Paz Samora, em 1970, na Bolívia. Mas, com o fracasso da teoria dos focos, a Unidade Popular chilena apresentou-se como um novo modelo de transição democrática ao socialismo.   

Porém, para que a teologia direcione é necessário descobrir o sentido do presente histórico. E esse desvelar o sentido do presente histórico chama-se profecia, que etimologicamente, em grego, significa falar diante. É interessante ver que o pensamento socialista, antes da consolidação do stalinismo na União Soviética, não separava de forma sectaria revolução socialista e religião, conforme expõe Lunarcharski: 

“Nenhuma revolução ou reforma profunda se leva a cabo em uma sociedade religiosa sem que sejam revolucionarias também no campo das relações com Deus. O profeta, portanto, tem o dever de falar em nome de Deus”.  

Mas falar diante de quem? Diante do povo, diante da assembléia de cidadãos. Profecia é isso: fala ao povo da fé cristã real, cotidiana, fala do sentido dos acontecimentos presentes.  Assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, Dussel propõe a organização do discurso a partir da liberdade do outro.  Por isso, para ele, o discurso deve partir da analética: aqui o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e grita por justiça.

Ora, a ação política é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que “é preciso interpelar, consultar, manipular, manobrar e contramanobrar e não falar a espectadores passivos”.  Olhando a política sob a ótica teológica, Dussel dirá que a fé, a esperança e a fraternidade são atitudes reais antropológicas bem cotidianas, e que este amor não é um amor em geral, mas um amor de justiça, porque consiste em amar o outro como outro. Essa ética será para Dussel a base metodológica de sua práxis da libertação. Esta compreensão mostra a importância da teologia no debate sobre socialismo e religião. A inclusão da teologia na análise crítica da construção do pensamento socialista, amplia o horizonte de compreensão dos estudos sobre política, cristianismo e socialismo. E é esta reflexão dusseliana, que nos fornece um instrumental original de análise da política, filosoficamente rico. 

A analética é uma contribuição de Dussel à questão metodológica e à sua meta-ontologia, com a concepção de exterioridade além do ser e do mundo, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. Enrique Dussel afirma que o método dialético só chega até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro anulando-o em sua alteridade. Porém, além da identidade divina do saber e do fim da história hegeliana e além da dialética ontológica de Heidegger existe um momento antropológico distinto, que afirma uma nova maneira de filosofar, assim como as condições que tornam possível uma ética antropológica e uma metafísica que abre o caminho da história. Para Dussel, analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. Entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro. Como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença, o princípio não é o de identidade, mas de distinção. O momento analético do método dialético metafísico segue uma seqüência: a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. Escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pessoa que fala; por não poder interpretá-la adequadamente. É lançar-se à práxis do oprimido. 

Do século XVI ao século XX a América Latina foi um continente ontologicamente oprimido por uma “vontade de poder” exercida na totalidade mundial pela Europa. “Vontade de poder” é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade. A América Latina teve então como ideal ser européia. Enquanto nossa filosofia pensava o que pensava à européia tudo andava bem, e esse foi o ideal. “Aqui temos coros, diziam os jesuítas das reduções de Santa Fé, como em Viena”. Com isto mostravam qual era o padrão: Viena. O coro daqui era bom porque imitava “o mesmo”, Europa. Não se disse: “Aqui há coros guaranis”. Isto seria como não dizer nada: os europeus não teriam nenhum ponto de referência. 

Na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do oprimido e a mediação da práxis. Esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. Sem o momento analético o método é científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático, o que implica em cientificismo. O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora.  Só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema. Como conseqüência, a analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de um sexo, de uma família, de uma classe social, de uma geração, de um tempo e da espécie humana.  Dessa maneira, segundo Dussel, a questão pedagógica não é tratada por Heidegger porque pensa que o “ser-no-mundo” procede unicamente do ser humano. Mas se esquece que quem vai dando sentido ao meu mundo é o outro. É no processo pedagógico, desde a mãe, a escola ou a cultura que se organiza o meu mundo. Quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo. Desde Colombo nos vemos distintos, mas só hoje nos descobrimos oprimidos desde Colombo.  Por que? Porque antes que Colombo pisasse a terra já começou a opressão. Colombo viu a terra e como se salvara, lhe colocou o nome de ilha de San Salvador, sem perguntar ao índio se ela se chamava Guahananí. Dessa maneira antes que pisasse a terra julgou o destino da parte colonial da história latino-americana. A América foi oprimida cultural, política, econômica e religiosamente. 

A analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. Se não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação ser humano/ser humano -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica ante o sistema. O momento chave do método analético é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. Isso implica em derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia cultural, para expor-se a favor dos renegados pelo sistema. Ou como afirma Dussel:

“A crítica analética não nega a dialética, mas a supera na utopia positiva da exterioridade dos povos periféricos, da mulher popular, da mocidade oprimida... (donde) afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é realizar o novo. O que surge da liberdade incondicionada do outro”. 

No final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, Dussel e Juan Carlos Scannone buscaram essa expansão que chamaram analética. A expressão, segundo Mance, foi cunhada por B. Lakebrink  e traduzia uma releitura da analogia tomista. Mas foi Juan Carlos Scannone o primeiro a utilizar o conceito opondo totalidade e alteridade, ao dizer: "tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, eu o chamo analético".  Assim, Dussel e Scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista. O que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alternativo além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, deixando de ser tal para destacar-se como fundado.  Mais tarde, Dussel dirá que seu método parte de Emmanuel Lévinas (1906-1995). Este afirmava que a relação com o outro consiste em querer compreendê-lo, mas a relação de alteridade excede esta compreensão. Significa que o outro não é primeiramente objeto de compreensão e depois interlocutor. Mas que o ser humano é ente, enquanto próximo que é acessível, enquanto rosto. Para ele, nenhuma teologia, nenhuma mística, consegue se dissimular por detrás da análise do encontro com o outro. O objeto do encontro é dado a nós e em sociedade conosco. Por isso, a religião deve anunciar a relação com seres humanos, pois é nos rostos humanos que alcança o infinito. Donde, religião não consiste em conceber o humano, nem em estabelecer pertença, mas em encontrar o lugar onde o ser humano cessa de se oferecer aos nossos poderes, por isso, religião é a relação com o ente enquanto ente.  Mas, embora parta de Lévinas, o pano de fundo do pensamento dusseliano é a realidade latino-americana, que, a princípio, foi formulado como método de uma ética da libertação, mas, depois, ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, para ele, o método apropriado a uma teologia latino-americana de libertação.

Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como em grego aná significa mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente.  Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos irrompe enquanto interpelante, indo mais além da compreensão, ele é análogo. Este último vai de um horizonte a outro até chegar no primeiro, de onde esclarece o seu pensar: dialético é um a-través-de. Em troca, analético quer significar que o lógos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o Outro como oprimido o ponto de partida. O método analético surge desde o Outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do Outro. Este método tem em conta a palavra do Outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé na palavra histórica e de todos esses passos, esperando o dia em que possa viver com o Outro e pensar sua palavra. O método analético é método de libertação. 

De acordo com Dussel, os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por Lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por Heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. Mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico dominador são os movimentos de libertação do Terceiro Mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi oprimido. Para este, que está mais além, a dialética não basta. É necessário o método analético, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte.  Lévinas afirmava que essa relação com o outro tem como fundamento desejar entendê-lo, o que faz dele ente, enquanto próximo que é acessível. Por isso, as teologias não conseguem se esconder por detrás do encontro, e as religiões são levadas a anunciar a necessidade da relação com o próximo, pois é nos rostos que elas alcançam o infinito. Ou seja, a religião não dá luz ao humano, mas procura aquele espaço onde ele não esteja submisso aos poderes.  Embora parta de Lévinas, Dussel considera que, para o filósofo letão, o outro é um próximo abstrato, passivo, que ficou no meio do caminho. Nesse sentido, Lévinas teria uma pedagogia, mas carecia de uma política, pois nunca imaginou que o próximo pudesse ser um índio, um africano ou um asiático. Como conseqüência, Dussel dirá que se deve ir além de Lévinas e, logicamente, além de Hegel e Heidegger, por serem estes ontólogos, e mais além que Lévinas, por este permanecer numa metafísica da passividade e numa alteridade incompleta.  

A analética é também práxis que responde à palavra interpelante do outro. A analética considera o rosto sensível do outro antropológico bem expressa na palavra hebraica basar, carne, porque indica o ser do humano unitário, inteligível e sensível, sem cair no dualismo corpo e alma, e porque exige o colocar-se faticamente a serviço do outro com um trabalho criador. O rosto da alteridade é sempre um análogo. É o gesto significante. Assim, para Dussel, a significação antropológica, econômica, política e latino-americana do rosto é nossa tarefa e nossa originalidade.  Esta práxis atravessa todas as esferas do cotidiano. Por isso, a analética antropológica implica em servir ao outro, que nunca é um só. Cada rosto, no face-a-face, é família, comunidade, classe, época da humanidade e humanidade como um todo e como outro absoluto.  Assim a palavra do outro me interpela a uma práxis histórica maior do que apenas uma relação intersubjetiva com quem interpela. Mas, em última instância, em que consiste o método analético? O método analético parte da palavra do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade. A palavra do outro, exterior à totalidade, só é interpretável analeticamente. O eu interpreta a palavra do outro a partir da totalidade de sua própria experiência. Entretanto, essa palavra do outro transcende o fundamento do eu. É palavra histórica que o eu não pode interpretar adequadamente, porque seu fundamento não é razão suficiente para explicar um conteúdo que, provindo do outro, escapa à história do eu, pois é história do outro. Daí decorre que na busca da interpretação da palavra do outro, o eu deve ascender até o âmbito do outro, tendo que crer no que lhe é dito. Porém, é na história que essa palavra vai se verificando. Somente o fato de crer numa palavra que não pode ser interpretada totalmente e o compromisso que é depositado nela pela fé é o que possibilita verificá-la a posteriori. Tal verificação a posteriori difere do que ocorre no método ontológico, que remete aquilo que se pensa ao seu fundamento a priori para conhecê-lo. 

