jeudi 12 mai 2016

A sociedade do espetáculo, de Guy Debord

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
de Guy Debord
Primeira edição francesa, Editions Gallimard, Paris, 1967. Primeiros três capítulos do livro traduzidos por Tomás Rosa Bueno.

A separação acabada

Unidade e divisão na aparência. O proletariado como sujeito e como representação

I. A Separação Acabada

Mas com certeza, para a época presente, que prefere o signo à coisa significada, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência à essência... só a ilusão é sagrada, a verdade profana. Mais, a sacralidade é considerada reforçada na proporção em que a verdade diminui e a ilusão aumenta, de tal modo que o mais alto grau de ilusão passa a ser o mais alto grau de sacralidade.

Feuerbach, Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo.

1 Nas sociedades em que prevalecem as modernas condições de produção, toda a vida apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido afastou-se em uma representação.

2 As imagens, desligadas de todos os aspectos da vida, fundem-se em uma corrente comum em que a unidade da vida não pode mais ser reestabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se, em sua própria unidade geral, como um pseudo-mundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo é completada no mundo da imagem autônoma, onde o mentiroso mente para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivente.

3 O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como toda a sociedade, parte da sociedade e instrumento de unificação. Como parte da sociedade, é especificamente o setor que concentra todos os olhares e toda a consciência. Devido ao próprio fato de ser separado, esse setor é o terreno comum do olhar enganado e da falsa consciência, e a unificação que ele realiza não passa da língua oficial da separação generalizada.

4 O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens.

5 O espetáculo não deve ser entendido como um abuso do mundo da vsião, como produto das técnicas de difusão em massa de imagens. É, antes, uma Weltanschaaung que se tornou real, foi materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.

6 Apreendido em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento ao mundo real, uma decoração adicional. É o coração da irrealidade da sociedade real. Em todas as suas formas específicas, o espetáculo é o modelo presente da vida socialmente dominante. É a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e em seu corolário no consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são identicamente a justificação total das condições e metas do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente dessa justificação, pois ocupa a parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.

7 A própria separação faz parte da unidade do mundo, da praxis social global dividida em realidade e imagem. A prática social que se coloca diante do espetáculo autônomo é também a totalidade real que o contém. Mas a divisão no seio dessa totalidade mutila-a a ponto de fazer com que o espetáculo seja visto como sua própria meta. A linguagem do espetáculo é feita dos sinais da produção dominante, que são ao mesmo tempo a meta suprema dessa produção.

8 Não se pode comparar abstratamente o espetáculo à atividade social real: essa própria divisão está dividida. O espetáculo que inverte o real é na verdade produzido. A realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e ao mesmo tempo absorve a ordem espetacular, conferindo-lhe uma coesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. Toda noção fixada desse modo não tem outra base que não a sua passagem para o contrário: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o fundamento da sociedade existente.

9 Em um mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.

10 O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. A diversidade e os contrastes são aparências de uma aparência socialmente organizada, cuja verdade geral também deve ser reconhecida. Considerado em seus próprios termos, o espetáculo é afirmação da aparência e afirmação de toda a vida humana, sobretudo a social, como simples aparência. Mas a crítica que alcança a verdade do espetáculo o expõe como a negação visível da vida, como a negação da vida que ficou visível.

11 Para descrever o espetáculo, sua formação, suas funções e as forças que tendem a dissolvê-lo, é preciso distinguir artificialmente certos elementos inseparáveis. Quando se analisa o espetáculo, fala-se, em certa medida, a linguagem do próprio espetacular, no sentido de que nos estamos movendo no terreno metodológico da própria sociedade que se expressa no espetáculo. Mas este não é senão o sentido da prática total de uma formação sócio-econômica, o seu uso do tempo. É o movimento histórico em que estamos envolvidos.

12 O espetáculo apresenta-se como algo enormemente positivo, indiscutível e inacessível. Diz apenas que “o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige em princípio é a aceitação passiva que na verdade já obteve por sua maneira de aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência.

13 O caráter basicamente tautológico do espetáculo brota do simples fato de seus meios serem ao mesmo tempo os seus fins. Ele é o sol que nunca se põe no império da passividade moderna. Cobre toda a superfície do globo e banha-se incessantemente em sua própria glória.

14 A sociedade baseada na indústria moderna não é espetacular por acaso ou na superfície, mas fundamentalmente espetaculista. No espetáculo, que é a imagem da economia dominante, a meta é nada, e desenvolvimento é tudo. O espetáculo não tem outra meta além de si mesmo.

15 Como decoração indispensável dos objetos produzidos hoje, como exposição geral da racionalidade do sistema, como o setor avançado da economia que molda diretamente uma crescente multidão de objetos-imagem, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

16 O espetáculo submete a si os homens vivos na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele é apenas a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo verdadeiro da produção das coisas, e a falsa objetivação dos produtores.

17 A primeira fase do domínio da economia sobre a vida social trouxe à definição de toda a atividade humana a óbvia degradação de ser para o ter. A presente fase da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia leva a uma decadência generalizada do ter para o parecer, de que todo o “ter” precisa extrair seu prestígio imediato e sua função suprema. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual tornou-se realidade social diretamente dependente do poder social e por ele moldada; só lhe é permitido aparecer na medida em que não seja.

18 Onde o mundo real se transforma em simples imagens, estas tornam-se seres reais e motivações efetivas de comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer com que o mundo seja visto através de várias mediações especializadas, não podeno mais ser apreendido de maneira direta, julga naturalmente que a visão é o sentido humano que o tato foi em outras épocas; o sentido mais abstrato e mais mistificável corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao mero olhar, mesmo combinado à audição. Ele é o que escapa à atividade dos homens, o que escapa à reconsideração e à correção pelo trabalho deles. É o oposto do diálogo. Onde houver representação independente, o espetáculo se reconstitui.

19 O espetáculo é herdeiro de todas as fraquezas do projeto filosófico ocidental, que tentou compreender a atividade em termos de categorias do ver; além disso, baseia-se da disseminação constante da racionalidade técnica precisa que brotou desse modo de pensar. O espetáculo não realiza a filosofia, mas filosofiza a realidade. A vida concreta de cada um foi degradada para um universo especulativo.

20 A filosofia, poder do pensamento separado e pensamento do poder separado, nunca conseguiu superar por si só a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A tecnologia espetacular não dispersou as nuvens teológicas onde os homens haviam colocado seus poderes separados de si mesmos, mas limitou-se a atá-las a uma base terrena. A mais terrena das vidas torna-se assim opaca e irrespirável. Não projeta mais no céu, mas abriga em si mesma a sua negação absoluta, seu paraíso falacioso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos em um além; é a separação rematada no interior do homem.

21 Na medida em que a necessidade é socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o pesadelo da sociedade moderna aprisionada que, e, última instância, não expressa mais que o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião do sono.

22 O fato de o poder prático da sociedade moderna ter-se afastado dela e construído um império independente no espetáculo só pode ser explicado pelo fato de que esse poder prático carecia de coesão e continuava em contradição consigo mesmo.

23 A mais antiga das especializações sociais, a especialização do poder, está na raiz do espetáculo. Este é portanto uma atividade especializada que fala por todas as outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica para si mesma, de que toda outra expressão é banida. Aqui, o mais moderno é também o mais arcaico.

24 O espetáculo é o discurso ininterrupto daordem sobre si mesma, seu monólogo laudatório. É o auto-retrato do poder na época de sua administração totalitária das condições de existência. A aparência fetichista puramente objetiva das relações espetaculares oculta o fato de que são relações entre homens e entre classes: uma segunda natureza, com suas leis fatais, parece dominar o nosso ambiente. Mas o espetáculo não é o produto necessário do desenvolvimento técnico visto como desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, ao contrário, a forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico. Se o espetáculo, tomado no sentido limitado dos “mass media” que são sua manifestação superficial mais gritante, parece invadir a sociedade como um simples equipamento, este equipamento não é de modo algum neutro, mas é o próprio meio adequado ao seu auto-movimento total. Se as necessidades sociais de uma época em que tais técnicas são desenvolvidas só podem ser satisfeitas pela mediação delas, se a administração desta sociedade e de todo o contato entre os homens não pode mais ter lugar a não ser por intermédio desse poder de comunicação instantânea, é porque essa “comunicação” é essencialmente unilateral. A concentração de “comunicação” é portanto a acumulação, nas mãos da administração do poder existente, dos meios que lhe permitem desempenhar essa administração específica. A divisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado moderno e sobretudo da forma geral de divisão no seio da sociedade, produto da divisão do trabalho social e órgão da dominação de classe.

25 A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, havia dado origem a uma primeira forma de contemplação sagrada, a ordem mítica com que todo poder se envolve desde os primórdios. O sagrado justificou a ordem cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos senhores; explicou e embelezou o que a sociedade não conseguia fazer. Neste sentido, todo poder separado sempre foi espetacular, mas a adesão de todos a uma imagem imóvel só significava a aceitação comum de um prolongamento imaginário da pobreza da atividade social real, ainda em grande medida sentida como condição unitária. O espetáculo moderno, ao contrário, expressa o que a sociedade consegue fazer, mas, nessa expressão, o permitido é absolutamente oposto ao possível. O espetáculo é a preservação da inconsciência em meio à mudança prática das condições de existência. É seu próprio produto, e fez suas próprias regras: é uma entidade pseudo-sagrada. Ele mostra o que é: o poder separado desenvolvendo-se em si mesmo, no crescimento da produtividade por meio do incessante refinamento da divisão do trabalho em uma parcelização de gestos que são depois dominados pelo movimento independente das máquinas, e trabalham para um mercado em constante expansão. Toda a comunidade e todo o senso crítico são dissolvidos nesse movimento, em que as forças que poderiam crescer com a separação não foram ainda reunificadas.

26 Com a separação generalizada entre o trabalhador e seus produtos, toda visão unitária da atividade realizada e toda comunicação pessoal direta entre os produtores se perdem. Acompanhando o avanço da acumulação de produtos separados e a concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se um atributo exclusivo da admionistração do sistema. O sucesso do sistema econômico de separação é a proletarização do mundo.

27 Devido ao sucesso da produção separada como produção do separado, a experiência fundamental que nas sociedades primitivas está ligada a uma tarefa central está sendo deslocada, na vanguarda do desenvolvimento do sistema, pelo não trabalho, a inatividade. Esta inatividade não é, de modo algum, libertada da atividade produtiva, mas depende dela e está em uma submissão desconfortável e admirativa com os resultados da produção; é, em si mesma, um produto da sua racionalidade. Não pode haver liberdade fora da atividade e, no contexto do espetáculo, toda atividade é negada, assim como a atividade real foi capturada por inteira para a construção global desse resultado. Portanto, a presente “libertação do trabalho”, o aumento do lazer, não é de modo algum uma libertação no trabalho, nem uma libertação em relação ao mundo moldado por esse trabalho. Nenhum aspecto da atividade perdida no trabalho pode ser reconquistado na submissão aos seus resultados.

28 O sistema econômico baseado no isolamento é uma produção circular de isolamento. A tecnologia é baseada no isolamento e o processo produtivo isola por sua vez. Do automóvel ao televisor, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o constante fortalecimento das condições de isolamento das “multidões solitárias”. O espetáculo redescobre sem cessar suas próprias premissas mais concretamente.

