lundi 27 avril 2015

2.610 minutos antes

2.610 minutos antes

É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.

Escrevi: “em Praha fixo irado”. E disse para a Brianda, minha mulher, algum maldito vai rescrever “em Praha fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Praha fixo irado” porque no meu antigamente houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre a amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Praha fico irado. Não fico irado não, fixo irado.

Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?

Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Praha fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida. 

Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Praha, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a alegria, a liberdade e o pensamento. 

Brianda comprou cerejas numa banca de frutas em frente à universidade Charles de Praha. É tempo de cerejas em Praha e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.

Veja como é guadiana. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Clément e Renard. Foi escrita e musicada em no antigo século dezenove, antes de explodir a comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses. Mudou a maneira de se pensar o solidarismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o hotel residencial Londres, que fica na ulice Londres, em Praha. O prédio foi construído depois da primeira guerra geral do século vinte, e algumas décadas depois transformado em hotel por um casal cheio de charme, os Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na ulice Londres, no hotel residencial Londres fui preso no terceiro dia do ataque dos guardiães. 

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher, serviu o sangue da virgem num cálice, cada gole tem o sabor da vida derramada, mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras, a rua está perfumada, a alameda é atravessada.

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela e Pablo de lado. São momentos de sacralidade do dito e escrito. Pablo tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira amada, Matilde. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Sharon no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante peregrino. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta peregrino. 

E viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a alegria, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Sharon descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Brianda desaparecida a fotografar.

O tempo das cerejas fugirá para outras bandas, Miró mia nas minhas lembranças, rabisco no La Chascona ao poeta, bardo brado, por onde anda a ode? Flagelo e sal, sangue e semente, formigas desfilam sobre o açúcar derramado, você e eu descarrilados, por poemar instantes, beleza é água na garganta seca.