A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
de Guy Debord
Primeira edição francesa, Editions
Gallimard, Paris, 1967. Primeiros três capítulos do livro traduzidos por Tomás Rosa Bueno.
A separação acabada
Unidade e divisão na
aparência. O proletariado como sujeito e como representação
I. A Separação Acabada
Mas com certeza, para a
época presente, que prefere o signo à coisa significada, a cópia ao original, a
representação à realidade, a aparência à essência... só a ilusão é sagrada, a
verdade profana. Mais, a sacralidade é considerada reforçada na proporção em
que a verdade diminui e a ilusão aumenta, de tal modo que o mais alto grau de
ilusão passa a ser o mais alto grau de sacralidade.
Feuerbach, Prefácio à
segunda edição de A Essência do Cristianismo.
1 Nas sociedades em que
prevalecem as modernas condições de produção, toda a vida apresenta-se como uma
imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido afastou-se
em uma representação.
2 As imagens, desligadas de
todos os aspectos da vida, fundem-se em uma corrente comum em que a unidade da
vida não pode mais ser reestabelecida. A realidade considerada parcialmente
desdobra-se, em sua própria unidade geral, como um pseudo-mundo à parte, objeto
de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo é completada no
mundo da imagem autônoma, onde o mentiroso mente para si mesmo. O espetáculo em
geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivente.
3 O espetáculo apresenta-se
ao mesmo tempo como toda a sociedade, parte da sociedade e instrumento de
unificação. Como parte da sociedade, é especificamente o setor que concentra
todos os olhares e toda a consciência. Devido ao próprio fato de ser separado,
esse setor é o terreno comum do olhar enganado e da falsa consciência, e a
unificação que ele realiza não passa da língua oficial da separação
generalizada.
4 O espetáculo não é um
conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por
imagens.
5 O espetáculo não deve ser
entendido como um abuso do mundo da vsião, como produto das técnicas de difusão
em massa de imagens. É, antes, uma Weltanschaaung que se tornou real, foi
materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objetivou.
6 Apreendido em sua
totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de
produção existente. Não é um suplemento ao mundo real, uma decoração adicional.
É o coração da irrealidade da sociedade real. Em todas as suas formas
específicas, o espetáculo é o modelo presente da vida socialmente dominante. É
a afirmação onipresente da escolha já feita na produção e em seu corolário no
consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são identicamente a justificação
total das condições e metas do sistema existente. O espetáculo é também a
presença permanente dessa justificação, pois ocupa a parte principal do tempo
vivido fora da produção moderna.
7 A própria separação faz
parte da unidade do mundo, da praxis social global dividida em realidade e
imagem. A prática social que se coloca diante do espetáculo autônomo é também a
totalidade real que o contém. Mas a divisão no seio dessa totalidade mutila-a a
ponto de fazer com que o espetáculo seja visto como sua própria meta. A
linguagem do espetáculo é feita dos sinais da produção dominante, que são ao
mesmo tempo a meta suprema dessa produção.
8 Não se pode comparar
abstratamente o espetáculo à atividade social real: essa própria divisão está
dividida. O espetáculo que inverte o real é na verdade produzido. A realidade
vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e ao mesmo
tempo absorve a ordem espetacular, conferindo-lhe uma coesão positiva. A
realidade objetiva está presente nos dois lados. Toda noção fixada desse modo
não tem outra base que não a sua passagem para o contrário: a realidade surge
no espetáculo, e o espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o
fundamento da sociedade existente.
9 Em um mundo realmente
invertido, o verdadeiro é um momento do falso.
10 O conceito de espetáculo
unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. A diversidade
e os contrastes são aparências de uma aparência socialmente organizada, cuja
verdade geral também deve ser reconhecida. Considerado em seus próprios termos,
o espetáculo é afirmação da aparência e afirmação de toda a vida humana,
sobretudo a social, como simples aparência. Mas a crítica que alcança a verdade
do espetáculo o expõe como a negação visível da vida, como a negação da vida
que ficou visível.
11 Para descrever o
espetáculo, sua formação, suas funções e as forças que tendem a dissolvê-lo, é
preciso distinguir artificialmente certos elementos inseparáveis. Quando se
analisa o espetáculo, fala-se, em certa medida, a linguagem do próprio
espetacular, no sentido de que nos estamos movendo no terreno metodológico da
própria sociedade que se expressa no espetáculo. Mas este não é senão o sentido
da prática total de uma formação sócio-econômica, o seu uso do tempo. É o
movimento histórico em que estamos envolvidos.
12 O espetáculo
apresenta-se como algo enormemente positivo, indiscutível e inacessível. Diz apenas
que “o que aparece é bom, o que é bom aparece". A atitude que ele exige em
princípio é a aceitação passiva que na verdade já obteve por sua maneira de
aparecer sem réplica, por seu monopólio da aparência.
13 O caráter basicamente
tautológico do espetáculo brota do simples fato de seus meios serem ao mesmo
tempo os seus fins. Ele é o sol que nunca se põe no império da passividade
moderna. Cobre toda a superfície do globo e banha-se incessantemente em sua
própria glória.
14 A sociedade baseada na
indústria moderna não é espetacular por acaso ou na superfície, mas
fundamentalmente espetaculista. No espetáculo, que é a imagem da economia
dominante, a meta é nada, e desenvolvimento é tudo. O espetáculo não tem outra
meta além de si mesmo.
15 Como decoração
indispensável dos objetos produzidos hoje, como exposição geral da
racionalidade do sistema, como o setor avançado da economia que molda
diretamente uma crescente multidão de objetos-imagem, o espetáculo é a
principal produção da sociedade atual.
16 O espetáculo submete a
si os homens vivos na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele é
apenas a economia desenvolvendo-se por si mesma. É o reflexo verdadeiro da
produção das coisas, e a falsa objetivação dos produtores.
17 A primeira fase do
domínio da economia sobre a vida social trouxe à definição de toda a atividade
humana a óbvia degradação de ser para o ter. A presente fase da ocupação total
da vida social pelos resultados acumulados da economia leva a uma decadência
generalizada do ter para o parecer, de que todo o “ter” precisa extrair seu
prestígio imediato e sua função suprema. Ao mesmo tempo, toda a realidade
individual tornou-se realidade social diretamente dependente do poder social e
por ele moldada; só lhe é permitido aparecer na medida em que não seja.
18 Onde o mundo real se
transforma em simples imagens, estas tornam-se seres reais e motivações
efetivas de comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência a fazer com
que o mundo seja visto através de várias mediações especializadas, não podeno
mais ser apreendido de maneira direta, julga naturalmente que a visão é o
sentido humano que o tato foi em outras épocas; o sentido mais abstrato e mais
mistificável corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo
não é identificável ao mero olhar, mesmo combinado à audição. Ele é o que
escapa à atividade dos homens, o que escapa à reconsideração e à correção pelo
trabalho deles. É o oposto do diálogo. Onde houver representação independente,
o espetáculo se reconstitui.
19 O espetáculo é herdeiro
de todas as fraquezas do projeto filosófico ocidental, que tentou compreender a
atividade em termos de categorias do ver; além disso, baseia-se da disseminação
constante da racionalidade técnica precisa que brotou desse modo de pensar. O
espetáculo não realiza a filosofia, mas filosofiza a realidade. A vida concreta
de cada um foi degradada para um universo especulativo.
20 A filosofia, poder do
pensamento separado e pensamento do poder separado, nunca conseguiu superar por
si só a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A
tecnologia espetacular não dispersou as nuvens teológicas onde os homens haviam
colocado seus poderes separados de si mesmos, mas limitou-se a atá-las a uma
base terrena. A mais terrena das vidas torna-se assim opaca e irrespirável. Não
projeta mais no céu, mas abriga em si mesma a sua negação absoluta, seu paraíso
falacioso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos em
um além; é a separação rematada no interior do homem.
21 Na medida em que a
necessidade é socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é
o pesadelo da sociedade moderna aprisionada que, e, última instância, não
expressa mais que o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião do sono.
22 O fato de o poder
prático da sociedade moderna ter-se afastado dela e construído um império
independente no espetáculo só pode ser explicado pelo fato de que esse poder
prático carecia de coesão e continuava em contradição consigo mesmo.
23 A mais antiga das
especializações sociais, a especialização do poder, está na raiz do espetáculo.
Este é portanto uma atividade especializada que fala por todas as outras. É a
representação diplomática da sociedade hierárquica para si mesma, de que toda
outra expressão é banida. Aqui, o mais moderno é também o mais arcaico.
24 O espetáculo é o
discurso ininterrupto daordem sobre si mesma, seu monólogo laudatório. É o
auto-retrato do poder na época de sua administração totalitária das condições
de existência. A aparência fetichista puramente objetiva das relações
espetaculares oculta o fato de que são relações entre homens e entre classes:
uma segunda natureza, com suas leis fatais, parece dominar o nosso ambiente.
Mas o espetáculo não é o produto necessário do desenvolvimento técnico visto
como desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, ao contrário, a
forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico. Se o espetáculo, tomado no
sentido limitado dos “mass media” que são sua manifestação superficial mais
gritante, parece invadir a sociedade como um simples equipamento, este
equipamento não é de modo algum neutro, mas é o próprio meio adequado ao seu
auto-movimento total. Se as necessidades sociais de uma época em que tais
técnicas são desenvolvidas só podem ser satisfeitas pela mediação delas, se a
administração desta sociedade e de todo o contato entre os homens não pode mais
ter lugar a não ser por intermédio desse poder de comunicação instantânea, é
porque essa “comunicação” é essencialmente unilateral. A concentração de
“comunicação” é portanto a acumulação, nas mãos da administração do poder
existente, dos meios que lhe permitem desempenhar essa administração
específica. A divisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado moderno
e sobretudo da forma geral de divisão no seio da sociedade, produto da divisão
do trabalho social e órgão da dominação de classe.
25 A separação é o alfa e o
ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a
formação das classes, havia dado origem a uma primeira forma de contemplação
sagrada, a ordem mítica com que todo poder se envolve desde os primórdios. O
sagrado justificou a ordem cósmica e ontológica que correspondia aos interesses
dos senhores; explicou e embelezou o que a sociedade não conseguia fazer. Neste
sentido, todo poder separado sempre foi espetacular, mas a adesão de todos a
uma imagem imóvel só significava a aceitação comum de um prolongamento
imaginário da pobreza da atividade social real, ainda em grande medida sentida
como condição unitária. O espetáculo moderno, ao contrário, expressa o que a
sociedade consegue fazer, mas, nessa expressão, o permitido é absolutamente
oposto ao possível. O espetáculo é a preservação da inconsciência em meio à
mudança prática das condições de existência. É seu próprio produto, e fez suas
próprias regras: é uma entidade pseudo-sagrada. Ele mostra o que é: o poder
separado desenvolvendo-se em si mesmo, no crescimento da produtividade por meio
do incessante refinamento da divisão do trabalho em uma parcelização de gestos
que são depois dominados pelo movimento independente das máquinas, e trabalham
para um mercado em constante expansão. Toda a comunidade e todo o senso crítico
são dissolvidos nesse movimento, em que as forças que poderiam crescer com a
separação não foram ainda reunificadas.
26 Com a separação
generalizada entre o trabalhador e seus produtos, toda visão unitária da
atividade realizada e toda comunicação pessoal direta entre os produtores se
perdem. Acompanhando o avanço da acumulação de produtos separados e a
concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se um
atributo exclusivo da admionistração do sistema. O sucesso do sistema econômico
de separação é a proletarização do mundo.
27 Devido ao sucesso da
produção separada como produção do separado, a experiência fundamental que nas
sociedades primitivas está ligada a uma tarefa central está sendo deslocada, na
vanguarda do desenvolvimento do sistema, pelo não trabalho, a inatividade. Esta
inatividade não é, de modo algum, libertada da atividade produtiva, mas depende
dela e está em uma submissão desconfortável e admirativa com os resultados da
produção; é, em si mesma, um produto da sua racionalidade. Não pode haver
liberdade fora da atividade e, no contexto do espetáculo, toda atividade é
negada, assim como a atividade real foi capturada por inteira para a construção
global desse resultado. Portanto, a presente “libertação do trabalho”, o
aumento do lazer, não é de modo algum uma libertação no trabalho, nem uma
libertação em relação ao mundo moldado por esse trabalho. Nenhum aspecto da
atividade perdida no trabalho pode ser reconquistado na submissão aos seus
resultados.