29 O espetáculo tem origem na perda de unidade do mundo, e a gigantesca expansão do espetáculo moderno expressa a totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho específico e a abstração geral do conjunto da produção são traduzidas à perfeição pelo espetáculo, cujo modo de ser concreto é precisamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa a si mesma para o mundo e é superior a ele. O espetáculo não é mais que a linguagem comum dessa separação. O que une os espectadores é apenas uma relação irreversível no próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reunifica o separado, mas o reunifica como separado.

30 A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado de sua própria atividade inconsciente) é expressada do seguinte modo: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer- se nas imagens dominantes da necessidade, menos entende sua própria existência e seus próprios desejos. A externalidade do espetáculo em relação ao homem ativo surge no fato de que seus próprios gestos não são mais dele, mas de outro, que os representa para ele. É por isso que o espectador não se sente à vontade em parte alguma, porque o espetáculo está por toda a parte.

31 O trabalhador não produz a si mesmo, produz um poder independente. O sucesso dessa produção, sua abundância, retorna para o produtor como abundância de despossessão. Todo o tempo e todo o espaço tornam-se alheios para ele com a acumulação de seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa desse novo mundo, um mapa que cobre exatamente o seu território. Os próprios poderes que nos escaparam mostram-se-nos com toda a sua força.

32 O espetáculo na sociedade corresponde a uma fabricaçãop concreta da alienação. A expansão econômica é antes de mais nada a expansão desta produção industrial específica. O que cresce com a economia que se move por si mesma só pode ser a própria alienação que estava na sua origem.

33 Separado de seu produto, o próprio homem produz todos os detalhes de seu mundo com um poder cada vez maior e, desse modo, vê-se cada vez mais separado de seu mundo. Quanto mais a vida passa a ser produto do homem, mais vida é separada de sua vida.

34 O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se torna imagem. A mercadoria como espetáculo A mercadoria só pode ser entendida em sua essência undistorted quando se torna a categoria universal da sociedade como um todo. Só nesse contexto a reificação produzida pelas relações mercantis assume uma importância decisiva tanto para a evolução objetiva da sociedade quanto para a atitude adotada pelos homens diante dela. Só então a mercadoria torna-se crucial para a subjugação da consciência dos homens às formas em que a reificação encontra expressão... À medida que o trabalho vai sendo progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de vontade própria do homem é reforçada pela maneira como a sua atividade fica cada vez menos ativa e cada vez mais contemplativa. Lukács, História e Consciência de Classe

35 No movimento essencial do espetáculo, que consiste em apreender tudo o que existia na atividade humana em estado fluido de maneira a possuí-lo em um estado congelado como coisas que se tornaram o valor exclusivo por sua formulação em negativo de valor vidido, reconhecemos o nosso velho inimigo, a mercadoria, que tão bem sabe parecer à primeira vista uma coisa trivial e óbvia, quando, ao contrário, é tão complexa e cheia de sutilezas metafísicas.

36 Este é o princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas intangíveis e tangíveis”, que alcança o seu cumprimento absoluto no espetáculo, onde o mundo tangível é substituído por umaseleção de imagens que existe acima dele e ao mesmo tempo se impõe como o tangível por excelência.

37 O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espetáculo torna visível é o mundo da mercadoria dominando todo o vivido. O mundo da mercadoria é assim mostrado pelo que é, pois seu movimento é idêntico ao alheiamento dos homens entre si e com relação ao seu produto global.

38 A perda de qualidade tão evidente em todos os níveis da linguagem espetacular, dos objetos que elogia ao comportamento que regula, apenas traduz os traços fundamentais da produção real que dispensa a realidade: a forma-mercadoria é em todos os pontos igual a si mesma, a categoria do quantitativo. O quantitativo é o que a forma-mercadoria desenvolve, e só pode desenvolver-se no quantitativo.

39 Por sua vez, esse desenvolvimento que exclui o qualitativo está, como desenvolvimento, sujeito à mudança qualitativa: o espetáculo demonstra que passou o limiar de sua própria abundância; isto ainda só é válido localmente em alguns pontos, mas já é você álido na escala universal que é o contexto original da mercadoria, um contexto que seu movimento prático, abrangendo a Terra como um mercado mundial, já verificou.

40 O desenvolvimento das forças produtivas foi a verdadeira história inconsciente que construiu e modificou as condições de existência de grupos humanos como condições de sobrevivência, e estendeu essas condições: a base econômica de todos os seus empreendimentos. Em uma economia primitiva, o setor mercantil representava um excedente de sobrevivência. A produção de mercadorias, que implica a troca de vários produtos entre produtores independentes, pôde continuar por muito tempo como produção artesanal, contida em uma função econômica marginal em que sua verdade quantitativa ainda estava mascarada. Contudo, onde a produção de mercadorias combinou-se às condições sociais de comércio em grande escala e acumulação de capitais, ela conquistou o domínio total da economia. Toda a economia tornou-se então o que a mercadoria já mostrara ser ao longo de sua campanha de conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. Essa incessante expansão do poder econômico na forma da mercadoria, que transformou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em trabalho assalariado, levou cumulativamente a uma abundância em que a questão primária da sobrevivência é sem dúvida resolvida, mas de tal modo que é redescoberta a todo instante; é continuamente recolocada em um nível mais alto. O crescimento econômico liberta as sociedades da pressão natural que exigia a sua luta direta pela sobrevivência, mas, nesta altura, é do libertador que elas não são libertadas. A independência da mercadoria é estendida a toda a economia que ela domina. A economia transforma o mundo, mas o transforma apenas em um mundo da economia. A pseudo-natureza em que o trabalho humano é alienado exige ser servida ad infinitum, e este serviço, sendo julgado e absolvido apenas por si mesmo, conquista de fato a totalidade dos esforços e projetos socialmente permissíveis como seus servidores. A abundância de mercadorias, ou seja, de relações mercantis, não pode ser nada além de uma ampliação da sobrevivência.

41 No princípio, o domínio da mercadoria sobre a economia foi exercido de maneira oculta; a própria economia, a base material da existência social, passava desapercebida e não era entendida, como o familiar que não é necessariamente conhecido. Em uma sociedade em que a mercadoria concreta é rara ou incomum, o dinheiro, aparentemente dominante, apresenta-se como um emissário com plenos poderes falando em nome de uma potência desconhecida. Com a revolução industrial, a divisão do trabalho nas fábricas e a produção em massa para o mercado mundial, a mercadoria surge de fato como um poder que ocupa a vida social. É então que a economia política toma forma como ciência dominante e ciência da dominação.

42.O espetáculo é o momento em que a mercadoria alcança a ocupação total da vida social. A relação com a mercadoria não é só visível, é tudo o que se vê: o mundo que vemos é o mundo dela. A produção econômica moderna estende a sua ditadura intensa e extensivamente. Nas regiões menos industrializadas, o seu reino já é atestado por umas quantas mercadorias promovidas ao estrelato e pelo domínio imperialista imposto pelas regiões mais avançadas no desenvolvimento da produtividade. Nas regiões avançadas, o espaço social é invadido por uma superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias. Nessa altura, na “segunda revolução industrial”, o consumo alienado torna-se para as massas um dever complementar à produção alienada. É todo o trabalho vendido de uma sociedade que se torna globalmente a mercadoria em proveito da qual o ciclo deve continuar. Para que isso seja feito, a mercadoria total precisa retornar como fragmento para o indivíduo fragmentado, absolutamente separada das forças produtivas operando como um todo. É neste ponto que a ciência especializada da dominação precisa também especializar-se (fragmentando-se em sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia etc.), para supervisionar a auto-regulamentação de todos os níveis do processo.

43 Enquanto, na fase primitiva de acumulação capitalista, “a economia política vê no proletário apenas o trabalhador” que deve receber o mínimo indispensável para a conservação de sua capacidade de trabalhar, sem nunca vê-lo “em seu lazer e em sua humanidade”, essas idéias da classe dominante são revertidas assim que a produção de mercadorias alcança um nível de abundância que exija um excedente de colaboração por parte do trabalhador. Este, subitamente redimido do desprezo total evidente em todas as variedades de organização e supervisão da produção, vê-se tratado todos os dias, fora da produção e em seu papel de consumidor, com zelosa polidez. É então que o humanismo da mercadoria se encarrega do “lazer e da humanidade” do trabalhador, simplesmente porque, a partir desse momento a economia política pode e deve dominar essas esferas como economia política. Assim, a “negação aperfeiçoada do homem” toma conta da totalidade da existência humana.

44 O espetáculo é uma guerra do ópio permanente cuja meta é fazer as pessoas identificarem os bens às mercadorias e a satisfação à sobrevivência que aumenta segundo suas próprias leis. Mas, se a sobrevivência consujmível é algo que deve sempre aumentar, isso se dá porque ela continua contendo a privação. Se não há nada além do aumento da sobrevivência, se não há razão alguma para que ela pare de crescer, não é por estar além da privação, mas por ser a privação enriquecida.

45 A automação, setor mais avançado da indústria moderna e modelo que resume perfeitamente a sua prática, leva o mundo da mercadoria à seguinte contradição: o equipamento técnico que objetivamente elimina o trabalho precisa ao mesmo tempo preservar o trabalho como mercadoria e como a única fonte da mercadoria. Para que o trabalho social (tempo) empregado pela sociedade não diminua por causa da automação (ou qualquer outra forma menos extrema de aumentar a produtividade do tbl), é preciso criar novos empregos. Os serviços, o setor terciário, incham as fileiras do exército da distribuição e são o elogio das mercadorias presentes; por acaso, as forças adicionais mobilizadas são adequadas à organização do trabalho redundante exigido pelas necessidades artificiais por tais mercadorias.

46 O valor de troca só pôde surgir como agente do valor de uso, mas sua vitória por meio de suas próprias armas criou as condições para o seu domínio autônomo. Mobilizando todo o uso humano e estabelecendo o monopólio de sua satisfação, o valor de troca acabou dirigindo o uso. O processo de troca identificou-se a todo uso possível e deixou o uso à mercê da troca. O valor de troca é o condottiere do valor de uso que acaba fazendo a guerra para seus próprios fins.

47 A tendência de queda do valor de uso, esta constante da economia capitalista, desenvolve uma nova forma de provação no seio da sobrevivência ampliada: a nova privação não está muito afastada da velha penúria, pois exige que a maioria dos homens persiga-a sem cessar como trabalhador assalariado, sabendo que deve submeter-se ou morrer. A realidade dessa chantagem explica a aceitação geral da ilusão no coração do consumo das mercadorias modernas: o uso, em sua forma mais empobrecida (comida e casa) existe hoje apenas na medida em que estiver aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência ampliada. O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é essa ilusão factualmente real e o espetáculo é a sua manifestação geral.

48 Na realidade invertida do espetáculo, o valor de uso (que estava implicitamente contido no valor de troca) precisa agora ser proclamado explicitamente, pois a sua realidade factual é corroída pela economia mercantil superdesenvolvida e porque a vida falsificada exige uma pseudo- justificação.

49 O espetáculo é o outro lado do dinheiro: é o equivalente abstrato geral de todas as mercadorias. O dinheiro dominou a sociedade como representação da equivalência geral, ou seja, da possibilidade de troca de bens diferentes cujos usos não podem ser comparados. O espetáculo é o complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade do mundo da mercadoria aparece como um todo, como equivalência geral daquilo que toda a sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que só é olhado, pois nele a totatlidade do uso já foi trocada pela totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é apenas o servidor do pseudo-uso, já é em si mesmo o pseudo-uso da vida.