O método analético passa da totalidade ao outro para servi-lo faticamente. Esta passagem ao outro, que trará uma nova fundamentação de si mesma, é dialética. Esta dialética é verdadeira, tem um ponto de apoio analético: é um movimento anadialético. A falsa dialética não se apóia na analética. O método da falsa dialética é o caminho realizado pela totalidade sobre si mesma que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes: é a expansão dominadora da totalidade desde si como transição da potência ao ato de "o mesmo". O método analético, entretanto, parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade, parte de sua palavra, desde a revelação do outro. O método analético é a passagem ao justo crescimento da totalidade desde o outro e para servir ao outro criativamente. Dessa maneira, a verdadeira dialética tem um ponto de apoio analético, é um movimento anadialético, enquanto a falsa, a dominadora é simplesmente um movimento conquistador: dialético.  O método analético parte, assim, dialética e ontologicamente, da cotidianidade para o fundamento: demonstra cientificamente os entes como possibilidades existenciais, numa relação fundante do ontológico sobre o ôntico, faz a passagem analética da totalidade ontológica ao outro enquanto outro, revela o outro que cria um novo âmbito fundamental ontológico aberto ao ético. E no nível ôntico é julgado a partir do fundamento ético em função de uma práxis analética como serviço ao outro.  

Essas reflexões de Dussel sobre alteridade e analética levaram a que, em 1977, publicasse no México sua Filosofia de la Liberación. Ao ser traduzida para o português,  tornou-se uma das principais obras de referência dos socialistas religiosos na América Latina. 

Há um texto que Dussel elaborou a partir de um ciclo de conferências que pronunciou na Universidade de Dubrovnik, na antiga Iugoslávia, em abril de 1977, que analisa a religião como infraestrutura e como superestrutura. O ciclo de palestras recebeu o título de “O futuro da religião, fim ou renascimento?” e nele Dussel debateu com pensadores como Jürgen Habermas, Jürgen Moltmann, Johannes B. Metz, Rubem Alves, Gregory Baum, Johan Galtung, Trutz Rendtorff e outros. Embora Dussel estivesse falando a militantes socialistas, a discussão continua válida, quer em termos teológicos, como políticos, pois discute os limites da prática religiosa, que podem se situar em dois campos: infraestrutural ou superestrutural.

Para Dussel uma das razões da discussão da religião como infraestrutura e superestrutura é superar a visão de que as lutas de libertação na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienantes no sentido mais limitado do termo.  Na verdade, tal visão remonta a Feuerbach quando considerou que o Deus e a religião do idealismo alemão era apenas a negatividade humana invertida no infinito, ou seja, o ser humano afirmaria em Deus o que negaria em si mesmo. O que Feuerbach não viu é que esse ser humano era apenas o homem europeu divinizado. Sua crítica, então, não foi suficientemente radical, mas pelo menos colocou que o comer e beber são atos religiosos e, mais especificamente, a fome e a sede. Por isso, a religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais do ser humano com seu próximo, são relações religiosas.

Marx também fez uma crítica filosófica, política e econômica da religião, mas sua crítica mais conhecida é a econômica. Na crítica filosófica, ele parte e depende de Feuerbach e Bauer, mas é enquanto crítico político que ele chama atenção para um aspecto até então não analisado: a religião justifica os interesses políticos. E porque esses interesses políticos não podem ser criticados sem à crítica a religião, Marx vai dizer que: “a miséria religiosa é a expressão, da miséria real e, por outro lado, o protesto contra a miséria real”. Por isso, o crítico do céu se torna o crítico da terra, o crítico da religião em crítico do direito, e o crítico da teologia em crítico das políticas. Dessa maneira, para Dussel, Marx definiu a religião enquanto estatuto supraestrutural ideológico das políticas, e depois da Questão judaica fez a crítica econômica da religião. Essa crítica estava dirigida às Igrejas, já que para Marx elas são a expressão da miséria. Mas também fez a crítica da religião quando analisa o "fetichismo da mercadoria", porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. Mas por que é assim? Em que consiste essa leitura do mundo real? Porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos. Mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. Essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. O fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião, a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente.

Segundo Dussel, seu trabalho sobre a religião como supraestrutura e como infraestrutura,  embora seja teórico, onde apresenta os limites dentro dos quais se dá a prática religiosa, tem importância política para a América Latina, continente cristão. Para ele, entre a religião superestrutural e a religião infraestrutural se abre um complexo campo religioso, mas são os limites da religião infraestrutural que dão à religião sua definição essencial. Constatação essa que se apóia em outra e que Dussel considera uma estratégia argumentativa que atravessa toda a obra de Marx, a da afirmação de que se alguém é cristão e capitalista -- “e se o capital é o demônio” --, tal cristão se encontra em contradição. Para evitar a contradição, o cristão pode abandonar o cristianismo ou o capitalismo, mas se procura manter ambos deverá ou inventar uma religião que não seja contraditória com o capitalismo – e a crítica da religião como fetichismo procura fechar o caminho a essa solução --, ou inventar uma economia política não contraditória com o cristianismo – e essa foi a tarefa da economia política burguesa, e a crítica teórico-científica de Marx pretendeu fechar esse segundo caminho.  Mas o pensamento marxiano se baseia nessa premissa: “se o capital é o demônio”. E esse enunciado pode ser provado não por uma crítica da religião (que seria a negação da religião puritana, protestante, de adequação ao capitalismo, como crítica da religião), mas por uma teologia implícita, apresentada como metáfora em seu aspecto negativo: uma demonologia cujo objeto não se encontra no campo religioso, mas no campo profano. Seria uma teologia da vida cotidiana e simbolizaria a existência de um deus desconhecido, que Marx deseja indicar, embora o faça metaforicamente. Com essa tese, Dussel pretende mostrar que Marx foi um teólogo negativo, que desenvolveu seu discurso metaforicamente, mas de forma efetiva. Essa questão tem atualidade porque começa no século XXI aquilo que Dussel chama de segundo século marxista, que para ele será diferente do primeiro século, por causa do fim do bloco comunista.

Para Dussel, todo sistema acaba por totalizar-se e se estrutura de forma auto-suficiente. E a religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo, que se posiciona a partir da referência ao Absoluto, participa desse fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalização do sistema é um processo de divinação, que cumpre a função de ocultar o papel da dominação. A noção de religião superestrutural traduz esse processo de divinização ou absolutização do sistema europeu e depois norte-americano na Modernidade: significa desistorificar a totalidade social.  A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma constituição ahistórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina. Nessa religião da totalidade auto-estruturada, o culto se apresenta como adoração da certeza de quem acredita estar cumprindo o propósito divino. Esse culto da certeza gera uma consciência tranqüila, já que se está em conformidade com a lei, com sua legitimidade. Exemplo disso, para Dussel, é a inscrição nas moedas estadunidenses: In God we trust.  Nesse sentido, a religião é ópio, pois é parte essencial da ideologia que justifica o sistema e lhe dá coerência teórica. Esta é a religião da classe dominante, por seu conteúdo prático e formulação ideológica e doutrinária que, graças às suas expressões simbólicas e aos rituais de culto, reproduz o sistema. As massas, enquanto oprimidas e passivas (o que Tillich chama de massa mística) vivem a ideologia das classes dominantes. Afinal, o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Assim, ao aceitar a religião superestrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação derrotista e a humildade passiva, conforme criticada por Nietzsche.  

Mas, se a miséria religiosa é expressão da miséria real, também é uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é “o suspiro da pessoa oprimida, o coração de um mundo sem coração, e o espírito de uma situação sem espírito”.  É ópio. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica deste “vale de lágrimas” que a religião apresenta como expressão de santidade. A crítica da religião, segundo Dussel, não elimina as correntes de flores imaginárias para que o ser humano suporte as correntes reais, mas para que ele se livre delas. A crítica da religião desmitifica para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como ser humano desmitificado. Por isso, a tarefa do socialismo consiste, uma vez que desapareceu o mais além da verdade, em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do socialismo, que se encontra ao serviço da história -- uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana --, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política. Para Dussel, essa religião superestrutural justifica o sistema e a dominação, e procurou dar legitimidade aos golpes de militares e às violações dos direitos humanos em nome da defesa da civilização ocidental e cristã, conforme visto na história da América Latina. Essa meta-religião é a religião como superestrutura sócio-cultural determinada pelas estruturas de dominação política e econômica. A massa mística é fruto desta ação heteronômica. Daí a importância da autonomia, que leva à ruptura do processo de divinização e fetichização representado pela religião superstrutural. 

Já a expressão “religião infraestrutural” indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o oprimido dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à superestrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infraestrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova práxis.  E o fato de que a práxis religiosa infraestrutural possa se tornar superestrutural não nega o fato de que a profecia continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais. A religião infraestrutural não se situa no campo da instância ideológica, nem como crítica anti-ideológica. É antes um fazer, uma atitude e práxis, que logicamente tem seu momento ideológico, político, cultural. Mas a religião infraestrutural é antes de tudo, para Dussel, a totalidade da criatividade humana diante do sistema vigente, enquanto posição crítica de uma formação e produção social opressora, e diante do futuro, enquanto formação social a ser construída. E interessante que Dussel situa a gênese da religião infraestrutural na conversão, que é posição metafísica anárquica da subjetividade diante do novo. Por isso, para Dussel, ela é a religiosidade em seu sentido metafísico, real, último, pois é anterioridade a todo a priori. A obsessão pelo excluído que clama é, então, anterioridade anterior a toda opção. E essa emergência ou irrupção da subjetividade é pré-original, é subversiva e real. E é anárquica porque se situa além do ser, e nesse sentido é an arqué: está fora do sistema.  

A tese proposta por Dussel procura distanciar-se de dois extremos, do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião superestrutual. E a partir desse distanciamento, definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs latino-americanas. Para ele, a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas: para alguns a razão é a legitimação da dominação e para outros a razão é a crítica da dominação. No primeiro caso, estamos diante da religião superestrutural, no segundo da religião infraestrutural. Mas entre os dois extremos se situa o campo religioso, que é naturalmente ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta.

Para o socialista a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É assim num processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como existência da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência do ser humano. O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar Deus, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o socialismo não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência.  É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O socialismo surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.

Assim, para Dussel, a militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infraestrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico . O ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infraestrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obcecados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós.       

Dussel considera que Marx não está teoricamente morto, mas, ao contrário, produzirá um novo impulso no pensamento filosófico e mesmo teológico.  Cita Monz  e diz que “quase todos os rabinos de Tréveris desde o século  XVII até a emancipação pertenceram à família dos pais de Karl Marx”. E segundo Künz-li  também citado por Dussel, Marx só é “compreensível desde a configuração do Antigo Testamento e da mensagem bíblica do judaísmo”. A mãe de Marx, Henriette Marx (1788-1863), era judia de origem holandesa, e teve entre seus familiares importantes rabinos. Seu sobrenome de solteira era Pressburg e Pressborck. Por motivos políticos, já que o imperador prusiano desejava uma burocracia homogênea, seu pai foi obligado a se batizar, possivelmente entre 1816 e 1817. No dia 26 de agosto de 1824 Marx foi batizado. Sua mãe nunca se batizou, mantendo-se espiritualmente judia. Mas, ao que tudo indica, Marx não aprendeu hebraico, porque em seu exame de final do curso secundário não recebeu nenhuma nota em hebraico, o que leva seus biógrafos a deduzirem que não conheceia o idioma. E como seu pai, Marx era de origen pequeno-burguesa, formado na tradição judaica, mas também luterana com influências pietistas, dentro da cultura iluminista da época.