28 O sistema econômico
baseado no isolamento é uma produção circular de isolamento. A tecnologia é
baseada no isolamento e o processo produtivo isola por sua vez. Do automóvel ao
televisor, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas
armas para o constante fortalecimento das condições de isolamento das “multidões
solitárias”. O espetáculo redescobre sem cessar suas próprias premissas mais
concretamente.
29 O espetáculo tem origem
na perda de unidade do mundo, e a gigantesca expansão do espetáculo moderno
expressa a totalidade dessa perda: a abstração de todo trabalho específico e a
abstração geral do conjunto da produção são traduzidas à perfeição pelo
espetáculo, cujo modo de ser concreto é precisamente a abstração. No
espetáculo, uma parte do mundo representa a si mesma para o mundo e é superior
a ele. O espetáculo não é mais que a linguagem comum dessa separação. O que une
os espectadores é apenas uma relação irreversível no próprio centro que mantém
o seu isolamento. O espetáculo reunifica o separado, mas o reunifica como
separado.
30 A alienação do espectador
em proveito do objeto contemplado (que é o resultado de sua própria atividade
inconsciente) é expressada do seguinte modo: quanto mais ele contempla, menos
vive; quanto mais aceita reconhecer- se nas imagens dominantes da necessidade,
menos entende sua própria existência e seus próprios desejos. A externalidade
do espetáculo em relação ao homem ativo surge no fato de que seus próprios
gestos não são mais dele, mas de outro, que os representa para ele. É por isso
que o espectador não se sente à vontade em parte alguma, porque o espetáculo
está por toda a parte.
31 O trabalhador não produz
a si mesmo, produz um poder independente. O sucesso dessa produção, sua
abundância, retorna para o produtor como abundância de despossessão. Todo o
tempo e todo o espaço tornam-se alheios para ele com a acumulação de seus
produtos alienados. O espetáculo é o mapa desse novo mundo, um mapa que cobre
exatamente o seu território. Os próprios poderes que nos escaparam
mostram-se-nos com toda a sua força.
32 O espetáculo na
sociedade corresponde a uma fabricaçãop concreta da alienação. A expansão
econômica é antes de mais nada a expansão desta produção industrial específica.
O que cresce com a economia que se move por si mesma só pode ser a própria
alienação que estava na sua origem.
33 Separado de seu produto,
o próprio homem produz todos os detalhes de seu mundo com um poder cada vez
maior e, desse modo, vê-se cada vez mais separado de seu mundo. Quanto mais a
vida passa a ser produto do homem, mais vida é separada de sua vida.
34 O espetáculo é o capital
a um tal grau de acumulação que se torna imagem. A mercadoria como espetáculo A
mercadoria só pode ser entendida em sua essência undistorted quando se torna a
categoria universal da sociedade como um todo. Só nesse contexto a reificação
produzida pelas relações mercantis assume uma importância decisiva tanto para a
evolução objetiva da sociedade quanto para a atitude adotada pelos homens
diante dela. Só então a mercadoria torna-se crucial para a subjugação da consciência
dos homens às formas em que a reificação encontra expressão... À medida que o
trabalho vai sendo progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de
vontade própria do homem é reforçada pela maneira como a sua atividade fica
cada vez menos ativa e cada vez mais contemplativa. Lukács, História e
Consciência de Classe
35 No movimento essencial
do espetáculo, que consiste em apreender tudo o que existia na atividade humana
em estado fluido de maneira a possuí-lo em um estado congelado como coisas que se
tornaram o valor exclusivo por sua formulação em negativo de valor vidido,
reconhecemos o nosso velho inimigo, a mercadoria, que tão bem sabe parecer à
primeira vista uma coisa trivial e óbvia, quando, ao contrário, é tão complexa
e cheia de sutilezas metafísicas.
36 Este é o princípio do
fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas intangíveis e
tangíveis”, que alcança o seu cumprimento absoluto no espetáculo, onde o mundo
tangível é substituído por umaseleção de imagens que existe acima dele e ao
mesmo tempo se impõe como o tangível por excelência.
37 O mundo ao mesmo tempo
presente e ausente que o espetáculo torna visível é o mundo da mercadoria
dominando todo o vivido. O mundo da mercadoria é assim mostrado pelo que é,
pois seu movimento é idêntico ao alheiamento dos homens entre si e com relação
ao seu produto global.
38 A perda de qualidade tão
evidente em todos os níveis da linguagem espetacular, dos objetos que elogia ao
comportamento que regula, apenas traduz os traços fundamentais da produção real
que dispensa a realidade: a forma-mercadoria é em todos os pontos igual a si
mesma, a categoria do quantitativo. O quantitativo é o que a forma-mercadoria
desenvolve, e só pode desenvolver-se no quantitativo.
39 Por sua vez, esse desenvolvimento
que exclui o qualitativo está, como desenvolvimento, sujeito à mudança
qualitativa: o espetáculo demonstra que passou o limiar de sua própria
abundância; isto ainda só é válido localmente em alguns pontos, mas já é você
álido na escala universal que é o contexto original da mercadoria, um contexto
que seu movimento prático, abrangendo a Terra como um mercado mundial, já
verificou.
40 O desenvolvimento das
forças produtivas foi a verdadeira história inconsciente que construiu e
modificou as condições de existência de grupos humanos como condições de
sobrevivência, e estendeu essas condições: a base econômica de todos os seus
empreendimentos. Em uma economia primitiva, o setor mercantil representava um
excedente de sobrevivência. A produção de mercadorias, que implica a troca de
vários produtos entre produtores independentes, pôde continuar por muito tempo
como produção artesanal, contida em uma função econômica marginal em que sua
verdade quantitativa ainda estava mascarada. Contudo, onde a produção de
mercadorias combinou-se às condições sociais de comércio em grande escala e
acumulação de capitais, ela conquistou o domínio total da economia. Toda a
economia tornou-se então o que a mercadoria já mostrara ser ao longo de sua
campanha de conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. Essa
incessante expansão do poder econômico na forma da mercadoria, que transformou
o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em trabalho assalariado, levou
cumulativamente a uma abundância em que a questão primária da sobrevivência é
sem dúvida resolvida, mas de tal modo que é redescoberta a todo instante; é
continuamente recolocada em um nível mais alto. O crescimento econômico liberta
as sociedades da pressão natural que exigia a sua luta direta pela sobrevivência,
mas, nesta altura, é do libertador que elas não são libertadas. A independência
da mercadoria é estendida a toda a economia que ela domina. A economia
transforma o mundo, mas o transforma apenas em um mundo da economia. A
pseudo-natureza em que o trabalho humano é alienado exige ser servida ad
infinitum, e este serviço, sendo julgado e absolvido apenas por si mesmo,
conquista de fato a totalidade dos esforços e projetos socialmente permissíveis
como seus servidores. A abundância de mercadorias, ou seja, de relações
mercantis, não pode ser nada além de uma ampliação da sobrevivência.
41 No princípio, o domínio
da mercadoria sobre a economia foi exercido de maneira oculta; a própria
economia, a base material da existência social, passava desapercebida e não era
entendida, como o familiar que não é necessariamente conhecido. Em uma
sociedade em que a mercadoria concreta é rara ou incomum, o dinheiro,
aparentemente dominante, apresenta-se como um emissário com plenos poderes
falando em nome de uma potência desconhecida. Com a revolução industrial, a
divisão do trabalho nas fábricas e a produção em massa para o mercado mundial,
a mercadoria surge de fato como um poder que ocupa a vida social. É então que a
economia política toma forma como ciência dominante e ciência da dominação.
42.O espetáculo é o momento
em que a mercadoria alcança a ocupação total da vida social. A relação com a
mercadoria não é só visível, é tudo o que se vê: o mundo que vemos é o mundo
dela. A produção econômica moderna estende a sua ditadura intensa e
extensivamente. Nas regiões menos industrializadas, o seu reino já é atestado
por umas quantas mercadorias promovidas ao estrelato e pelo domínio
imperialista imposto pelas regiões mais avançadas no desenvolvimento da
produtividade. Nas regiões avançadas, o espaço social é invadido por uma
superposição contínua de camadas geológicas de mercadorias. Nessa altura, na
“segunda revolução industrial”, o consumo alienado torna-se para as massas um
dever complementar à produção alienada. É todo o trabalho vendido de uma
sociedade que se torna globalmente a mercadoria em proveito da qual o ciclo
deve continuar. Para que isso seja feito, a mercadoria total precisa retornar
como fragmento para o indivíduo fragmentado, absolutamente separada das forças
produtivas operando como um todo. É neste ponto que a ciência especializada da
dominação precisa também especializar-se (fragmentando-se em sociologia,
psicotécnica, cibernética, semiologia etc.), para supervisionar a
auto-regulamentação de todos os níveis do processo.
43 Enquanto, na fase
primitiva de acumulação capitalista, “a economia política vê no proletário
apenas o trabalhador” que deve receber o mínimo indispensável para a
conservação de sua capacidade de trabalhar, sem nunca vê-lo “em seu lazer e em
sua humanidade”, essas idéias da classe dominante são revertidas assim que a
produção de mercadorias alcança um nível de abundância que exija um excedente
de colaboração por parte do trabalhador. Este, subitamente redimido do desprezo
total evidente em todas as variedades de organização e supervisão da produção,
vê-se tratado todos os dias, fora da produção e em seu papel de consumidor, com
zelosa polidez. É então que o humanismo da mercadoria se encarrega do “lazer e
da humanidade” do trabalhador, simplesmente porque, a partir desse momento a
economia política pode e deve dominar essas esferas como economia política.
Assim, a “negação aperfeiçoada do homem” toma conta da totalidade da existência
humana.
44 O espetáculo é uma
guerra do ópio permanente cuja meta é fazer as pessoas identificarem os bens às
mercadorias e a satisfação à sobrevivência que aumenta segundo suas próprias
leis. Mas, se a sobrevivência consujmível é algo que deve sempre aumentar, isso
se dá porque ela continua contendo a privação. Se não há nada além do aumento
da sobrevivência, se não há razão alguma para que ela pare de crescer, não é
por estar além da privação, mas por ser a privação enriquecida.
45 A automação, setor mais
avançado da indústria moderna e modelo que resume perfeitamente a sua prática,
leva o mundo da mercadoria à seguinte contradição: o equipamento técnico que
objetivamente elimina o trabalho precisa ao mesmo tempo preservar o trabalho
como mercadoria e como a única fonte da mercadoria. Para que o trabalho social
(tempo) empregado pela sociedade não diminua por causa da automação (ou
qualquer outra forma menos extrema de aumentar a produtividade do tbl), é
preciso criar novos empregos. Os serviços, o setor terciário, incham as
fileiras do exército da distribuição e são o elogio das mercadorias presentes;
por acaso, as forças adicionais mobilizadas são adequadas à organização do
trabalho redundante exigido pelas necessidades artificiais por tais
mercadorias.
46 O valor de troca só pôde
surgir como agente do valor de uso, mas sua vitória por meio de suas próprias
armas criou as condições para o seu domínio autônomo. Mobilizando todo o uso
humano e estabelecendo o monopólio de sua satisfação, o valor de troca acabou
dirigindo o uso. O processo de troca identificou-se a todo uso possível e
deixou o uso à mercê da troca. O valor de troca é o condottiere do valor de uso
que acaba fazendo a guerra para seus próprios fins.
47 A tendência de queda do
valor de uso, esta constante da economia capitalista, desenvolve uma nova forma
de provação no seio da sobrevivência ampliada: a nova privação não está muito
afastada da velha penúria, pois exige que a maioria dos homens persiga-a sem
cessar como trabalhador assalariado, sabendo que deve submeter-se ou morrer. A
realidade dessa chantagem explica a aceitação geral da ilusão no coração do
consumo das mercadorias modernas: o uso, em sua forma mais empobrecida (comida
e casa) existe hoje apenas na medida em que estiver aprisionado na riqueza
ilusória da sobrevivência ampliada. O consumidor real torna-se um consumidor de
ilusões. A mercadoria é essa ilusão factualmente real e o espetáculo é a sua
manifestação geral.