50 No momento da abundância econômica, o resultado concentrado do trabalho social fica visível e submete toda a realidade à aparência, que passa a ser o seu produto. O capital deixa de ser o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação dissemnina-o até a perifieria na forma de objetos tangíveis. O território inteiro da sociedade é seu retrato.

51 A vitória da economia autônoma deve ser ao mesmo tempo a sua derrota. As forças desencadeadas por essa vitória eliminam a necessidade econômica que foi a base imutável das sociedades anteriores. Quando a necessidade econômica é substituída pela necessidade do desenvolvimento econômico sem limites, a satisfação das necessidades humanas básicas é substituída por uma fabricação in interrupta de pseudo-necessidades reduzidas à única pseudo- necessidade de manter o reino da economia autônoma. A economia autônoma rompe sem cessar com a necessidade fundamental na medida em que surge do inconsciente social que dela dependia inconscientemente. “Todo o consciente se desgasta. O que é inconsciente permanece inalterável. Mas não desmoronaria, uma vez liberado?” (Freud).

52 Assim que a sociedade descobre que depende da economia, esta passa a depender da sociedade. Essa força subterrânea, que cresceu até parecer soberana, perdeu o seu poder. O que era econômico deve tornar-se o eu. O sujeito só pode surgir da sociedade, isto é, da luta no seio da sociedade. A existência possível do sujeito depende do desfecho da luta de classes que demonstra ser o produto e o produtor da fundação econômica da hostória.

53 A consciência do desejo e o desejo de consciência são identicamente o projeto que, em sua forma negativa, procura a abolição das classes, a possessão direta, pelos trabalhadores, de todos os aspectos de sua atividade. O seu contrário é a sociedade do espetáculo, onde a mercadoria contempla a si mesma no mundo por ela criado.

II. Unidade e divisão na aparência

Uma animada polêmica nova sobre os conceitos de “um divide-se em dois” e “dois fundem-se em um” se está desenrolando na frente filosófica deste país. O debate é uma luta entre os que são a favor e os que são contra a dialética materialista, uma luta entre duas concepções do mundo: a concepção proletária e a concepção burguesa. Os que sustentam que “um se divide em dois” é a lei fundamental das coisas estão do lado da dialética materialista; os que afirmam que a lei fundamental das coisas é “dois fundem-se em um” são contra a dialética materialista. Os dois lados traçaram entre si uma clara linha de demarcação, e seus argumentos são diametralmente opostos. Esta polêmica é um reflexo, no nível ideológico, da aguda e complexa luta de classes que ocorre neste momento na China e no mundo.

Bandeira Vermelha, (Pequim), 21 de setembro de 1964

54 O espetáculo, tal como a sociedade moderna, é ao mesmo tempo unificado e dividido. Tal como a sociedade, constrói sua unidade sobre a disjunção. Mas a contradição, quando surge no espetáculo, é por sua vez contraditada por uma inversão do seu significado, de modo que a divisão demonstrada é unitária, ao passo que a unidade demonstrada está dividida.

55 A luta entre os pderes constituídos pela administração do mesmo sistema sócio-econômico é difundida como a contradição oficial, mas na verdade faz parte da unidade real -- em escala mundial e no interior de cada nação.

56 As falsas lutas espetaculares entre formas rivais de poder separado são ao mesmo tempo reais, no sentido de que traduzem o desenvolvimento desiguam e antagônico do sistema, os interesses relativamente contraditórios das classes ou subdivisões de classes que reconhecem o sistema e se definem como partícipes do seu poder. Do mesmo modo que o desenvolvimento da economia mais avançada é um confronto entre algumas prioridades e outras, a administração totalitária da economia por uma burocracia estatal e a condição dos países na esfera da colonização ou da semi-colonização são definidas por peculiaridades específicas das variedades de produção e poder. Essas diversas oposições podem ser mostradas no espetáculo como formas absolutamente distintas de sociedade (por meio de inúmeros critérios diferentes). De fato, porém, a verdade da unicidade de todos esse setores específicos encontra-se no sistema universal que os contém: o movimento único que faz do planeta o seu terreno, o capitalismo.

57 A sociedade que comporta o espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas unicamente por sua hegemonia econômica, mas como sociedade do espetáculo. Mesmo nos lugarers em que a base econômica ainda está ausente, a sociedade moderna já foi invadida na superfície social de todos os continentes por meio do espetáculo. Ele define o programa da classe dominante e preside a sua implementação, assim como apresenta os pseudo- bens a serem cobiçados e oferece falsos modelos de revolução aos revolucionários locais. O espetáculo do poder burocrático, que domina alguns países industrializados, é parte integrante do espetáculo total, sua pseudo- negação e seu apoio gerais. O espetáculo exibe certas especializações totalitárias de comunicação e administração quando visto localmente, mas, vistas em termos do funcionamento de todo o sistema, essas especializações fundem-se em uma divisão mundial de tarefas espetaculares.

58 A divisão de tarefas espetaculares preserva a integridade da ordem existente e sobretudo o polo dominante do seu desenvolvimento. No seio da economia abundante, a raiz do espetáculo é a fonte dos frutos que acabam dominando o mercado espetacular a despeito das barreiras protecionistas ideológico- policiais dos espetáculos locais que aspiram à autarquia.

59 Sob as cintilantes distrações do espetáculo, a banalização domina a sociedade moderna em todo o mundo e em todos os pontos em que o consumo desenvolvido de mercadorias multiplicou aparentemente os papéis e objetos a escolher. Os restos da religião e da família (principal relíquia da herança do poder de classe) e a repressão moral que garantem fundem-se sempre que o gozo deste mundo é afirmado -- não sendo este mundo mais que pseudo-gozo repressivo. A aceitação passiva do que existe pode também unir-se à rebelião puramente espetacular, em um reflexo do fato de que a própria insatisfação tornou-se uma mercadoria assim que a abundância econômica conseguiu estender a produção ao processamento desse tipo de matéria prima.

60 A celebridade, representação espetacular do ser humano vivo, corporifica essa banalidade corporificando a imagem de um papel possível. Ser um astro significa especializar-se no aparentemente vivido; o astro é o objeto de identificação à rasa aparência de vida que precisa compensar as especializações produtivas fragmentadas vividas na realidade. As celebridades existem para representar vários estilos de vida e de visão da sociedade sem barreiras, livres para expressarem-se globalmente. Corporificam o resultado inacessível do trabalho social dramatizando seus subprodutos magicamente projetados acima dele como sua meta: poder e férias, decisão e consumo, que são o início e o fim de um processo não discutido. Em um caso, o poder estatal personaliza-se como um pseudo-astro; em outro, um astro do consumo é eleito como um pseudo-poder sobre o vivido. Mas assim como as atividades do astro não são de fato globais, tampouco são muito variadas.

61 O agente do espetáculo posto no palco como astro é o oposto do indivíduo, é o inimigo do indivíduo em si mesmo e nos outros. Incorporado ao espetáculo como modelo para a identificação, o agente renuncia a toda qualidade autônoma para identificar-se à lei geral de obediência ao curso das coisas. A celebridade do consumo representa superficialmente tipos diferentes de personalidade e mostra cada um desses tipos com acesso igual à totalidade do consumo, encontrando neste uma felicidade semelhante. A celebridade da decisão deve possuir um estoque completo de qualidades humanas aceitas. As diferenças oficiais entre astros são apagadas pela semelhança oficial que é o pressuposto de sua excelência em tudo. Kruschev tornou-se general para tomar decisões na batalha de Kursk, não no local, mas no vigésimo aniversário, quando era senhor do Estado. Kennedy continuou sendo orador a ponto de ler o elogio em seu próprio funeral, pois Theodore Sorensen continuou escrevendo os discursos de seu sucessor no estilo que caracterizara a personalidade do falecido. As pessoas admiráveis em quem o sistema se personifica são bem conhecidas pelo que são; tornam-se grandes homens ficando abaixo da mais mínima vida individual, e todos sabem disso.

62 A falsa escolha na abundância espetacular, uma escolha que reside na justaposição de espetáculos concorrentes e complementares e também na justaposição de papéis (significados e transportados sobretudo por coisas) que são ao mesmo tempo exclusivos e sobrepostos, desenvolve-se em um embate entre qualidades vaporosas cujo propósito é estimular a lealdade à trivialidade quantitativa. Isso ressuscita falsas oposições arcaicas, regionalismos e racismos que servem para elevar os escalões hierárquicos vulgares do consumo a uma absurda superioridade ontológica. Desse modo, uma série infinita de confrontos triviais é reestabelecida, dos esportes de competição às eleições, mobilizando um interesse sub-lúdico. Onde existe consumo abundante firma-se uma grande oposição espetacular entre jovens e adultos com papéis falsos -- falsos porque o adulto, senhor de sua própria vida, não existe, e a juventude, a transformação do que existe, não é de modo algum uma propriedade dos que são agora jovens, mas do sistema econômico, do dinamismo do capitalismo. As coisas governam e são jovens; as coisas enfrentam-se e substituem-se umas às outras.

63 O que se oculta sob as oposições espetaculares é uma unidade da miséria. Por trás das máscaras da escolha total, formas diferentes da mesma alienação se confrontam, todas elas construídas com base em contradições reais reprimidas. O espetáculo existe em uma forma concentrada ou difusa, dependendo das necessidades do estágio específico de miséria que estiver negando e apoiando. Nos dois casos, o espetáculo não passa de uma imagem da unificação feliz rodeada por desolação e medo no centro tranqüilo da miséria.

64 O espetáculo concentrado pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, embora possa ser importado como técnica de poder estatal em economias atrasadas mistas ou, em certos momentos de crise, no capitalismo avançado. De fato, a própria propriedade burocrática é de tal modo concentrada que o burocrata individual só se relaciona com a posse da economia global por um intermediário, a comunidade burocrática, e apenas como membro dessa comunidade. Além disso, a produção de mercadorias, menos desenvolvida no capitalismo burocrático, também assume uma forma concentrada: a mercadoria a que a burocracia se prende é a totalidade do trabalho social, e o que vende à sociedade é a sobrevivência por atacado. A ditadura da economia burocrática não pode dar às massas exploradas qualquer margem significativa de escolha, pois a própria burocracia deve escolher tudo e qualquer escolha externa, seja a respeito de comida ou de música, é já a escolha de destruir completamente a burocracia. Essa ditadura precisa ser acompanhada de uma violência permanente. A imagem imposta do bem envolve em seu espetáculo a totalidade do que existe oficialmente e costuma estar conecntarad em um só homem, que é o guardião da coesão totalitária. Todos devem identificar-se absolutamente com essa celebridade, ou desaparecer. Essa celebridade é senhora do não consumo, e a imagem heróica que dá um sentido aceitável à exploração absoluta que a acumulação primitiva acelerada pelo terror de fato é. Se todo chinês deve aprender Mao, e portanto ser Mao, é porque não pode ser nada mais. Onde reina o espetáculo concentrado, reina também a polícia.