Para ele, Marx, luterano de origem judia, se preparou para ser professor adjunto de Bruno Bauer em Bonn, onde era professor de teologia. Dessa maneira, se Marx não tivesse deixado a Universidade, teria sido um professor de teologia. Aliás, considera que a teologia não estava fora do horizonte existencial de Marx,  porque o protestantismo da região renana, que influenciou a região de Tréveris, cidade natal de Marx, recebeu influência pietista.

“O pietismo exigia dos fiéis a ação, a práxis, as boas obras, com um sentido de serviço, de responsabilidade política e econômica, que de alguma maneira tinham visto na Genebra governada pelos calvinistas. Esse aspecto tão positivo do pietismo levará Hegel, contra sua primitiva inspiração, a justificar tempo depois a cultura capitalista, que será duramente criticada por Marx. É interessante ver que Marx criticará os puritanos na Inglaterra, e o protestantismo na Holanda, mas não o pietismo de Wuerttemberg, ao qual de certa maneira estava ligado”.   

Ainda no segundo grau, Marx conheceu o pensamento pietista através dos ambientes hegelianos de Berlim e da filosofia vigente na época. Schelling, Hoelderlin e outros da mesma geração também foram marcados pelo pietismo. E nessa tradição situam-se o idealismo alemão e o Iluminismo.  Assim, as posições filosóficas, éticas, antropológicas e históricas de Marx estavam relacionadas aos problemas teológicos colocados na época. A partir de tal leitura, vemos que Marx apresentou soluções para problemas teológicos. Por isso, não é de se admirar, diz Dussel, que se possa descobrir posturas teológicas no pensamento de Marx. E para Dussel, uma dessas questões é a doutrina do Anti-Cristo, presente no pietismo alemão, que dava prioridade à práxis, e que Marx utilizou para se opor em primeiro lugar ao Estado luterano e posteriormente para lançar sua crítica contra o capital. Assim, Marx trabalhou com duas premissas, a primeira delas diz: se um cristão é capitalista; a segunda premissa é: se o capital é a besta do Apocalipse,  o demônio visível. Na tradição de Israel, o eterno é transcendente, donde uma divindade visível é satânica, idolátrica, não pode ser eterno. E a conclusão é: esse cristão se encontra em contradição prática.  

O cristianismo da primeira premissa é o cristianismo existente, cotidiano, enfim, o cristianismo protestante, luterano, puritano da Europa na época de Marx. O capitalismo é igualmente o realmente existente, compreendido cotidianamente por todos. A segunda premissa apresenta o capital como Moloch, fetiche, o demônio visível, como desenvolvimento da doutrina do Anti-Cristo pietista. O cristão se encontraria numa contradição clara, porque o exercício cotidiano da práxis no sistema capitalista envolveria eticamente uma ação demoníaca.  E tal construção lógica é verdadeira, o cristão só tem quatro maneiras de livrar-se dela: afirmando seu cristianismo e renunciando ao capitalismo; afirmando o capitalismo e renunciando ao cristianismo; inventando uma religião fetichista, com o nome de cristã, modificada de tal maneira que não seja contraditória com o capital; e, por último; interpretando de tal maneira o capital, a fim de que não apareça como contradição diante do cristianismo profético. As possibilidades um e dois não necessitam nenhuma crítica porque solucionam a contradição objetivamente. Mas, com respeito à posibilidade três, exige uma crítica da religião fetichista, questão que Marx não desenvolveu integralmente, mas sobre a qual deixou sugestões e que foi entendida pela tradição marxista e não-marxista como crítica da religião. Dussel considera que essa crítica da religião fetichista é perfeitamente aceitável para uma conciência cristã autêntica, crítica e transformadora. Para ele, poderia-se dizer de Marx, o que disse Justino, no século II contra os grupos hegemônicos do imperio romano: “Daí que nos chamem também de ateus. E se se trata desses supostos deuses [romanos] confessamos ser ateus”.  Com respeito à possibilidade quatro, Marx dedica a ela toda sua obra, especialmente O Capital, impossibilitando ao cristão escapar da contradição, ao mostrar que o capital é mais valia acumulada, e como mais valia é objetivação do trabalho não pago, ou seja, não se pode esconder a visão crítica da não-eticidade do capital. Mas, por outra parte, para desenvolver seu argumento, Marx mostra também que o capital procura esconder essa não-eticidade através da pretensão de criar o lucro a partir dele mesmo. Essa pretensão é interpretada por Marx como fetichista. O caráter fetichista do capital é a outra cara da interpretação econômica, política, ideológica, que oculta a essência não-ética do capital: é a afirmação do capital como “Absoluto”. A crítica do caráter fetichista do capital é, em termos epistemológicos, uma tarefa econômico-filosófica. E o argumento de Marx, como todo argumento, parte da premissa menor “e se o capital é anti-Cristo, o demônio visível”. Esse enunciado pode soar como se Dussel quisesse torcer o discurso de Marx para apresentá-lo como teólogo, mas, ao contrário, nos alerta para o fato de que essa contradição do cristão com o caráter fetichista do capital não foi ainda analisada, em termos filosófico e econômico, pela teologia cristã. Mas, Marx, sem dúvida, desenvolve, de maneira metafórica, o tema nos capítulos quatro e cinco de O Capital, ao utilizar expressões como fetiche, demônio e besta do Apocalipse, Moloch,  Mamom filosófico-econômico  e Baal.  Para Dussel essas metáforas produzem como resultado um discurso paralelo dentro do discurso econômico-filosófico central de Marx. E ele chama tal discurso paralelo de teologia metafórica de Marx. 

A metáfora e o símbolo não produzem um novo conhecimento filosófico-econômico, mas abrem um horizonte teológico. Caso fossem metáforas soltas, caóticas, puramente fragmentárias, se poderia falar, no máximo, que existem metáforas teológicas na obra de Marx. Mas como as metáforas têm uma lógica, então pode-se falar de uma proto-teologia ou de uma teologia implícita em Marx. Na verdade, Marx não teve a intenção de produzir uma teologia explícita e, por isso, no sentido estrito do termo, não podemos dizer que tenha sido um teólogo. Mas, segundo Dussel, abriu caminho para uma teologia. Um exemplo é especialmente importante para balizar essa apreciação: nos Grundrisse, falando do dinheiro, Marx diz que “[O dinheiro] de sua figura de servo, que antes se apresentava como simples meio de circulação, se torna de repente soberano e deus do mundo das mercadorias”.  Aqui Marx se está referindo ao texto do apóstolo Paulo, em Filipenses 2.6-7, que diz:  “Ele, apesar de sua figura divina, não procurou ser igual a Deus, ao contrário, alienou-se a si mesmo e assumiu a figura de servo”. Sem dúvida, Marx utiliza o Novo Testamento de maneira sútil e consciente. Mostra o dinheiro como o inverso do Cristo, como Anti-Cristo. Enquanto Cristo era “figura divina” que se alienou assumindo a “figura de servo”, o dinheiro, em movimento contrario, sendo “figura de servo”, se transforma em “deus”, em fetiche. Cristo se humilhou, o dinheiro se exalta, se diviniza. Trata-se de uma inversão. Essa maneira metafórica de usar temas bíblicos e teológicos, obriga o leitor de Marx a uma leitura oblíqua, tanto filosófico-econômica como teológica. Só uma leitura aberta, que procura descobrir a lógica do discurso filosófico-econômico de Marx, pode traduzir as significações do caráter fetichista do capital dentro de seu pensamento. Esse é o caminho proposto por Dussel para a compreensão do discurso metafórico, de sentido teológico implícito, negativo e fragmentário de Marx.       

Dussel considera que a teologia da libertação é uma ética da vida. No capítulo seis de A Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão acrescenta algo a essa afirmação, a intenção de estudar o desenvolvimento criativo e estratégico desta vida: vida-vítima que rompe na história, criadora do novo. 

A partir da relação de forças do poder, Dussel fará a passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. Então, cabe-nos perguntar: Qual é a matriz marxista de Dussel? Quem são as vítimas no pensamento de Dussel? Qual o papel do intelectual na práxis da libertação? 

Dussel retoma uma velha questão, insistentemente discutida a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? Se a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que enquanto razão crítica esse fim é uma mediação da própria vida humana, explica Dussel, principalmente quando as vítimas são partícipes dessa ação. Assim, é a partir das vítimas enquanto partícipes que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. Mas quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? É aqui que Dussel fará sua releitura de Marx, rompendo com Althusser e seguindo a trilha aberta por Foucault. Logo de saída, Dussel faz um rápido elogio àquele que foi chamado por muitos, por Althusser e pela chilena Marta Harnecker, entre outros, de “jovem Marx”. E por jovem Marx entenda-se o Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos e das Teses sobre Feuerbach, escritos entre 1844 e 1845. Esse jovem Marx parte dos princípios de um humanismo antropocêntrico e ético, que tem por base a filosofia de Feuerbach. É a partir daí que constrói sua compreensão de mundo, ou seja, da economia política como ideologia da propriedade, da concorrência e do enriquecimento. Podemos ver a construção dessa trilha num ensaio que ficou inédito durante décadas, sendo publicado somente em 1932. São os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. É o momento da ruptura de Marx com o idealismo hegeliano. Aqui Marx está preocupado com a dominação da propriedade privada, a partir da qual vê a subjugação do proletariado como processo de alienação. Já neste texto, apesar da linguagem ainda ser neo-hegeliana, Marx apresenta a alienação como o processo através do qual a criação de riquezas pelos operários é deles expropriada e convertida em capital. Ou seja, em instrumento de permanente subjugação daqueles que o criaram, nele exteriorizando sua essência humana.

Suponha-se um ser que nem é ele próprio objeto nem tem um objeto. Tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, existira solitário e sozinho. Pois, tão logo haja objetos fora de mim, tão logo não esteja só, sou um outro, uma outra efetividade diferente do objeto fora de mim. Para este terceiro objeto eu sou, pois, uma outra efetividade diferente dele, isto é, sou seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser, supõe, pois, que não existe nenhum ser objetivo. Tão logo eu tenha um objeto, este objeto me tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, somente pensado, isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. Ser sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto dos sentidos, é ser objeto sensível, e, portanto, ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é padecer. 

