lundi 4 juillet 2016

Transformar o mundo


Transformar o mundo
Jorge Pinheiro

Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. 

E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades.

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. 

Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente, como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.

Ora, se o presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do reinar de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. 

Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. 

Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões sociais, raciais, de gênero e outras.

E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.

Esse futuro deve ser momento concluído, texto, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.

Esses desafios nos levam à compreensão da práxis cristã, que chamamos de princípio protestante. Este princípio central do protestantismo é a teologia da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. 

Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados.

Cada protestante tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.