65 O espetáculo difuso acompanha a abundância de mercadorias, o desenvolvimento sem sobressaltos do capitalismo moderno. Nele, toda mercadoria individual é justificada em nome da grandeza da produção da totalidade de objetos de que o espetáculo é um catálogo apologético. Alegações irreconciliáveis ocupam o palco do espetáculo unificado da economia afluente; diferentes mercadorias prestigiosas apóiam simultaneamente projetos contraditórios para abastecer a sociedade: o espetáculo dos automóveis exige uma rede de transportes perfeita que destrói as cidades antigas, enquanto o espetáculo da própria cidade exige áreas transformadas em museu. Portanto, a satisfação já problemática que deveria advir do consumo do todo é na mesma hora desmentida, pois o consumidor real só consegue tocar diretamente uma sucessão de fragmentos dessa felicidade mercantil, fragmentos de que a qualidade atribuída ao todo está obviamente ausente, todas as vezes.

66 Toda mercadoria específica luta por si mesma, não pode reconhecer as demais e tenta impor-se por toda a parte como se fosse a única. O espetáculo, então, é o poema épico desse combate, um épico que não pode ser concluído pela queda de nenhuma Tróia. O espetáculo não canta os louvores dos homens e de suas armas, mas das mercadorias e suas paixões. Nessa luta cega, toda mercadoria, perseguindo sua própria paixão, realiza inconscientemente algo mais elevado: o tornar-se mundo da mercadoria, que é também o tornar-se mercadoria do mundo. Assim, por meio de uma manha da lógica mercantil, o que é específico na mercadoria desgasta-se na luta, enquanto a forma mercantil se dirige à sua realização absoluta.

67 A satisfação que já não advém do uso de mercadorias abundantes é agora procurada no reconhecimento de seu valor como mercadorias: o uso de mercadorias torna-se suficiente em si mesmo; o consumidor fica cheio de fervor religioso pela liberdade soberana das mercadorias. Ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiadas e disseminadas por todos os meios de comunicação, propagam-se assim com a velocidade do raio. Um estilo de vestimenta surge de um filme; uma revista promove casas noturnas que lançam várias modas de roupa. Quando a massa de mercadorias cai na puerilidade, o próprio pueril torna-se uma mercadoria especial, epitomizada pelo gadget. Pode-se reconhecer um abandono místico à transcendência da mercadoria nos brindes, como os chaveiros que não são comprados, mas incluídos pelos publicitários nas compras prestigiosas, ou que fluem por troca em sua própria esfera. Quem coleciona chaveiros fabricados para serem colecionados acumula as indulgências da mercadoria, um sinal glorioso de sua presença entre os fiéis. O homem reificado proclama a prova de sua intimidade com a mercadoria. O fetichismo da mercadoria alcança momentos de exaltação fervorosa semelhantes aos êxtases das convulsões e milagres do velho fetichismo religioso. O único uso que permanece aqui é o uso fundamental da submissão.

68 A pseudo-necessidade imposta pelo consumo moderno não pode, é calro, ser oposto por qualquer necessidade genuína que não seja ela própria moldada pela sociedade e sua história. A mercadoria abundante representa a ruptura total do desenvolvimento orgânico das necessidades sociais. Sua acumulação mecânica liberta uma artificialidade ilimitada, frente à qual o desejo vivo é impotente. O poder cumulativo da artificialidade independente saws por toda a parte a falsificação da vida social.

69 Na imagem da sociedade beatificamente unificada pelo consumo, a divisão real só é suspensa até a próxima não realização no consumo. Todo produto isolado representa a esperança de um atalho deslumbrante para a terra prometida do consumo total e é cerimoniosamente apresentado como a entidade decisiva. Contudo, assim como acontece com a difusão de nomes aparentemente aristocráticos portados por quase todos os indivíduos da mesma idade, os objetos que prometem poderes únicos só podem ser recomendados à devoção das massas se forem produzidos em quantidades grandes o bastante para o consumo de massa. Um produto adquire prestígio quando é colocado no centro da vida social como o mistério revelado da meta suprema da produção. Mas o objeto que era prestigioso no espetáculo fica vulgar assim que é levado para casa por seu consumidor -- e por todos os seus outros consumidores. Revela a sua pobreza essencial (que advém da miséria de sua produção) tarde demais. Nessa altura, porém, outro objeto já porta a justificação do sistema e exige ser reconhecido.

70 A fraude da satisfação é exposta ao ser substituídas, ao seguir a mudança de produtos e das condições gerais da produção. O que se afirmara com perfeita impudência como a excelência definitiva muda mesmo assim, tanto no espetáculo difuso como no concentrado, e é só o sistema que deve continuar: Stalin e a mercadoria fora de moda são denunciados precisamente por quem os impôs. Toda nova mentira da propaganda é também uma confissão da mentira anterior. A queda de toda figura com poder totalitário revela a comunidade ilusória que o aprovara unanimemente, e que não era mais que um aglomerado de solidões sem ilusões.

71 O que o espetáculo oferece como eterno baseia-se na mudança e deve mudar com sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e ao mesmo tempo não consegue alcançar nenhum dogma sólido. Para o espetáculo, na ase detém; e, contudo, para ele essa condição é natural, embora seja completamente oposta à sua inclinação.

72 A unidade irreal proclamada pelo espetáculo mascara a divisão de classes que sustenta a unidade real do modo capitalista de produção. O que obriga os produtores a participar da construção do mundo é também o que os separa dele. O que une os homens libertados de seus limites locais e nacionais é também o que os afasta. O que exige uma racionalidade mais profunda é também o que nutre a irracionalidade da xploração e da repressão hierárquicas. O que cria o poder abstrato da sociedade cria a sua falta concreta de liberdade.

III. O proletariado como sujeito e como representação

O direito igual de todos aos bens e ao desfrute deste mundo, a destruição de toda autoridade, a negação de toda restrição moral -- estas, no fundo, são a razão de ser da insurreição de 18 de março e o programa da temível organização que lhe forneceu um exército.

Enquête parlementaire sur l’insurrection du 18 mars

73 O movimento real que suprime as condições existentes governa a sociedade desde o momento da vitória burguesa na economia, e visivelmente após a tradução política dessa vitória. O desenvolvimento das forças produtivas estraçalha as antigas relações de produção e toda ordem estática vira pó. O que era absoluto torna-se histórico.

74 Sendo atirados na história, tendo de participar do trabalho e das lutas que fazem a história, os homens vêem-se obrigados a ver suas relações de maneira clara. Esta história não tem objeto distinto do que tem lugar nela mesma, embora a última visão metafísica inconsciente da época histórica pudesse ver na progressão produtiva através da qual a história se desenrolou como o seu próprio objeto. O sujeito da história não pode ser outro além do que é vivo produzindo a si mesmo, tornando-se senhor e possuidor de seu mundo que é a história e existindo como consciência de seu jogo.

75 As lutas de classes da longa época revolucionária inaugurada pela ascensão da burguesia desenvolvem-se ao mesmo tempo que o pensamento da história, a dialética, o pensamento que não se detém mais para examinar o sentido do que é, mas eleva-se a um conhecimento da dissolução de tudo o que é, e nesse movimento dissolve toda separação.

76 “Hegel não tinha mais que interpretar o mundo, mas a transformação do mundo. Limitando-se a interpretar a transformação, Hegel é apenas a realização filosófica da filosofia. Ele quer entender um mundo que faz a si mesmo. Esse pensamento histórico é ainda apenas a consciência que chega tarde demais, e que pronuncia a justificação após o fato. Portanto, só superou a separação em pensamento. O paradoxo que consiste em fazer o sentido de toda a realidade depender de sua realização histórica e ao mesmo tempo revelar esse sentido quando ele faz de si mesmo a realização da história surge do fato simples de que o pensador das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII buscava em sua filosofia apenas uma reconciliação com os resultados dessas revoluções. Mesmo como filosofia da revolução burguesa, ela não expressa todo o processo da revolução, mas só a sua conclusão final. Neste sentido, não é uma filosofia da revolução, mas da restauração” (Karl Korsch, Teses sobre Hegel e a revolução). Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, “a glorificação do que existe”; mas o que existia para ele já não podia ser nada menos que a totalidade do movimento histórico. Como a posição externa do pensamento foi de fato preservada, isso só podia ser mascarado pela identificação do pensamento a um projeto anterior do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e quis o que fez e cuja realização coincide com o presente. Desse modo a filosofia, que morre no pensamento da história, passa a só poder glorificar o seu mundo renunciando a ele, pois, para poder falar, deve supor que essa história total à qual reduziu tudo já está completa, e que o único tribunal que poderia pronunciar o julgamento da verdadeestá fechado.

77 Quando, por sua própria existência, por seus atos, o proletariado demonstra que esse pensamento da história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é ao mesmo tempo a confirmação do método.

78 O pensamento da história só pode ser salvo tornando-se pensamento prático; e a prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser menos que a consciência histórica agindo sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas do movimento revolucionário dos trabalhadores surgiram de um embate crítico com o pensamento hegeliano -- tanto Stirner e Bakunin como Marx.

79 A inseparabilidade da teoria de Marx do método hegeliano é por sua vez inseparável do caráter revolucionário dessa teoria, ou seja, de sua verdade. Esta primeira relação tem sido em geral ignorada, mal interpretada e até denunciada como a fraqueza do que se tornou falaciosamente a doutrina marxista. Bernstein, em seu "Socialismo Evolucionário: Crítica e Afirmação" (Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie), revela à perfeição a ligação entre o método dialético e a tomada de partido histórico, deplorando as previsões anti-científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução proletária na Alemanha: “Essa auto-ilusão histórica, tão errônea que dificilmente poderia ser aperfeiçoada por qualquer visionário político, seria incompreensível em um Marx, que na época já havia estudado economia com seriedade, se não víssemos nisso o resquício da dialética antitética hegeliana da qual Marx, assim como Engels, nunca conseguiu libertar-se totalmente. Naquela época de efervescência geral, isso foi ainda mais fatal para ele”.

80 A inversão realizada por marx, para “recuperar pela transferência” o pensamento das revoluções burguesas, não consiste trivialmente em colocar o desenvolvimento das forças produtivas no lugar da viagem do Espírito hegeliano, cuja objetivação é idêntica à sua alienação e cujas feridas históricas não deixam cicatrizes, dirigindo-se para o encontro consigo mesmo no tempo. A história tornada real não tem mais um fim. Marx arruinou a posição de Hegel separada do que acontece e a contemplação por qualquer agente supremo externo. A partir desse momento, a teoria só precisa saber o que faz. Oposta a isso, a contemplação do movimento da economia no pensamento dominante da sociedade presente é a herança não transcendida da parte adialética da busca de Hegel por um sistema circular: é uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito e que não precisa mais de um hegelianismo para justificar-se, pois o movimento que ela elogia não passa de um setor sem visão do mundo, um setor cujo desenvolvimento mecânico domina efetivamente o todo. O projeto de Marx é o projeto de uma história consciente. O quantitativo que surge do desenvolvimento cego de forças produtivas meramente econômicas precisa ser transformado em uma apropriação histórica qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro ato deste fim da pré-história: “De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária”.

81 O que liga intimamente a teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que de fato agem na sociedade. Mas a teoria de Marx está fundamentalmente além do pensamento científico, e só o preserva ao superá-lo: o que está em questão é a compreensão da luta e não da lei. “Só reconhecemos a existência de uma ciência: a ciência da história” ( A Ideologia Alemã).