Marx apresenta uma teoria da expropriação e não da exploração da classe operária. Diz que o ser humano como ser objetivo e sensível é um ser que padece e, por ser um ser que sente sua paixão, é um ser apaixonado. Assim, paixão é a força essencial do ser humano que tende energicamente para seu objeto. E uma das críticas que faz a Feuerbach é a de que tomar uma essência genérica do ser humano como ponto de partida da história é aceitar uma concepção muito particular do ser humano isolado, como acontece no pensamento burguês. Essa essência genérica, para Marx, se resolve no conjunto das relações sociais onde cada pessoa está inserida. 

O homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e confirmar-se tanto em seu ser como em seu saber. Por conseguinte, nem os objetos humanos são os objetos naturais tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. Nem objetiva, nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo adequado. E como tudo o que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que se supera. A história é a verdadeira história natural do homem.  

Podemos nos textos que seguem podemos rapidamente acompanhar a construção da teoria histórico-sociológica de Marx. Apesar de tosca, vemos aqui outra ruptura, desta vez com o materialismo natural de Feuerbach.

A falha capital de todo materialismo até agora (incluso o de Feuerbach) é captar o objeto, a efetividade, a sensibilidade apenas sob a forma de objeto ou de intuição, e não como atividade humana sensível, práxis; só de um ponto de vista subjetivo. Daí, em oposição ao materialismo, o lado ativo ser desenvolvido, de um modo abstrato, pelo idealismo, que naturalmente não conhece a atividade efetiva e sensível como tal. Feuerbach quer objetivos sensíveis – efetivamente diferenciados dos objetos de pensamento, mas não capta a própria atividade humana como atividade objetiva. Por isso considera, na Essência do Cristianismo, apenas como autenticamente humano o comportamento teórico, enquanto a práxis só é captada e fixada em sua forma fenomênica, judia e suja. Não compreende por isso o significado da atividade ‘revolucionária’, ‘prático-crítica’. 

Para Marx, por não levar em conta o caráter ativo dos objetos naturais, mediados pela prática do ser humano, Feuerbach caiu numa concepção especulativa sobre a naturalidade do ser humano, desligada da política e da história, do desenvolvimento de si próprio a partir de suas condições reais de existência. Por isso, Marx dirá que os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo.  A partir desse momento vemos Marx propondo um amplo entrosamento da teoria com o proletariado, condenando aqueles que propõem idéias isoladas de interesses concretos. Quatro anos mais tarde, Marx prepara para o segundo congresso da Liga dos Comunistas o seu trabalho mais popular: O Manifesto do partido comunista. O texto define a luta de classes como uma luta política.

Os operários triunfam às vezes; mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas não é o êxito imediato, mas a união cada vez mais ampla dos trabalhadores. Esta união é facilitada pelo crescimento dos meios de comunicação criados pela grande indústria e que permitem o contacto entre operários de localidades diferentes. Ora, basta esse contacto para concentrar as numerosas lutas locais, que têm o mesmo caráter em toda a parte, numa luta nacional, numa luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política. 

Num momento em que os proletários estavam reduzidos a uma crescente pobreza, o Manifesto Comunista falava de uma sociedade sem classes, em que a abolição da propriedade privada garantiria a todos a satisfação de suas necessidades. Tal idéia, em si utópica, é uma crítica teórica efetiva da sociedade capitalista, e sugeria um programa que consiste num projeto de apropriação coletiva dos meios de produção, a fim de atingir todo o funcionamento do modo de produção capitalista, que, para Marx, era a fonte da alienação do ser humano.

Mas qual é o papel de uma comunidade científico-crítica neste processo de revolução da sociedade? Existe a necessidade de uma comunidade ilustrada de vítimas? E por que tanta desconfiança em relação ao intelectual?

Os comunistas não formam um partido particular, oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do proletariado em geral. Não proclamam princípios particulares, segundo os quais pretenderiam modelar o movimento operário. (...) O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários: constituição dos proletários em classe, derrubada da supremacia burguesa, conquista do poder político pelo proletariado.  

A visão de Marx é revolucionada com a fórmula de Rosa Luxemburg: “A social-democracia não está ligada à organização da classe operária, mas ela é o próprio movimento da classe operária”, conforme expõe Dussel. Assim, a comunidade crítica das vítimas é o sujeito do socialismo, é a consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. Mas, para a revolucionária alemã, o intelectual por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere ao socialismo não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que o proletariado ilustrado (elite e vanguarda do proletariado). Este último, acredita ela, não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro.  Ora, como explica Dussel, a razão estratégico-crítica não é apenas uma razão estratégica que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Por isso, ele vai buscar em Rosa Luxemburg os argumentos necessários para explicar  que a razão estratégico-crítica não tem as mãos livres. Aliás, podemos dizer que Rosa Luxemburg sempre teve uma palavra especial para os cristãos: 

“Uma das acusações mais duras que o clero faz aos social-democratas consiste em dizer que querem introduzir o comunismo, quer dizer, a propriedade comum de todos os bens da terra. É importante mostrar a este respeito que quando os sacerdotes lançam acusacões contra o comunismo, em realidade as lançam contra os primeiros apostolos da cristandade. Efetivamente estes foram os mais fervorosos comunistas”. 

Ao invés de nesta questão partir de Max Weber, para quem os fins são inevitavelmente os de uma cultura dada, uma tradição vigente e por isso devem ser aceitos, Dussel apoiado em Rosa Luxemburg mostra que o êxito é uma possibilidade, mas pode ser que nada tenha a ver com a ética. 

Vejamos como a própria Rosa Luxemburg entende tal situação ao descrever o massacre de operários comunistas em Berlim. Desde 9 de janeiro de 1919, Berlim era uma cidade em estado de sítio. O perigo de um confronto tinha feito os trabalhadores recuarem da greve geral. O governo Ebert/Scheidemann, uma coalizão do Partido Social-Democrata Alemão e do Partido Social-Democrata Alemão Independente, os dois partidos operários mais influentes, levados ao poder em fevereiro do ano anterior, que derrubou a monarquia, estava inflexível na determinação de destruir a dualidade de poderes que em Berlim prenunciava uma nova vaga revolucionária. A burguesia aplaudia a política de repressão aos comunistas. O perigo de uma revolução de tipo bolchevique na Alemanha estava presente nos corações e mentes. Diante disso, o governo decidiu retomar o controle da polícia de Berlim. Diante da reação enérgica de setores operários em defesa dos conselhos de trabalhadores e soldados, o governo cercou a cidade. Este é o último artigo de Rosa Luxemburg, que logo depois foi assassinada.

A ordem reina em Berlim!, proclama triunfalmente a imprensa burguesa entre nós, bem como os ministros Ebert e Noske e os oficiais das tropas vitoriosas (...) Os delegados dos sitiados no Vorwaerts, enviados como parlamentares para tratarem da sua rendição, foram destroçados a pancadas de garrote pela soldadesca governamental, e isto aconteceu até tal ponto que não foi possível reconhecer os seus cadáveres. Quanto aos prisioneiros, foram pendurados dos muros e assassinados de tal maneira que muitos deles tinham o cérebro fora do seu crânio. 

Os acontecimentos que deram início às lutas de janeiro de 1919 começaram em dezembro de 1918, logo depois da queda do kaiser. O governo presidido pelo Partido Social-Democrata Alemão resolveu derrubar o chefe de polícia de Berlim, Emil Eichhorn, membro do Partido Social-Democrata Alemão Independente, por considerar que as manifestações de massas favoreciam a dualidade de poderes na cidade e possibilitavam a transformação da polícia em instituição revolucionária. Eichhorn não reprimiu as manifestações, desafiando as ordens do governo e do ministro do Interior, afirmando que sua autoridade só podia ser questionada pelos conselhos operários. A direção do Partido Social-Democrata Alemão Independente de Berlim apoiou essa decisão e convocou os trabalhadores para uma manifestação. Os espartaquistas, grupo de Rosa Luxemburg, apoiaram a mobilização, chamaram à greve geral e lançaram a palavra-de-ordem de que as tropas do exército fossem desarmadas e os trabalhadores armados.

O que tem agregado esta semana aos nossos ensinos? Em primeiro lugar, ainda no meio da luta e dos gritos vitoriosos da contra-revolução, os proletários revolucionários puderam chegar a medir os acontecimentos e os seus resultados com a grande medida da história. E isto aconteceu assim porque resulta que a Revolução não tem tempo a perder e, em conseqüência, persegue a sua vitória por cima das tumbas e por baixo das habituais vitórias e derrotas. (...) A melhor manobra é uma boa virada inesperada e audaciosa. A resistência surgiu tão espontaneamente, com uma energia tão evidente, do mesmo seio das massas berlinenses, que do primeiro momento pode dizer-se que a vitória moral esteve do lado da rua. Uma lei interior da revolução é a da impossibilidade de esperar na inatividade depois de que se deu um passo para frente. A melhor manobra é uma boa virada inesperada e audaciosa. Esta regra elementar de toda a luta é que rege com maior razão todos os passos da revolução. 

Rosa Luxemburg não defendeu uma greve insurrecional, mas de protesto, para medir forças, e aguardar a reação de Ebert e do governo. A mobilização do dia cinco de janeiro de 1919 foi um sucesso e a direção do Partido Comunista Alemão acreditou que os soldados aquartelados em Berlim estavam a favor da insurreição. E, assim, grupos do Partido Social-Democrata Alemão Independente de Berlim, dos comunistas e de delegados dos conselhos operários formaram um organismo com 33 membros e um secretariado de três dirigentes, Liebknecht, Lebedour e Scholze. Mas o entusiasmo de 5 de janeiro foi diminuindo, e aos poucos levou à debandada. A partir daí, começou a fuga. Os comunistas consideravam um erro a decisão de iniciar um movimento imediato pela derrubada do governo, no que foram apoiados pelos espartaquistas e por Rosa Luxemburg. Mas a proposta do levante foi mantida pela maioria dos trabalhadores. Os comunistas e espartaquistas se mantiveram ao lado dos insurgentes, mas as demais organizações recuaram.

(...) a nossa crise tem com efeito um duplo rosto, o da contradição entre uma enorme decisão ofensiva por parte das massas e a falta de convicção por parte dos chefes berlinenses. Falhou a direção. Mas este é o defeito menor, porque a direção pode e deve ser criada pelas massas. As massas são com efeito o fator decisivo, porque são a rocha sobre a qual será edificada a vitória final da revolução. As massas cumpriram com a sua missão, porque fizeram desta nova “derrota” o elo que nos une legitimamente à cadeia histórica de “derrotas” que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Podemos ter a certeza de que desta “derrota” também há de florescer a vitória definitiva. 

Assim, o governo nascido da revolução de novembro retomou a iniciativa, apoiado por tropas vindas do interior do país. E as lideranças comunistas e espartaquistas foram vítimas de uma violenta repressão.

