vendredi 16 novembre 2007

Teologia da Missão

Por Jorge Pinheiro, PhD

Nesses estudos que começamos a desenvolver sobre a Teologia da Missão queremos reafirmar alguns conteúdos e expor outros. Assim, começamos, à guisa de definição, afirmando que a Missão é comunicação e presença do evangelho. Com isso queremos dizer que essa teologia correlaciona comunicação e presença, sem colocar um sinal de igualdade entre essas realidades e sem declarar que necessitam sempre ser levadas a termo juntas. Na Missão, a comunicação tem conseqüências sociais porque convoca pessoas e comunidades ao arrependimento e ao amor pelos outros em todas as áreas da vida. 

A Missão vê compromisso social como comunicação e presença, que tem consequências para a proclamação da boa nova que se dá através do testemunho da graça do Cristo. Quando há silêncio e cruzar dos braços diante dos sofrimentos do mundo, a Palavra é traída, já que nessas circunstâncias não há o que oferecer ao mundo. 

A Missão tem como um de seus pilares a diaconia, que em seu sentido cristão significa serviço ao próximo. Diante da alegria pelo que Deus tem feito, ao abençoar as vidas, a Missão propõe como resposta a promoção da diaconia. Nesse sentido, Missão e diaconia são expressões que não podem vir separadas.

Nas primeiras comunidades cristãs, a diaconia teve característica singular de testemunho de fé por meio da vida solidária (At 2.44-45; 4.32-35), já que, como disse Paulo, "se um membro sofre todos sofrem com ele" (1Co 12.26). O fundamento dessa ação solidária repousa nos ensinos e prática de Jesus Cristo. Por isso, para a Missão, o amor a Deus só é possível se este alcança o próximo (1Jo 4.20). Na prática, amar ao próximo consiste em propiciar dignidade humana e reintegração na sociedade (Mt. 9.35+). Por seu ministério e morte, Cristo assumiu a fraqueza humana e sofreu o poder de morte do mundo para, então, superá-los. Assim, a Missão desafia ao testemunho do amor de Deus, enquanto ação solidária. 

A Missão é sentido e luta incondicional pela justiça, entendendo que a justificação pela graça, através da fé, não se refere apenas a fé posicional, mas existencial. É uma instrução de que falamos de Cristo na vida da comunidade de tal maneira que a justificação se transforma em vida aberta. E, assim, é fé material, política, e espiritual, já que transformação da pessoa e transformação estrutural estão correlacionadas. Ser, fazer e dizer, então, estão no coração da teologia da missão integral.

Missão é teologia da transformação

1. É uma teologia da centralidade em Cristo, pois a vida de serviço sacrificial de Jesus é o paradigma. Em sua vida e por meio da sua morte, Jesus estabeleceu o modelo de identificação com os excluídos e o exercício da inclusão. Na cruz, Deus revela a seriedade com que Ele olha para a justiça e reconcilia consigo integrados e excluídos, ao cumprir com os requerimentos de sua própria justiça. No caminhar com os excluídos de bens e possibilidades, serve-se no poder do Senhor por meio do Espírito e encontra-se a esperança em submeter todas as coisas a Cristo. 

2. É uma teologia da graça de Deus, que concede impulso à comunicação permanente onde todo e qualquer locus é campo privilegiado. Como receptores do amor somos pessoas agraciadas pela generosidade e aceitação dos demais. Tal graça define a justiça frente à situação-limite vivida pelo povo brasileiro, não somente como contrato que deve ser honrado, mas como serviço àquele que se encontra à margem, caído.

3. É uma teologia do Espírito, um convívio com o Espírito, já que este é o sentido cristão da palavra espiritualidade. Dessa maneira, a idéia de uma vida forte, a idéia da vitalidade de uma vida criativa a partir de Deus nos leva à espiritualidade, ou seja, a uma vida espiritualizada por Deus. 

Por isso, podemos dizer: as pessoas procuram a Deus porque o Espírito as atrai para si. Estas são as primeiras experiências do Espírito no ser humano. E o Espírito as atrai como um imã atrai as limalhas de ferro. O íntimo e suave atrativo de Deus é experimentado pela pessoa em sua fome de viver e em sua busca de felicidade, que nada no universo pode satisfazer ou saciar.

