jeudi 22 avril 2021

Aquele que matou Ícaro

Aquele que matou Ícaro
Jorge Pinheiro

Peça em três atos. Todos os personagens estão em cena desde o início, apenas o jogo de luz define o cenário, quando os personagens em cada ato são iluminados. Quando um personagem fala, a luz vai se tornando mais intensa. Quando ele se cala, a luz declina. E quando o outro personagem fala, iluminado, vive processo idêntico. No palco há um espelho, que fala como imagens de televisão. As imagens em bricolagem desfilam enquanto Macário, o espelho, fala. Mas, outras montagens, cenários e luzes são possíveis. O diretor define. Para os leitores, fica o desafio: façam a leitura do texto em voz alta. Depois dos ensaios, convidem os amigos e vizinhos. Encenem. O teatro faz bem à alma.

Primeiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Bom dia, Macário.
Macário -- Bom dia, Dédalo.

Macário (continua) -- Por que você abandonou Ícaro, como Jefté fez com a menina? Eu bem que avisei você, Dédalo. Eu disse para você não fazer como Jefté, que disse: eu queimarei em sacrifício aquele que sair primeiro da minha casa para me encontrar quando eu voltar da guerra. Eu o oferecerei em sacrifício ao Eterno. Você tinha que dominar a sua arte, caso contrário ela se tornaria inimiga, se colocaria à porta do seu coração como uma fera querendo saltar em cima e devorar você. Cabia a você dominá-la.

Dédalo -- Dominá-la! Dominá-la! O que significa isso, Macário? E quando eu me engalfinho com ela, quando dou pernada e levo sopapos da minha arte, para ter controle sobre ela, já não estou tão envolvido, que de bela fera imaginada ela já não é realidade vivida no peito que dói?

Macário -- Mas eu vi quando você abandonou Ícaro. Você o levou lá para cima, acima das colinas, das pastagens de Creta, vagando pelo azul, e não ficaram os dois, um e outro, o par olhando para as ondas debaixo. E vagou com as nuvens, flutuou na imensidão, cheio de prazer e realização. Coitado de você Dédalo, arquiteto de engenho e arte. Você se bastou, deixou o menino se esgueirar alucinado em direção ao sol forte.

Dédalo -- Para você é fácil julgar, Macário. Você é reflexo da minha loucura, assim como foi reflexo dos caminhos de meu filho. Você é meu inverso, como foi dele, você se mexe, mas está fixo. E quando a gente é um ponto fixo e o resto é cenário é fácil julgar. Você é o sagrado que me consome. Você é a minha dimensão apofática, negação daquilo que sou, é martírio, cruz, morte. Através de você mergulho nas trevas. É isso mesmo Macário, reconheço a minha arrogância e desejo, esse é o meu desejo, que no reconhecimento do desvario possa conhecer para além da razão.

Macário -- Eu sei que é por isso que nos vemos todos os dias. Que é por isso que você levanta, fica diante de mim e começamos a conversar. Eu, Macário, sou misterium tremendum que esmaga e leva o medo até a profundidade da sua alma. Esse temor qualitativo, motivo para reflexão e energia, faz de você meu adorador.

Dédalo -- Eu sei, Macário, meu senhor, que necessito ser como você. Quero incorporar aquilo que me é distinto. Mas, apesar de nossa intimidade a cada manhã, permanece esse abismo entre eu, adorador, e você, sagrado. Desejo saltar o abismo que nos separa, e talvez seja esse o móvel que faz de mim espiritual, ao imitar a queda de Ícaro, o amor do filósofo e a insanidade da juventude. Talvez...

Macário -- Agora, não dá mais, Dédalo! Eu vi você abandonar Dédalo. Você o derrubou, você derreteu as asas dele. Com sua imaginação, com suas mãos de escultor você o puxou para a imensidão do Egeu. Você não o olhou nos olhos. Olhos nos olhos. Dois de realização, egocentrados, dois de terror, caindo no abismo. E você continuou seu vôo de prazer profundo. Esqueceu, abandonou, não viu o rosto aterrorizado que mergulhava. Profundo, vil prazer. E você, mestre, fez os olhos temerosos saltarem. Eu vi, Dédalo. E isso você vai ver também, a cada manhã que olhar para mim.

Dédalo -- Ah! Querido Ícaro, estou perdido nos meus labirintos. Vejo seus cabelos cacheados, os olhos negros, instigantes, voadores. O rosto de jovem que sonha, queimado pelo sol esperto. Ah! Miserável homem que sou, quem livrará o meu corpo da morte?