48 Na realidade invertida
do espetáculo, o valor de uso (que estava implicitamente contido no valor de
troca) precisa agora ser proclamado explicitamente, pois a sua realidade
factual é corroída pela economia mercantil superdesenvolvida e porque a vida
falsificada exige uma pseudo- justificação.
49 O espetáculo é o outro
lado do dinheiro: é o equivalente abstrato geral de todas as mercadorias. O
dinheiro dominou a sociedade como representação da equivalência geral, ou seja,
da possibilidade de troca de bens diferentes cujos usos não podem ser
comparados. O espetáculo é o complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade
do mundo da mercadoria aparece como um todo, como equivalência geral daquilo
que toda a sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que só é
olhado, pois nele a totatlidade do uso já foi trocada pela totalidade da
representação abstrata. O espetáculo não é apenas o servidor do pseudo-uso, já
é em si mesmo o pseudo-uso da vida.
50 No momento da abundância
econômica, o resultado concentrado do trabalho social fica visível e submete
toda a realidade à aparência, que passa a ser o seu produto. O capital deixa de
ser o centro invisível que dirige o modo de produção: sua acumulação
dissemnina-o até a perifieria na forma de objetos tangíveis. O território
inteiro da sociedade é seu retrato.
51 A vitória da economia
autônoma deve ser ao mesmo tempo a sua derrota. As forças desencadeadas por
essa vitória eliminam a necessidade econômica que foi a base imutável das
sociedades anteriores. Quando a necessidade econômica é substituída pela
necessidade do desenvolvimento econômico sem limites, a satisfação das
necessidades humanas básicas é substituída por uma fabricação in interrupta de
pseudo-necessidades reduzidas à única pseudo- necessidade de manter o reino da
economia autônoma. A economia autônoma rompe sem cessar com a necessidade
fundamental na medida em que surge do inconsciente social que dela dependia
inconscientemente. “Todo o consciente se desgasta. O que é inconsciente
permanece inalterável. Mas não desmoronaria, uma vez liberado?” (Freud).
52 Assim que a sociedade
descobre que depende da economia, esta passa a depender da sociedade. Essa
força subterrânea, que cresceu até parecer soberana, perdeu o seu poder. O que
era econômico deve tornar-se o eu. O sujeito só pode surgir da sociedade, isto
é, da luta no seio da sociedade. A existência possível do sujeito depende do
desfecho da luta de classes que demonstra ser o produto e o produtor da
fundação econômica da hostória.
53 A consciência do desejo
e o desejo de consciência são identicamente o projeto que, em sua forma
negativa, procura a abolição das classes, a possessão direta, pelos
trabalhadores, de todos os aspectos de sua atividade. O seu contrário é a
sociedade do espetáculo, onde a mercadoria contempla a si mesma no mundo por
ela criado.
II. Unidade e divisão na
aparência
Uma animada polêmica nova
sobre os conceitos de “um divide-se em dois” e “dois fundem-se em um” se está
desenrolando na frente filosófica deste país. O debate é uma luta entre os que
são a favor e os que são contra a dialética materialista, uma luta entre duas
concepções do mundo: a concepção proletária e a concepção burguesa. Os que
sustentam que “um se divide em dois” é a lei fundamental das coisas estão do
lado da dialética materialista; os que afirmam que a lei fundamental das coisas
é “dois fundem-se em um” são contra a dialética materialista. Os dois lados
traçaram entre si uma clara linha de demarcação, e seus argumentos são
diametralmente opostos. Esta polêmica é um reflexo, no nível ideológico, da
aguda e complexa luta de classes que ocorre neste momento na China e no mundo.
Bandeira Vermelha,
(Pequim), 21 de setembro de 1964
54 O espetáculo, tal como a
sociedade moderna, é ao mesmo tempo unificado e dividido. Tal como a sociedade,
constrói sua unidade sobre a disjunção. Mas a contradição, quando surge no
espetáculo, é por sua vez contraditada por uma inversão do seu significado, de
modo que a divisão demonstrada é unitária, ao passo que a unidade demonstrada
está dividida.
55 A luta entre os pderes
constituídos pela administração do mesmo sistema sócio-econômico é difundida
como a contradição oficial, mas na verdade faz parte da unidade real -- em
escala mundial e no interior de cada nação.
56 As falsas lutas
espetaculares entre formas rivais de poder separado são ao mesmo tempo reais,
no sentido de que traduzem o desenvolvimento desiguam e antagônico do sistema,
os interesses relativamente contraditórios das classes ou subdivisões de
classes que reconhecem o sistema e se definem como partícipes do seu poder. Do
mesmo modo que o desenvolvimento da economia mais avançada é um confronto entre
algumas prioridades e outras, a administração totalitária da economia por uma
burocracia estatal e a condição dos países na esfera da colonização ou da
semi-colonização são definidas por peculiaridades específicas das variedades de
produção e poder. Essas diversas oposições podem ser mostradas no espetáculo
como formas absolutamente distintas de sociedade (por meio de inúmeros
critérios diferentes). De fato, porém, a verdade da unicidade de todos esse
setores específicos encontra-se no sistema universal que os contém: o movimento
único que faz do planeta o seu terreno, o capitalismo.
57 A sociedade que comporta
o espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas unicamente por sua
hegemonia econômica, mas como sociedade do espetáculo. Mesmo nos lugarers em
que a base econômica ainda está ausente, a sociedade moderna já foi invadida na
superfície social de todos os continentes por meio do espetáculo. Ele define o
programa da classe dominante e preside a sua implementação, assim como
apresenta os pseudo- bens a serem cobiçados e oferece falsos modelos de
revolução aos revolucionários locais. O espetáculo do poder burocrático, que
domina alguns países industrializados, é parte integrante do espetáculo total,
sua pseudo- negação e seu apoio gerais. O espetáculo exibe certas
especializações totalitárias de comunicação e administração quando visto
localmente, mas, vistas em termos do funcionamento de todo o sistema, essas
especializações fundem-se em uma divisão mundial de tarefas espetaculares.
58 A divisão de tarefas
espetaculares preserva a integridade da ordem existente e sobretudo o polo
dominante do seu desenvolvimento. No seio da economia abundante, a raiz do
espetáculo é a fonte dos frutos que acabam dominando o mercado espetacular a
despeito das barreiras protecionistas ideológico- policiais dos espetáculos
locais que aspiram à autarquia.
59 Sob as cintilantes
distrações do espetáculo, a banalização domina a sociedade moderna em todo o
mundo e em todos os pontos em que o consumo desenvolvido de mercadorias
multiplicou aparentemente os papéis e objetos a escolher. Os restos da religião
e da família (principal relíquia da herança do poder de classe) e a repressão
moral que garantem fundem-se sempre que o gozo deste mundo é afirmado -- não
sendo este mundo mais que pseudo-gozo repressivo. A aceitação passiva do que
existe pode também unir-se à rebelião puramente espetacular, em um reflexo do
fato de que a própria insatisfação tornou-se uma mercadoria assim que a
abundância econômica conseguiu estender a produção ao processamento desse tipo
de matéria prima.
60 A celebridade,
representação espetacular do ser humano vivo, corporifica essa banalidade
corporificando a imagem de um papel possível. Ser um astro significa
especializar-se no aparentemente vivido; o astro é o objeto de identificação à
rasa aparência de vida que precisa compensar as especializações produtivas
fragmentadas vividas na realidade. As celebridades existem para representar
vários estilos de vida e de visão da sociedade sem barreiras, livres para
expressarem-se globalmente. Corporificam o resultado inacessível do trabalho
social dramatizando seus subprodutos magicamente projetados acima dele como sua
meta: poder e férias, decisão e consumo, que são o início e o fim de um
processo não discutido. Em um caso, o poder estatal personaliza-se como um
pseudo-astro; em outro, um astro do consumo é eleito como um pseudo-poder sobre
o vivido. Mas assim como as atividades do astro não são de fato globais,
tampouco são muito variadas.
61 O agente do espetáculo
posto no palco como astro é o oposto do indivíduo, é o inimigo do indivíduo em
si mesmo e nos outros. Incorporado ao espetáculo como modelo para a
identificação, o agente renuncia a toda qualidade autônoma para identificar-se à
lei geral de obediência ao curso das coisas. A celebridade do consumo
representa superficialmente tipos diferentes de personalidade e mostra cada um
desses tipos com acesso igual à totalidade do consumo, encontrando neste uma
felicidade semelhante. A celebridade da decisão deve possuir um estoque
completo de qualidades humanas aceitas. As diferenças oficiais entre astros são
apagadas pela semelhança oficial que é o pressuposto de sua excelência em tudo.
Kruschev tornou-se general para tomar decisões na batalha de Kursk, não no
local, mas no vigésimo aniversário, quando era senhor do Estado. Kennedy
continuou sendo orador a ponto de ler o elogio em seu próprio funeral, pois
Theodore Sorensen continuou escrevendo os discursos de seu sucessor no estilo
que caracterizara a personalidade do falecido. As pessoas admiráveis em quem o
sistema se personifica são bem conhecidas pelo que são; tornam-se grandes
homens ficando abaixo da mais mínima vida individual, e todos sabem disso.
62 A falsa escolha na
abundância espetacular, uma escolha que reside na justaposição de espetáculos
concorrentes e complementares e também na justaposição de papéis (significados
e transportados sobretudo por coisas) que são ao mesmo tempo exclusivos e
sobrepostos, desenvolve-se em um embate entre qualidades vaporosas cujo
propósito é estimular a lealdade à trivialidade quantitativa. Isso ressuscita
falsas oposições arcaicas, regionalismos e racismos que servem para elevar os
escalões hierárquicos vulgares do consumo a uma absurda superioridade
ontológica. Desse modo, uma série infinita de confrontos triviais é
reestabelecida, dos esportes de competição às eleições, mobilizando um
interesse sub-lúdico. Onde existe consumo abundante firma-se uma grande
oposição espetacular entre jovens e adultos com papéis falsos -- falsos porque
o adulto, senhor de sua própria vida, não existe, e a juventude, a
transformação do que existe, não é de modo algum uma propriedade dos que são
agora jovens, mas do sistema econômico, do dinamismo do capitalismo. As coisas
governam e são jovens; as coisas enfrentam-se e substituem-se umas às outras.
63 O que se oculta sob as
oposições espetaculares é uma unidade da miséria. Por trás das máscaras da
escolha total, formas diferentes da mesma alienação se confrontam, todas elas
construídas com base em contradições reais reprimidas. O espetáculo existe em
uma forma concentrada ou difusa, dependendo das necessidades do estágio
específico de miséria que estiver negando e apoiando. Nos dois casos, o
espetáculo não passa de uma imagem da unificação feliz rodeada por desolação e
medo no centro tranqüilo da miséria.
64 O espetáculo concentrado
pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, embora possa ser importado
como técnica de poder estatal em economias atrasadas mistas ou, em certos
momentos de crise, no capitalismo avançado. De fato, a própria propriedade
burocrática é de tal modo concentrada que o burocrata individual só se
relaciona com a posse da economia global por um intermediário, a comunidade
burocrática, e apenas como membro dessa comunidade. Além disso, a produção de
mercadorias, menos desenvolvida no capitalismo burocrático, também assume uma
forma concentrada: a mercadoria a que a burocracia se prende é a totalidade do
trabalho social, e o que vende à sociedade é a sobrevivência por atacado. A
ditadura da economia burocrática não pode dar às massas exploradas qualquer
margem significativa de escolha, pois a própria burocracia deve escolher tudo e
qualquer escolha externa, seja a respeito de comida ou de música, é já a
escolha de destruir completamente a burocracia. Essa ditadura precisa ser
acompanhada de uma violência permanente. A imagem imposta do bem envolve em seu
espetáculo a totalidade do que existe oficialmente e costuma estar conecntarad
em um só homem, que é o guardião da coesão totalitária. Todos devem
identificar-se absolutamente com essa celebridade, ou desaparecer. Essa
celebridade é senhora do não consumo, e a imagem heróica que dá um sentido
aceitável à exploração absoluta que a acumulação primitiva acelerada pelo
terror de fato é. Se todo chinês deve aprender Mao, e portanto ser Mao, é
porque não pode ser nada mais. Onde reina o espetáculo concentrado, reina
também a polícia.