82 A época burguesa, que pretende dar um fundamento científico à história, não percebe o fato de que essa ciência disponível precisava de um fundamento histórico juntamente com a economia. Ao contrário, a história só depende diretamente do conhecimento econômico na medida em que continue sendo história econômica. A extensão em que o ponto de vista da observação científica pôde deixar de enxergar o papel da história na economia (o processo global que modifica suas próprias premissas científicas básicas) fica evidente na vaidade dos cálculos socialistas que julgavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises. Hoje em dia, quando a intervenção constante do Estado conseguiu compensar o efeito das tendências à crise, o mesmo tipo de raciocínio vê nesse equilíbrio uma harmonia econômica definitiva. Para conhecer -- e absorver -- a ciência da sociedade, o projeto de asenhorear-se da economia, de apropriar-se da história, não pode ser científico. O ponto de vista revolucionário de um movimento que julga poder dominar a história corrente por meio do pensamento científico não deixou ainda de ser burguês.

83 As correntes utópicas do socialismo, embora historicamente fundamentadas na crítica da organização social existente, podem com justiça ser chamadas de utópicas no sentido de que rejeitam a história -- ou seja, as lutas reais que acontecem, bem como a passagem do tempo além da perfeição imutável de sua imagem de uma sociedade feliz --, mas não por rejeitarem a ciência. Ao contrário, os pensadores utópicos eram totalmente dominados pelo pensamento científico dos séculos anteriores. Buscavam a realização desse sistema racional geral: não se consideravam de modo algum como profetas desarmados, pois acreditavam no poder social da prova científica e até, no caso do sansimonismo, na tomada do poder pela ciência. “Como querem tomar pela luta o que precisa ser provado?”, perguntava-se Sombart. A concepção científica dos utópicos não se estendia ao conhecimento de que alguns grupos têm interesses na situação existente, forças para mantê-la e formas de falsa consciência correspondentes a tais posições. Essa concepção não chegou sequer à realidade histórica do desenvolvimento da própria ciência, em grande parte orientado pela demanda social de agentes que selecionavam não só o que podia ser admitido, mas também o que podia ser estudado. Os socialistas utópicos, permanecendo prisioneiros do modo de exposição da verdade científica, concebiam essa verdade em termos de sua pura imagem abstrata -- uma imagem que fora imposta em um estágio muito anterior da sociedade. Como observou Sorel, foi sobre o modelo da astronomia que os utópicos pensaram poder descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia vislumbrada por eles, hostil à história, advinha da tentativa de aplicar à sociedade a ciência menos dependente da história. Essa harmonia foi apresentada com a inocência experimental do newtonismo, e o destino feliz constantemente postulado “tem na ciência social deles um papel análogo ao da inércia no racional” (Matériaux pour une théorie du prolétariat ).

84 A faceta científica determinista do pensamento de Marx foi precisamente a brecha por onde o processo de “ideologização” penetrou, quando ele ainda estava vivo, na herança teórica deixada ao movimento dos trabalhadores. A chegada do sujeito histórico continua sendo adiada, e é a economia, a ciência histórica por excelência, que tende cada vez mais a garantir a necessidade de sua própria negação futura. Mas o que desse modo foi empurrado para fora do campo de visão teórica foi a prática revolucionária, única verdade dessa negação. O que passa a ser importante é estudar o desenvolvimento econômico com paciência, e continuar aceitando o sofrimento com hegeliana tranqüilidade, de modo que o resultado continua sendo “um cemitério de boas intenções”. Descobre-se de repente que, segundo a ciência da revolução, a consciência sempre chega cedo demais, e precisa ser ensinada. “A história demonstrou que nós, e todos os que pensavam como nós, estávamos enganados. A história demonstrou claramente que o estado do desenvolvimento econômico no continente naquela época estava longe de estar maduro”, diria Engels em 1895. Ao longo de toda a vida, Marx sustentou um ponto de vista unitário em sua teoria, mas a exposição dessa teoria foi feita no terreno do pensamento dominante e tornou-se precisa na forma de críticas de disciplinas específicas, sobretudo na crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. Foi essa mutilação, mais tarde aceita como definitiva, que se constituiu no “marxismo”.

85 A fraqueza da teoria de Marx é naturalmente a fraqueza da luta do proletariado na época. A classe trabalhadora não começou a revolução permanente na Alemanha de 1848; a Comuna foi derrotada no isolamento. O fato de Marx ter sido reduzido a defendê-la e esclarecê-la com o trabalho enclausurado e erudito no British Museum causou uma perda da própria teoria. As justificativas científicas que Marx elaborou sobre o futuro desenvolvimento da classe trabalhadora e a prática organizacional delas decorrentes tornaram-se obstáculos à consciência proletária em um estágio posterior.

86 Todas as insuficiências teóricas, tanto no conteúdo como na forma de exposição da defesa científica da revolução proletária, podem ser atribuídas à identificação do proletariado com a burguesia do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.

87 As únicas duas classes que correspondem efetivamente à teoria de Marx, as duas classes puras às quais leva toda a análise d’O Capital, a burguesia e o proletariado, são também as duas únicas classes revolucionárias da história, mas em condições muito difíceis: a revolução burguesa terminou; a revolução proletária é um projeto nascido com base na revolução anterior, mas dela diferindo qualitativamente. Desprezando-se a originalidade do papel histórico da burguesia, mascara-se a originalidade concreta do projeto proletário, que não pode realizar coisa alguma a não ser que carregue suas próprias bandeiras e conheça “a imensidão de suas tarefas”. A burguesia chegou ao poder por ser a classe da economia em desenvolvimento. O proletariado não pode chegar ao poder a não ser tornando-se a classe da consciência. O crescimento das forças produtivas não pode ser uma garantia desse poder, nem em virtude do aumento de despossessão que causa. Uma tomada jacobina do poder não pode ser o seu instrumento. Nenhuma ideologia pode ajudá-lo a disfarçar suas metas parciais como metas gerais, pois o proletariado não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja realmente sua.

88 Se Marx, em um dado período de sua participação nas lutas do proletariado, depositou demasiadas esperanças na previsão científica, a ponto de criar o fundamento intelectual das ilusões do economicismo, sabe-se que ele próprio não sucumbiu a essas ilusões. Na conhecida carta de 7 de dezembro de 1867 que acompanhou um artigo em que ele mesmo criticava O Capital-- que Engels depois apresentaria à imprensa como obra de um adversário -- Marx colocou claramente os limites de sua ciência: “...a tendência subjetiva do autor (que lhe foi talvez imposta por sua posição política e por seu passado), ou seja, a maneira como ele vê e apresenta aos demais os resultados últimos do movimento real, o processo social real, não tem relação alguma como sua análise de fato”. Desse modo Marx, denunciando as “conclusões tendenciosas” de sua própria análise objetiva, e pela ironia do “talvez” com referência às opções extra-científicas que lhe foram impostas, ao mesmo tempo mostra a chave metodológica para a fusão dos dois aspectos.

89 A fusão do conhecimento e da ação deve ser realizada na própria luta histórica, de tal modo que cada um dos termos seja garantia da verdade do outro. A formação da classe proletária como sujeito significa a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário: é então que as condições práticas da consciência devem existir, condições em que a teoria da práxis é confirmada ao tornar-se teoria prática. No entanto, esta questão central da organização foi a questão menos desenvolvida pela teoria revolucionária no momento em que o movimento dos trabalhadores foi fundado, ou seja, quando essa teoria tinha ainda o caráter unitário advindo do pensamento da história. (A teoria empreendera essa tarefa justamente para desenvolver uma prática histórica unitária.) Essa questão é com efeito o ponto de incoerência dcessa teoria, que permitiu o retorno de métodos estatistas e ahierárquicos de aplicação emprestados da revolução burguesa. Por sua vez, as formas de organização do movimento dos trabalhadores desenvolvidas com base nessa renúncia da teoria impediram a manutenção de uma teoria unitária, fracionando-a em várias disciplinas especializadas e parciais. Em virtude da traição ao pensamento histórico unitário, essa extravio ideológico da teoria não consegue mais reconhecer a verificação prática desse pensamento quando tal verificação surge nas lutas espontâneas dos trabalhadores; tudo o que consegue fazer é reprimir toda manifestação e memória dessa verificação. Contudo, as formas históricas que surgiram na luta são precisamente o meio prático de que a teoria precisava para ser verdadeira. Elas são exigências teóricas que não foram formuladas teoricamente. O soviete não foi uma descoberta teórica; mesmo assim, sua existência na prática foi por si só a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores.

90 Os primeiros êxitos da luta da Internacional levaram-na a libertar-se das influências confusas da ideologia dominante nela remanescentes. Mas a derrota e a repressão que logo encontrou trouxeram à tona um conflito entre duas concepções da revolução proletária. Ambas continham uma dimensão autoritária e, portanto, afastaram-se da auto-emancipação consciente da classe trabalhadora. Com efeito, a querela entre marxistas e bakuninistas (que se tornou irreconciliável) tinha duas faces, referentes tanto ao poder na revolucionária quanto à organização do movimento presente; e as posições dos adversários invertiam-se quando passavam de um aspecto a outro. Bakunin combatia a ilusão de que as classes podiam ser abolidas pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sabidos, ou dos que supostamente o seriam. Marx achava que o crescimento das contradições econômicas, inseparável da educação democrática dos trabalhadores, reduziria o papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização das novas relações sociais impostas objetivamente, e denunciava Bakunin e seus seguidores pelo autoritarismo de uma elite conspiratória que se colocava deliberadamente acima da Internacional e formulava o projeto extravagante de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou os que assim se considerassem. Bakunin, com efeito, recrutava seus seguidores com base nessa perspectiva: “Pilotos invisíveis no centro da tempestade popular, devemos dirigi-la, não com um poder visível, mas com a ditadura coletiva de todos os aliados. Uma ditadura sem faixa, sem título e sem direito oficial, mas ainda mais poderosa por não ter nenhuma das aparências de poder”. Desse modo, as duas ideologias da revolução dos trabalhadores confronatavam-se, cada uma contendo uma crítica parcialmente verdadeira, mas ambas perdendo a unidade do pensamento da história e instituindo-se em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente a uma ou outra dessas ideologias; e, por toda a parte, os resultados foram bem diversos dos desejados.

91 A força e a fraqueza da luta anarquista real residem em sua visão da meta da revolução proletária como imediatamente presente (as pretensões do anarquismo em suas variantes individualistas sempre foram risíveis). Do pensamento histórico das lutas de classes modernas, o anarquismo coletivista reteve apenas a conclusão, e sua insistência exclusiva nessa conclusão foi acompanhada por um desprezo deliberado pelo método. Assim, sua crítica da luta política permaneceu abstrata, ao passo que sua escolha da luta econômica é afirmada apenas como função da ilusão de uma solução definitiva trazida por um único golpe nesse terreno -- no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é uma negação meramente ideológica do Estado e das classes, ou seja, das condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da liberdade pura, que iguala tudo e despreza até a idéia do mal histórico. Esse ponto de vista que funde todos os desejos parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a rejeição das condições existentes em favor de conjunto da vida, e não de uma especialização crítica; mas essa fusão é vista no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização na prática, condenando assim o anarquismo a uma incoerência claramente visível. O anarquismo precisa apenas repetir a mesma conclusão simples e total em cada luta isolada, pois sua primeira conclusão foi desde o início identificada ao desfecho final do movimento. Foi assim que Bakunin pôde escrever em 1873, quando saiu da Federação Jurassiana: “Nestes últimos nove anos, mais idéias foram desenvolvidas da Internacional que as necessárias para salvar o mundo, se idéias sozinhas fossem capazes de o salvar, e desafio qualquer um a inventar uma nova. Já não é hora de idéias, mas de fatos e atos”. Não há dúvida de que essa concepção conserva um elemento do pensamento histórico do proletariado, a certeza de que as idéias devem tornar-se práticas, mas abandona o terreno histórico ao presumir que as formas adequadas para essa passagem à prática já foram encontradas e nunca mudarão. 93 Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do resto do movimento dos trabalhadores por sua convicção ideológica, reproduzem em seu seio essa separação de competências; proporcionam um terreno favorável ao domínio informal de todas as organizações anarquistas por propaganditsas e defensores da ideologia, especialistas que em geral são mais medíocres quanto mais sua atividade intelectual consiste na repetição de certas verdades definitivas. O respeito ideológico pela unanimidade na decisão foi, afinal de contas, favorável à autoridade sem controle, no interior da organização, dos especialistas em liberdade; e o anarquismo revolucionário espera da população liberada a mesma unanimidade, obtida pelos mesmos meios. Além disso, a recusa a levar em conta a oposição entre as condições de uma minoria agrupada na luta presente e as de uma sociedade de indivíduos livres nutriu entre os anarquistas uma permanente divisão no momento da decisão, tal como se vê na infinidade de isurreições anarquistas na Espanha, confinadas e destruídas em um nível local.