A espiritualidade da vida se opõe à mística da morte. Quanto mais sensíveis as pessoas se tornam para a felicidade da vida, mais sentem a dor pelos fracassos da vida. Vida no Espírito é vida contra a morte. Não é vida contra o corpo, mas a favor de sua libertação e sua glorificação. Dizer sim à vida significa dizer não à guerra e suas devastações. Dizer sim à vida significa dizer não à miséria e suas humilhações. Não existe uma afirmação verdadeira da vida sem luta contra tudo que nega a vida.

O Espírito é o acontecer da presença atuante de Deus, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o senhorio de Cristo.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Deus não é experimentado somente como Pessoa da Trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

E onde está o Espírito há liberdade. Com essa experiência do Espírito, Paulo falou sobre a liberdade cristã. Mas para falar da liberdade no Espírito é necessário começar pela fé.

A fé é geralmente entendida como uma concordância formal com a doutrina da igreja ou como uma participação na fé da igreja. Mas a fé que liberta é mais do que isso, é uma fé que nos envolve pessoalmente. A fé que me faz livre não é somente a fé com a qual eu concordo, mas aquela que me leva a partir e repartir o pão e o vinho. Tal fé pessoal é sempre comunitária e o início de uma liberdade que renova inteiramente a vida e vence o caos.

Essa fé é uma experiência que não abandona aqueles que a vivenciam realmente: é libertação do medo para confiança, reviver para uma esperança viva, amor incondicional à vida.

Para a fé que parte e reparte pão e vinho, a liberdade não consiste nem na compreensão de uma necessidade histórica, nem na autonomia sobre si próprio e sobre a propriedade, mas sim no ser tocado pela necessidade do outro que sofre. Fé significa assim, posicionamento existencial, ser criativo diante dessas gentes brasileiras, com suas comunidades, com Deus e no seu Espírito. Crer leva a uma vida criativa e vivificante pelo amor. Crer, por isso, significa ultrapassar os limites da realidade determinada pelo passado marcado pela escravidão e pela exclusão e buscar as possibilidades da vida que não se realizaram. E é essa fé que livra da força do mal, da lei das obras e do poder da morte e leva a uma comunhão direta com o meu próximo e eterna com Deus. Essa é a base e o fundamento da liberdade no Espírito. 

4. É teologia da imagem de Deus, e nesse sentido uma teologia para os excluídos, que como todos os humanos são portadores da imagem de Deus Criador. Pessoas e comunidades excluídas de bens e possibilidades têm conhecimentos, habilidades e recursos. Tratar tais pessoas com dignidade significa propiciar condições para que sejam arquitetos de mudança em suas comunidades. Trabalhar com elas envolve a construção de relações que conduzem a uma mudança mútua. 

5. É uma teologia para a Igreja, porque Deus por sua graça tem dado as comunidades de fé o desafio da comunicação. O futuro da comunicação se define em termos de expansão do reino de Deus, capacitando as gentes para que transformem suas comunidades. As comunidades de fé devem gerar espaços e tempos de inclusividade, como fruto natural do chamado que receberam. As pessoas e mesmo as comunidades são atraídas por este fazer de amor das comunidades cristã. E é a partir daí que são impactadas pela mensagem cristã. 

6. É uma teologia para o Reino de Deus, comunitária, porque a experiência de caminhar com as comunidades excluídas deixa uma interrogação sobre o que significa ser comunidade de fé. A igreja pode ser mera instituição ou organização, mas é nas comunidades de fé em Jesus que se concretizam os valores do Reino. A participação dos excluídos na vida das comunidades de fé possibilita o encontro de novas maneiras de ser igreja no contexto da cultura brasileira, ao invés de ser simples reflexo dos valores da subcultura dominante. A comunicação tem credibilidade na medida em que adota uma aproximação encarnada. Com freqüência as comunidades de fé têm-se dedicado à obtenção de dinheiro, êxito e influência. A comunidade que Jesus Cristo denominou seu pequeno rebanho faz parte do Reino de Deus. As tradições eclesiásticas não podem dificultar o que a Igreja já fez pela expansão do Reino. A igreja pode enfrentar o problema da miséria quando trabalha com os miseráveis e, a partir daí, pressiona atores sociais com a sociedade civil, os governos e o setor privado, sobre a base do respeito mútuo e o reconhecimento do papel de cada participante. 