65 O espetáculo difuso
acompanha a abundância de mercadorias, o desenvolvimento sem sobressaltos do
capitalismo moderno. Nele, toda mercadoria individual é justificada em nome da
grandeza da produção da totalidade de objetos de que o espetáculo é um catálogo
apologético. Alegações irreconciliáveis ocupam o palco do espetáculo unificado
da economia afluente; diferentes mercadorias prestigiosas apóiam
simultaneamente projetos contraditórios para abastecer a sociedade: o
espetáculo dos automóveis exige uma rede de transportes perfeita que destrói as
cidades antigas, enquanto o espetáculo da própria cidade exige áreas
transformadas em museu. Portanto, a satisfação já problemática que deveria
advir do consumo do todo é na mesma hora desmentida, pois o consumidor real só
consegue tocar diretamente uma sucessão de fragmentos dessa felicidade
mercantil, fragmentos de que a qualidade atribuída ao todo está obviamente
ausente, todas as vezes.
66 Toda mercadoria
específica luta por si mesma, não pode reconhecer as demais e tenta impor-se
por toda a parte como se fosse a única. O espetáculo, então, é o poema épico
desse combate, um épico que não pode ser concluído pela queda de nenhuma Tróia.
O espetáculo não canta os louvores dos homens e de suas armas, mas das
mercadorias e suas paixões. Nessa luta cega, toda mercadoria, perseguindo sua
própria paixão, realiza inconscientemente algo mais elevado: o tornar-se mundo
da mercadoria, que é também o tornar-se mercadoria do mundo. Assim, por meio de
uma manha da lógica mercantil, o que é específico na mercadoria desgasta-se na
luta, enquanto a forma mercantil se dirige à sua realização absoluta.
67 A satisfação que já não
advém do uso de mercadorias abundantes é agora procurada no reconhecimento de
seu valor como mercadorias: o uso de mercadorias torna-se suficiente em si
mesmo; o consumidor fica cheio de fervor religioso pela liberdade soberana das
mercadorias. Ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiadas e disseminadas
por todos os meios de comunicação, propagam-se assim com a velocidade do raio.
Um estilo de vestimenta surge de um filme; uma revista promove casas noturnas
que lançam várias modas de roupa. Quando a massa de mercadorias cai na
puerilidade, o próprio pueril torna-se uma mercadoria especial, epitomizada
pelo gadget. Pode-se reconhecer um abandono místico à transcendência da mercadoria
nos brindes, como os chaveiros que não são comprados, mas incluídos pelos
publicitários nas compras prestigiosas, ou que fluem por troca em sua própria
esfera. Quem coleciona chaveiros fabricados para serem colecionados acumula as
indulgências da mercadoria, um sinal glorioso de sua presença entre os fiéis. O
homem reificado proclama a prova de sua intimidade com a mercadoria. O
fetichismo da mercadoria alcança momentos de exaltação fervorosa semelhantes
aos êxtases das convulsões e milagres do velho fetichismo religioso. O único
uso que permanece aqui é o uso fundamental da submissão.
68 A pseudo-necessidade
imposta pelo consumo moderno não pode, é calro, ser oposto por qualquer
necessidade genuína que não seja ela própria moldada pela sociedade e sua
história. A mercadoria abundante representa a ruptura total do desenvolvimento
orgânico das necessidades sociais. Sua acumulação mecânica liberta uma
artificialidade ilimitada, frente à qual o desejo vivo é impotente. O poder
cumulativo da artificialidade independente saws por toda a parte a falsificação
da vida social.
69 Na imagem da sociedade
beatificamente unificada pelo consumo, a divisão real só é suspensa até a
próxima não realização no consumo. Todo produto isolado representa a esperança
de um atalho deslumbrante para a terra prometida do consumo total e é
cerimoniosamente apresentado como a entidade decisiva. Contudo, assim como
acontece com a difusão de nomes aparentemente aristocráticos portados por quase
todos os indivíduos da mesma idade, os objetos que prometem poderes únicos só
podem ser recomendados à devoção das massas se forem produzidos em quantidades
grandes o bastante para o consumo de massa. Um produto adquire prestígio quando
é colocado no centro da vida social como o mistério revelado da meta suprema da
produção. Mas o objeto que era prestigioso no espetáculo fica vulgar assim que
é levado para casa por seu consumidor -- e por todos os seus outros
consumidores. Revela a sua pobreza essencial (que advém da miséria de sua
produção) tarde demais. Nessa altura, porém, outro objeto já porta a
justificação do sistema e exige ser reconhecido.
70 A fraude da satisfação é
exposta ao ser substituídas, ao seguir a mudança de produtos e das condições
gerais da produção. O que se afirmara com perfeita impudência como a excelência
definitiva muda mesmo assim, tanto no espetáculo difuso como no concentrado, e
é só o sistema que deve continuar: Stalin e a mercadoria fora de moda são
denunciados precisamente por quem os impôs. Toda nova mentira da propaganda é
também uma confissão da mentira anterior. A queda de toda figura com poder
totalitário revela a comunidade ilusória que o aprovara unanimemente, e que não
era mais que um aglomerado de solidões sem ilusões.
71 O que o espetáculo
oferece como eterno baseia-se na mudança e deve mudar com sua base. O
espetáculo é absolutamente dogmático e ao mesmo tempo não consegue alcançar
nenhum dogma sólido. Para o espetáculo, na ase detém; e, contudo, para ele essa
condição é natural, embora seja completamente oposta à sua inclinação.
72 A unidade irreal
proclamada pelo espetáculo mascara a divisão de classes que sustenta a unidade
real do modo capitalista de produção. O que obriga os produtores a participar
da construção do mundo é também o que os separa dele. O que une os homens
libertados de seus limites locais e nacionais é também o que os afasta. O que
exige uma racionalidade mais profunda é também o que nutre a irracionalidade da
xploração e da repressão hierárquicas. O que cria o poder abstrato da sociedade
cria a sua falta concreta de liberdade.
III. O proletariado como
sujeito e como representação
O direito igual de todos
aos bens e ao desfrute deste mundo, a destruição de toda autoridade, a negação
de toda restrição moral -- estas, no fundo, são a razão de ser da insurreição
de 18 de março e o programa da temível organização que lhe forneceu um
exército.
Enquête parlementaire sur
l’insurrection du 18 mars
73 O movimento real que
suprime as condições existentes governa a sociedade desde o momento da vitória
burguesa na economia, e visivelmente após a tradução política dessa vitória. O
desenvolvimento das forças produtivas estraçalha as antigas relações de
produção e toda ordem estática vira pó. O que era absoluto torna-se histórico.
74 Sendo atirados na
história, tendo de participar do trabalho e das lutas que fazem a história, os
homens vêem-se obrigados a ver suas relações de maneira clara. Esta história
não tem objeto distinto do que tem lugar nela mesma, embora a última visão
metafísica inconsciente da época histórica pudesse ver na progressão produtiva
através da qual a história se desenrolou como o seu próprio objeto. O sujeito
da história não pode ser outro além do que é vivo produzindo a si mesmo,
tornando-se senhor e possuidor de seu mundo que é a história e existindo como
consciência de seu jogo.
75 As lutas de classes da
longa época revolucionária inaugurada pela ascensão da burguesia desenvolvem-se
ao mesmo tempo que o pensamento da história, a dialética, o pensamento que não
se detém mais para examinar o sentido do que é, mas eleva-se a um conhecimento
da dissolução de tudo o que é, e nesse movimento dissolve toda separação.
76 “Hegel não tinha mais
que interpretar o mundo, mas a transformação do mundo. Limitando-se a
interpretar a transformação, Hegel é apenas a realização filosófica da
filosofia. Ele quer entender um mundo que faz a si mesmo. Esse pensamento
histórico é ainda apenas a consciência que chega tarde demais, e que pronuncia
a justificação após o fato. Portanto, só superou a separação em pensamento. O
paradoxo que consiste em fazer o sentido de toda a realidade depender de sua
realização histórica e ao mesmo tempo revelar esse sentido quando ele faz de si
mesmo a realização da história surge do fato simples de que o pensador das
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII buscava em sua filosofia apenas
uma reconciliação com os resultados dessas revoluções. Mesmo como filosofia da
revolução burguesa, ela não expressa todo o processo da revolução, mas só a sua
conclusão final. Neste sentido, não é uma filosofia da revolução, mas da
restauração” (Karl Korsch, Teses sobre Hegel e a revolução). Hegel fez, pela
última vez, o trabalho do filósofo, “a glorificação do que existe”; mas o que
existia para ele já não podia ser nada menos que a totalidade do movimento
histórico. Como a posição externa do pensamento foi de fato preservada, isso só
podia ser mascarado pela identificação do pensamento a um projeto anterior do
Espírito, herói absoluto que fez o que quis e quis o que fez e cuja realização
coincide com o presente. Desse modo a filosofia, que morre no pensamento da
história, passa a só poder glorificar o seu mundo renunciando a ele, pois, para
poder falar, deve supor que essa história total à qual reduziu tudo já está
completa, e que o único tribunal que poderia pronunciar o julgamento da
verdadeestá fechado.
77 Quando, por sua própria
existência, por seus atos, o proletariado demonstra que esse pensamento da
história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é ao mesmo tempo a
confirmação do método.
78 O pensamento da história
só pode ser salvo tornando-se pensamento prático; e a prática do proletariado
como classe revolucionária não pode ser menos que a consciência histórica
agindo sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas do
movimento revolucionário dos trabalhadores surgiram de um embate crítico com o
pensamento hegeliano -- tanto Stirner e Bakunin como Marx.
79 A inseparabilidade da
teoria de Marx do método hegeliano é por sua vez inseparável do caráter
revolucionário dessa teoria, ou seja, de sua verdade. Esta primeira relação tem
sido em geral ignorada, mal interpretada e até denunciada como a fraqueza do
que se tornou falaciosamente a doutrina marxista. Bernstein, em seu
"Socialismo Evolucionário: Crítica e Afirmação" (Die Voraussetzungen
des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie), revela à perfeição a
ligação entre o método dialético e a tomada de partido histórico, deplorando as
previsões anti-científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução
proletária na Alemanha: “Essa auto-ilusão histórica, tão errônea que
dificilmente poderia ser aperfeiçoada por qualquer visionário político, seria
incompreensível em um Marx, que na época já havia estudado economia com
seriedade, se não víssemos nisso o resquício da dialética antitética hegeliana
da qual Marx, assim como Engels, nunca conseguiu libertar-se totalmente.
Naquela época de efervescência geral, isso foi ainda mais fatal para ele”.
80 A inversão realizada por
marx, para “recuperar pela transferência” o pensamento das revoluções
burguesas, não consiste trivialmente em colocar o desenvolvimento das forças
produtivas no lugar da viagem do Espírito hegeliano, cuja objetivação é
idêntica à sua alienação e cujas feridas históricas não deixam cicatrizes,
dirigindo-se para o encontro consigo mesmo no tempo. A história tornada real
não tem mais um fim. Marx arruinou a posição de Hegel separada do que acontece
e a contemplação por qualquer agente supremo externo. A partir desse momento, a
teoria só precisa saber o que faz. Oposta a isso, a contemplação do movimento
da economia no pensamento dominante da sociedade presente é a herança não
transcendida da parte adialética da busca de Hegel por um sistema circular: é
uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito e que não precisa mais de um
hegelianismo para justificar-se, pois o movimento que ela elogia não passa de
um setor sem visão do mundo, um setor cujo desenvolvimento mecânico domina
efetivamente o todo. O projeto de Marx é o projeto de uma história consciente.
O quantitativo que surge do desenvolvimento cego de forças produtivas meramente
econômicas precisa ser transformado em uma apropriação histórica qualitativa. A
crítica da economia política é o primeiro ato deste fim da pré-história: “De
todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe
revolucionária”.
81 O que liga intimamente a
teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que
de fato agem na sociedade. Mas a teoria de Marx está fundamentalmente além do
pensamento científico, e só o preserva ao superá-lo: o que está em questão é a
compreensão da luta e não da lei. “Só reconhecemos a existência de uma ciência:
a ciência da história” ( A Ideologia Alemã).