93 A ilusão entretida de modo mais ou menos explícito pelo anarquismo genuíno é a iminência permanente de uma revolução realizada instantaneamente, que provará a verdade da ideologia e do modo de organização prática dela derivado. Em 1936, o anarquismo liderou de fato uyma revolução social, o mais avançado modelo de poder proletário de todos os tempos. Nesse contexto, é preciso observar que o sinal para a insurreição geral fora dado por um golpe militar. Além disso, como essa revolução não foi completada nos primeiros dias (por causa da existência do poder de Franco em metade do país, pesadamente apoiado do estrangeiro enquanto o resto do movimento proletário internacional já estava derrotado, e devido aos restos de forças burguesas e de outros partidos estatistas de trabalhadores no campo da República), o movimento anarquista organizado revelou-se incapaz de estender as meias vitórias da revolução, ou sequer de as defender. Seus líderes conhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruiu a revolução para perder a guerra civil.

94 O “marxismo ortodoxo” da Segunda Internacional é a ideologia científica da revolução socialista: ele identifica toda a sua verdade a processos objetivos da economia e ao progresso de um reconhecimento dessa necessidade pela classe trabalhadora educada pela organização. Essa ideologia redescobre a confiança na demonstração pedagógica que caracterizara o socialismo utópico, mas mistura-a a uma referência contemplativa ao curso da história: essa atitude perdeu tanto da dimensão hegeliana de uma história total quanto a imagem imóvel da totalidade da crítica utópica (mais altamente desenvolvida por Fourier). Essa atitude científica não pode fazer mais que reviver uma simetria de opções éticas; é dela que brota o absurdo de Hilferding quando declara que reconhecer a necessidade do socialismo não dá “nenhuma indicação da atitude prática a ser adotada. Pois uma coisa é reconhecer uma necessidade, e outra, totalmente diferente, é colocar-se a serviço dessa necessidade” (Finanzkapital). Aqueles que não reconheceram que, para Marx e para o proletariado revolucionário, opst unitário da história não era de modo algum distinto da atitude prática a ser adotada tornaram-se regularmente vítimas da prática que adotaram.

95 A ideologia da organização social-democrata dava poder a professores que educavam a classe trabalhadora, e a forma de organização adotada foi a mais adequada a esse aprendizado passivo. A participação dos socialistas da Segunda Internacional nas lutas políticas e econômicas foi com certeza concreta, mas produndamente acrítica. Foi conduzida em nome da ilusão revolucionária, mas por meio de uma prática obviamente reformista. A ideologia revolucionária seria destruída pelo próprio sucesso de seus portadores. A posição separada dos deputados e jornalistas do movimento atraiu os burgueses já recrutados para um modo burguês de vida. Mesmo os que haviam sido recrutados nas lutas dos trabalhadores industriais e que eram trabalhadores foram transformados pela burocracia sindical em corretores de mão de obra que vendiam trabalho como uma mercadoria, a um preço justo. Para que a atividade deles conservasse alguma aparência de ser revolucionária, o capitalismo precisaria ser convenientemente incapaz de sustentar no nível econômico esse reformismo que tolerava no nível político (na agitação legalista dos social-democratas). Mas um tal antagonismo, garantido por sua ciência, era constantemente desmentido pela história.

96 Bernstein, o social-democrata mais afastado da ideologia e mais abertamente ligado à metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer demonstrar a realidade dessa contradição; o movimento reformista dos trabalhadores ingleses já havia demonstrado isso, passando-se da ideologia. Mas a contradição foi definitivamente demonstrada pelo próprio desenvolvimento histórico. Embora cheio de ilusões em outros aspectos, Bernstein negara que uma crise da produção capitalista forçaria milagrosamente a mão dos socialistas que só queriam herdar a revolução por intermédio desse rito legítimo. A profunda comoção social surgida com a primeira guerra mundial, embora fértil em despertar de consciência, demonstrou duas vezes que a hierarquia social-democrática não havia educado revolucionariamente: primeiro, quando a vasta maioria do partido apoiou a guerra imperialista; depois, na derrota, quando esmagou os revolucionários espartaquistas. O ex-trabalhador Ebert ainda acreditava em pecado, pois admitiu que odiava a revolução “como o pecado”. O mesmo líder revelou-se um precursor da representação socialista que logo depois enfrentaria o proletariado russo como se inimigo absoluto; chegou até a formular exatamente o mesmo programa para essa nova alienação: “o socialismo quer dizer trabalhar muitíssimo”.

97 Lênin, como pensador marxista, não passava de um kautskista fiel e coerente que aplicou a ideologia revolucionária do “marxismo ortodoxo” às condições russas, condições essas que eram desfavoráveis à prática reformista praticada em outras partes pela Segunda Internacional. No contexto russo, o controle externo do proletariado, execido por meio de um partido clandestino disciplinado subordinado a intelectuais tramsformados em “revolucionários profissionais”, tornou-se uma profissão que se recusava a tratar com as profissões dominantes da sociedade capitalista (sendo o regime político czarista, aliás, incapaz de oferecer oportunidades desse tipo, que se baseiam em um estágio avançado do poder burguês). Tornou-se, portanto, a profissão do controle absoluto da sociedade.

98 Com a guerra e o colapso da internacional social-democrata frente a ela, o radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques espalhou-se pelo mundo. O fim sangrento das ilusões democráticas do movimento dos trabalhadores transformou o mundo inteiro em uma Rússia, e o bolchevismo, que reinou sobre a primeira ruptura revolucionária ocorrida nesta época de crises, ofereceu aos proletários de todas as terras o seu modelo hierárquico e ikdeológico, para que eles pudesse “falar russo” com a classe dominante. Lenin não reprovava o marxismo da Segunda Internacional por ser uma ideologia revolucionária, mas por ter deixado de o ser.

99 O momento histórico em que o bolchevismo triunfou por si mesmo na Rússia e em que a social-democracia combateu vitoriosamente pelo velho mundo marca a inauguração de um estado de coisas que está no coração do domínio do espetáculo moderno: a representação da classe trabalhadora opõe-se radicalmente à classe trabalhadora.

100 “Em todas as revoluções anteriores”, escreveu Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918, “os combatentes enfrentavam-se diretamente: classe contra classe, programa contra programa. Na revolução atual, as tropas que protegem a velha ordem não intervêm sob as bandeiras da classe dominante, mas sob a de um ‘partido social-democrata’. Se a questão central da revolução fosse colocada aberta e honestamente, capitalismo ou socialismo, a grande massa do proletariado não teria dúvidas, nem hesitaria”. Assim, poucos dias antes de sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobriu o segredo das novas condições criadas pelo processo precedente (com o qual a representação da classe trabalhadora contribuíra em grande medida): a organização espetacular da defesa da ordem existente, o reino social da aparências em que nenhuma “questão central” pode mais ser colocada “aberta e honestamente”. A representação revolucionária do proletariado já se tornara, nessa altura, ao mesmo tempo o principal fator e o resultado central da falsificação generalizada da sociedade.

101 A organização do proletariado com base no modelo bolchevique que surgiu do atraso russo e do abandono da luta revolucionária pelo movimento dos trabalhadores dos países avançados encontrou nesse atraso todas as condições que arrastaram essa forma de organização para a inversão contra- revolucionária que ela continha inconscientemente em sua raiz. O contínuo recuo do movimento dos trabalhadores europeus frente ao Hic Rhodus, hic salta do período de 1918-1920, recuo que incluíra a destruição violenta de sua minoria radical, favoreceu o arremate final do desenvolvimento bolchevique e permitiu que seu desfecho fraudulento se apresentasse ao mundo como a única solução proletária. Assumindo o monopólio de estado sobre a representação e a defesa do poder dos tgbds, o partido bolchevique justificava-se e tornava-se o que já era: o partido dos proprietários do proletariado (que eliminou essencialmente todas as formas anteriores de propriedade).

102 Durante vinte anos de debates sem solução, as várias tendências da social-democracia russa examinaram todas as condições para a liqüidação do czarismo: a fraqueza da burguesia, o peso da maioria camponesa e o papel decisivo de um proletariado concentrado e comabtivo, mas bem pouco numeroso. O debate foi resolvido em termos práticos por um fator que não estivera presente na hipótese: uma burocracia revolucionária que dirigia i proletariado tomou o poder de Estado e deu à sociedade um novo domínio de classe. A revolução estritamente burguesa fora impossível; a “ditadura democrática de operários e camponeses” não tinha sentido; o poder proletário dos sovietes não conseguiu manter-se simultaneamente contra a classe dos pequenos proprietários de terras, contra a reação branca nacional e internacional e contra sua própria representação externalizada e alienada na forma de um partido de trabalhadores de senhores absolutos da economia estatal, da expressão e logo do pensamento. A teoria da revolução permanente de Trotski e Parvus, que Lênin adotou em abril de 1917, foi a única teoria que se tornou verdadeira para os países em que o desenvolvimento social da burguesia estava retardado, mas só depois da introdução de um fator desconhecido: o poder de classe das burocracia. Nas inúmeras discussões entre os dirigentes bolcheviques, Lênin foi o defensor mais coerente da concentração do poder ditatorial nas mãos dos repsentantes supremos da ideologia. Lênin teve razão todas as vezes contra seus adversários, por apoiar a solução implícita em suas escolhas anteriores de poder absoluto de uma minoria: a democracia negada aos camponeses por meio do estado deveria ser negada aos trabalhadores também, o que levou a negá-la aos líderes comunistas dos sindicatos, ao partido todo e finalmente aos principais burocratas do partido. No Décimo Congresso, quando o soviete de Cronstadt fora derrotado pelas armas e enterrado sob a calúnia, Lênin pronunciou contra os burocratas de esquerda da “Oposição Operária” a seguinte conclusão (cuja lógica Stalin mais tarde aplicou a toda uma divisão do mundo): “Aqui ou lá com um fuzil, mas não com a oposição... Já tivemos oposição de sobra”.