Como constata Dussel, a partir da leitura de Rosa Luxemburg, quando se trata de libertar as vítimas, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e práxis. Por isso, uma teologia da práxis deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; meios, a tática; e métodos, os modos de organização, que devem levar à práxis crítica do sujeito histórico de libertação.

“Os métodos da teologia da libertação têm uma dinâmica. Eles estão à procura de mediações e procuram reler as Escrituras e a vida, se preocupam em escutar o sofrimento e convidam à ação em busca de uma sociedade mais humana e mais justa, que dê corpo ao Reino de Deus. Os teológos da libertação têm consciência de que sua reflexão não pode ir além de ser um diálogo: deve ser ouvido, deve fazer pensar e deve levar a agir. Não deve ser apenas um esforço interdisciplinar de mediações, mas sobretudo reunir numa mesma conversa os teológos que trabalham ao nivel acadêmico, ao nivel pastoral e ao nivel popular”.   

Podemos dizer que as matrizes marxistas do pensamento de Dussel, no que se refere à teologia enquanto critica da mundialização capitalista, tem por base o jovem Marx através de uma releitura a partir de Rosa Luxemburg, cuja peculiaridade consistiu na construção de uma teoria do papel dinâmico das massas.  Quanto às vítimas, Dussel deixa claro que são aqueles que estão excluídos do sistema-mundo e da mundialização. E que este sistema-mundo, ou modernidade, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha para a catástrofe. As vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas suas dignidades e vidas são destruídas. Para Dussel, a modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. Cabe por isso ao intelectual socialista levantar uma ética da libertação enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção.  A este intelectual que chamamos de socialista-religioso cabe a co-responsabilidade solidária, que parte do critério de verdade vida-morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da irresponsabilidade ética diante das vítimas e da paranóia fundamentalista. Em seu trabalho, Dussel justifica teologicamente a práxis das vítimas nesta época da história. E quando fala em vítimas está falando dos excluídos do processo de mundialização do capitalismo. Para ele, o sistema-mundo, ou modernidade, semeia terror, fome, doenças e morte. E compara tal situação com os quatro cavalos do Apocalipse. À mundialização, Dussel chama sistema formal performativo, já que nele o valor se valoriza, o dinheiro produz dinheiro. E nesse fetichismo do capital, que se ergue como critério de verdade, dá-se a destruição da vida humana, da dignidade de milhões de seres humanos.

Aqui estamos diante do sujeito histórico de Dussel, o ser humano vítima, o ser humano excluído não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida.  E onde entra aí a questão da revolução? Dussel volta a um texto de Marx que já citamos: “Os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras, trata-se de transformá-lo”. Depois de afirmar que Marx não nega o discurso filosófico, mas diz que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se como discurso que fundamente a transformação prática, diz que isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética de transformação não reformista, ou seja, de uma ética da libertação. É por isso que ele se esforça para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da vida de cada ser humano. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização. E voltando ao jovem Marx, em seu texto Acerca da Censura, de 1834, afirma: 

“Estamos diante de um liberalismo aparente, que se presta a fazer concessões e sacrificar pessoas... para manter em pé a coisa”, para concluir que a ética é construída sobre juízos de fato. E, poeticamente, cita Walzer: “Primeiro, onde quer que vivas, é provavelmente o Egito; segundo, sempre há um lugar melhor, um mundo mais atraente, uma terra prometida; e terceiro, o caminho a essa terra é através do deserto. Não há forma de chegar aí exceto unindo-se e caminhando”. 

Dussel considera que a práxis da libertação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral da práxis que possibilitem cumprir às mediações existentes. Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais prévios, ético e formal discursivo, a fim de que, com factibilidade ético-crítica se possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas se por um lado a práxis da libertação traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva à uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. Poderíamos dizer que, em certa medida, o kairós tillichiano nos remete ao projeto de libertação dusseliano.

Como vimos, em sua argumentação, Dussel procura distanciar-se do marxismo lido a partir do ateísmo e da religião que faz a legitimação da dominação. E a partir desse distanciamento, procura definir caminhos para a militância política das comunidades cristãs latino-americanas. E aqui, sem dúvida, encontramos uma complementaridade fundamental e necessária à teologia tillichina do socialismo. Para Dussel, a atividade militante dos cristãos no interior das comunidades religiosas é motivada por diferentes opções históricas, tanto a legitimação da dominação, que ele chama de religião superestrutural, como a crítica da dominação, ou religião infraestrutural. Mas entre os dois extremos ele situa o campo religioso, naturalmente ambíguo, já que a instituição religiosa necessita tanto do organizador como do profeta. E é a partir da análise dessa ambiguidade que ele traça questões que aterrisam Tillich na realidade latino-americana e dão concretude à práxis do militante socialista religioso, que deve levar em conta:

O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. O momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo. Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, o imprevisível para a totalidade, aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada, revolucionária e inovadora. Como conseqüência, a analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma pedagogia e uma política que trabalham para a realização da alteridade humana, alteridade que nunca é solitária, mas a epifania de um sexo, de uma família, de uma classe social, de uma geração, de um tempo e da espécie humana.

Discutir a religião como infraestrutura e superestrutura é superar a visão de que as lutas de libertação na América Latina tiveram origem nos movimentos milenaristas, que se adaptaram e organizaram movimentos políticos ou retrocederam convertendo-se em religiões alienantes no sentido mais limitado do termo. A religião é a primeira consciência que o ser humano tem de si mesmo, e as relações morais, do filho com os pais, do marido com a mulher, do irmão com o irmão, do amigo com o amigo, enfim do ser humano com seu próximo, são relações religiosas.

A religião, enquanto conjunto de mediações simbólicas e rituais, como doutrina explicativa do mundo e que se posiciona a partir da referência ao Absoluto, participa do fechamento do sistema sobre si mesmo. Essa totalização do sistema é um processo de divinização, que cumpre a função de ocultar a dominação. A noção de religião superestrutural traduz esse processo de divinização ou absolutização do sistema europeu e depois norte-americano na Modernidade: significa desistorificar a totalidade social, desdialetizar um processo que tem origem, crescimento e plenitude. A divinização leva a um outro processo, à fetichização, que apresenta uma constituição ahistórica da totalidade social vigente. A fetichização consiste, então, na identificação da estrutura atual com a natureza, ou seja, ela está aí, está colocada por vontade divina.

As massas, enquanto oprimidas e passivas, o que Tillich chamou de massa mística, vivem a ideologia das classes dominantes, pois o sistema apresenta de forma ambígua ideais utópicos que oferecem respostas às suas necessidades. Ao aceitar a religião superestrutural da classe dominante enquanto rito simbólico do triunfo dos dominadores e derrota dos dominados, as massas vivem sob a resignação passiva, a paciência derrotista e a humildade aparente.

A miséria religiosa é expressão da miséria real, entretanto, é também uma forma de protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da pessoa oprimida, o coração de um mundo sem coração, e o espírito de uma situação sem espírito. A necessidade da religião em abandonar as ilusões sobre sua própria situação é a exigência de que abandone uma situação que necessita de ilusões. Por isso, a crítica da religião é a crítica deste “vale de lágrimas” que a religião apresenta como expressão de santidade. A crítica da religião não elimina as correntes de flores imaginárias para que o ser humano suporte as correntes reais, mas para que ele se livre delas. A crítica da religião desmitifica para que o ser humano pense, para que atue e transforme sua realidade como ser humano consciente.

A tarefa do socialismo consiste, uma vez que desapareceu o mais além da verdade, em verificar a verdade que está aqui. E é tarefa do socialismo, que se encontra ao serviço da história, uma vez que está desmascarada a santidade da auto-alienação humana, desmascarar a auto-alienação em suas formas não santas. De tal modo que a crítica do céu se transforme em crítica da terra, e a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.

A expressão “religião infraestrutural” indica a anterioridade da responsabilidade prática que se tem com o oprimido dentro do sistema. Essa anterioridade não diz respeito exclusivamente à superestrutura de um sistema futuro, mas diz respeito também à sua infraestrutura. O ser humano religioso transcende o sistema vigente de dominação e vê como responsabilidade sua o serviço ao excluído. A religião nesse caso é a instauração de uma nova práxis. E o fato de que a práxis religiosa infraestrutural possa se tornar superestrutural não nega o fato de que a profecia continua a irromper na história. Essa presença de responsabilidade social com o excluído mostra a vigência do clamor profético e funciona como freio das pressões alienantes e superestruturais.

O ateísmo, enquanto negação dessa necessidade de essencialidade, perde sentido, pois, ao negar Deus, afirma mediante a negação a existência do ser humano. Mas o socialismo não necessita dessa mediação, pois surge enquanto consciência sensível, teórica e prática do ser humano e da natureza como essência. É autoconsciência positiva do ser humano, não mediada pela superação da religião, do mesmo modo que a vida real é realidade positiva para o ser humano, não mediada pela superação da propriedade privada. O socialismo surge como negação da negação da emancipação e da recuperação humana, é o princípio dinâmico do porvir, mas não é em si a finalidade do desenvolvimento humano, a forma última e única da sociedade humana.

A militância religiosa faz parte de uma luta mais ampla, onde a religião infraestrutural cumpre papel de aliado estratégico, levando o militante religioso a assumir tarefas, práxis nos níveis político, econômico e não apenas ideológico. O ateísmo, por isso, é ocultamento, pois fecha as portas ao aliado estratégico, à religião infraestrutural, que se fará presente enquanto houver seres humanos obstinados pela responsabilidade diante do excluído, sentido incondicional de justiça, esperança de um novo kairós.       

Assim, para o socialista a história universal é produção humana a partir do trabalho humano, que transforma a natureza e produz o nascimento do ser humano em sociedade. É nesse processo permanente que o ser humano constrói sua essencialidade: do ser humano em direção ao ser humano, como existência da natureza, e da natureza para o ser humano, como existência do ser humano. 

Mas, o êxito nesse processo depende das condições de possibilidade, ou seja, é impossível separar teoria e práxis. Por isso, uma teologia da práxis deve saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios, e métodos que devem levar à práxis crítica do sujeito histórico, as vítimas, aqueles que estão excluídos do sistema-mundo. Este sistema-mundo, ou modernidade, para Dussel, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida semeia fome, doenças, terror e morte. As vítimas são os bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são destruídas. A modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. Porém, a práxis da libertação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à instituição e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem ser enquadrados dentro de princípios gerais, ético e crítico, a fim de que com factibilidade ético-crítica se possa negar as causas da negação da vítima. Essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada. Mas, se a práxis traduz uma ação desconstrutiva, promove transformações construtivas: leva à uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente.