82 A época burguesa, que
pretende dar um fundamento científico à história, não percebe o fato de que
essa ciência disponível precisava de um fundamento histórico juntamente com a
economia. Ao contrário, a história só depende diretamente do conhecimento
econômico na medida em que continue sendo história econômica. A extensão em que
o ponto de vista da observação científica pôde deixar de enxergar o papel da
história na economia (o processo global que modifica suas próprias premissas
científicas básicas) fica evidente na vaidade dos cálculos socialistas que
julgavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises. Hoje em dia, quando
a intervenção constante do Estado conseguiu compensar o efeito das tendências à
crise, o mesmo tipo de raciocínio vê nesse equilíbrio uma harmonia econômica
definitiva. Para conhecer -- e absorver -- a ciência da sociedade, o projeto de
asenhorear-se da economia, de apropriar-se da história, não pode ser
científico. O ponto de vista revolucionário de um movimento que julga poder
dominar a história corrente por meio do pensamento científico não deixou ainda
de ser burguês.
83 As correntes utópicas do
socialismo, embora historicamente fundamentadas na crítica da organização
social existente, podem com justiça ser chamadas de utópicas no sentido de que
rejeitam a história -- ou seja, as lutas reais que acontecem, bem como a
passagem do tempo além da perfeição imutável de sua imagem de uma sociedade
feliz --, mas não por rejeitarem a ciência. Ao contrário, os pensadores
utópicos eram totalmente dominados pelo pensamento científico dos séculos
anteriores. Buscavam a realização desse sistema racional geral: não se
consideravam de modo algum como profetas desarmados, pois acreditavam no poder
social da prova científica e até, no caso do sansimonismo, na tomada do poder
pela ciência. “Como querem tomar pela luta o que precisa ser provado?”,
perguntava-se Sombart. A concepção científica dos utópicos não se estendia ao
conhecimento de que alguns grupos têm interesses na situação existente, forças
para mantê-la e formas de falsa consciência correspondentes a tais posições.
Essa concepção não chegou sequer à realidade histórica do desenvolvimento da
própria ciência, em grande parte orientado pela demanda social de agentes que
selecionavam não só o que podia ser admitido, mas também o que podia ser
estudado. Os socialistas utópicos, permanecendo prisioneiros do modo de
exposição da verdade científica, concebiam essa verdade em termos de sua pura
imagem abstrata -- uma imagem que fora imposta em um estágio muito anterior da
sociedade. Como observou Sorel, foi sobre o modelo da astronomia que os
utópicos pensaram poder descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia
vislumbrada por eles, hostil à história, advinha da tentativa de aplicar à
sociedade a ciência menos dependente da história. Essa harmonia foi apresentada
com a inocência experimental do newtonismo, e o destino feliz constantemente
postulado “tem na ciência social deles um papel análogo ao da inércia no
racional” (Matériaux pour une théorie du prolétariat ).
84 A faceta científica
determinista do pensamento de Marx foi precisamente a brecha por onde o
processo de “ideologização” penetrou, quando ele ainda estava vivo, na herança
teórica deixada ao movimento dos trabalhadores. A chegada do sujeito histórico
continua sendo adiada, e é a economia, a ciência histórica por excelência, que
tende cada vez mais a garantir a necessidade de sua própria negação futura. Mas
o que desse modo foi empurrado para fora do campo de visão teórica foi a
prática revolucionária, única verdade dessa negação. O que passa a ser
importante é estudar o desenvolvimento econômico com paciência, e continuar
aceitando o sofrimento com hegeliana tranqüilidade, de modo que o resultado
continua sendo “um cemitério de boas intenções”. Descobre-se de repente que,
segundo a ciência da revolução, a consciência sempre chega cedo demais, e
precisa ser ensinada. “A história demonstrou que nós, e todos os que pensavam
como nós, estávamos enganados. A história demonstrou claramente que o estado do
desenvolvimento econômico no continente naquela época estava longe de estar
maduro”, diria Engels em 1895. Ao longo de toda a vida, Marx sustentou um ponto
de vista unitário em sua teoria, mas a exposição dessa teoria foi feita no
terreno do pensamento dominante e tornou-se precisa na forma de críticas de
disciplinas específicas, sobretudo na crítica da ciência fundamental da
sociedade burguesa, a economia política. Foi essa mutilação, mais tarde aceita
como definitiva, que se constituiu no “marxismo”.
85 A fraqueza da teoria de
Marx é naturalmente a fraqueza da luta do proletariado na época. A classe
trabalhadora não começou a revolução permanente na Alemanha de 1848; a Comuna
foi derrotada no isolamento. O fato de Marx ter sido reduzido a defendê-la e
esclarecê-la com o trabalho enclausurado e erudito no British Museum causou uma
perda da própria teoria. As justificativas científicas que Marx elaborou sobre
o futuro desenvolvimento da classe trabalhadora e a prática organizacional
delas decorrentes tornaram-se obstáculos à consciência proletária em um estágio
posterior.
86 Todas as insuficiências
teóricas, tanto no conteúdo como na forma de exposição da defesa científica da
revolução proletária, podem ser atribuídas à identificação do proletariado com
a burguesia do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.
87 As únicas duas classes
que correspondem efetivamente à teoria de Marx, as duas classes puras às quais
leva toda a análise d’O Capital, a burguesia e o proletariado, são também as
duas únicas classes revolucionárias da história, mas em condições muito
difíceis: a revolução burguesa terminou; a revolução proletária é um projeto
nascido com base na revolução anterior, mas dela diferindo qualitativamente.
Desprezando-se a originalidade do papel histórico da burguesia, mascara-se a
originalidade concreta do projeto proletário, que não pode realizar coisa
alguma a não ser que carregue suas próprias bandeiras e conheça “a imensidão de
suas tarefas”. A burguesia chegou ao poder por ser a classe da economia em
desenvolvimento. O proletariado não pode chegar ao poder a não ser tornando-se
a classe da consciência. O crescimento das forças produtivas não pode ser uma
garantia desse poder, nem em virtude do aumento de despossessão que causa. Uma
tomada jacobina do poder não pode ser o seu instrumento. Nenhuma ideologia pode
ajudá-lo a disfarçar suas metas parciais como metas gerais, pois o proletariado
não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja realmente sua.
88 Se Marx, em um dado
período de sua participação nas lutas do proletariado, depositou demasiadas
esperanças na previsão científica, a ponto de criar o fundamento intelectual
das ilusões do economicismo, sabe-se que ele próprio não sucumbiu a essas
ilusões. Na conhecida carta de 7 de dezembro de 1867 que acompanhou um artigo
em que ele mesmo criticava O Capital-- que Engels depois apresentaria à
imprensa como obra de um adversário -- Marx colocou claramente os limites de
sua ciência: “...a tendência subjetiva do autor (que lhe foi talvez imposta por
sua posição política e por seu passado), ou seja, a maneira como ele vê e
apresenta aos demais os resultados últimos do movimento real, o processo social
real, não tem relação alguma como sua análise de fato”. Desse modo Marx,
denunciando as “conclusões tendenciosas” de sua própria análise objetiva, e
pela ironia do “talvez” com referência às opções extra-científicas que lhe
foram impostas, ao mesmo tempo mostra a chave metodológica para a fusão dos
dois aspectos.
89 A fusão do conhecimento
e da ação deve ser realizada na própria luta histórica, de tal modo que cada um
dos termos seja garantia da verdade do outro. A formação da classe proletária
como sujeito significa a organização das lutas revolucionárias e a organização
da sociedade no momento revolucionário: é então que as condições práticas da
consciência devem existir, condições em que a teoria da práxis é confirmada ao
tornar-se teoria prática. No entanto, esta questão central da organização foi a
questão menos desenvolvida pela teoria revolucionária no momento em que o
movimento dos trabalhadores foi fundado, ou seja, quando essa teoria tinha
ainda o caráter unitário advindo do pensamento da história. (A teoria
empreendera essa tarefa justamente para desenvolver uma prática histórica unitária.)
Essa questão é com efeito o ponto de incoerência dcessa teoria, que permitiu o
retorno de métodos estatistas e ahierárquicos de aplicação emprestados da
revolução burguesa. Por sua vez, as formas de organização do movimento dos
trabalhadores desenvolvidas com base nessa renúncia da teoria impediram a
manutenção de uma teoria unitária, fracionando-a em várias disciplinas
especializadas e parciais. Em virtude da traição ao pensamento histórico
unitário, essa extravio ideológico da teoria não consegue mais reconhecer a
verificação prática desse pensamento quando tal verificação surge nas lutas
espontâneas dos trabalhadores; tudo o que consegue fazer é reprimir toda
manifestação e memória dessa verificação. Contudo, as formas históricas que
surgiram na luta são precisamente o meio prático de que a teoria precisava para
ser verdadeira. Elas são exigências teóricas que não foram formuladas
teoricamente. O soviete não foi uma descoberta teórica; mesmo assim, sua
existência na prática foi por si só a mais alta verdade teórica da Associação
Internacional dos Trabalhadores.
90 Os primeiros êxitos da
luta da Internacional levaram-na a libertar-se das influências confusas da
ideologia dominante nela remanescentes. Mas a derrota e a repressão que logo
encontrou trouxeram à tona um conflito entre duas concepções da revolução
proletária. Ambas continham uma dimensão autoritária e, portanto, afastaram-se
da auto-emancipação consciente da classe trabalhadora. Com efeito, a querela
entre marxistas e bakuninistas (que se tornou irreconciliável) tinha duas
faces, referentes tanto ao poder na revolucionária quanto à organização do
movimento presente; e as posições dos adversários invertiam-se quando passavam
de um aspecto a outro. Bakunin combatia a ilusão de que as classes podiam ser
abolidas pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de
uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sabidos, ou dos que
supostamente o seriam. Marx achava que o crescimento das contradições
econômicas, inseparável da educação democrática dos trabalhadores, reduziria o
papel do Estado proletário a uma simples fase de legalização das novas relações
sociais impostas objetivamente, e denunciava Bakunin e seus seguidores pelo
autoritarismo de uma elite conspiratória que se colocava deliberadamente acima
da Internacional e formulava o projeto extravagante de impor à sociedade a
ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou os que assim se
considerassem. Bakunin, com efeito, recrutava seus seguidores com base nessa perspectiva:
“Pilotos invisíveis no centro da tempestade popular, devemos dirigi-la, não com
um poder visível, mas com a ditadura coletiva de todos os aliados. Uma ditadura
sem faixa, sem título e sem direito oficial, mas ainda mais poderosa por não
ter nenhuma das aparências de poder”. Desse modo, as duas ideologias da
revolução dos trabalhadores confronatavam-se, cada uma contendo uma crítica
parcialmente verdadeira, mas ambas perdendo a unidade do pensamento da história
e instituindo-se em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a
social democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente a
uma ou outra dessas ideologias; e, por toda a parte, os resultados foram bem
diversos dos desejados.