103 Depois de Cronstadt, a burocracia -- única proprietária do capitalismo de Estado -- consolidou internamente o seu poder por meio de uma aliança temporária com o campesinato (a “nova política econômica”) e externamente usando os trabalhadores arregimentados nos partidos burocráticos da Terceira Internacional como apoio para a diplomacia russa, sabotando assim todo o movimento revolucionário e apoiando governos burgueses de cuja ajuda precisava na política internacional (o Kuomintang na China em 1925-27, as Frentes Populares da Espanha e da França etc.). a sociedade burocrática continuou a consolidação aterrorizando o campesinato para implementar a acumulação capitalista primitiva mais brutal da história. A industrialização da época de Stalin revelou a realidade por trás da burocracia: a continuação do poder da economia e a preservação da essência do trabalho mercadoria da sociedade de mercado. A economia independente, que domina a sociedade a ponto de reinstituir o domínio de classe de que precisa para seus próprios fins, é assim confirmada. O que equivale a dizer que a burguesia criou uma potência autônoma que, enquanto durar a sua autonomia, pode até se passar da burguesia. A burocracia totalitária não é “a última classe proprietária da história” no sentido de Bruno Rizzi; é apenas a classe dominante de reposição para a economia mercantil. A propriedade capitalista particular em declínio é trocada por um substituto simplificado e menos diversificado que se condensa na propriedade coletiva da classe burocrática. Essa classe dominante subdesenvolvida é a expressão do subdesenvolvimento econômico e não tem outra perspectiva além de superar o atraso desse desenvolvimento em algumas regiões do mundo. Foi o partido dos trabalhadores organizado segundo o modelo burguês da separação que forneceu os quadros hierárquicos estatais para essa edição suplementar de uma classe dominante. Quando estava em uma das prisões de Stalin, Anton Ciliga observou que “as questões técnicas de organização acabaram revelando-se questões sociais” (Lênin e a Revolução).

104 A ideologia revolucionária, a coerência do separado, da qual o leninismo representou a mais alta tentativa voluntarista, ao supervisionar a realidade que a rejeita, volta com o stalinismo à sua verdade na incoerência. Nessa altura a ideologia deixa de ser uma arma e passa a ser uma meta. A mentira que não é mais desafiada torna-se loucura. Tanto a realidade quanto a meta dissolvem-se na proclamação ideológica totalitária: tudo o que diz é tudo o que existe. Trata-se de um primitivismo local do espetáculo, cujo papel é mesmo assim essencial para o desenvolvimento do espetáculo mundial. A ideologia que se materializa nesse contexto não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo que atingiu o estágio da abundância, mas apenas a percepção desse mundo, com a ajuda da polícia.

105 A classe ideológica totalitária no poder é o poder de um mundo de pernas para o ar: quanto mais forte é, mais alega não existir, e a sua força serve antes de mais nada para afirmar a sua não existência. Ela só é modesta neste ponto, pois a sua não existência oficial precisa coincidir também com o nec plus ultra do desenvolvimento histórico que deve ao mesmo tempo ser atribuído à sua liderança infalível. Estendida por toda a parte, a burocracia deve ser a classe invisível à consciência; conseqüentemente, toda a vida social fica ensandecida. A organização social da mentira absoluta flui dessa contradição fundamental.

106 O stalinismo foi o reino do terror no seio da própria classe burocrática. O terrorismo que está na base do poder dessa classe precisa também atingi-la, pois ela não tem nenhuma garantia judicial, nenhuma existência reconhecida como classe proprietária que possa estender a cada um de seus membros. Estando a sua propriedade real oculta, a burocracia tornou-se proprietária por meio da falsa consciência. Esta só pode conservar o seu poder absoluto por meio do terror absoluto, em que todos os motivos reais acabam sendo perdidos. Os membros da classe burocrática no poder só têm um direito coletivo à propriedade sobre a sociedade, como partícipes em uma mentira fundamental: precisam desempenhar o papel do proletariado dirigindo uma sociedade socialista; precisam ser atores leais a um roteiro de deslealdade ideológica. Nenhum burocrata pode sustentar o seu poder individualmente, pois provar que é um proletário socialista significaria apresentar-se como o contrário de um burocrata, e provar que é um burocrata é impossível, pois a verdade oficial da burocracia é não existir. Portanto, cada burocrata depende absolutamente da garantia central da ideologia, que reconhece a participação coletiva em seu “poder socialista” de todos os burocratas que não aniquila. Se todos os burocratas em conjunto decidem tudo, a coesão de sua própria classe só pode ser garantida pela concentração terrorista de todo o seu poder em uma única pessoa. Nessa pessoa reside a única verdade prática da falsidade no poder: a permanência indiscutível de sua fronteira sempre remarcada. Stalin decide sem apelo, em última instância, quem deve ser um burocrata possuidor; em outras palavras, quem será um “proletário no poder” e quem um “traidor a soldo do Mikado ou de Wall Street”. Os átomos burocráticos só encontram a essência comum de seu direito na pessoa de Stalin. Stalin é o soberano do mundo que assimse conhece como a pessoa absoluta para cuja consciência não há espírito mais alto. “O soberano do mundo tem consciência efetiva do que é -- o poder universal da eficácia -- na violência destrutiva que exerce contra o Eu de seus súditos, os outros contrastantes”. Assism como é o poder que define o terreno do domínio, é também “o poder que assola esse terreno”.

107 Quando a ideologia, tendo-se tornado absoluta pela posse do poder absoluto, muda de conhecimento parcial para falsidade totalitária, o pensamento da história é tão perfeitamente aniquilado que a própria história, mesmo no nível do conhecimento mais empírico, não pode mais existir. A sociedade burocrática totalitária vive em um presente perpétuo em que tudo o que aconteceu só existe para ela como um lugar acessível à sua polícia. O projeto já formulado por Napoleão de “governar dirigindo a energia da memória” encontrou sua concretização total na manipulação permanente do passado, não só dos sentidos, mas também dos fatos. Mas o preço pago por essa emancipação de toda realidade histórica é a perda da referência racional que é indispensável para a sociedade histórica, o capitalismo. Sabe-se o quanto custou à economia russa a aplicação científica da ideologia ensandecida -- é só lembrar a impostura de Lysenko. A contradição da administração de uma sociedade industrializada pela burocracia totalitária, presa entre a necessidade de racionalidade e a sua rejeição do racional, é uma de suas principais deficiências em relação ao desenvolvimento capitalista normal. Assim como a burocracia não consegue resolver a questão da agricultura do modo que o capitalismo o fez, em última instância também é inferior ao capitalismo na produção industrial, planejada de cima para baixo e baseada na irrelaidade e na falsificação generalizada.

108 Entre as duas guerras mundiais, o movimento revolucionário dos trabalhadores foi aniquilado pela ação conjunta da burocracia stalinista e do totalitarismo fascista, que emprestara sua forma de organização do partido totalitário ensaiado na Rússia. O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela subversão proletária. É um estado de sítio da sociedade capitalista, por meio da qual essa sociedade salva- se e proporciona-se uma racionalização acelerada fazendo o Estado intervir maciçamente em sua administração. Mas essa mesma racionalização é ameaçada pela imensa irracionalidade de seus meios. Embora o fascismo se lance à defesa dos principais pontos da ideologia burguesa que se tornou conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), unindo a pequena burguesia e os desempregados desorientado pela crise ou enganados pela impotência da revolução socialista, em si mesmo ele não é fundamentalmente ideológico. Ele apresenta-se tal qual é: uma ressurreição violenta do mito que exige a participação em uma comunidade definida por pseudo-valores arcaicos: sangue, raça, o líder. O fascismo é o arcaismo tecnicamente equipado. Seu ersatz decomposto de mito é revivido no contexto espetacular dos mais modernos meios de condicionamento e ilusão. É, portanto, um dos fatores de formação do espetáculo moderno, e seu papel na destruição do antigo movimento dos trabalhadores faz dele uma das forças fundamentais da sociedade atual. Contudo, sendo também uma das formas mais custosas de se manter a ordem capitalista, teve de deixar o centro do palco para os grandes papéis reprsentados pelos estados capitalistas; foi eliminado por formas mais fortes e mais racionais da mesma ordem.

109 Agora que a burocracia russa conseguiu finalmente desfazer-se dos resquícios de propriedade burguesa que atravancavam o seu domínio sobre a economia, desenvolvendo essa propriedade para seu próprio uso e sendo reconhecida externamente entre as grandes potências, quer desfrutar calmamente de seu mundo e suprimir o elemento arbitrário que reinou sobre ela: denuncia o stalinismo que esteve na sua origem. Mas a própria denúncia continua sendo stalinista, arbitrária, inexplicada e continuamente corrigida, pois a mentira ideológica da sua origem nunca pode ser revelada. Portanto, a burocracia não pode liberalizar nem a cultura, nem a política, pois sua existência como classe depende do seu monopólio ideológico que, com todo o seu peso, é seu único título de propriedade. É certo que a ideologia perdeu a paixão de sua afirmação positiva, mas a trivialidade indiferente que ainda sobrevive tem a função repressiva de proibir a mais mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do pensamento. Portanto, a burocracia fica atada a uma ideologia em que ninguém mais acredita. O que foi terrorismo tornou-se objeto de riso, mas esse objeto de riso só se pode manter preservando, como último recurso, o terrorismo de que gostaria de se livrar. Assim, precisamente no momento em que a burocracia quer demonstrar sua superioridade no terreno do capitalismo, revela-se como uma parente pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a sua história real contradiz as suas alegações e sua ignorância vulgarmente entretida contradiz suas pretensões científicas, o seu projeto de tornar-se um rival da burguesia na produção da abundância mercantil é bloqueado pelo fato de que essa abundância tem implícita sua própria ideologia e costuma ser acompanhada por uma liberdade indefinidamente extensa de falsas escolhas espetaculares, uma pseudo-liberdade irreconciliável com a ideologia burocrática.

110 No presente estágio de seu desenvolvimento, o direito burocrático à propriedade ideológica já está desmoronando internacionalmente. O poder que se estabeleceu no nível nacional como uim modelo fundamentalmente internacionalista precisa admitir que já não consegue manter sua falsa coesão por sobre todas as fronteiras nacionais. O desenvolvimento econômico desigual de algumas burocracias com interesses concorrentes que conseguiram adquirir seu “socialismo” além do único país levou ao confronto público e total entre a mentira russa e a mentira chinesa. A partir deste momento, toda burocracia no poder, ou todo partido totalitário candidato ao poder deixado pelo período stalinista em algumas classes trabalhadoras nacionais, deve seguir seu por caminho. A decomposição global da aliança da mistificação burocrática é ainda mais agravada por manifestações de negação interna que começaram a fazer-se visíveis ao mundo com a revolta dos operários de Berlim oriental, opondo aos burocratas a exigência de um “governo dos metalúrgicos”, manifestações que já chegaram uma vez ao poder dos concelhos operários na Hungria. No entanto, essa decomposição global da aliança burocrática é em última instância o fator menos favorável ao atual desenvolvimento da sociedade capitalista. A burguesia está em vias de perder o adversário que a sustentou objetivamente ao proporcionar uma unificação ilusória de toda negação da ordem existente. Esta divisão de trabalho no espetáculo chega ao fim quando o papel pseudo-revolucionário divide-se por sua vez. O elemento espetacular do desmoronamento do movimento dos trabalhadores está prestes a desmoronar.