Compreendido tal aggiornamento, voltemos à teologia da existência, que vemos em Tillich, que ao olhar o mundo, assim como poetas e artistas, não gostou do que viu. O que nos leva a Antonio Machado, poeta espanhol, que vai nos falar do “Caminhante”.

“ Todo pasa y todo queda, pero lo nuestro es pasar, pasar haciendo caminos, caminos sobre el mar. Nunca perseguí la gloria, ni dejar en la memoria de los hombres mi canción; yo amo los mundos sutiles, ingrávidos y gentiles, como pompas de jabón. Me gusta verlos pintarse de sol y grana, volar bajo el cielo azul, temblar súbitamente y quebrarse... Nunca perseguí la gloria”.  

Na modernidade viveu-se como se a vida não tivesse valor. E na alta-modernidade o padrão alienado permanece, combinando tecnologias e barbáries. E como estamos a conversar, digo que as escrituras hebraicas também falam existencialmente do humano. Diz-se, lá na Torah, que o humano não é bom nem mal, mas que age a partir dessa polaridade. Tal situação aparece no diálogo que a eternida tem com Caim. Diz que ele estava inclinado a fazer mal feito, que este mal-fazer estava diante dele como um animal feroz, mas que ele devia dominar o desejo de mal-fazer. 

Essa conversa, de certa forma, apresenta um padrão humano, um jeitão para fazer. E nos relatos da saga humana tais histórias se multiplicaram. São contares que falam do tesão pela vida. E aqui vai uma que gosto muito. Conta-se que quando os escravos fugiram do Egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o Mar Vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão à eternidade, mas esta não permitiu e disse: Eu construí o humano, cada um deles é meu fazer, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? Eis a universalidade da existência: somos parecença do Eterno, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. A teologia mais antiga entendeu isso: a vida é fazer universal. Mas nela se faz presente o “yetzer”. 

A palavra “yetzer” vem da raiz “yzr”. Quando as escrituras hebraicas falam de inclinação capenga, significa moldar, propor-se. A idéia é que o humano é dirigido por suas inclinações, suas imaginações, sejam elas boas ou más. Nesse sentido, o humano é diferente dos animais. E é exatamente “yetzer” que, combinado à liberdade humana, possibilita a mudança de rumo.

E Tillich nos apresenta esse pensar sobre a vida, num curto e preciso resumo da teologia da existência. Ele disse que “para Schelling, a existência era vista por meio da experiência pessoal cristã, na fé tradicional, embora racionalmente interpretada. Já para Kierkegaard, era experiência imediata pessoal do indivíduo em face da eternidade, sua fé pessoal, embora interpretada por raciocínios dialéticos refinados. Para Feuerbach era a experiência do ser humano como tal em sua existência sensorial, embora desenvolvida numa doutrina do humano. Para Marx era a experiência humana socialmente determinada, no contexto da classe social, embora interpretada em termos da teoria sócio-econômica universal. Para Nietzsche era a experiência de um ser biologicamente determinado, concretizando a vontade de poder, embora expressa na metafísica da vida ”.  

Já segundo Bergson era “a experiência da vitalidade dinâmica, na existência temporal e criativa, embora expressa por meio de palavras tiradas do espaço não-existencial. Para Dilthey era a experiência da vida intelectual numa situação cultural especial. Para Jaspers era a experiência da atividade interior do eu, como autotranscendência, embora descrita em termos de psicologia imanente. E para Heidegger era a experiência do ser preocupado com o Ser, na existência vivida com cuidado, angústia e determinação ”.  

E destaca que para “os socialistas religiosos, é a experiência humana pessoal imediata da existência histórica, do momento histórico criativo, expresso numa interpretação geral da história ”. 

Dessa maneira, podemos dizer que para os socialistas religiosos cada caminho se entrelaça com outros caminhos, formam teias, e aí está a idéia de história quando vê a vida humana, a realidade presente e o kairós como estruturas abertas, que nascem desses caminhos. É o desafio existencial, ser natureza e transcender a ela, que leva o humano à possibilidade da revolução, ou seja, à construção da história. 

E, de novo, Machado poetisa para nós:

“ Caminante, son tus huellas el camino y nada más; caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace camino y al volver la vista atrás se ve la senda que nunca se ha de volver a pisar. Caminante no hay camino sino estelas en la mar... Hace algún tiempo en ese lugar donde hoy los bosques se visten de espinos se oyó la voz de un poeta gritar "Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso...”

Para o socialismo religioso, o respeito pelos caminhos e a negação do ódio e da violência deveriam direcionar o tesão pela vida. Criar pessoas seria, em primeiro lugar, ensinar, pois, como diz a sabedoria judaica, quem destrói uma vida destrói todas, e quem cuida de uma vida salva o mundo. Cuidar de pessoas é, então, semear a paz para que ela reine entre os humanos. Para que ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

E nessa leitura da existência, vemos que Bereshit, texto primeiro das escrituras hebraicas, se descreve como o livro da história humana. E é interessante ver como Bereshit fala da construção e nomina o primeiro par humano: Da-terra e A-vida. Este é sentido dos nomes Adão e Eva. A construção dessas duas pessoas, Da-terra e A-vida, ao se dar no final do processo de surgimento do universo, mostra o peso que têm para a eternidade: são menores, aparentemente pequenos, mas têm valor. A história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas. 

O que nos remete mais uma vez, à exposição de Tillich sobre a teologia da existência: “Os filósofos existencialistas procuraram descobrir o significado supremo da vida além da reinterpretação das filosofias reavivadas e do positivismo. Nessa busca, rejeitaram vivamente o mundo objetivo alienado com seus religiosos radicais, reacionários e mediadores. Voltaram-se para a experiência imediata e para a subjetividade, não como algo oposto à objetividade, mas como a experiência viva na qual tanto uma como a outra se baseiam. Voltaram-se para a realidade como é experimentada imediatamente na vida real, na experiência interior. Tentaram descobrir o âmbito criativo do ser anterior e além da distinção entre objetividade e subjetividade ”. 

Nas escrituras hebraicas, a construção da história humana é sempre uma correlação entre o sofrimento e a coragem de optar pela liberdade. E este foi o desafio apresentado aos hebreus escravizados. Construir a história e optar pelo caminho da liberdade significava correr riscos, já que muitas vezes há segurança na escravidão. Mas, objetividade humana é ser humano, ver possibilidades nas escolhas humanas.

Por isso, Tillich diz que “ se chamarmos de místico este nível de vida, a filosofia existencial poderá ser considerada a tentativa de reconquistar o sentido da vida em termos místicos depois de se ter perdido em termos eclesiásticos e positivistas. Mas será preciso redefinir o termo místico para aplicá-lo à filosofia existencial. Neste contexto, o termo não significa a união mística com o absoluto transcendente; é mais uma empresa de fé tendo em vista a união com a profundidade da vida, tanto por indivíduos como por grupos. Este tipo de misticismo é mais protestante do que católico; mas não deixa de ser misticismo ao tentar transcender a objetividade alienada e a subjetividade vazia de nossa época. Historicamente falando, a filosofia existencial procura retornar à atitude pré-cartesiana em que essa separação ainda não existia, e quando a essência da objetividade achava-se no interior da subjetividade, quando Deus era encontrado por meio da alma ”. 

O respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, por sua terra e vida, é decisão humana radical. Uma das linhas-força das teias de relações humanas presente nas escrituras hebraicas é a de caminho. Mais do que propor uma adoração à eternidade, as escrituras falam de andar com ela. Daí a idéia de caminho. O ser humano é colocado a cada dia e a cada momento diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o fazer bem feito e o fazer mal feito. 

Assim, para Tillich, “em sua luta contra a falta de sentido da civilização tecnológica moderna, os filósofos da existência empregaram diferentes métodos com fins diversos. Em todos eles a ênfase existencial era um fator entre outros, de maior ou menor importância. Schelling acreditava, com o romantismo germânico, que a nova filosofia e, em particular, a nova interpretação da religião, poderiam produzir uma nova realidade. Mas se enganava. Sua influência imediata permaneceu limitada. A importância de Feuerbach para o pensamento existencial revela-se na destruição que fez da reconciliação de Hegel do cristianismo com a filosofia moderna mais do que seu materialismo metafísico, o qual, na verdade, fortaleceu muito a interpretação mecanicista burguesa da natureza e do ser humano ”. 

“ Kierkegaard, explica Tillich, representou a ala religiosa da filosofia existencial. Ele nunca se considerou filósofo, e os que acham nele um tipo clássico de pensador existencial, muitas vezes se mostram reticentes. Mas sua obra revela conexões mais íntimas. Como pensador religioso, entretanto, produziu uma psicologia dialética que contribuiu para a interpretação anti-racionalista e antimecanicista da natureza humana ”. 

A vida é o bem maior, o modelo de escolha. A escolha do bem-fazer então é esta: a vida, caminho que fica entre o crescimento e a decadência. A linha-força do caminho da vida é o caminhar...

“ Murió el poeta lejos del hogar. Le cubre el polvo de un país vecino. Al alejarse le vieron llorar. "Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso... Cuando el jilguero no puede cantar. Cuando el poeta es un peregrino, cuando de nada nos sirve rezar. "Caminante no hay camino, se hace camino al andar..." Golpe a golpe, verso a verso ”. 

Assim, esta correlação entre política e religião oferece um quadro dramático, já que expressa a polaridade entre atitude existencial e expressão filosófica. Dessa maneira, todos os que se colocam ao lado da vida como incondicionalidade enfrentam tal paradoxo, equilibrar o elemento existencial por um lado e o pensar filosófico por outro. Diante da vida, não se é apenas filósofo, mas antes pessoa-que-vive. Por isso, todos, filósofos e apaixonados radicais pela vida reagimos, na teoria e na prática, ao destino histórico cuja realização acabamos por promover quando o atacamos. Mas foi assim que a filosofia da existência traduziu sua revolta contra a alienação na sociedade industrial. 

E, sem dúvida, esse viver radical e esse pensar existencial continuam necessários diante do espraiar-se da alienação e da barbárie na modernidade tardia.


Capítulo Três
O CAMINHO DO HUMANO


Construímos a trilha seguindo pegadas que têm por base os escritos socialistas do amigo Tillich, e do não menos amigo Dussel. A partir de tais pegadas, apresentamos algumas considerações sobre a ética enquanto caminho humano.

Para Tillich, sem uma visão universal da ética enquanto essência do humano, não podemos falar de chamado, destino, vocação. Ou seja, não se pode fundar uma ética apenas sobre o terreno da pessoa. 

Mas, ao mesmo tempo, é importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, que seria a fonte e a razão da ética, pois essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não é possível construir uma ética social absoluta.