91 A força e a fraqueza da
luta anarquista real residem em sua visão da meta da revolução proletária como
imediatamente presente (as pretensões do anarquismo em suas variantes
individualistas sempre foram risíveis). Do pensamento histórico das lutas de
classes modernas, o anarquismo coletivista reteve apenas a conclusão, e sua
insistência exclusiva nessa conclusão foi acompanhada por um desprezo
deliberado pelo método. Assim, sua crítica da luta política permaneceu
abstrata, ao passo que sua escolha da luta econômica é afirmada apenas como função
da ilusão de uma solução definitiva trazida por um único golpe nesse terreno --
no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a
realizar. O anarquismo é uma negação meramente ideológica do Estado e das
classes, ou seja, das condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da
liberdade pura, que iguala tudo e despreza até a idéia do mal histórico. Esse
ponto de vista que funde todos os desejos parciais deu ao anarquismo o mérito
de representar a rejeição das condições existentes em favor de conjunto da
vida, e não de uma especialização crítica; mas essa fusão é vista no absoluto,
segundo o capricho individual, antes da sua realização na prática, condenando
assim o anarquismo a uma incoerência claramente visível. O anarquismo precisa
apenas repetir a mesma conclusão simples e total em cada luta isolada, pois sua
primeira conclusão foi desde o início identificada ao desfecho final do
movimento. Foi assim que Bakunin pôde escrever em 1873, quando saiu da
Federação Jurassiana: “Nestes últimos nove anos, mais idéias foram
desenvolvidas da Internacional que as necessárias para salvar o mundo, se
idéias sozinhas fossem capazes de o salvar, e desafio qualquer um a inventar
uma nova. Já não é hora de idéias, mas de fatos e atos”. Não há dúvida de que
essa concepção conserva um elemento do pensamento histórico do proletariado, a
certeza de que as idéias devem tornar-se práticas, mas abandona o terreno
histórico ao presumir que as formas adequadas para essa passagem à prática já
foram encontradas e nunca mudarão. 93 Os anarquistas, que se distinguem
explicitamente do resto do movimento dos trabalhadores por sua convicção
ideológica, reproduzem em seu seio essa separação de competências; proporcionam
um terreno favorável ao domínio informal de todas as organizações anarquistas
por propaganditsas e defensores da ideologia, especialistas que em geral são
mais medíocres quanto mais sua atividade intelectual consiste na repetição de
certas verdades definitivas. O respeito ideológico pela unanimidade na decisão
foi, afinal de contas, favorável à autoridade sem controle, no interior da
organização, dos especialistas em liberdade; e o anarquismo revolucionário
espera da população liberada a mesma unanimidade, obtida pelos mesmos meios.
Além disso, a recusa a levar em conta a oposição entre as condições de uma
minoria agrupada na luta presente e as de uma sociedade de indivíduos livres
nutriu entre os anarquistas uma permanente divisão no momento da decisão, tal
como se vê na infinidade de isurreições anarquistas na Espanha, confinadas e
destruídas em um nível local.
93 A ilusão entretida de
modo mais ou menos explícito pelo anarquismo genuíno é a iminência permanente
de uma revolução realizada instantaneamente, que provará a verdade da ideologia
e do modo de organização prática dela derivado. Em 1936, o anarquismo liderou
de fato uyma revolução social, o mais avançado modelo de poder proletário de
todos os tempos. Nesse contexto, é preciso observar que o sinal para a
insurreição geral fora dado por um golpe militar. Além disso, como essa
revolução não foi completada nos primeiros dias (por causa da existência do
poder de Franco em metade do país, pesadamente apoiado do estrangeiro enquanto
o resto do movimento proletário internacional já estava derrotado, e devido aos
restos de forças burguesas e de outros partidos estatistas de trabalhadores no
campo da República), o movimento anarquista organizado revelou-se incapaz de
estender as meias vitórias da revolução, ou sequer de as defender. Seus líderes
conhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruiu a
revolução para perder a guerra civil.
94 O “marxismo ortodoxo” da
Segunda Internacional é a ideologia científica da revolução socialista: ele
identifica toda a sua verdade a processos objetivos da economia e ao progresso
de um reconhecimento dessa necessidade pela classe trabalhadora educada pela
organização. Essa ideologia redescobre a confiança na demonstração pedagógica
que caracterizara o socialismo utópico, mas mistura-a a uma referência
contemplativa ao curso da história: essa atitude perdeu tanto da dimensão
hegeliana de uma história total quanto a imagem imóvel da totalidade da crítica
utópica (mais altamente desenvolvida por Fourier). Essa atitude científica não
pode fazer mais que reviver uma simetria de opções éticas; é dela que brota o
absurdo de Hilferding quando declara que reconhecer a necessidade do socialismo
não dá “nenhuma indicação da atitude prática a ser adotada. Pois uma coisa é
reconhecer uma necessidade, e outra, totalmente diferente, é colocar-se a
serviço dessa necessidade” (Finanzkapital). Aqueles que não reconheceram que,
para Marx e para o proletariado revolucionário, opst unitário da história não
era de modo algum distinto da atitude prática a ser adotada tornaram-se
regularmente vítimas da prática que adotaram.
95 A ideologia da
organização social-democrata dava poder a professores que educavam a classe
trabalhadora, e a forma de organização adotada foi a mais adequada a esse
aprendizado passivo. A participação dos socialistas da Segunda Internacional
nas lutas políticas e econômicas foi com certeza concreta, mas produndamente
acrítica. Foi conduzida em nome da ilusão revolucionária, mas por meio de uma
prática obviamente reformista. A ideologia revolucionária seria destruída pelo
próprio sucesso de seus portadores. A posição separada dos deputados e
jornalistas do movimento atraiu os burgueses já recrutados para um modo burguês
de vida. Mesmo os que haviam sido recrutados nas lutas dos trabalhadores industriais
e que eram trabalhadores foram transformados pela burocracia sindical em
corretores de mão de obra que vendiam trabalho como uma mercadoria, a um preço
justo. Para que a atividade deles conservasse alguma aparência de ser
revolucionária, o capitalismo precisaria ser convenientemente incapaz de
sustentar no nível econômico esse reformismo que tolerava no nível político (na
agitação legalista dos social-democratas). Mas um tal antagonismo, garantido
por sua ciência, era constantemente desmentido pela história.
96 Bernstein, o
social-democrata mais afastado da ideologia e mais abertamente ligado à
metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer demonstrar a
realidade dessa contradição; o movimento reformista dos trabalhadores ingleses
já havia demonstrado isso, passando-se da ideologia. Mas a contradição foi
definitivamente demonstrada pelo próprio desenvolvimento histórico. Embora
cheio de ilusões em outros aspectos, Bernstein negara que uma crise da produção
capitalista forçaria milagrosamente a mão dos socialistas que só queriam herdar
a revolução por intermédio desse rito legítimo. A profunda comoção social
surgida com a primeira guerra mundial, embora fértil em despertar de
consciência, demonstrou duas vezes que a hierarquia social-democrática não
havia educado revolucionariamente: primeiro, quando a vasta maioria do partido
apoiou a guerra imperialista; depois, na derrota, quando esmagou os
revolucionários espartaquistas. O ex-trabalhador Ebert ainda acreditava em
pecado, pois admitiu que odiava a revolução “como o pecado”. O mesmo líder
revelou-se um precursor da representação socialista que logo depois enfrentaria
o proletariado russo como se inimigo absoluto; chegou até a formular exatamente
o mesmo programa para essa nova alienação: “o socialismo quer dizer trabalhar
muitíssimo”.
97 Lênin, como pensador
marxista, não passava de um kautskista fiel e coerente que aplicou a ideologia
revolucionária do “marxismo ortodoxo” às condições russas, condições essas que
eram desfavoráveis à prática reformista praticada em outras partes pela Segunda
Internacional. No contexto russo, o controle externo do proletariado, execido
por meio de um partido clandestino disciplinado subordinado a intelectuais
tramsformados em “revolucionários profissionais”, tornou-se uma profissão que
se recusava a tratar com as profissões dominantes da sociedade capitalista
(sendo o regime político czarista, aliás, incapaz de oferecer oportunidades
desse tipo, que se baseiam em um estágio avançado do poder burguês). Tornou-se,
portanto, a profissão do controle absoluto da sociedade.
98 Com a guerra e o colapso
da internacional social-democrata frente a ela, o radicalismo ideológico
autoritário dos bolcheviques espalhou-se pelo mundo. O fim sangrento das
ilusões democráticas do movimento dos trabalhadores transformou o mundo inteiro
em uma Rússia, e o bolchevismo, que reinou sobre a primeira ruptura
revolucionária ocorrida nesta época de crises, ofereceu aos proletários de
todas as terras o seu modelo hierárquico e ikdeológico, para que eles pudesse
“falar russo” com a classe dominante. Lenin não reprovava o marxismo da Segunda
Internacional por ser uma ideologia revolucionária, mas por ter deixado de o
ser.
99 O momento histórico em
que o bolchevismo triunfou por si mesmo na Rússia e em que a social-democracia
combateu vitoriosamente pelo velho mundo marca a inauguração de um estado de
coisas que está no coração do domínio do espetáculo moderno: a representação da
classe trabalhadora opõe-se radicalmente à classe trabalhadora.
100 “Em todas as revoluções
anteriores”, escreveu Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de dezembro de 1918,
“os combatentes enfrentavam-se diretamente: classe contra classe, programa
contra programa. Na revolução atual, as tropas que protegem a velha ordem não
intervêm sob as bandeiras da classe dominante, mas sob a de um ‘partido
social-democrata’. Se a questão central da revolução fosse colocada aberta e
honestamente, capitalismo ou socialismo, a grande massa do proletariado não
teria dúvidas, nem hesitaria”. Assim, poucos dias antes de sua destruição, a
corrente radical do proletariado alemão descobriu o segredo das novas condições
criadas pelo processo precedente (com o qual a representação da classe
trabalhadora contribuíra em grande medida): a organização espetacular da defesa
da ordem existente, o reino social da aparências em que nenhuma “questão
central” pode mais ser colocada “aberta e honestamente”. A representação
revolucionária do proletariado já se tornara, nessa altura, ao mesmo tempo o
principal fator e o resultado central da falsificação generalizada da
sociedade.
101 A organização do
proletariado com base no modelo bolchevique que surgiu do atraso russo e do
abandono da luta revolucionária pelo movimento dos trabalhadores dos países
avançados encontrou nesse atraso todas as condições que arrastaram essa forma
de organização para a inversão contra- revolucionária que ela continha
inconscientemente em sua raiz. O contínuo recuo do movimento dos trabalhadores
europeus frente ao Hic Rhodus, hic salta do período de 1918-1920, recuo que
incluíra a destruição violenta de sua minoria radical, favoreceu o arremate
final do desenvolvimento bolchevique e permitiu que seu desfecho fraudulento se
apresentasse ao mundo como a única solução proletária. Assumindo o monopólio de
estado sobre a representação e a defesa do poder dos tgbds, o partido
bolchevique justificava-se e tornava-se o que já era: o partido dos
proprietários do proletariado (que eliminou essencialmente todas as formas
anteriores de propriedade).
102 Durante vinte anos de
debates sem solução, as várias tendências da social-democracia russa examinaram
todas as condições para a liqüidação do czarismo: a fraqueza da burguesia, o
peso da maioria camponesa e o papel decisivo de um proletariado concentrado e
comabtivo, mas bem pouco numeroso. O debate foi resolvido em termos práticos
por um fator que não estivera presente na hipótese: uma burocracia
revolucionária que dirigia i proletariado tomou o poder de Estado e deu à
sociedade um novo domínio de classe. A revolução estritamente burguesa fora
impossível; a “ditadura democrática de operários e camponeses” não tinha
sentido; o poder proletário dos sovietes não conseguiu manter-se
simultaneamente contra a classe dos pequenos proprietários de terras, contra a
reação branca nacional e internacional e contra sua própria representação
externalizada e alienada na forma de um partido de trabalhadores de senhores
absolutos da economia estatal, da expressão e logo do pensamento. A teoria da
revolução permanente de Trotski e Parvus, que Lênin adotou em abril de 1917,
foi a única teoria que se tornou verdadeira para os países em que o
desenvolvimento social da burguesia estava retardado, mas só depois da
introdução de um fator desconhecido: o poder de classe das burocracia. Nas
inúmeras discussões entre os dirigentes bolcheviques, Lênin foi o defensor mais
coerente da concentração do poder ditatorial nas mãos dos repsentantes supremos
da ideologia. Lênin teve razão todas as vezes contra seus adversários, por apoiar
a solução implícita em suas escolhas anteriores de poder absoluto de uma
minoria: a democracia negada aos camponeses por meio do estado deveria ser
negada aos trabalhadores também, o que levou a negá-la aos líderes comunistas
dos sindicatos, ao partido todo e finalmente aos principais burocratas do
partido. No Décimo Congresso, quando o soviete de Cronstadt fora derrotado
pelas armas e enterrado sob a calúnia, Lênin pronunciou contra os burocratas de
esquerda da “Oposição Operária” a seguinte conclusão (cuja lógica Stalin mais
tarde aplicou a toda uma divisão do mundo): “Aqui ou lá com um fuzil, mas não
com a oposição... Já tivemos oposição de sobra”.