111 A ilusão leninista não tem nenhuma base contemporânea fora das diversas tendências trotskistas. Nelas, a identificação do projeto proletário a uma organização hierárquica da ideologia sobrevive tenazmente à experiência de todos os seus resultados. A distância que separa o trotskismo de uma crítica revolucionária da sociedade atual permite-lhe manter uma atitude deferente com relação a posições que já eram falsas quando foram em um combate real. Basicamente, Trotski continuou solidário com a alta burocracia até 1927, procurando capturá-la para fazê-la retomar uma ação externa genuinamente bolchevique (é sabido que, para ocultar o famoso “testamento” de Lênin, ele chegou até a desmentir caluniosamente o seu aliado Max Eastman, que o havia publicado). Trotski foi condenado por sua perspectiva básica, pois assim que a burocracia se reconhece em seu resultado como uma classe internamente contra-revolucionária, precisa também escolher, em nome da revolução, ser de fato contra-revolucionária externamente, tal como em seu próprio país. A luta posterior de Trotski pela Quarta Internacional conserva a mesma incoerência. Por toda a vida, Trotski negou-se a reconhecer a burocracia como o poder de uma classe separada, pois, durante a segunda revolução russa, tornou-se um partdário incondicional da forma bolchevique de organização. Quando Lukács, em 1923, mostrou que essa forma era a ansiada mediação entre a teoria e a prática, na qual os proletários deixam de ser “espectadores” dos acontecimentos em sua organização, mas escolhem e vivem conscientemente esses acontecimentos, estava descrevendo como méritos reais do partido bolchevique tudo o que este não era. A não ser por sua profunda obra teórica, Lukács continuava sendo um ideólogo que falava em nome do poder mais grosseiramente externo ao movimento proletário, acreditando e fazendo acreditar que ele, com sua personalidade completa, movia-se nesse poder como se fosse o seu próprio. Mas a continuação mostrou de que modo esse poder abandona e suprime os seus lacaios; nos infindáveis auto-repúdios de Lukács, aquilo com que ele se identificara ficou visível e claro como uma caricatura: ele se tinha identificado ao contrário de si mesmo e do que sustentara em História e Consciência de Classe. Lukács é a melhor prova da regra fundamental que julga todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam é uma medida exata de sua própria realidade desprezível. Contudo, não se pode dizer que Lênin tivesse estimulado esse tipo de ilusão sobre a sua atividade, considerando que “um partido político não pode ficar examinando seus membros para ver se há alguma contradição entre a filosofia deles e o programa do partido”. O partido real cujo retrato Lukács traçara tão inoportunamente só era coerente para uma única tarefa precisa e parcial: tomar o poder de estado.

112 A ilusão neo-leninista do trotskismo atual, constantemente desmentida pela realidade das sociedades capitalistas modernas burguesa e burocrática, encontra um campo de ação privilegiado nos países “subdesenvolvidos” formalmente independentes. Neles, a ilusão de alguma variante de socialismo de estado e burocrático é conscientemente manipulada pelas classes dominantes locais apenas como a ideologia do desenvolvimento econômico. A composição híbrida dessas classes está relacionada com maior ou menor clareza à sua posição no espectro burguês-burocrático. Seus jogos na escala internacional com os dois polos do poder capitalista existente, assim como seus compromissos ideológicos (sobretudo com o Islã), expressam a realidade híbrida de sua base social e privam esse subproduto final do socialismo ideológico de toda seriedade, a não ser a policial. Uma burocracia estabelece- se condujzindo uma luta nacionalista e uma revolta agrária camponesa; a partir desse momento, como na China, tende a aplicar o modelo stalinista de industrialização em sociedades menos desenvolvidas do que a Rússia em 1917. Uma burocracia capaz de industrializar o país pode formar-se com base na pequena burguesia, ou em quadros militares que tomam o poder, como no Egito. Uma burocracia que se estabelece como liderança para-estatal durante a luta pode, em certas questões, procurar o ponto de equilíbrio de um compromisso para unir-se a uma burguesia nacional fraca, como na Argélia no início da guerra de independência. Finalmente, nas ex-colônias da África negra que permanecem abertamente ligadas à burguesia americana ou européia, a burguesia constitui-se (geralmente com base no pder dos chefes tribais) tomando o Estado. Esses países, nos quais o imperialismo estrangeiro é o único verdadeiro senhor, entram em um estágio em que os compradores ganham um Estado indígena como compensação por sua venda de produtos indígenas, Estado que é independente frente às massas locais, mas não ao imperialismo. Trata-se de uma burguesia artificial incapaz de acumular, mas que simplesmente saqueia a parte de mais valia que consegue extrair do trabalho local e os subsídios externos dos Estados ou monopólios que a protegem. Devido à óbvia incapacidade dessas classes para cumprir a função normal de uma burguesia, cada uma delas enfrenta uma subversão baseada no modelo burocrático mais ou menos adaptado às peculiaridades locais e ávido pela herança dessa burguesia. Mas o próprio sucesso de uma burocracia em seu projeto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva de sua derrota histórica: acumulando capital ela acumula proletariado, e assim cria sua própria negação em um país em que ela ainda não existia.

113 Neste desenvolvimento complexo e terrível que levou a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industriais perdeu completamente a afirmação de sua perspectiva autônoma e também, em última instância, suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Subsiste irreedutivelmente na alienação intensificada do capitalismo moderno; é a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o uso de suas próprias vidas e que, uma vez sabendo disso, redefinem-se como o proletariado, como a negação em ação no seio da sociedade. O proletariado é objetivamente fortalecido pelo progressivo desaparecimento do campesinato e pela extensão da lógica do trabalho industrial a um grande setor dos “serviços” e das profissões intelectuais. Subjetivamente, está ainda muito afastado de sua consciência de classe prática, não só entre os tdbs de colarinho branco, mas também entre os assalariados que ainda só desconbriram a impotência e a mistificação da velha política. Não obstante, quando o proletariado descobre que seu próprio poder externalizado colabora com o fortalecimento constante da sociedade capitalista, não só na forma de trabalho como também na dos sindicatos, dos partidos ou do poder estatal que construíra para emancipar-se, descobre também com a experiência histórica concreta que é a classe totalmente oposta a toda externalização congelada e a toda especialização de poder. O proletariado é o portador da revolução que não pode permitir que nada permaneça exterior a ela, da exigência do domínio permanente do presente sobre o passado e da crítica total da separação. É isto que precisa encontrar sua forma adequada na ação. Nenhuma melhoria quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é uma cura duradoura para a sua insatisfação, pois o proletariado não pode reconhecer-se verdadeiramente em um mal particular que tenha sofrido, nem na correção de um mal particular. Tampouco pode reconhecer-se na correção de um grande número de males, mas apenas no mal absoluto de ter sido relegado à margem da vida.

114 Os novos sinais de negação que se multiplicam nos países econômicamente desenvolvidos, sinais que são mal compreendidos e falsificados pelo arranjo espetacular, já nos permitem chegar à conclusão de que uma nova época está começando: agora, após a primeira tentativa de subversão dos trabalhadores, é a própria abundância capitalista que está fracassando. Quando as lutas anti- sindicais dos trabalhadores ocidentais são reprimidas antes de mais nada pelos próprios sindicatos, e quando os primeiros protestos amorfos lançados por correntes rebeldes da juventude implicam diretamente a rejeição da velha política especializada, da arte e da vida quotidiana, vemos os dois lados de uma luta espontânea que começa sob um disfarce criminoso. Esses são os portentos de um segundo assalto proletário contra a sociedade de classes. Quando as últimas crianças desse exército ainda imóvel reaparecem no campo de batalha que foi alterado, mas permanece o mesmo, seguem um novo “general Ludd” que as incita, desta vez, à destruição das máquinas do consumo permitido.

115 “A forma política enfim descoberta em que a emancipação econômica do trabalho pode ser realizada” delineou-se com clareza neste século nos concelhos revolucionários de trabalhadores, que concentram em si todas as funções de decisão e execução e federam-se uns aos outros por meio de delegados responsáveis perante a base e revogáveis a qualquer momento. Sua existência real não passou ainda de um breve esboço, rapidamente atacados e derrotados por várias forças defensivas da sociedade de classes, entre as quais sua própria falsa consciência deve com freqüência ser incluída. Pannekoek insistia, com razão, que o poder dos concelhos, mais que proporcionar uma solução, “coloca problemas”. No entanto, é precisamente nesse poder que os problemas da revolução proletária podem encontrar a sua solução. É nele que as condições da consciência histórica estão reunidas. É nele que a comunicação ativa direta é realizada, onde a especialização, a hierarquia e a separação terminam, onde as condições existentes são transformadas em “condições de unidade”. Neles, o sujeito proletário pode emergir de sua luta contra a contemplação: sua consciência é igual à organização prática que ele leva a cabo, pois essa própria consciência é inseparável da intervençao coerente na história.

116 No poder dos concelhos, que deve suplantar internacionalmente todo outro poder, o movimento proletário é seu próprio produto, e esse produto é o próprio produtor. Ele é sua meta para si mesmo. Só nesse poder a negação espetacular da vida é por sua vez negada.

117 O surgimento dos concelhos foi a mais alta realidade do proletariado no primeiro quarto deste século, realidade que não foi vista ou que foi disfarçada porque desapareceu juntamente com o resto do movimento negado e eliminado por toda a experiência histórica da época. No novo momento da crítica proletária, esse resultado volta como o único ponto invicto do movimento derrotado. A consciência histórica, que sabe que esse é o único meio em que pode existir, pode agora reconhecer essa realidade, não mais na periferia do que está refluindo, mas no centro do que está subindo.

118 Por todas essas razões, uma organização revolucionária que exista antes do poder dos concelhos (que encontrfará na luta a sua própria forma) já sabe que não representa a classe trabalhadora. Deve reconhecer-se apenas como uma separação radical do mundo da separação.

119 A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da prática entrando em comunicação não unilateral com as lutas práticas, no processo de tornar-se teoria prática. Sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nessas lutas. No momento revolucionário da dissolução da separação social, essa organização deve reconhecer sua própria dissolução como organização separada.

120 A organização revolucionária não pode ser menos que uma crítica unitária da sociedade, ou seja, uma crítica que não se comprometa com nenhuma forma de poder separado em parte alguma do mundo, e uma crítica proclamada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta entre a organização revolucionária e a sociedade de classes, as armas não são mais que a essência dos próprios combatentes. O único limite à participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto- apropriação da coerência de sua crítica por todos os seus membros, coerência que precisa ser provada na teoria crítica como tal e na relação entre a teoria e a atividade prática.

121 Quando a alienação capitalista em constante crescimento em todos os níveis torna cada vez mais difícil para os trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria, forçando-os a enfrentar a alternativa de rejeitar a totalidade dessa miséria ou nada, a organização revolucionária precisa aprender que não pode mais combater a alienação com formas alienadas.

122 A revolução proletária depende inteiramente da condição de que, pela primeira vez, a teoria como inteligência da prática humana seja reconhecida e vivida pelas massas. Exige que os trabalhadores se tornem dialéticos e traduzam seu pensamento em prática. Portanto, exige de homens sem qualidade mais que a revolução burguesa exigiu dos homens qualificados aos quais delegou a execução de suas tarefas (posto que a consciência ideológica parcial construída por uma parte da burguesia baseava-se na economia, essa parte central da vida social em que essa classe já estava no poder). O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até o estágio da organização espetacular da não vida leva assim o projeto revolucionário a tornar-se visivelmente o que já era essencialmente.

123 A teoria revolucionária é agora inimiga de toda ideologia revolucionária, e sabe que o é.


[traduzido por Tomás Bueno]