7. É uma teologia social, de apoio às transformações sociais que favoreçam os excluídos e caminhem na direção de acabar com a miséria no Brasil. Vejam de onde vierem essas ações transformadoras. Tais atividades se ampliam para incluir avanços em direção à transformação de valores, o reconhecimento da dignidade das comunidades e a cooperação em questões de justiça. Com sua presença ao lado dos excluídos, as comunidades de fé colocam-se numa posição singular que favorece o trabalho para restaurar a dignidade concedida por Deus, apresentando valores para que produzam recursos próprios e criem redes de solidariedade. 

8. É uma teologia da cidadania, de consciência de direitos e deveres de cada pessoa como integrante de uma coletividade, entendendo-se essa coletividade em todas as instâncias do Reino de Deus e de sua presença no mundo. Isso pressupõe a igualdade, que transpõe barreiras de nível sócio-econômico, de etnia, de faixa etária, de sexo, de cultura, de situação civil, de deficiência física, de instituição e, também, pressupõe a unidade na pluralidade, pois trata da existência humana sobre a face da terra, e seu direito à vida, à liberdade, à propriedade, ao trabalho, à educação, à saúde, ao entretenimento e à cultura. É uma teologia por si só inclusiva, pois se contrapõe à opressão, à omissão, à rejeição e à massificação. É também uma teologia espacial, pois considera o mundo como oikos, precisando ser preservado, cuidado, adaptado, sinalizado, para usufruto e bem estar do ser humano; o que integra as demais criaturas de Deus, como parte de seus direitos e deveres, de coroa da Criação. 

9. É uma teologia ecológica, que envolve o uso responsável e sustentável dos recursos da criação de Deus e a transformação das dimensões morais, intelectuais, econômicas, culturais e políticas da vida. Isto inclui a recuperação de um sentido bíblico de mordomia. O conceito bíblico do sábado recorda que se deve por limites ao consumo. Os cristãos integrados no Brasil devem usar sua riqueza e seu poder a serviço dos demais. É um compromisso de trabalhar para libertar os ricos de sua escravidão ao dinheiro e ao poder. A esperança de tesouros no céu livra da tirania de Mamon. 

10. É uma teologia do amor, da paz e da reconciliação, porque num mundo de conflitos e tensões étnicas tem-se falhado na tarefa de construir pontes. A Missão trabalha pela reconciliação entre comunidades divididas etnicamente, entre integrados e excluídos, entre opressores e oprimidos. Reconhece o mandato de falar por quem não pode clamar por si mesmo e, também, a necessidade de defensoria tanto para tratar da injustiça estrutural, como para resgatar o próximo necessitado. Essa teologia clama por outra globalidade, solidária, pois a globalização excludente é o domínio de culturas que têm o poder de promover seus produtos, tecnologias e imagens além de suas fronteiras. A luz deste fato, as comunidades de fé com sua rica diversidade desempenham um papel singular por ser uma comunidade verdadeiramente global. 

E, por fim, nessas reflexões sobre a Missão diremos que é uma teologia da solidariedade, que faz a crítica da globalização selvagem e chama pessoas e comunidades cristãs à uma solidariedade construída ao redor de propostas e ações de justiça e paz. A Missão considera que os países desenvolvidos devem reconhecer seu papel no desenvolvimento de uma economia global solidária, onde estão incluídas novas formas de pensar e agir em relação ao continente latino-americano. 

A Missão reconhece o valor do planejamento, da organização, da avaliação e de outras ferramentas similares, mas afirma que estas devem estar a serviço do processo de construção de relações e valorização dos excluídos latino-americanos, sejam eles pessoas ou comunidades.

Dessa maneira, a Missão faz um chamado à solidariedade, entendendo que pessoas e comunidades cristãs devem ajudar aqueles que clamam pelos Direitos Humanos essenciais e apoiar aqueles que se dedicam a melhorar as condições de vida e possibilidades das populações desprovidas de bens e possibilidades.