103 Depois de Cronstadt, a
burocracia -- única proprietária do capitalismo de Estado -- consolidou internamente
o seu poder por meio de uma aliança temporária com o campesinato (a “nova
política econômica”) e externamente usando os trabalhadores arregimentados nos
partidos burocráticos da Terceira Internacional como apoio para a diplomacia
russa, sabotando assim todo o movimento revolucionário e apoiando governos
burgueses de cuja ajuda precisava na política internacional (o Kuomintang na
China em 1925-27, as Frentes Populares da Espanha e da França etc.). a
sociedade burocrática continuou a consolidação aterrorizando o campesinato para
implementar a acumulação capitalista primitiva mais brutal da história. A
industrialização da época de Stalin revelou a realidade por trás da burocracia:
a continuação do poder da economia e a preservação da essência do trabalho
mercadoria da sociedade de mercado. A economia independente, que domina a
sociedade a ponto de reinstituir o domínio de classe de que precisa para seus
próprios fins, é assim confirmada. O que equivale a dizer que a burguesia criou
uma potência autônoma que, enquanto durar a sua autonomia, pode até se passar
da burguesia. A burocracia totalitária não é “a última classe proprietária da
história” no sentido de Bruno Rizzi; é apenas a classe dominante de reposição
para a economia mercantil. A propriedade capitalista particular em declínio é
trocada por um substituto simplificado e menos diversificado que se condensa na
propriedade coletiva da classe burocrática. Essa classe dominante
subdesenvolvida é a expressão do subdesenvolvimento econômico e não tem outra
perspectiva além de superar o atraso desse desenvolvimento em algumas regiões
do mundo. Foi o partido dos trabalhadores organizado segundo o modelo burguês
da separação que forneceu os quadros hierárquicos estatais para essa edição
suplementar de uma classe dominante. Quando estava em uma das prisões de
Stalin, Anton Ciliga observou que “as questões técnicas de organização acabaram
revelando-se questões sociais” (Lênin e a Revolução).
104 A ideologia
revolucionária, a coerência do separado, da qual o leninismo representou a mais
alta tentativa voluntarista, ao supervisionar a realidade que a rejeita, volta
com o stalinismo à sua verdade na incoerência. Nessa altura a ideologia deixa
de ser uma arma e passa a ser uma meta. A mentira que não é mais desafiada
torna-se loucura. Tanto a realidade quanto a meta dissolvem-se na proclamação
ideológica totalitária: tudo o que diz é tudo o que existe. Trata-se de um
primitivismo local do espetáculo, cujo papel é mesmo assim essencial para o
desenvolvimento do espetáculo mundial. A ideologia que se materializa nesse
contexto não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo que atingiu
o estágio da abundância, mas apenas a percepção desse mundo, com a ajuda da
polícia.
105 A classe ideológica
totalitária no poder é o poder de um mundo de pernas para o ar: quanto mais
forte é, mais alega não existir, e a sua força serve antes de mais nada para
afirmar a sua não existência. Ela só é modesta neste ponto, pois a sua não
existência oficial precisa coincidir também com o nec plus ultra do
desenvolvimento histórico que deve ao mesmo tempo ser atribuído à sua liderança
infalível. Estendida por toda a parte, a burocracia deve ser a classe invisível
à consciência; conseqüentemente, toda a vida social fica ensandecida. A
organização social da mentira absoluta flui dessa contradição fundamental.
106 O stalinismo foi o
reino do terror no seio da própria classe burocrática. O terrorismo que está na
base do poder dessa classe precisa também atingi-la, pois ela não tem nenhuma
garantia judicial, nenhuma existência reconhecida como classe proprietária que
possa estender a cada um de seus membros. Estando a sua propriedade real
oculta, a burocracia tornou-se proprietária por meio da falsa consciência. Esta
só pode conservar o seu poder absoluto por meio do terror absoluto, em que
todos os motivos reais acabam sendo perdidos. Os membros da classe burocrática
no poder só têm um direito coletivo à propriedade sobre a sociedade, como
partícipes em uma mentira fundamental: precisam desempenhar o papel do
proletariado dirigindo uma sociedade socialista; precisam ser atores leais a um
roteiro de deslealdade ideológica. Nenhum burocrata pode sustentar o seu poder
individualmente, pois provar que é um proletário socialista significaria apresentar-se
como o contrário de um burocrata, e provar que é um burocrata é impossível,
pois a verdade oficial da burocracia é não existir. Portanto, cada burocrata
depende absolutamente da garantia central da ideologia, que reconhece a
participação coletiva em seu “poder socialista” de todos os burocratas que não
aniquila. Se todos os burocratas em conjunto decidem tudo, a coesão de sua
própria classe só pode ser garantida pela concentração terrorista de todo o seu
poder em uma única pessoa. Nessa pessoa reside a única verdade prática da
falsidade no poder: a permanência indiscutível de sua fronteira sempre
remarcada. Stalin decide sem apelo, em última instância, quem deve ser um
burocrata possuidor; em outras palavras, quem será um “proletário no poder” e
quem um “traidor a soldo do Mikado ou de Wall Street”. Os átomos burocráticos
só encontram a essência comum de seu direito na pessoa de Stalin. Stalin é o
soberano do mundo que assimse conhece como a pessoa absoluta para cuja
consciência não há espírito mais alto. “O soberano do mundo tem consciência
efetiva do que é -- o poder universal da eficácia -- na violência destrutiva
que exerce contra o Eu de seus súditos, os outros contrastantes”. Assism como é
o poder que define o terreno do domínio, é também “o poder que assola esse
terreno”.
107 Quando a ideologia,
tendo-se tornado absoluta pela posse do poder absoluto, muda de conhecimento
parcial para falsidade totalitária, o pensamento da história é tão
perfeitamente aniquilado que a própria história, mesmo no nível do conhecimento
mais empírico, não pode mais existir. A sociedade burocrática totalitária vive
em um presente perpétuo em que tudo o que aconteceu só existe para ela como um
lugar acessível à sua polícia. O projeto já formulado por Napoleão de “governar
dirigindo a energia da memória” encontrou sua concretização total na
manipulação permanente do passado, não só dos sentidos, mas também dos fatos.
Mas o preço pago por essa emancipação de toda realidade histórica é a perda da
referência racional que é indispensável para a sociedade histórica, o
capitalismo. Sabe-se o quanto custou à economia russa a aplicação científica da
ideologia ensandecida -- é só lembrar a impostura de Lysenko. A contradição da
administração de uma sociedade industrializada pela burocracia totalitária,
presa entre a necessidade de racionalidade e a sua rejeição do racional, é uma
de suas principais deficiências em relação ao desenvolvimento capitalista
normal. Assim como a burocracia não consegue resolver a questão da agricultura
do modo que o capitalismo o fez, em última instância também é inferior ao
capitalismo na produção industrial, planejada de cima para baixo e baseada na
irrelaidade e na falsificação generalizada.
108 Entre as duas guerras
mundiais, o movimento revolucionário dos trabalhadores foi aniquilado pela ação
conjunta da burocracia stalinista e do totalitarismo fascista, que emprestara
sua forma de organização do partido totalitário ensaiado na Rússia. O fascismo
foi uma defesa extremista da economia burguesa ameaçada pela crise e pela
subversão proletária. É um estado de sítio da sociedade capitalista, por meio
da qual essa sociedade salva- se e proporciona-se uma racionalização acelerada
fazendo o Estado intervir maciçamente em sua administração. Mas essa mesma
racionalização é ameaçada pela imensa irracionalidade de seus meios. Embora o
fascismo se lance à defesa dos principais pontos da ideologia burguesa que se
tornou conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), unindo
a pequena burguesia e os desempregados desorientado pela crise ou enganados
pela impotência da revolução socialista, em si mesmo ele não é fundamentalmente
ideológico. Ele apresenta-se tal qual é: uma ressurreição violenta do mito que
exige a participação em uma comunidade definida por pseudo-valores arcaicos:
sangue, raça, o líder. O fascismo é o arcaismo tecnicamente equipado. Seu
ersatz decomposto de mito é revivido no contexto espetacular dos mais modernos
meios de condicionamento e ilusão. É, portanto, um dos fatores de formação do
espetáculo moderno, e seu papel na destruição do antigo movimento dos
trabalhadores faz dele uma das forças fundamentais da sociedade atual. Contudo,
sendo também uma das formas mais custosas de se manter a ordem capitalista,
teve de deixar o centro do palco para os grandes papéis reprsentados pelos
estados capitalistas; foi eliminado por formas mais fortes e mais racionais da
mesma ordem.
109 Agora que a burocracia
russa conseguiu finalmente desfazer-se dos resquícios de propriedade burguesa
que atravancavam o seu domínio sobre a economia, desenvolvendo essa propriedade
para seu próprio uso e sendo reconhecida externamente entre as grandes
potências, quer desfrutar calmamente de seu mundo e suprimir o elemento
arbitrário que reinou sobre ela: denuncia o stalinismo que esteve na sua
origem. Mas a própria denúncia continua sendo stalinista, arbitrária,
inexplicada e continuamente corrigida, pois a mentira ideológica da sua origem
nunca pode ser revelada. Portanto, a burocracia não pode liberalizar nem a
cultura, nem a política, pois sua existência como classe depende do seu
monopólio ideológico que, com todo o seu peso, é seu único título de
propriedade. É certo que a ideologia perdeu a paixão de sua afirmação positiva,
mas a trivialidade indiferente que ainda sobrevive tem a função repressiva de
proibir a mais mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do
pensamento. Portanto, a burocracia fica atada a uma ideologia em que ninguém
mais acredita. O que foi terrorismo tornou-se objeto de riso, mas esse objeto
de riso só se pode manter preservando, como último recurso, o terrorismo de que
gostaria de se livrar. Assim, precisamente no momento em que a burocracia quer
demonstrar sua superioridade no terreno do capitalismo, revela-se como uma parente
pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a sua história real contradiz as suas
alegações e sua ignorância vulgarmente entretida contradiz suas pretensões
científicas, o seu projeto de tornar-se um rival da burguesia na produção da
abundância mercantil é bloqueado pelo fato de que essa abundância tem implícita
sua própria ideologia e costuma ser acompanhada por uma liberdade
indefinidamente extensa de falsas escolhas espetaculares, uma pseudo-liberdade
irreconciliável com a ideologia burocrática.
110 No presente estágio de
seu desenvolvimento, o direito burocrático à propriedade ideológica já está
desmoronando internacionalmente. O poder que se estabeleceu no nível nacional
como uim modelo fundamentalmente internacionalista precisa admitir que já não
consegue manter sua falsa coesão por sobre todas as fronteiras nacionais. O
desenvolvimento econômico desigual de algumas burocracias com interesses
concorrentes que conseguiram adquirir seu “socialismo” além do único país levou
ao confronto público e total entre a mentira russa e a mentira chinesa. A
partir deste momento, toda burocracia no poder, ou todo partido totalitário
candidato ao poder deixado pelo período stalinista em algumas classes
trabalhadoras nacionais, deve seguir seu por caminho. A decomposição global da
aliança da mistificação burocrática é ainda mais agravada por manifestações de
negação interna que começaram a fazer-se visíveis ao mundo com a revolta dos
operários de Berlim oriental, opondo aos burocratas a exigência de um “governo
dos metalúrgicos”, manifestações que já chegaram uma vez ao poder dos concelhos
operários na Hungria. No entanto, essa decomposição global da aliança
burocrática é em última instância o fator menos favorável ao atual
desenvolvimento da sociedade capitalista. A burguesia está em vias de perder o
adversário que a sustentou objetivamente ao proporcionar uma unificação
ilusória de toda negação da ordem existente. Esta divisão de trabalho no
espetáculo chega ao fim quando o papel pseudo-revolucionário divide-se por sua vez.
O elemento espetacular do desmoronamento do movimento dos trabalhadores está
prestes a desmoronar.