Macário -- Dédalo, a sua confusão já não está, mas também não estão a escultura e o vôo. Você matou Ícaro e metade da sua alma se foi. Vou colocar no seu rosto, a marca dos olhos desesperados, que olham para além do que todo mundo vê. E as pessoas que olharem para você verão que você vê o que elas não vêem. E fugirão de você por isso. E não matarão você porque vão ficar com medo. E essa será a vingança que Ícaro me autorizou dar a você. Vagar sem esperança pelo labirinto da vida. 

Segundo ato
Ao entardecer, num orquidário em Jardim, na chapada do Araripe.

Carvoeiro – Eu vejo a dor de Dédalo de maneira diferente. Dédalo sempre esteve sujo como eu. Bicho humano vivia na sombra. Vou prosar uma toada. Dédalo estava preso na mina, que tinha só uma luz do sol iluminada na entrada. Lá desde a infância teve a cabeça e as pernas amarradas de movimentos. Bicho preso, só conseguia ver o que estava diante. Não tinha voltar do rosto e olhar para trás. Mas, atrás dele, a luz do candeeiro do céu alumiava. Entre a ilustração e Dédalo havia um caminho, mas também um tapume alto. Lá estava Dédalo, libertário, infância adentro...

Maquinista – Não sei aonde você quer chegar, mas Dédalo é um do protesto. Está livre para criar e fazer. Com ele não tem contras, é ranzinza para a norma dos deuses. As amarrações antigas não têm para ele, o que é engenharia é bom. Legal é novidoso, é bênção buscada. Vou ficar afluente! Ser ourudo está no ninho do coração de Dédalo e não conseguir é pecado.

Guarda-chuva – Não sei não. Vocês são complicados. Acho que já está escrito quando se nasce. Sou guarda-chuva e aqui todo mundo me conhece assim. Quando cheguei, ela estava na cama aos berros. Fiz psiu para se acalmar, embora berrar não fosse mau. Peguei jornal e coloquei debaixo dela. Peguei a minha tesoura, linha de algodão e cortei em três pedaços de vinte e cinco centímetros. Peguei o cobertor, na verdade uma colcha fina que estava ao lado da cama. Dobrei em três e coloquei em cima da mulher. Minhas mãos estavam limpas, mas eu esfreguei com álcool.

Carvoeiro – Espera aí guarda chuva, eu quero continuar. Dédalo se livrou dos nós, das amarrações, mas não da astúcia das idéias. Desatado, levantou, voltou a cabeça, andou, olhou para a luz. Como o filho, Dédalo sofreu muito: a iluminação foi coisa de dor, mas o deslumbrou e ele não conseguiu ver as gentes por inteiro. Foi isso que aconteceu com Dédalo, o engenho e a arte dançaram na frente dos olhos dele e queimaram! Que confusão, as verdades doeram, e a astúcia das idéias foi bem mais amistosa do que o mundo transiluminado pelo candeeiro do meio-dia! O filho despencou lá de cima e Dédalo foi para a Sicília.

Maquinista – Dédalo se lançou, cheio do espírito, no criar e fazer no mundão besta. É arquiteto virtuoso, de virtude aburguesada. É puro dos modernosos, cheio de economias e racionalidades, e quer que tudo que é criatura seja trabalhador sóbrio e industrioso, aferrado no manejo, destinado na vida amarrada pelos divinos. Dédalo quer tudo que é criatura debaixo do mando dele, que é decreto eterno vindo dos deuses.

Guarda-chuva – Sei não. Vocês são complicados. Acho que coisa má nasce feita. Quando as contrações aumentaram e a bolsa d´água rompeu, coloquei os dois travesseiros que encontrei para amparar a cabeça e as costas da mulher. Ela começou a fazer força, retinha a respiração e segurou as coxas por trás dos joelhos, puxando as pernas. Apareceu a cabeça. Coloquei uma toalha embaixo das nádegas dela. Mas eu não tinha outra toalha para colocar entre as pernas da mulher. Amparei a cabeça roliça da criança com as mãos em concha. Tinha uma membrana, mas retirei. Para complicar, o cordão veio enrolado no pescoço. Coloquei um dedo por baixo do cordão, afrouxei e passei o cordão por cima da cabeça. Disse para a mulher parar de fazer força. Eu queria que a criança nascesse feliz, sorrindo, sem ruína da vida.
 
Maquinista - A sina de Dédalo é essa, ficou na especialização, esqueceu que casa de gente é terra e céu. Dédalo é ciborgue, meio gente, meio máquina, e quando fala faz ruído de máquina. E não fala sem máquina. Dédalo tem o estilo da máquina e vai parir máquinas até a última gota de combustível. Mesmo no céu, está preso na mina, como disse o carvoeiro, mas a mina é de ferro, sistema de uso e danação das idéias livres e do fazer gostoso. 