Ética e essência são concretas. A essência se situa num momento determinado, pleno, é universalidade que comporta riscos. Não se move numa globalidade abstrata, separada do tempo e das situações, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética de um grupo social.

Exatamente por isso, a realidade essencial comporta dois aspectos: aquele que a chama de volta à sua origem, ao fundamento e abismo da existência; e outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude. 

Assim, a realização da essência se orienta em direção a ela própria, na medida em que a manifestação do criativo remete ao eterno. Exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a ética transporta a transcendência e ao mundo, que em última instância são o bem da existência.

Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência, falamos da ética enquanto geografia da vida e podemos dizer que ela é o caminho da existência. Tal compreensão nos leva a estudar o desenvolvimento estratégico desta essência enquanto vida que brota na história e cria o novo.

Por isso, ao analisarmos o surgimento do socialismo temos de levar em conta aspectos históricos, assim como os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Essa trilha é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual o socialismo constrói a sua ética.

O ser humano, por ter a existência enquanto realização essencial, é chamado a um posicionamento transcendente, capaz de julgar e transformar, de resistir aos impactos do caos e das catástrofes históricas. De todas as maneiras, as pessoas na alta modernidade ocidental, embora tenham conquistado um crescente espaço e tempo de liberdade, sentem-se inseguros na autonomia. Isto leva os diferentes grupos religiosos a procurar restringir os espaços e tempos de liberdade, julgando que isso trará mais segurança pessoal, através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que quem conquistou a liberdade, transcendeu, e essa é uma experiência viva, difícil de ser abandonada, esquecida ou quebrada.

Há um conceito construído por Tillich que nos ajuda a compreender o diferencial que une liberdade e protesto. É o conceito de situação-limite, que se refere a toda ameaça à existência, àquilo que tira dela sua essencialidade. Esse conceito nasceu da leitura cristã reformada da justificação pela fé, que entende que a vida em liberdade significa aceitar a exigência incondicional de fazer o bem e realizar a verdade. Assim, ao compreender o conceito de situação-limite vemos que há um abismo entre aqueles que falam a favor da hierarquia e da tradição e aqueles que se mobilizam pelo princípio do protesto crítico e transformador. A justificação pela fé passa, então, a ser entendida a partir da situação-limite.

Em sua história, o cristianismo social, de combate, mostrou que tem mais afinidades com determinadas formas de organização social. A ética cristã do compromisso solidário leva o cristianismo a uma postura crítica diante da ordem social que se apoia na exclusão e na opressão. Dessa maneira, nos anos 1970, o cristianismo social, de combate, foi desafiado a fazer a crítica do capitalismo selvagem e do militarismo que grassou no Terceiro Mundo.

A ética do compromisso solidário condena o egoísmo globalizado da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra. Assim, esta ética diz que os povos, sejam ricos ou pobres, devem se submeter à idéia do direito e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz.

Muita gente acha que eliminar o egoísmo quebraria o estímulo à concorrência, diminuiria o desenvolvimento e reduziria a produção. No entanto, a partir da solidariedade cristã, vemos que o ser humano não existe para produzir, mas que a produção deve suprir necessidades e, por isso, o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

Mas para que isso aconteça é necessário que aqueles com consciência crítico e militância voltada para a transformação juntem forças. Mas o que vimos, nos últimos dois séculos, é que as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores olharam com desconfiança, quando não com total desprezo, a militância cristã. É claro que tal afastamento não é fruto do acaso, já que a história da Igreja tanto no passado, como no presente, é passível de muitas críticas. Suas opções e alianças fizeram como que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades.

Tal situação facilitou e potencializou a pregação do ateísmo e do materialismo. Mas, ao contrário do que pode parecer, não se pode dizer que o ateísmo seja um fenômeno constitutivo do socialismo. É uma herança da cultura burguesa cética. Essa herança foi adotada pelo socialismo porque acreditou que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um mundo mais digno e justo.

Assim, embora haja razões históricas para criticar a Igreja, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária do ideal cristão. Quer dizer, ainda há em setores socialistas uma hostilidade contra o cristianismo. Hostilidade esta que fere a ética socialista, tão próxima daquela proposta pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos.

Ora, se as idéias socialistas não traduzem nenhuma oposição essencial ao cristianismo e à Igreja que vive o princípio do protesto crítico e transformador, os cristãos podem sem nenhum temor ter uma atitude positiva em relação ao socialismo. Atitude positiva deve ser entendida como a realização do princípio do compromisso solidário, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram exclusão e miséria. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de outra ordem social, que sem deixar de ser internacional, inclua excluídos e periféricos. Isto porque o socialismo não é só necessidade e tarefa de operários e trabalhadores fabris, mas ideal ético que traduz anseios e esperanças de diferentes setores da comunidade.

Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, constata Tillich, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos, a consciência europeia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.

Assim, princípio protestante traduz transcendência não limitada ao sujeito, mas que se realiza no grupo e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da essência mesma do ser, que remete ao ilimitado, mas também ao finito, que se operam o protesto e a transformação. 

Foi Descartes quem deu um golpe decisivo no autoritarismo ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. A autoridade não pode me livrar da dúvida, pois é em mim, somente, que se enraíza a certeza. E dessa formulação cartesiana o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica. O combate ao feudalismo e ao capitalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derrubou barreiras e reconheceu o humano em cada pessoa. 

O que fica claro é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade europeia no período que se abre a partir do Iluminismo e que põe em xeque a tradição e o autoritarismo, servirá de base para a ação socialista. A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo vai construir um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida. A luta dos trabalhadores contra a alienação e a exclusão social vai gerar consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.  

Não entendemos o cristianismo social, de combate, como confissão exclusiva, mas como irrupção da fé absoluta, única incondicionalidade, que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros. Nesse sentido, é a teonomia, que traduz a experiência da profundidade última, a incondicionalidade do Sim e do Não sobre todas as coisas e méritos, e a supressão entre o em cima absoluto e o em baixo relativo, que pode levar transcendência ao socialismo. O espírito religioso que existe no socialismo, enquanto vibração de graça e fé que circula nas massas, não deve ser negado, nem execrado pelo cristianismo. Ao contrário, é o cristianismo que pode fecundar a autonomia socialista. Estes são os fundamentos de uma unidade entre o cristianismo social, de combate, e o socialismo, que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 

Chamamos ao diálogo aqueles religiosos socialistas que enfrentam conscientemente a situação-limite dos governos que minam as conquistas humanas dos pós-Guerra. Mas reconhecemos as limitações da utopia socialista. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no Terceiro Mundo, em grande parte, é o resultado da utopia socialista desencantada. É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a irrupção no tempo, sem contudo fixar-se nele. Assim, a realização da visão crítica e transformadora se encontra além do tempo, lá onde a utopia desaparece, mas não a sua ação. 

A resistência ao impacto da catástrofe histórica é tarefa ação crítica e transformadora, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio profético envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, o espírito da ação crítica militante leva, sob o capitalismo, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para Tillich, a situação do proletariado não é algo opcional, que podemos considerar ou não. 

Devemos nos perguntar se “o socialismo não representa certo tipo religioso especial, originado no profetismo judaico que transcende o mundo dado e vive na expectativa de uma ‘nova terra’—simbolizada na sociedade sem classes, numa época de justiça e paz (..). Também deve (mos) indagar, a luz do princípio protestante, se o movimento proletário não representa certo tipo de movimento leigo que, embora distante de qualquer expressão teológica, dá testemunho da situação humana com suas deformações e promessas ”.  

A contra-cultura nos seus vários aspectos, artísticos, defesa de uma visão de transformação da realidade e ação socialista, deve ser vista enquanto tradução do princípio da autonomia. Há uma ruptura dos princípios controladores da cultura individual e social. Mas nessa aparente restrição às relações finitas, há uma dialética que inclui a teonomia, já que o caminho da autonomia tinha que ser percorrido até o fim, até o momento da irrupção de um novo kairós. Assim, mais uma vez, o que parece relativo, particular e frágil, torna-se veículo do absoluto, embora nada relativo possa se transformar em absoluto. 

Metodologicamente, toda mudança exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito da ação e da crítica um choque entre este kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o espírito desta crítica transformadora. O sujeito da transformação será, em última instância, as pessoas, as comunidades, os organismo de classe dos trabalhadores.

Vemos, então, que a imediaticidade das massas faz com que desabroche nela instintos biológicos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio espiritual imediato: a disponibilidade à compreensão da transcendência do momento presente. Essa imediaticidade é o que levam as massas ao irracional de baixo, à demência, ou ao irracional de cima, à novidade criadora. 

Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocional e intelectual são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. Assim, a massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara o espírito objetivo  no momento presente.

Quando a massa vive esse processo de espiritualização, nela, religião e cultura se misturam. A esse momento de evolução das massas, Tillich chama de massa mística. Assim, o movimento das massas tornam-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. Assim, o movimento dinâmico da massa  parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.

Vemos aqui que Tillich tem uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Sem desejar neste estudo – já que este não é seu objetivo – fazer um confronto entre os dois pensadores, tocamos apenas no ponto que metodologicamente nos interessa: o espírito profético, conforme vimos, não se limita ao profeta ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite.  

Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem o retorno aos clássicos do socialismo, a invocação do direito contra a presença do arbítrio, e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 

O protestar e o clamor da crítica não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética socialista se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica.

E retomamos uma velha questão, insistentemente discutida a partir das barricadas de maio de 1968. Será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático? Se a estratégia de formação de um partido socialista de massas visa chegar a um fim que traz êxito é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 

A visão de apresentar a formação de um partido socialista de massas como estratégico, apoiou-se na fórmula proposta por Rosa Luxemburgo de que o socialismo não está ligado à organização dos trabalhadores, mas é ele próprio movimento da classe operária. Assim, o sujeito do socialismo é a massa orgânica de Tillich ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 

O intelectual, por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere ao socialismo não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro. Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a ética socialista proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.

A ética socialista deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. Os regimes que confrontam as conquistas humanas do pós-Guerra semeam prisões, fome e morte. O autoritarismo se realizava como fetiche, já que o arbítrio se ergue como critério de verdade, destruindo vidas humanas, e a dignidade de milhões de pessoas. É por isso que o socialista religioso, crítico e militante, se esforça para apresentar um princípio universal: o dever da construção de alternativas políticas próprias aos excluídos. Princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelos regimes que buscam o arbítrio.

Assim, chegamos ao sujeito histórico, a massa orgânica, a liderança sindical aguerrida, que surge das lutas, que podem dirigir esse processo de transformação da sociedade não apenas mudando o sistema, mas apresentando à sociedade uma nova ética, a ética do direito à produção e reprodução da vida. Donde é natural que se faca a pergunta: o que é um partido político de esquerda? Na resposta correta a essa pergunta está a centralidade do pensamento socialista. 