111 A ilusão leninista não
tem nenhuma base contemporânea fora das diversas tendências trotskistas. Nelas,
a identificação do projeto proletário a uma organização hierárquica da
ideologia sobrevive tenazmente à experiência de todos os seus resultados. A
distância que separa o trotskismo de uma crítica revolucionária da sociedade
atual permite-lhe manter uma atitude deferente com relação a posições que já eram
falsas quando foram em um combate real. Basicamente, Trotski continuou
solidário com a alta burocracia até 1927, procurando capturá-la para fazê-la
retomar uma ação externa genuinamente bolchevique (é sabido que, para ocultar o
famoso “testamento” de Lênin, ele chegou até a desmentir caluniosamente o seu
aliado Max Eastman, que o havia publicado). Trotski foi condenado por sua
perspectiva básica, pois assim que a burocracia se reconhece em seu resultado
como uma classe internamente contra-revolucionária, precisa também escolher, em
nome da revolução, ser de fato contra-revolucionária externamente, tal como em
seu próprio país. A luta posterior de Trotski pela Quarta Internacional
conserva a mesma incoerência. Por toda a vida, Trotski negou-se a reconhecer a
burocracia como o poder de uma classe separada, pois, durante a segunda
revolução russa, tornou-se um partdário incondicional da forma bolchevique de
organização. Quando Lukács, em 1923, mostrou que essa forma era a ansiada
mediação entre a teoria e a prática, na qual os proletários deixam de ser
“espectadores” dos acontecimentos em sua organização, mas escolhem e vivem
conscientemente esses acontecimentos, estava descrevendo como méritos reais do
partido bolchevique tudo o que este não era. A não ser por sua profunda obra
teórica, Lukács continuava sendo um ideólogo que falava em nome do poder mais
grosseiramente externo ao movimento proletário, acreditando e fazendo acreditar
que ele, com sua personalidade completa, movia-se nesse poder como se fosse o
seu próprio. Mas a continuação mostrou de que modo esse poder abandona e
suprime os seus lacaios; nos infindáveis auto-repúdios de Lukács, aquilo com
que ele se identificara ficou visível e claro como uma caricatura: ele se tinha
identificado ao contrário de si mesmo e do que sustentara em História e
Consciência de Classe. Lukács é a melhor prova da regra fundamental que julga
todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam é uma medida exata de
sua própria realidade desprezível. Contudo, não se pode dizer que Lênin tivesse
estimulado esse tipo de ilusão sobre a sua atividade, considerando que “um
partido político não pode ficar examinando seus membros para ver se há alguma
contradição entre a filosofia deles e o programa do partido”. O partido real
cujo retrato Lukács traçara tão inoportunamente só era coerente para uma única
tarefa precisa e parcial: tomar o poder de estado.
112 A ilusão neo-leninista
do trotskismo atual, constantemente desmentida pela realidade das sociedades
capitalistas modernas burguesa e burocrática, encontra um campo de ação
privilegiado nos países “subdesenvolvidos” formalmente independentes. Neles, a
ilusão de alguma variante de socialismo de estado e burocrático é
conscientemente manipulada pelas classes dominantes locais apenas como a
ideologia do desenvolvimento econômico. A composição híbrida dessas classes
está relacionada com maior ou menor clareza à sua posição no espectro
burguês-burocrático. Seus jogos na escala internacional com os dois polos do
poder capitalista existente, assim como seus compromissos ideológicos
(sobretudo com o Islã), expressam a realidade híbrida de sua base social e
privam esse subproduto final do socialismo ideológico de toda seriedade, a não
ser a policial. Uma burocracia estabelece- se condujzindo uma luta nacionalista
e uma revolta agrária camponesa; a partir desse momento, como na China, tende a
aplicar o modelo stalinista de industrialização em sociedades menos
desenvolvidas do que a Rússia em 1917. Uma burocracia capaz de industrializar o
país pode formar-se com base na pequena burguesia, ou em quadros militares que
tomam o poder, como no Egito. Uma burocracia que se estabelece como liderança
para-estatal durante a luta pode, em certas questões, procurar o ponto de
equilíbrio de um compromisso para unir-se a uma burguesia nacional fraca, como
na Argélia no início da guerra de independência. Finalmente, nas ex-colônias da
África negra que permanecem abertamente ligadas à burguesia americana ou
européia, a burguesia constitui-se (geralmente com base no pder dos chefes
tribais) tomando o Estado. Esses países, nos quais o imperialismo estrangeiro é
o único verdadeiro senhor, entram em um estágio em que os compradores ganham um
Estado indígena como compensação por sua venda de produtos indígenas, Estado
que é independente frente às massas locais, mas não ao imperialismo. Trata-se
de uma burguesia artificial incapaz de acumular, mas que simplesmente saqueia a
parte de mais valia que consegue extrair do trabalho local e os subsídios
externos dos Estados ou monopólios que a protegem. Devido à óbvia incapacidade
dessas classes para cumprir a função normal de uma burguesia, cada uma delas
enfrenta uma subversão baseada no modelo burocrático mais ou menos adaptado às
peculiaridades locais e ávido pela herança dessa burguesia. Mas o próprio
sucesso de uma burocracia em seu projeto fundamental de industrialização contém
necessariamente a perspectiva de sua derrota histórica: acumulando capital ela
acumula proletariado, e assim cria sua própria negação em um país em que ela
ainda não existia.
113 Neste desenvolvimento
complexo e terrível que levou a época das lutas de classes para novas
condições, o proletariado dos países industriais perdeu completamente a
afirmação de sua perspectiva autônoma e também, em última instância, suas
ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Subsiste irreedutivelmente
na alienação intensificada do capitalismo moderno; é a imensa maioria dos
trabalhadores que perderam todo o poder sobre o uso de suas próprias vidas e que,
uma vez sabendo disso, redefinem-se como o proletariado, como a negação em ação
no seio da sociedade. O proletariado é objetivamente fortalecido pelo
progressivo desaparecimento do campesinato e pela extensão da lógica do
trabalho industrial a um grande setor dos “serviços” e das profissões
intelectuais. Subjetivamente, está ainda muito afastado de sua consciência de
classe prática, não só entre os tdbs de colarinho branco, mas também entre os
assalariados que ainda só desconbriram a impotência e a mistificação da velha
política. Não obstante, quando o proletariado descobre que seu próprio poder
externalizado colabora com o fortalecimento constante da sociedade capitalista,
não só na forma de trabalho como também na dos sindicatos, dos partidos ou do
poder estatal que construíra para emancipar-se, descobre também com a
experiência histórica concreta que é a classe totalmente oposta a toda
externalização congelada e a toda especialização de poder. O proletariado é o
portador da revolução que não pode permitir que nada permaneça exterior a ela,
da exigência do domínio permanente do presente sobre o passado e da crítica
total da separação. É isto que precisa encontrar sua forma adequada na ação.
Nenhuma melhoria quantitativa de sua miséria, nenhuma ilusão de integração
hierárquica é uma cura duradoura para a sua insatisfação, pois o proletariado
não pode reconhecer-se verdadeiramente em um mal particular que tenha sofrido,
nem na correção de um mal particular. Tampouco pode reconhecer-se na correção
de um grande número de males, mas apenas no mal absoluto de ter sido relegado à
margem da vida.
114 Os novos sinais de
negação que se multiplicam nos países econômicamente desenvolvidos, sinais que
são mal compreendidos e falsificados pelo arranjo espetacular, já nos permitem
chegar à conclusão de que uma nova época está começando: agora, após a primeira
tentativa de subversão dos trabalhadores, é a própria abundância capitalista
que está fracassando. Quando as lutas anti- sindicais dos trabalhadores
ocidentais são reprimidas antes de mais nada pelos próprios sindicatos, e
quando os primeiros protestos amorfos lançados por correntes rebeldes da
juventude implicam diretamente a rejeição da velha política especializada, da
arte e da vida quotidiana, vemos os dois lados de uma luta espontânea que
começa sob um disfarce criminoso. Esses são os portentos de um segundo assalto
proletário contra a sociedade de classes. Quando as últimas crianças desse
exército ainda imóvel reaparecem no campo de batalha que foi alterado, mas permanece
o mesmo, seguem um novo “general Ludd” que as incita, desta vez, à destruição
das máquinas do consumo permitido.
115 “A forma política enfim
descoberta em que a emancipação econômica do trabalho pode ser realizada”
delineou-se com clareza neste século nos concelhos revolucionários de
trabalhadores, que concentram em si todas as funções de decisão e execução e
federam-se uns aos outros por meio de delegados responsáveis perante a base e
revogáveis a qualquer momento. Sua existência real não passou ainda de um breve
esboço, rapidamente atacados e derrotados por várias forças defensivas da
sociedade de classes, entre as quais sua própria falsa consciência deve com
freqüência ser incluída. Pannekoek insistia, com razão, que o poder dos
concelhos, mais que proporcionar uma solução, “coloca problemas”. No entanto, é
precisamente nesse poder que os problemas da revolução proletária podem
encontrar a sua solução. É nele que as condições da consciência histórica estão
reunidas. É nele que a comunicação ativa direta é realizada, onde a
especialização, a hierarquia e a separação terminam, onde as condições
existentes são transformadas em “condições de unidade”. Neles, o sujeito
proletário pode emergir de sua luta contra a contemplação: sua consciência é
igual à organização prática que ele leva a cabo, pois essa própria consciência
é inseparável da intervençao coerente na história.
116 No poder dos concelhos,
que deve suplantar internacionalmente todo outro poder, o movimento proletário
é seu próprio produto, e esse produto é o próprio produtor. Ele é sua meta para
si mesmo. Só nesse poder a negação espetacular da vida é por sua vez negada.
117 O surgimento dos
concelhos foi a mais alta realidade do proletariado no primeiro quarto deste
século, realidade que não foi vista ou que foi disfarçada porque desapareceu
juntamente com o resto do movimento negado e eliminado por toda a experiência
histórica da época. No novo momento da crítica proletária, esse resultado volta
como o único ponto invicto do movimento derrotado. A consciência histórica, que
sabe que esse é o único meio em que pode existir, pode agora reconhecer essa
realidade, não mais na periferia do que está refluindo, mas no centro do que
está subindo.
118 Por todas essas razões,
uma organização revolucionária que exista antes do poder dos concelhos (que
encontrfará na luta a sua própria forma) já sabe que não representa a classe
trabalhadora. Deve reconhecer-se apenas como uma separação radical do mundo da
separação.
119 A organização
revolucionária é a expressão coerente da teoria da prática entrando em
comunicação não unilateral com as lutas práticas, no processo de tornar-se
teoria prática. Sua própria prática é a generalização da comunicação e da
coerência nessas lutas. No momento revolucionário da dissolução da separação
social, essa organização deve reconhecer sua própria dissolução como
organização separada.
120 A organização
revolucionária não pode ser menos que uma crítica unitária da sociedade, ou
seja, uma crítica que não se comprometa com nenhuma forma de poder separado em
parte alguma do mundo, e uma crítica proclamada globalmente contra todos os
aspectos da vida social alienada. Na luta entre a organização revolucionária e
a sociedade de classes, as armas não são mais que a essência dos próprios
combatentes. O único limite à participação na democracia total da organização
revolucionária é o reconhecimento e a auto- apropriação da coerência de sua
crítica por todos os seus membros, coerência que precisa ser provada na teoria
crítica como tal e na relação entre a teoria e a atividade prática.
121 Quando a alienação
capitalista em constante crescimento em todos os níveis torna cada vez mais
difícil para os trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria,
forçando-os a enfrentar a alternativa de rejeitar a totalidade dessa miséria ou
nada, a organização revolucionária precisa aprender que não pode mais combater
a alienação com formas alienadas.
122 A revolução proletária
depende inteiramente da condição de que, pela primeira vez, a teoria como
inteligência da prática humana seja reconhecida e vivida pelas massas. Exige
que os trabalhadores se tornem dialéticos e traduzam seu pensamento em prática.
Portanto, exige de homens sem qualidade mais que a revolução burguesa exigiu
dos homens qualificados aos quais delegou a execução de suas tarefas (posto que
a consciência ideológica parcial construída por uma parte da burguesia
baseava-se na economia, essa parte central da vida social em que essa classe já
estava no poder). O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até o
estágio da organização espetacular da não vida leva assim o projeto
revolucionário a tornar-se visivelmente o que já era essencialmente.
123 A teoria revolucionária
é agora inimiga de toda ideologia revolucionária, e sabe que o é.
[traduzido por Tomás Bueno]
Aucun commentaire:
Enregistrer un commentaire