Guarda-chuva -- Principio a entender, mas não sei se concordo com vocês. Quando um ombro começou a sair, amparei, e o outro veio saindo também. Segurei o resto do corpo com as mãos. Não puxei o menino, que poderia se chamar Dédalo. Por que não? E o resto do corpo veio em baba de quiabo. Retirei as gosmas da boca e do nariz com um pano. Segurei de ponta cabeça e o resto da baba saiu. Chorou raivoso o choro dos infelizes. Coloquei-o de costas, amarrei o cordão com as linhas de algodão. Dei dois nós, um mais ou menos a quinze centímetros e outro a vinte centímetros do umbigo. Cortei entre os nós. E fiz depois um terceiro nó a dez centímetros do umbigo e cobri o umbigo com um tampão. Entreguei Dédalo para a mãe. Ele já estava agasalhado. Cobri a mulher e fiquei esperando aquela água-viva vir escorrendo. Coloquei num prato, cortei em pedaços pequenos e dei para ela comer. Eu não jogo a vida fora. Por isso, sou guarda-chuva de fama aqui no Jardim.

Terceiro ato
Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 

Dédalo -- Que tristeza profunda! Minha sem-vida começa agora, é vazio, não há reino, nem fé, nem paciência. Não há utopia: perdi os sentidos, o êxtase, o presente também.

Macário -- É isso mesmo, Dédalo. Para você não há mais iluminação, nenhuma notícia boa. Você começou a vagar com desespero, sem perspectiva, cheio de medo. E olhar o mundo assim é terrível. Não há mais fonte inesgotável para a imaginação, não há mais transformação. Não há mais possibilidades emergentes à luz do futuro prometido.

Dédalo -- Estou na Sicília, no palácio de Cócalo, e o que vejo? Gente sem âmago, só pedaços. Não há sinais, nem caminho. Não há sentido cronológico de término, não há a absoluta necessidade de pensar o fim, não há kairos, significado maior e profundo na história. Não há expectativa, lúdico, alegria, não há um momento de grande emoção.

Macário -- É a sina de olhar o mundo sem ter Ícaro junto. O que parecia ser bom, ao deixar o labirinto para trás, é queda e perda de sentido. A alegria, felicidade e destino escorrem entre os dedos. Sem Ícaro você é só infeliz. E assim fica o que você vê. Por isso, você precisa cada vez mais de mim. Por isso, todos os dias, você tem que olhar e conversar comigo, ver o vivo e o morto, chorar e ter medo. Não há salvação para você. Infeliz, porque o sol derreteu a aventura e o risco. Não há mais tempo oportuno, não existe para você um começar agora de esperança. 

O profeta e o espelho
O diretor da peça tem a liberdade de inserir este diálogo entre o profeta e o espelho na peça Aquele que matou Ícaro, enquanto uma voz não definida grita: Artaud, Artaud, quem matou Ícaro! 

Abandonai as cavernas do ser. Vinde, o espírito se revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas moradas. [Cartas aos Poderes, Antonin Artaud].
 �Foi surrealista. Antonin Artaud (1896-1948) criou o Teatro da Crueldade. Suprimiu os diálogos, a organização cênico-espacial e os meios de atuação tradicionais do teatro, e incorporou novos conceitos de gestualidade. Foi um dos fundadores do Teatro Alfred Jarry, em Paris. Sofreu de enfermidades físicas e beirou a demência, e não foi aceito pela crítica e pelo público da época. Hoje, é influência viva em escolas teatrais experimentalistas e entre diretores e atores. A ele dedico in memoriam...
 
Na fronteira do mundo, o profeta olha para o cristal límpido. 

Profeta -- Quero falar, dizer para você o perigo que está correndo...

Espelho -- Bobagem, sempre consegui resolver os meus problemas. Às vezes, é verdade, de forma meio violenta, com um pouco de sangue, mas aqui estamos nós, sobrevivendo.

Profeta – Não, eu preciso... Ouça ao menos um pouquinho do que tenho a dizer. Se não falar não vou poder dormir. Estou angustiado, desesperado com a situação...

Espelho – Então vá lá. Fale. Não quero ver você neste estado.

Profeta – O Eterno disse: coitada da cidade, orgulho e coroa dos bêbados! Ai dessa bela cidade que fica acima de terras boas! Os seus moradores estão embriagados, e a beleza da cidade desaparece como uma flor que murcha.