Antes que nada é parte de um elemento, o desenvolvimento econômico e social dos últimos cinquenta anos, que geraram novas classes, uma classe operária industrial, altamente concentrada nos grandes centros urbanos e uma classe média assalariada moderna. Essa combinação de fatores, o surgimento de estratos novos na sociedade e o conjuntural condicionam o surgimento de fenômenos novos na sociedade. Assim, podemos dizer, que há uma nova realidade social; mobilizações e lutas que acontecem de forma crescente e geram novas experiências, não somente sindical, mas democráticas e política; a não existência de alternativas para esta nova vanguarda, que necessita expressar-se politicamente; e que esta necessidade se expressa através de algumas direções de classe e sindicais.

De toda a maneira, a revolução não está nos planos das lideranças tradicionais da esquerda. Sua intenção é de que todos os dirigentes sindicais, assim com o ativismo, estejam controlados pela acomodação política existente. Esta é a única garantia para a burguesia, enquadrá-los e vencer o movimento de massas através de uma reformas democráticas, de maquiagem controlada, entrilhando seu descontentamento para a luta estritamente parlamentar.

A construção de qualquer alternativa passa por grandes dificuldades. Como os dirigentes sindicais se movimento através da mediação entre a questão democrática e política, por necessidades, e não exatamente por um salto de consciência, passa a ser de difícil concretização de transformações que visem reformas de base. Os dirigentes sindicais procuram partidos que possibilitem responder às necessidades imediatas que têm. Se entendemos o conceito de massa em Tillich enquanto movimento que caminha através do princípio da palavra reveladora e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um caminho próprio. 

É o que Tillich chama de dinamismo revolucionário, esclarecendo que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela o veículo do destino. Mas, a conciliação fraturou a utopia, embora mostre que o kairós aponta para a formação de algo inteiramente novo.

E onde entra aí a questão da revolução? O discurso ético socialista é o elemento fundamental da transformação prática, isso leva, no sentido estrito, a uma ética de transformação não reformista, à transformação plena. Mas a transformação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado esta o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios definidos e de um princípio ético geral que possibilitaem cumprir às mediações existentes.

Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios éticos gerais, a fim de que, com factibilidade, se possa negar as causas da negação dos excluídos. Esse é um momento negativo do protesto, onde os meios devem ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto é feito. Mas se por um lado o protesto traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva a uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confronta a utopia e a fecunda, transformando-a em utopia possível.

No que se refere à sua luta contra os regimes de arbítrio, discricionários, a organização dos trabalhadores tem por base uma ética socialista, onde a autonomia se vê fecundada pela ética religiosa de fraternidade. Donde, é necessário e possível fazer uma leitura religiosa-libertadora dos clássicos socialistas e uma apropriação da ética vivida e pregada pelos modernos mártires da religião no mundo. Há também uma ruptura com as posições marxistas clássicas, favoráveis ao papel hegemônico do intelectual orgânico dentro da organização política, e a defesa de que as vanguardas classistas, a massa orgânica, seriam realmente a direção política e social do movimento real de transformação da sociedade brasileira.

Cabe ao intelectual enquanto individualidade levantar a ética socialista como protesto negativo diante de uma sociedade que vive uma situação-limite. A esse intelectual cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério vida versus morte. Sem dúvida, o intelectual era desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante dos excluídos e da paranoia fundamentalista.

Uma tal visão abre perspectivas interessantes na compreensão da ética socialista e na análise de diferentes situações históricas, em especial do momento vivido nesta terceira década do presente milênio. A questão da transformação da sociedade, a luta pela democracia humana e social podem ser compreendidos melhor através do caminho metodológico construído por Tillich em seus escritos socialista e aggionados por Dussel. E como Tillich afirmou, em declaração ética cheia de esperança, “ todas as questões convergem para uma mesma resposta: a humanidade deve ter origem nas profundezas de um novo conteúdo, onde será superada a oposição entre massa e personalidade. Onde um novo conteúdo será produto da graça e do destino ”.  

Todo o processo que se dá nestas três últimas décadas é rico porque correlaciona ações e realidades, como o fato de que setores do movimento de massas se mobilizem a partir do sindical, mas também combinem o democrático e o político e geram uma importante vanguarda, mas se dá de forma desigual e combinada, mais ainda, não é um fenômeno ideológico, mas concreto. 

Diríamos que se dão, em correlação três construções de consciência. Um primeiro mais amplo, que é o sindical-classista e que se traduz no surgimento de novas vanguardas, em sindicatos que buscam a autenticidade. A segunda construção de consciência é o classista-político, o mais heterogêneo, que se traduz na compreensão empírica, vacilante e não claramente definida, da necessidade de alternativas políticas independentes, que expressem as necessidades mais gerais da classe trabalhadora. Isto é um forma de laborismo. E o terceiro construção de consciência é o da consciência revolucionária, daqueles que entendem a necessidade de uma alternativa socialista, de combate, para a transformação da sociedade.

Sem entender que existem níveis diferentes de construção de consciência e desigualdades não entenderemos o processo vivido pela vanguarda socialista presente hoje em nossos países. A construção das alternativas depende dos próprios trabalhadores. A participação dos socialistas nesta construção pode ser fundamental, mas ainda assim é secundária. De todas as maneiras, caso se concretize, será talvez o maior salto que a classe operária já deu no processo de consolidação de sua consciência-para-si. E, um rombo efetivo nos planos de hegemonia da burguesia internacional.

Diante desse momento histórico, perguntamos e respondemos como Tillich: 

“É possível que a mensagem do kairós esteja errada? A resposta não é difícil. A mensagem está sempre errada; percebe algo imediatamente iminente que, considerado seu aspecto ideal, jamais se tornará real e que, considerado seu aspecto real, só poderá se realizar depois de longos períodos de tempo. Contudo, por outro lado, a mensagem do kairós nunca estará errada; pois onde quer que o kairós seja pregado como mensagem profética, já se fará presente; pois é impossível que venha ser proclamado com poder sem ter possuído aqueles que o proclamam”.   


PARA VIVER A PRÁXIS


Assim, a religião -- e aqui nos referimos aos fundamentos religiosos do Ocidente, judaísmo e cristianismo -- enquanto hermenêutica dos universos simbólicos, permite uma abordagem do problema do poder, principalmente quando partimos de duas perspectivas fundamentais nessa leitura: a antropológica política, que percebe o simbólico como fundante da vida social, e a ética que, ao dar ênfase às instituições, pensa a relação entre instituições e estruturas políticas. 

A distância que separa o ser e a consciência é necessária para que o ser se eleve à consciência. Por isso, consciência supõe não somente uma ligação ao ser, mas também um distanciamento que permita reflexão. Assim, aquele que é confrontado em sua ligação original com um grupo ou com uma classe é chamado a dar consciência a outra classe que não é a sua. E toma como exemplo Marx, que não era proletário, mas rompeu com sua classe de origem e se colocou a serviço de outra. Marx mostrou que a relação entre a situação social e o pensamento político deve se elevar da esfera biográfica para aquela das relações funcionais. Tal realidade leva a palavra princípio a caracterizar de maneira global os grupos políticos, pois deixa de lado a esfera biográfica e permite ao pensamento extrair a multiplicidade de fenômenos que constitui a característica comum a todos os indivíduos.

Normalmente, esta tarefa se cumpre com ajuda do conceito de essência, pois a relação entre essência e fenômeno domina a teoria do conhecimento. Porém a lógica da essência não é suficiente para explicar as realidades históricas. A essência de um fenômeno histórico é uma abstração, de onde se expulsou a força viva da história. Isso levou Tillich a buscar a essência do socialismo na própria história e nos mitos que lhe deram origem, afirmando que o socialismo é um movimento de oposição, um movimento de oposição à sociedade burguesa, mas enquanto mediação uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajuda a entender as raízes do pensamento político que lhe deu origem. Tillich parte de uma filosofia onde seu referencial primeiro é o ser. Mas para ele, não se pode entender o socialismo caso não se experimente a exigência de sua justiça como uma necessidade incondicional, pois quem não é desafiado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser de forma superficial. Não pode falar dele porque é contrário àquilo que ele defende. É por isso que a leitura filosófica de Tillich sobre política e socialismo rompe as bases preconceituosas sobre tal debate e possibilita abordar o assunto, a partir da correlação, sem estigmatizar grupos e movimentos. Logicamente, por olhar a realidade a partir de um momento específico da história, que se dá na Europa, entre as duas guerras mundiais, faltaria nesta abordagem filosófica de Tillich o olhar latino-americano, o aggiornamento, que, mesmo reconhecendo as estruturas comuns à história do pensamento político, indicassem novos aspectos e movimentos, entre os quais a presença cristã institucional e invisível em nossas sociedades. 

Dussel complementa Tillich através de uma filosofia da religião que é um pensar sobre a eternidade, mas uma eternidade cúmplice na construção da história, que se faz presente no outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. Para Dussel, crer na cumplicidade da eternidade é compreender o sentido da história, que ele nos apresenta através do outro. 

Os estudos desenvolvidos por Tillich, assim como o aggiornamento de Dussel, nos dão instrumentos para uma compreensão da realidade política, quer a partir da leitura das raízes antropológicas, quer ética. E é a partir das justificativas expostas, e definido tal campo motivacional, que nos armamos de razões instrumentais e referenciais para desenvolver uma ação política que leve em conta o final de um momento humano, tanto em relação ao desmoronamento democrático, quanto em relação às perspectivas de construção do futuro, apesar de ser este um momento de crise ética, que ameaça, sobretudo, a esperança.

A relação que Tillich e Dussel construíram entre religião e socialismo, e como tais correlações se apresentaram na modernidade e no século XX, apresentam a idéia-chave de que o socialismo traduz a exigência incondicional de justiça e por isso não pode ser entendido quando separado da ética que lhe deu origem. Da mesma maneira, reportamos a Dussel e seu conceito de religião enquanto infraestrutura, ou seja, enquanto estrutura crítica da totalidade do sistema que oprime, o que dá à religião função histórica essencial. E é a partir de tal metodologia que devemos construir a relação entre política e teologia, focando questões como democracia, justiça e socialismo. 

A práxis da teologia deve partir, assim, do universo simbólico como fundante do pensamento político e da vida militante, com abordagens do problema do poder em suas relações com estes universos simbólicos. E nessa construção da vida militante, profética no sentido de crítica e revolução dos sistemas que excluem, oprimem e matam, vemos o caminho do humano.


Bibliografia

Textos de Paul Tillich


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