Espelho – Mas porque ele diz isso? O que tem contra a cidade? Isso me deixa irritado, ele está sempre contra. Ele é do contra.

Profeta – É por isso que preciso falar, para que você compreenda e viva. Há uma razão para a destruição: você. Você está plantando tudo isso. Será que não entende?

“Há outros que andam tontos por terem bebido muito vinho, que não podem ficar de pé por causa das bebidas: são os sacerdotes e os profetas, que vivem embriagados e tontos. Os profetas, quando recebem visões do Eterno, estão bêbados, e os sacerdotes também, quando julgam os casos no tribunal. As suas mesas estão cobertas de vômito, não há um só lugar que esteja limpo.”

Espelho – Não dá para entender. Ele está falando de você, acusando, está falando mal de você. Afinal, você é um profeta, não é?

Profeta – É verdade, eu e você somos iguais, embriagados, sentados no vômito, fedendo. É por isso que estou desesperado, clamando por nós dois. Mas se você ao menos prestasse atenção. O seu desprezo só aumenta a distância...

Espelho – Não encha o saco, não somos crianças!

Profeta – Se você não quiser ouvir, estrangeiros vão falar em nome do Eterno. Estou lhe dizendo, o Eterno lhe dará descanso, ele lhe dará segurança. Mas você não quer ouvir. Por isso, o Eterno vai cuidar de você como se fosse criança. Você tentará andar, mas cairá de costas; vai se machucar, cairá em armadilhas, será preso.
“O maravilhoso está na raiz do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, verdade, razão: tudo oferecemos ao nada da morte. Cuidado com as lógicas, senhores, cuidado com as lógicas. Não imaginam até onde pode nos levar o ódio.”

Espelho – Chega! Fizemos sim um acordo com a morte. Mas fizemos porque é o jeito de darmos um basta ao caos. Estamos organizando a casa. Talvez, custe um pouco de sangue, talvez a morte se faça presente, mas não há outro jeito.

Profeta – Discordo. Você não precisa viver com medo.

“Por isso, o Eterno diz: Estou colocando sobre esta cidade uma pedra, uma pedra pesada, enorme, que eu escolhi para ser a pedra principal do alicerce. Nela está escrito isto: Quem tem fé não tem medo. Como prumo usarei a justiça e a honestidade – serão a minha medida.”

Espelho – E a morte? O que faço com ela? Ai! Na verdade, já não sei qual é melhor, o medo, a insegurança, ou esse acordo com a morte.

“O acordo que vocês fizeram com a morte será anulado, o que vocês combinaram com o mundo dos mortos será desfeito. E, quando chegar a terrível desgraça, ela arrastará vocês como se fosse uma enchente. Todas às vezes que chegar, ela os arrastará; chegará todos os dias, de manhã e de noite. Cada mensagem do Eterno trará um novo pavor. Vocês serão como a pessoa de que fala aquele provérbio: A cama é tão curta, que ela não pode se deitar, o cobertor é tão estreito, que não dá para ela se cobrir.”

Profeta – Sente-se aqui ao meu lado. Vou falar e você vai ouvir... Certa vez, Artaud disse que os céus respondem à nossa atitude de absurdo insensato. Que o hábito que temos de dar as costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia estabelecido. E que uma nova linguagem se instale no meio de nossas imbecis transações, das transações imbecis de nossos pensamentos.

Espelho – Deixa eu abraçar você. Eu amo... Queria tanto que Artaud, Bataille e os outros estivessem aqui. Vamos ouvir...
“Escutem o que vou dizer! Dêem atenção à minha mensagem! Um homem que está preparando o terreno para semear trigo não gasta todo o seu tempo arando a terra, cavando e remexendo nela. Depois de ter aplanado a terra, ele semeia o endro e o cominho e planta o trigo, a cevada e outros cereais nos lugares certos. Ele faz tudo direito porque o Eterno lhe ensinou. E no tempo da colheita ele não usa um instrumento pesado para debulhar os grãos de endro e de cominho; ao contrário, ele usa varas pequenas e leves. Quando malha o trigo, ele não continua malhando até quebrar os grãos. Ele sabe passar a carreta por cima das espigas sem esmagar os grãos. Esse conhecimento também vem do Eterno. Os seus planos são maravilhosos, e ele é sábio em tudo o que faz.”

Profeta – Quem sabe ainda haja vida para nós?
No mundo sem porteira, o cristal vê o profeta translúcido.


Antonin ARTAUD – Une Vie, une Œuvre : Artaud, né de son œuvre (France Culture, 1995)